A Índia desde 1980

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Sˇumit Ganguly e Rahul Mukherji

A ÍndiA desde 1980 Tradução: Cristina Cavalcanti

1ª edição

Rio de Janeiro 2014


Sumário Apresentação 9 Prefácio 12 1. Quatro revoluções e o futuro da Índia 22 2. A transformação da política externa indiana 39 3. A transformação econômica 71 4. A mobilização política 106 5. O secularismo indiano desde 1980 130 6. A trajetória indiana – promessas e desafios 151 Agradecimentos 168 Notas 169


APrESENTAÇÃo Rosangela Dias

A Índia integra, junto com o Brasil, África do Sul, Rússia, China e Índia, os chamados brics ou países emergentes, que nos anos 1950-60 eram chamados de subdesenvolvidos. Em comum entre esses países, exceto a Rússia, o fato de possuírem uma industrialização tardia e um passado colonial que desapropriou suas riquezas, desorganizou a sociedade nativa e, até hoje, marca sua estrutura social. De todos esses países, sem sombra de dúvida, a Índia é o que exerce o maior fascínio no mundo ocidental. Embora a China também esteja cercada por uma aura de misticismo e seu líder comunista revolucionário, Mao Tse-tung, tenha exercido grande influência na esquerda mais radical do ocidente, principalmente no final dos anos 1960, a Índia, talvez por ser mais aberta e por ter entre as línguas oficiais o inglês, está mais presente no nosso imaginário. A Rússia foi a pioneira ao realizar a primeira revolução socialista do mundo, e a África do Sul possuiu certamente o homem mais admirado do século xx, Nelson Mandela, mas esses são fatores que mostram a proximidade desses países com o ocidente. Diferentemente da Índia, que fascina pela total diversidade, estranheza e incógnita que recobre sua sociedade, marcada por uma religiosidade que perpassa todas as suas esferas. Seja por conta desses fatores presentes em um lugar tão distante e com cultura tão mais diferente que a nossa, a Índia nos instiga a pensar em que tipo de país ela pode se transformar. O mercado editorial brasileiro vem apresentando textos indianos de ficção ou que tratam da sociedade do populoso país asiático pelo lado das suas imensas contradições sociais. Caso do livro Bombaim: cidade máxima, de Suketu Mehta, e de Índia: um milhão de motins agora, do Prêmio Nobel de literatura de 2001, V. S. Naipaul, indiano nascido em Trinidad Tobago e ferrenho crítico das elites indianas, principalmente pela submissão e admiração que nutrem pelo

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colonizador inglês. Textos que refletem não só a riqueza da produção escrita indiana, que chama atenção em um país com a maior taxa de analfabetismo entre os brics – em 2006, 34,9% da população com mais de quinze anos –, mas também o papel que a Índia desempenha no mundo, não apenas em termos econômicos, mas igualmente em termos culturais, principalmente a partir de meados do século xx. Vários são os autores e pensadores indianos que podemos citar, como o escritor Salman Rushdie, o economista Amartya Sen ou o pensador da cultura e filósofo Homi Bhabha. Ainda que esses autores, com livros publicados no Brasil, nos deem uma ideia do que seja a sociedade indiana, existe uma lacuna que, espero, o livro A Índia desde 1980 comece a preencher. A obra aborda as transformações ocorridas no país após o assassinato da primeira-ministra Indira Ghandi em 1984 e, principalmente, da entrada das camadas populares indianas, as castas inferiores, no jogo e processo políticos. Os autores, indianos e especialistas em sul da Ásia, são cientistas políticos. Enquanto Ganguly, professor da Universidade Indiana nos Estados Unidos, tem seu olhar direcionado para questões sociais, Mukherji, professor da Universidade Nacional de Singapura, mantém um vivo interesse nos aspectos políticos e econômicos do desenvolvimento das relações de trabalho ocorridas numa Índia em transição econômica a caminho da globalização e orientada para a economia de mercado. Ambos, ao trabalharem com os embates políticos travados entre os diferentes segmentos da população indiana, nos fornecem uma visão que concretiza as diferenças socioeconômicas existentes na Índia, apontando para a mobilização popular crescente no país e as situando na arena política das eleições e dos partidos. Somos fascinados pelo exotismo de um país no qual o casamento arranjado pelos pais é uma obrigação cujo descumprimento pode ser punido com a morte, mesmo que o Estado indiano não aceite essa situação e vigorem leis que proíbem a prática. Ou o país em que as vacas são sagradas – não podem ser maltratadas, não fazem parte dos hábitos alimentares –, apesar de buscarem alimento no lixo, nos restos de comida dos humanos. Ou, ainda, o país onde os mortos são cremados a céu aberto às margens do rio Ganges... A Índia revela aspectos mais curiosos e atraentes do que a discussão sobre política e economia;


