CAMILLE PAGLIA
imagens cintilantes Uma viagem através da arte desde o Egito a Star Wars Tradução: Roberto Leal Ferreira 1ª edição
Rio de Janeiro 2014
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Índice
Introdução 1. Ressurreição: Rainha Nefertari
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2. Visão mística: ídolos das Cíclades
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3. A corrida: o Auriga de Delfos
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4. Teto de ar: pórtico das Donzelas
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5. Cilada de Deus: Laocoonte
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6. Céu de ouro: São João Crisóstomo
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7. Letras vivas: O Livro de Kells
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8. Vigilante solitária: Maria Madalena, de Donatello
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9. Ilha do Amor: Vênus ao espelho, de Ticiano
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10. Senhor do Mar: Retrato de Andrea Doria como Netuno, de Agnolo Bronzino 11. Chama da Glória: Cátedra de São Pedro, de Gian Lorenzo Bernini
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12. Cavaleiros de cetim: Lord John Stuart e seu irmão, Lord Bernard Stuart, de Anthony Van Dyck
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13. Linha serpentinada: o rococó francês
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14. Mártir da Revolução: A morte de Marat, de Jacques-Louis David
79
15. Ruína ártica: O mar de gelo, de Caspar David Friedrich
85
16. Cidade em movimento: No café, de Édouard Manet
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17. Cor em fusão: O jardim do artista em Giverny, de Claude Monet
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18. Céu e inferno: Les Demoiselles d’Avignon, de Pablo Picasso
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19. Coração de pedra: A vida faz você feliz!, de George Grosz
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20. Dança da mente: Retrato de doutor Boucard, de Tamara de Lempicka
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índice
21. Um almoço além da imaginação: O retrato, de René Magritte
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22. Romance da grade: Composição com vermelho, azul e amarelo, de Piet Mondrian
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23. Elegância à vontade: Xenia Goodloe, de John Wesley Hardrick
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24. Estrelas cadentes: Prata verde, de Jackson Pollock
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25. Sol e chuva: Díptico de Marilyn, de Andy Warhol
147
26. Pé na estrada: 100 botas, de Eleanor Antin
155
27. Elétrico: O campo de relâmpagos, de Walter De Maria
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28. Aurora azul: Relaxando com a Liberdade, de Renée Cox
173
29. Rio vermelho: A vingança dos Sith, de George Lucas
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Agradecimentos 193 Índice onomástico
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Crédito das imagens
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Introdução
A vida moderna é um mar de imagens. Nossos olhos são inundados por figuras reluzentes e blocos de texto explodindo sobre nós por todos os lados. O cérebro, superestimulado, deve se adaptar rapidamente para conseguir processar esse rodopiante bombardeio de dados desconexos. A cultura no mundo desenvolvido é hoje definida, em ampla medida, pela onipresente mídia de massa e pelos aparelhos eletrônicos servilmente monitorados por seus proprietários. A intensa expansão da comunicação global instantânea pode ter concedido espaço a um grande número de vozes individuais, mas, paradoxalmente, esta mesma individualidade se vê na ameaça de sucumbir. Como sobreviver nesta era da vertigem? Precisamos reaprender a ver. Em meio a tamanha e neurótica poluição visual, é essencial encontrar o foco, a base da estabilidade, da identidade e da direção na vida. As crianças, sobretudo, merecem ser salvas desse turbilhão de imagens tremeluzentes que as vicia em distrações sedutoras e