Rosangela Dias é historiadora e editora

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talvez por essa razão os livros sobre a cultura indiana tenham mais apelo comercial e sejam mais numerosos. Entretanto, o grande desafio para a Índia não é ser reconhecida por sua cultura milenar, mas consolidar essa jovem e considerada a maior – senão a mais problemática também – democracia do mundo: a população indiana, em torno de 1,25 bilhão de habitantes, continua a crescer cerca de 1,3% ao ano e tem uma expectativa de vida de aproximadamente 65 anos. Tarefa árdua em uma sociedade na qual o sistema de castas, imperante há séculos, se mostra quase impossível de ser destruído, de tão solidificado que está entre seus habitantes. A religião, a tradição e os costumes se encarregam para que grande parte dos indianos aceite esta situação sem questionamento algum. O regime de castas criou tal separação de tarefas, competências e direitos que é comum vermos um executivo indiano com alguém ao lado segurando sua pasta tipo 007 e ele, o executivo, tendo nas mãos somente um celular, sempre de última geração. Nos restaurantes da Índia, diferentemente dos ocidentais, o maître, mesmo com a casa cheia, não tira um prato, não recolhe um pedido, não limpa uma mesa. Quando solicitado por algum turista ocidental desavisado, ele convoca outro funcionário para o serviço. Situação que atravanca, no mínimo e no barato, o bom andamento da casa. Como conciliar tal mentalidade com um sistema baseado na igualdade de direitos e deveres, princípios (ainda que utópicos) da democracia? Esta talvez seja a tarefa mais árdua da classe política indiana que acredita num país justo, onde possa haver liberdade religiosa, sem que ela mesma não seja um entrave à expansão da democracia e das liberdades individuais. Uma sociedade em que dalits e brâmanes tenham as mesmas oportunidades, em que todos possuam moradia e alimento e na qual a corrupção, alimentada pela ideia de que uns são melhores que outros, ao menos diminua. Espero que o livro A Índia desde 1980 contribua para isso. Boa leitura.


1 QUATRO REVOLUÇÕES E O FUTURO DA ÍNDIA

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urante a maior parte das últimas três décadas, o sistema de governo indiano foi abalado por quatro mudanças revolucionárias. Todas pertinentes ao âmbito da mobilização política, do secularismo, da política externa e da formulação de políticas econômicas. Essas mudanças não foram consecutivas, mas se sobrepuseram umas às outras. Em conjunto, entretanto, elas representam uma reformulação estável e fundamental de diversas características do panorama político indiano. Dentre os quatro movimentos transformadores, a revolução social talvez seja a que vem ocorrendo há mais tempo na Índia. Ela envolve a ascensão das castas indianas mais baixas, especialmente as do norte do país, e o despertar do que Marx, em um contexto distinto, mas relacionado, denominou “o sono dos séculos”. Uma revolta semelhante já havia ocorrido no sul do país na década de 1960. Com o aumento da exposição aos meios de comunicação, da alfabetização e, sobretudo, com a participação nas eleições locais, regionais e nacionais, os indianos até então despossuídos estão encontrando a sua voz política. Este processo se acelerou desde os anos 1980 e alterou drasticamente a estrutura da política indiana, ao desbaratar antigas suposições sobre o comportamento eleitoral previsível das castas mais baixas. Em vez de se voltar, como de costume, para o Partido do Congresso, até então dominante, os eleitores das castas mais baixas demonstraram maior independência e se tornaram leais aos partidos locais, étnicos e regionais. Em consequência, a imprevisibilidade política tem feito e desfeito governos nos planos estadual e nacional. Não há razão para crer que essa crescente sofisticação política tenha fim num futuro