fazem a realidade social, com seus deveres e preocupações éticas, parecer estúpida e fútil. A única maneira de ensinar o foco é oferecer aos olhos oportunidades de percepção estável – e o melhor caminho para isso é a contemplação da arte. Olhar para a arte exige sossego e receptividade, mas é uma empreitada que restaura nossos sentidos e produz uma serenidade mágica. Membros do mundo da arte e residentes das regiões metropolitanas com grandes museus sofrem de uma trágica condescendência em relação ao atual estatuto e prestígio da arte. As belas-artes estão encolhendo e recuando no mundo inteiro. Video games, filmes em animação digital e esportes televisionados têm muito mais energia e variedade, além de um impacto muito mais significativo sobre as gerações mais jovens. As artes estão travando um combate de retaguarda, com sua própria sobrevivência em jogo. Os museus têm adotado a publicidade e as mesmas técnicas de marketing inventadas por Hollywood para atrair multidões a seus campeões de bilheteria, mas os grandes cartazes continuam sendo os Velhos Mestres ou a pintura impressionista, VII
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Introdução
e não a arte contemporânea. Nenhum estilo galvanizador surgiu desde a pop art, que matou a vanguarda ao abraçar a cultura comercial. A arte hoje só vai parar nas manchetes quando um quadro é roubado ou leiloado por um preço recorde. Além disso, com a estonteante proliferação de mídias disponíveis aos artistas, o gênero da pintura perdeu a primazia e a autoridade. E, entretanto, por quinhentos anos, desde a aurora do Renascimento, as mais complexas e particularmente expressivas obras de arte já produzidas no mundo foram executadas em pintura – da têmpera e óleo ao acrílico. O declínio da pintura desconectou futuros artistas de sua mais nobre linhagem. Na maioria dos países desenvolvidos, a arte é considerada central para a história e a identidade nacionais, além de ser rotineiramente financiada por seus ministérios da cultura. Na Europa, que está abarrotada de três milênios de monumentos e ruínas, a arte é onipresente. Seus museus são tesouros de patrimônio cultural – obras encomendadas pela Igreja e pelo Estado e mais tarde reunidas por colecionadores régios, cujas propriedades se tornaram públicas com a ascensão da democracia. Nos ainda relativamente jovens Estados Unidos, uma nação pragmática fundada por Puritanos, as artes jamais se arraigaram profundamente. Boa parte do grande público encara as belas-artes como elitistas ou alienígenas e, quando lhes concede patrocínio governamental, que continua sendo minúsculo e ameaçado de extinção, o faz de má vontade. Como a experiência política norte-americana teve início em fins do século xviii – a era do neoclassicismo europeu –, os prédios do governo e dos bancos, assim como as residências particulares, muitas vezes se assemelham a templos gregos ou romanos. A arte pública nos Estados Unidos, ao longo de todo o século xix, assumia habitualmente uma forma neoclássica nos tribunais de condado, cemitérios e memoriais de guerra, muito abundantes nesse país. Tanto a arte neoclássica como a arte da era vitoriana eram fortemente orientadas para o conteúdo, repletas de mensagens edificantes acerca da virtude, da piedade, do patriotismo e do dever – uma visão moral da arte que ainda permanece em muitos conservadores. Apenas uma minoria nos Estados Unidos amplamente agrários estava exposta às artes, salvo em feiras e exposições. A instituição central das pequenas cidades dos Estados Unidos era a igreja, plana e sem adornos, no estilo protestante. O estudo da Bíblia e o canto dos hinos eram as principais atividades culturais, amplificadas pela poesia, fosse lida ou recitada. Depois da Guerra Civil, os homens de negócios que haviam feito grandes fortunas com petróleo, aço, ferrovias ou altas finanças ajudaram a construir museus, óperas, bibliotecas e universidades, em parte para afirmarem seu VIII
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Introdução