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previsível. Pelo contrário, o drástico processo de mobilização política em curso promete erodir definitivamente o domínio das castas superiores na política indiana e criar um sistema de governo mais representativo. O aumento da consciência política e a perspicácia das castas mais baixas combinados a alianças políticas ocasionais com comunidades muçulmanas do norte da Índia trouxeram uma ameaça não só para o domínio do Partido do Congresso como também para a ordem política baseada na casta superior. Este desafio, somado a outros acontecimentos contingentes na política indiana, provocou uma forte reação contra a ordem secular a partir da década de 1980. Hinduísta e de tendências patrióticas exaltadas, o Partido do Povo Indiano – Bharatiya Janata (bjp) – aproveitou as inquietações das castas altas e tentou ofuscá-las na arena política. Graças a uma hábil exploração dos temores da casta superior, durante os anos 1990 a ascensão política deste partido pareceu inevitável, e o destino do secularismo indiano se viu um tanto ameaçado. Contudo, a aparente disposição do bjp e de algumas organizações subordinadas, entre as quais a Rashtriya Swayamsevak Sangh (rss) e a Vishwa Hindu Parishad (vhp), ao criar condições propícias a uma grande violência política dirigida contra as minorias, pode ter contribuído para o declínio do seu encanto inicial. Assim, o bjp, ao cumprir incansavelmente a sua agenda antissecular dentro e fora do governo, durante e após a década de 1990, conseguiu mudar os termos do discurso político na Índia. O tabu na política indiana que impedia culpabilizar explicitamente as minorias foi atacado pela artilharia antissecular pesada do bjp. Apesar de ter sofrido derrotas significativas em duas eleições nacionais (2004 e 2009), seria prematuro descartar o Partido do Povo como uma força desgastada na política indiana, já que o esforço antissecular existe nela há muito tempo, tendo uma presença significativa na luta anticolonialista do país. Embora o secularismo indiano não esteja moribundo nem em vias de desaparecer, os desafios futuros são potencialmente formidáveis. Se o bjp e seus seguidores fossem capazes de minar a ordem secular, a Índia deixaria de ser uma democracia liberal e confinaria, de fato, a minoria religiosa ao status de cidadãos de segunda classe. A so-


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brevivência do secularismo no longo prazo é crucial para a sobrevivência do sistema de governo democrático da Índia. Desde o início da década de 1980, os formuladores de políticas no país decidiram desafiar outro alicerce do sistema de governo indiano, isto é, o compromisso com a estratégia de crescimento econômico e industrialização conduzido pelo Estado. A crescente insatisfação interna com o lento crescimento da Índia, as mudanças de perspectiva nas estratégias de desenvolvimento econômico em outras partes do mundo e o advento das economias em acelerado crescimento no leste e no sudeste asiático levaram a uma reavaliação do modelo de crescimento econômico indiano. Contudo, foi só com a crise fiscal sem precedentes de 1991 que a Índia se encarregou de empreender mudanças fundamentais na política econômica: o país conseguiu pôr um fim aos anêmicos índices de crescimento e começou a atacar a pobreza rural e urbana. As profundas mudanças que varrem o sistema de governo indiano se refletem também nas políticas externa e de segurança. Até as forças indianas sofrerem uma derrota fragorosa nas mãos do Exército de Libertação do Povo Chinês, em 1962, o primeiro-ministro Jawaharlal Nehru tinha deliberadamente limitado os gastos com defesa e mantido o exército indiano sob rédeas curtas. Havia três preocupações inter-relacionadas por trás da sua política defensiva. Em primeiro lugar, ele temia que uma ênfase excessiva nos gastos militares levasse à militarização da sociedade indiana. Em segundo, acreditava que os gastos militares imporiam custos significativos que o país, ainda em formação, não suportaria. Em terceiro lugar, ele temia os perigos do bonapartismo. Como resultado da desastrosa guerra na fronteira sino-indiana, a Índia foi obrigada a aumentar fortemente os gastos com defesa. No entanto, embora a guerra tenha deixado Nehru exausto e sem dinheiro, o compromisso com o não alinhamento foi mantido. Anos mais tarde, especialmente no governo da primeira-ministra Indira Gandhi, o país se aproximou cada vez mais da União Soviética. As razões da mudança são discutidas em detalhes no segundo capítulo, sobre política externa. Basta dizer que o alinhamento


com a União Soviética se baseou, principalmente, em exigências geopolíticas, e não em algum tipo de afinidade ideológica profunda. No início da década de 1980, devido a um complexo conjunto de motivos, a dependência dos soviéticos passou por uma mudança lenta, mas inexorável. Além de não terem condições de fornecer à Índia as tecnologias necessárias para estimular o crescimento econômico, houve também um desencanto com a invasão soviética ao Afeganistão, e os Estados Unidos, sob a administração de Ronald Reagan, fizeram significativos gestos de aproximação em direção à Índia. Contudo, só com o fim da Guerra Fria a Índia abandonou a prática, embora não a retórica, do não alinhamento.

O PANO DE FUNDO DO PASSADO 25

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Convém fazer um breve esboço do pano de fundo anterior a estas mudanças revolucionárias. De um modo instrutivo, o primeiro-ministro Nehru estimulou o debate parlamentar, manteve a democracia interna no Partido do Congresso, deu seguimento à tradição britânica do serviço público politicamente neutro, fomentou a independência do judiciário, encorajou a liberdade de imprensa, estimulou o secularismo e garantiu o firme controle civil sobre os militares. Apesar deste legado extraordinário, a decadência logo se instalou. No governo da primeira-ministra Indira Gandhi, grande parte da estrutura democrática e secular cuidadosamente construída por Nehru foi posta abaixo. Em seu governo as raízes locais do Partido do Congresso murcharam, as eleições se tornaram cada vez mais plebiscitárias, a independência do judiciário foi solapada, os princípios do federalismo desprezados, o serviço público politizado e o secularismo transgredido. Os resultados mais destrutivos, porém, foram a crescente personalização da política e a desinstitucionalização do sistema de governo. O Partido do Congresso, uma notável organização guarda-chuva e um vibrante microcosmo da sociedade indiana, simplesmente enrijeceu.