róprio poder contra um velho sistema social, mas também para competirem p com a Europa, que ainda eclipsava a cultura norte-americana. As mulheres de classe média muitas vezes se mostravam entusiastas das artes, dando uma aura de civilidade superior à sua apreciação, frequentemente repelida pelos maridos. Na América, onde a masculinidade se identificava com o intrépido espírito de fronteira, as artes muitas vezes sofriam a reputação de afetação urbana. Enquanto o artesanato sempre floresceu nos Estados Unidos, do estanho e da prata ao mobiliário e aos vidros, a pintura permaneceu convencional, focada nos retratos, na história e na paisagem. Os 5 mil quilômetros de travessia do Atlântico Norte não eram empecilho para um animado comércio de livros, mas o de pinturas radicalmente novas era assunto completamente diferente. Os Estados Unidos estavam isolados do torvelinho e do escândalo que acompanhavam as rápidas mudanças de estilo artístico, iniciadas em 1819 com o romantismo sombrio de A balsa da Medusa, de Géricault, e que continuaram até o começo do século xx, com as cores atrevidas e as distorções espaciais do fauvismo e do cubismo. Os aspirantes a artistas norte-americanos precisavam de uma fortuna independente ou de apoio externo para financiarem uma viagem à Europa a fim de verem as últimas tendências. Assim, não admira que o grande público estivesse terrivelmente despreparado para o choque da Exibição Internacional de Arte Moderna, ocorrida em 1913 num arsenal da Guarda Nacional, em Nova York, onde mais de mil obras de trezentos artistas de vanguarda detonaram uma torrente de incredulidade e zombaria por parte da imprensa. Com a fundação do Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1929, a arte de vanguarda conquistou uma importante ponta de lança nos Estados Unidos, auxiliada por um influxo de artistas refugiados, como Mondrian e George Grosz, que escapavam do avanço nazista. De maneira constante, os princípios da arte modernista se tornaram fundamentais pressupostos culturais aos norte-americanos orientados para as humanidades. Mas o grande público jamais aceitou completamente a arte abstrata, em especial nas cidadezinhas do interior, que careciam das enormes e abstratas estátuas de aço comuns às praças de tantas grandes cidades, como Chicago. Durante duas décadas, depois da Segunda Guerra Mundial, os filmes e programas de televisão norte-americanos retrataram o artista abstrato como um esquisitão, criminoso ou psicótico. Como os membros da Geração Beat, o artista era visto como f olgado, espertalhão e simpatizante dos comunistas. Permanece até hoje a suspeita de que o mundo da arte seja antinorte-americano, exacerbada por uma série de ásperas controvérsias acerca da arte sacrílega do final das décadas de 1980 e 1990, que IX
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Introdução
quase levaram ao cancelamento do Fundo Nacional para as Artes do Congresso dos Estados Unidos. Este livro se inspirou em meu desânimo diante da aberta animosidade em relação à arte e aos artistas que ouvi nos programas norte-americanos de rádio am nas duas últimas décadas. Como fã de longa data do rádio, ouço com grande alegria, o dia inteiro, programas de política e de esportes, cujo formato aberto às ligações telefônicas oferece um fórum animado para as vozes francamente mordazes da classe operária e da baixa classe média, que não se ouvem em nenhum outro lugar da cultura norte-americana. As artes recebem abrigo na frequência fm, congregadas pela National Public Radio e pelo Serviço Mundial da bbc, com seu ritmo comedido e tons empolados, mas mesmo ali, as estações de música clássica estão desaparecendo. Nos programas populares de frequência am, principalmente nos conservadores, a ideia dominante entre os convidados e os ouvintes que telefonam é a de que o mundo da arte é uma estéril zona morta de esnobes elitistas e de que os artistas são parasitas e vigaristas pretensiosos. É de uma obviedade alarmante que as escolas públicas norte-americanas têm feito um mau serviço na educação artística dos estudantes. Da pré-escola em diante, a arte é tratada como uma prática terapêutica – projetos com c artolina do tipo “faça você mesmo” e pinturas com os dedos para liberar a criatividade oculta das crianças. Mas o que de fato faz falta é um quadro histórico de conhecimentos objetivos acerca da arte. As