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Enquanto desmantelava o Partido do Congresso, Indira Gandhi recorreu também a uma série de gestos de cunho populista na tentativa de granjear popularidade pessoal. Nacionalizou bancos, suspendeu o pagamento anual das antigas famílias reais indianas e prometeu abolir a pobreza. Neste processo, fomentou expectativas entre os pobres e aqueles privados de direitos, estimulando a sua mobilização política. Sob a sua tutela, a Índia também vivenciou um único surto de governo autoritário “emergencial” (1975-6), com a suspensão das liberdades civis e o esmagamento dos direitos pessoais. No entanto, a dureza do breve interlúdio autoritário levou a uma irônica retribuição em 1977, quando os muito pobres – os quais ela havia mobilizado – lançaram mão dos seus direitos recém-instaurados para derrubá-la do governo. Em 1980 ela voltaria ao cargo de primeira-ministra, mas poucos anos depois, em 1984, seria assassinada pelos próprios guarda-costas siques. Contudo, as instituições democráticas que haviam resistido às suas maquinações sobreviveram também à sua pessoa. Seu filho e sucessor, o inexperiente Rajiv Gandhi, não chegou a agravar de modo consciente o infeliz legado da mãe, mas pouco fez para revertê-lo. Forças bem estabelecidas e influentes personalidades no Partido do Congresso bloquearam as suas débeis tentativas de reforma. Antes o sustentáculo da unidade nacional, o Partido do Congresso continuou em franca decadência e a vida política começou a se fragmentar ao longo das linhas regionais e de castas. Os confrontos étnico-religiosos no Punjab e na Caxemira se intensificaram e as particularidades federais do sistema de governo indiano, que já eram calamitosas, tornaram-se ainda mais ralas em consequência das políticas imponderadas de Rajiv. Os seus esforços não se restringiram à política. O ensaio de reforma econômica, limitado e demasiado cauteloso – com o intuito de libertar uma economia vergada sob o peso sufocante do que o eminente economista indiano Raj Krishna classificou como “licença, autorização, cota raj” – entrou em conflito com interesses poderosos.1 Os burocratas de carreira, temendo perder suas prerrogativas políticas, se opuseram à implementação das reformas. Os militantes trabalhistas e seus aliados políticos fizeram


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protestos nas ruas. Empresários que haviam enriquecido com a proteção estatal se mostraram inaptos diante de maior competição. Desprovido de imaginação e de brios, Rajiv Gandhi deixou a reforma prescrever. O seu assassinato por um homem-bomba cingalês, em maio de 1991, e a subsequente convergência de uma série de forças políticas e econômicas, internas e externas, expuseram de maneira brutal as diversas falhas estruturais do sistema de governo indiano. A sua morte ocorreu quase ao fim da Guerra Fria, em cujas últimas duas décadas a Índia desenhara uma confortável relação de transferência bélica na área de segurança com a União Soviética, ao mesmo tempo que professava o firme compromisso com o não alinhamento. Após o colapso da União Soviética, a Rússia demonstrou pouco interesse em manter a relação nas bases anteriores. Como resultado, os formuladores de política externa e de segurança se viram subitamente à deriva num mundo novo e incerto. O fim da Guerra Fria não só minou as bases da política externa indiana como ajudou a dissolver qualquer consenso quanto ao crescimento e ao desempenho econômico. Os déficits inchados, a elevação do preço do petróleo e a necessidade de repatriar mais de um milhão de trabalhadores indianos cujos empregos haviam sido eliminados com a invasão do Kuwait pelo Iraque e a Guerra do Golfo colocaram o Estado indiano numa inelutável crise fiscal. Há tanto tempo protegida e dominada pelo Estado e sufocada por regulamentações, a economia agora encarava um enorme desafio prático e intelectual. O colapso soviético roubou dos burocratas e economistas dirigistas o que parecia ser um modelo viável de crescimento econômico conduzido pelo Estado. Num golpe de sorte, no entanto, Narasimha Rao, o novo primeiro-ministro aliado incondicional do Partido do Congresso, e Manmohan Singh, o seu ministro da Fazenda formado na Universidade de Oxford, tiveram a perspicácia de usar a crise como uma potente alavanca contra o estatismo. Em vez de buscar empréstimos de curto prazo como um porto seguro na tormenta, cortaram as amarras que atavam a economia indiana às suas antigas âncoras intelectuais e institucionais e traçaram um rumo para a transformação econômica.


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RENOVAÇÃO E REFORMA

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Apesar do êxito da equipe Rao-Singh em reverter o desastroso curso econômico do país, a sorte política do Partido do Congresso continuou em descenso. As razões eram estruturais; Indira Gandhi permitiu o enrijecimento do partido, e nenhum sucessor pôde ou conseguiu reparar o estrago. Rajiv e Rao, por exemplo, exibiam um compromisso anêmico com a democracia intrapartidária e permitiram que a corrupção generalizada – que ia de pagamentos ilegais de contratos governamentais a propinas aos legisladores para que não interferissem em votações cruciais – não fosse investigada. Por fim, apesar do compromisso oficial com o secularismo, os líderes do Partido do Congresso não mostraram zelo em defendê-lo. Em 1985, por exemplo, Rajiv derrubou um julgamento da Suprema Corte que garantia uma pensão a uma viúva muçulmana indigente por temer uma reação violenta de clérigos islâmicos irados com a decisão da corte que, neste caso, estabelecia a precedência da legislação civil indiana sobre a lei islâmica. Mais tarde, em 1992, o governo Rao vergonhosamente falhou em impedir os partidários hindus-nacionalistas do bjp e seu afiliado, o militante rss, de destruir a Babri Masjid, uma mesquita que se acredita ter sido construída sobre ruínas de um templo hindu. Pior ainda, o governo Rao demonstrou ser especialmente inepto em sufocar as revoltas anti-islâmicas que varreram a Índia após a destruição da mesquita. As perdas do Partido do Congresso resultaram em ganhos para os partidos regionais. Essas formações, que representavam uma ampla variedade de interesses locais do conjunto do subcontinente, começaram a tirar cada vez mais votos do Partido do Congresso entre as minorias indianas, até então privadas dos direitos de representação, e que o partido governante sempre tivera como votos certos. Além da derrota em 1977, com o fim do mal concebido “estado de emergência” de Indira Gandhi, o Partido do Congresso perdeu a maioria parlamentar nas eleições de 1989. Desde então, a Índia tem sido administrada por governos de coalizão que refletem a nova distribuição difusa do poder político. Um partido nacional – tipicamente o Partido do Congresso ou o Partido do Povo – está no cerne, com partidos regionais atu-


ando como contrapesos cruciais num frágil e multilateral casamento de conveniência. Formular políticas públicas estáveis sob essas circunstâncias não é pouca coisa. Diante de uma série de interesses que precisavam ser agregados e acomodados, algumas coalizões passaram a articular agendas políticas do “mínimo comum” desde o início, para evitar disputas que rompessem a coalizão. Contudo, mesmo estes arranjos não se mostraram infalíveis. Os governos de coalizão provavelmente serão uma parte integrante da Índia nos próximos tempos. O Partido do Congresso, liderado pela esposa italiana de Rajiv Gandhi, exibiu alguns sinais de rejuvenescimento. Nas eleições de 2009 conseguiu derrotar o bjp, embora tenha ficado longe da maioria parlamentar. O partido, que recebeu um forte golpe, enfrenta um importante debate interno sobre o seu futuro ideológico e político*.

* Nas mais recentes eleições, realizadas em maio de 2014, o Partido do Congresso se viu derrotado nas urnas pelo BJP, que teve uma vitória histórica, segundo especialistas. [N.E.]

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A fragmentação do sistema de governo determina que um partido político nacional se apoie em partidos menores, regionais, baseados em castas e interesses, de modo a obter a maioria de governo. Embora isso leve a uma política mais contenciosa, pode ter uma consequência positiva não deliberada: os governos nacionais refletirão cada vez mais a diversidade do país e obrigatoriamente, de fato e na teoria, farão da Índia uma república mais “federal”. Além disso, como muitos dos parceiros da coalizão provavelmente serão representados nos planos estaduais, os gabinetes nacionais estarão menos tentados a destituir arbitrariamente este ou aquele governo estadual sob a cláusula constitucional que permite ao “governo presidencial” atuar diretamente sobre as províncias em Nova Delhi – o que ocorreu constantemente até 1980. O surgimento de uma violenta intolerância religiosa, o fracasso dos governos nacionais em sufocá-la, e o aumento da corrupção política são tendências perigosas e corrosivas. Porém, pôr o foco unicamente nelas forneceria um relato triste e incompleto da situação política e da perspectiva da democracia indiana. Pelo menos duas importantes instituições demonstraram uma resiliência nova: a Suprema Corte e a Comissão Elei-