esporádicas excursões ao museu, mesmo que haja um por perto, são inadequadas. Os cursos de história da arte deveriam ser integrados ao currículo do ensino primário, fundamental e médio – uma introdução básica à grande arte e a seus estilos e símbolos. O movimento multiculturalista que se seguiu à década de 1960 ofereceu uma tremenda o portunidade para expandir o nosso conhecimento do mundo da arte, mas suas abordagens têm com demasiada frequência sacrificado a erudição e a cronologia em favor de um partidarismo sentimental e de queixumes rotineiros. Era de se esperar que as faculdades que oferecem cursos de artes liberais dessem ênfase à educação artística, mas não é este o caso. O atual currículo, de estilo self-service, torna os cursos de história da arte disponíveis, mas não obrigatórios. Com raras exceções, as universidades abandonaram toda noção de um núcleo de aprendizado. Os departamentos de humanidades oferecem uma mixórdia de cursos feitos sob medida para os interesses de pesquisa dos professores. Tem havido um gradual eclipse, nos Estados Unidos, do curso de história geral da arte, que cobria magistralmente, em dois semestres, da arte das cavernas ao modernismo. Apesar de sua popularidade entre os estudantes, que X
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Introdução
se recordam deles como pontos culminantes em suas vivências universitárias, os cursos gerais são cada vez mais vistos como excessivamente pesados, superficiais ou eurocêntricos – e não há vontade institucional de estendê-los para a arte mundial. Jovens professores, criados em meio ao pós-estruturalismo, com sua suspeita mecânica da cultura, consideram-se especialistas, e não generalistas, e não foram treinados para pensar sobre trajetórias tão vastas. O resultado final é que muitos alunos de humanidades se formam com pouco senso da cronologia ou da deslumbrante procissão de estilos que constitui a arte ocidental. A questão mais importante acerca da arte é: o que permanece, e por quê? As definições de beleza e os padrões de gosto mudam constantemente, mas padrões persistentes subsistem. Defendo uma visão cíclica da cultura: os estilos crescem, chegam ao ápice e decaem, para tornarem a florescer, num renascer periódico. A linha de influência artística pode ser vista claramente na cultura ocidental, com várias interrupções e recuperações, desde o Egito antigo até hoje – uma saga de 5 mil anos que não é (como diria o jargão acadêmico) uma “narrativa” arbitrária e imperialista. Grande número de objetos teimosamente concretos – não apenas “textos” vacilantes e subjetivos – sobrevivem desde a antiguidade e as sociedades que moldaram. A civilização é definida pelo direito e pela arte. As leis governam o nosso comportamento exterior, ao passo que a arte exprime a nossa alma. Às v ezes, a arte glorifica o direito, como no Egito; às vezes desafia a lei, como no Romantismo. O problema com as abordagens marxistas que hoje permeiam o mundo acadêmico (via pós-estruturalismo e Escola de Frankfurt) é que o marxismo nada enxerga além da sociedade. O marxismo carece de metafísica – isto é, de uma investigação da relação do homem com o universo, inclusive a natureza. O marxismo também carece de psicologia: crê que os seres humanos são motivados apenas por necessidades e desejos materiais. O marxismo não consegue dar conta das infinitas refrações da consciência, das aspirações e das conquistas humanas. Por não perceber a dimensão espiritual da vida, ele reduz reflexivamente a arte à ideologia, como se o objeto artístico não tivesse outro propósito ou significado além do econômico ou do político. Hoje ensinam aos estudantes a olhar a arte com ceticismo, por seus equívocos, suas parcialidades, omissões e ocultos jogos de poder. Admirar e honrar a arte, exceto quando transmite mensagens politicamente corretas, é considerado ingênuo e reacionário. Um único erudito marxista, Arnold Hauser, em seu épico estudo de 1951, A história social da arte, teve bom êxito na aplicação da análise marxista, sem perder a magia e o mistério da arte. E Hauser (uma das influências XI
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Introdução