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toral. Um ato legislativo, a Lei do Direito à Informação de 2005, teve um significativo efeito salutar no governo indiano. Convém discutir as duas instituições e a nova legislação. A partir do final dos anos 1970, a Suprema Corte indiana, principalmente a instância dos juízes V. R. Krishna Iyer e P. N. Bhagwati, embarcou num surto inaudito de ativismo judicial. As suas ações envolveram uma ampla expansão dos poderes da corte. Eles fizeram isso principalmente para dar voz a segmentos significativos da sociedade indiana cujos membros, de outra forma, não conseguiriam obter reparação legal ao enfrentar políticas e ações estatais arbitrárias. Para este fim, a corte criou um sistema de litígio de interesse público que permitiu aos trabalhadores cativos, aos povos tribais sem representação, às mulheres indigentes, aos sem-teto e outros cidadãos até então sem poder buscarem o foro em busca de justiça. Em consequência, jornalistas e ativistas civis também recorreram aos litígios de interesse público para reforçar as leis ambientais existentes, evitar os maus tratos a detentos nas prisões estatais e expor a corrupção em altos cargos. A Comissão Eleitoral, que se tornara um corpo sonolento, foi renovada em 1990. A revitalização começou sob a égide do ex-funcionário público sênior T. N. Seshan. Usando os poderes investidos pela comissão, Seshan deu início à tarefa hercúlea de limpar um processo eleitoral cada vez mais acossado pela corrupção, violência e o conluio de elementos criminosos. Não surpreende que Seshan tenha se tornado herói de legiões de eleitores indianos exasperados e o flagelo de muitos políticos corruptos. Os seus sucessores não conseguem se equiparar à sua impressionante habilidade, mas, ainda que de maneira silenciosa, têm conseguido reforçar um regime imparcial de procedimentos regulares e regras justas. A continuação das inovações de Seshan sugere que não se tratavam de conquistas brilhantes e transitórias de um homem voluntarioso, mas de avanços sólidos que evidenciam uma melhoria duradoura na condução das eleições.2 Assim, apesar do declínio e da decadência de diversas instituições, a renovação de outros órgãos de mandato constitucional – tais como a


Suprema Corte e a Comissão Eleitoral – é um bom prenúncio para o futuro da democracia indiana. Por fim, a Lei do Direito à Informação também alavancou o projeto de um governo democrático na Índia. Esta lei hoje permite que cidadãos indianos busquem informações sobre gastos gerais do governo, questionem atrasos em pensões, acompanhem investimentos em estradas e obras públicas e exijam diversos serviços públicos. A lei, cuja abrangência e alcance são extraordinários, nem sempre foi implementada com grande empenho e, em várias ocasiões, os burocratas tentaram confundir as demandas. Ainda assim, tal legislação pode ter um papel significativo no aumento da transparência e induzir a burocracia a responder melhor às necessidades da população.3

A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA ORDEM SOCIAL

A QUESTÃO DO SECULARISMO Um desenvolvimento menos feliz tem acompanhado esta forte mobilização política: o sentimento antissecular que brota no país. Ironicamente, o secularismo está sendo atacado pelos intelectuais da esquerda e ideólogos

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Além da renovação vacilante das instituições políticas, uma transformação fundamental da ordem social indiana está em curso, com implicações que apontam em duas direções: uma promete a democracia, a outra não. O desenvolvimento sadio envolve a mobilização das baixas castas e minorias indianas. Esforços para promover a educação e o comparecimento dos eleitores, o aumento dos índices de alfabetização e a ampliação da exposição à mídia promoveram a eficaz emancipação de um segmento cada vez maior da população indiana. Hoje, mais do que nunca, indianos pobres conhecem o poder da urna eleitoral. Há evidências sistemáticas de que membros das baixas classes médias levam essa emancipação mais a sério do que os seus compatriotas das classes médias.


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