iniciais de meu trabalho) trabalhava com base na grande tradição da filologia alemã, animada por uma ética erudita que hoje se perdeu. A arte é o casamento do ideal e do real. Fazer arte é um ramo da artesania. Artistas são artesãos, mais próximos dos carpinteiros e dos soldadores do que dos intelectuais e dos acadêmicos, com sua retórica inflacionada e autorreferencial. A arte usa os sentidos e a eles fala. Funda-se no mundo físico tangível. O pós-estruturalismo, com suas origens linguísticas francesas, tem a obsessão pelas palavras e, com isso, é incompetente para interpretar qualquer forma de arte além da literatura. O comentário sobre arte deve abordá-la e descrevê-la em seus próprios termos. Deve-se manter um delicado equilíbrio entre os mundos visível e invisível. Aqueles que subordinam a arte a uma agenda política contemporânea são tão culpados de propaganda e rigidez literal como qualquer pregador vitoriano ou burocrata stalinista. Uma das razões para a atual marginalização das belas-artes é que os artistas, com demasiada frequência, dirigem-se apenas a outros artistas e ao g rupinho vanguardista de entendidos. Perderam o contato com o grande público, cujo gosto e valores caricaturam e desprezam. A maioria dos artistas norte-americanos, assim como a maioria dos professores universitários do país, é de liberais com pouco ou nenhum contato com os que defendem ideias opostas. Mas o liberalismo incendiário, antissistema e voltado para a liberdade de expressão da década de 1960 (com o qual me identifico fortemente) se transformou num utópico mundo onírico da classe profissional bem estabelecida, com seus vagos impulsos filantrópicos e sua estranha passividade em relação a um governo inchado e autoritário. Uma ortodoxia monolítica c onfinou os artistas num gueto de opiniões aceitas e os separou das ideias novas. Nada é mais batido do que o dogma liberal de que o valor de choque confere automaticamente importância à obra de arte. É provável que a última vez em que isso foi verdade tenha sido no fim da década de 1970, exemplificada pelas fotografias homoeróticas e sadomasoquistas de Mapplethorpe (que admiro e defendi). Mas a cultura seguiu em frente. No século xxi, estamos em busca de significado, não de subvertê-lo. O mundo da arte, hipnotizado pelos heroicos anais da velha vanguarda, está vivendo no passado. Os conservadores, por sua vez, são igualmente culpados pelos pecados contra a cultura. Apesar de alardearem o retorno à educação segundo o cânone ocidental, eles têm se comportado como filisteus provincianos quando se trata de artes visuais. Embora haja diversos críticos de arte sofisticados entre os conservadores urbanos, o ímpeto do movimento conservador norteXII
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-americano veio principalmente de fora do Nordeste dos Estados Unidos, de regiões agrárias em que floresce o cristianismo evangélico. O p rotestantismo tem uma história de iconoclastia: durante a Reforma, no Norte da Europa, as estátuas e os vitrais das igrejas eram sistematicamente destruídos por serem idolátricos. Comparado ao Catolicismo romano, favorável às artes, a corrente principal do p rotestantismo norte-americano é pobre visualmente. Suas imagens de Jesus como o Bom Pastor são muitas vezes tão fracas artisticamente que se aproximam do kitsch. A maioria dos conservadores vive num clima que é ou indiferente ou hostil à arte. Os principais autores e comentaristas conservadores parecem cegos à intricada interligação da arte com a política na Grécia antiga, que inventou a democracia. O nu, baseado no estudo científico da anatomia, foi o grande símbolo do individualismo ocidental que herdamos dos gregos, mas os conservadores cristãos jamais permitiriam que os nus eróticos da arte ocidental fossem mostrados em escolas públicas. O puritanismo norte-americano continua tendo suspeitas conservadoras acerca do feitiço da beleza. Por outro lado, uma parte enorme da arte ocidental foi intensamente religiosa, e os liberais, que baniram os presépios de Natal da praça pública, também se oporiam à instrução doutrinária necessária para se apresentar a iconografia cristã na sala de aula. Assim, a educação artística está numa sinuca nos Estados Unidos – vítima de um fogo cruzado político. Embora eu seja ateia, respeito todas as religiões e as levo a sério como vastos sistemas simbólicos que contêm verdades profundas acerca da existência humana. Algumas vezes o mal foi feito em seu nome, mas apesar disso a religião tem sido uma enorme força civilizadora na história do mundo. Caçoar da religião é um comportamento juvenil, sintoma de imaginação atrofiada. No entanto, essa postura cínica se tornou obrigatória no mundo da arte – outra clara r azão para o superficial caráter derivativo de boa parte da arte c ontemporânea, à qual não sobraram grandes ideias. Dada sua ignorância e desdém pelas artes, a série de crises públicas instigadas por políticos de direita contra a arte ofensiva no fim das décadas de 1980 e 1990 estava repleta de hipocrisia. Mas os instigadores, inclusive pastores fundamentalistas, estavam absolutamente corretos ao dizerem que nenhuma autêntica arte de vanguarda deveria pedir apoio do governo. Não há direito constitucional para financiamento governamental ou concessão de espaço para exibição em instituições com financiamento público. Que eu saiba, só um artista famoso – o poeta Beat Lawrence Ferlinghetti – teve a perspicácia e a XIII
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Introdução
coragem de exortar a comunidade artística a renunciar a essa dependência infantil das esmolas do governo. Em meio às controvérsias sobre sacrilégio, o mundo da arte cometeu um terrível erro estratégico ao exaltar as lealdades partidárias acima do bem-estar da arte norte-americana. Ao correr automaticamente em defesa de obras de terceira categoria, como o Piss Christ (1987), de Andres Serrano, e The Holy Virgin Mary (1996), de Chris Ofili, permitiu que fosse ele mesmo definido aos olhos do público como uma fraternidade insular e arrogante, com gostos frívolos e padrões degradados. Houve grandes obras de arte sacrílegas: a minha favorita é a paródia da Anunciação feita por Salvador Dalí, Jovem virgem autossodomizada pelos chifres de sua própria castidade (1954), onde uma virgem entediada, vestida apenas de meias de nylon e mocassins, se debruça sobre um terraço enquanto casualmente expõe a bunda nua a uma manada de tubérculos gordos e fálicos em queda, que sugerem de maneira surrealista cornos de anjos, pombas sagradas, esguichos de esperma e bicos cônicos de mísseis. As medíocres obras de Serrano e Ofili não merecem a fama que têm. Piss Christ, cuja confusão conceitual foi agravada pela frágil autodefesa de Serrano, era uma fotografia de grande formato de um crucifixo plástico turvamente submerso num copo cheio de urina do artista. A obra multimídia de Ofili, montada pelo Brooklyn Museum of Art em sua mostra de 1999, Sensation, um empreendimento de Charles Saatchi importado de Londres, era igualmente confusa. O nigeriano-britânico Ofili rodeou uma caricatural madona africana com uma colagem de borboletas formada por recortes de bundas e genitais femininos tirados de revistas pornográficas; um dos seios, assim como os dois atarracados pedestais, era esculpido em autêntico excremento de elefante, vindo do zoológico de Londres. Qualquer informação contextual, que poderia ter sido proveitosamente fornecida pelo curador (como referências aos cultos africanos da fertilidade), foi completamente ignorada. Houve uma previsível explosão contra a Madona de Ofili da parte dos tabloides e de porta-vozes da imensa população de origem católica de Nova York. O prefeito republicano da cidade, Rudolph Giuliani, meteu-se gratuitamente na confusão, com seu exibicionismo ditatorial, ameaçando cancelar o financiamento municipal ao Brooklyn Museum e despejá-lo. A comunidade artística, entusiasmada com essa nova oportunidade de desfraldar a esfarrapada bandeira da vanguarda, entrou em modo de pensamento grupal. Como no anterior tumulto sobre as fotografias de Mapplethorpe, houve tentativas demagógicas, por parte dos defensores, de pôr a culpa dos protestos no racismo, XIV
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que nada tinha a ver com nenhuma das duas controvérsias. Toda informação sobre os recortes pornográficos foi desonestamente suprimida das descrições da obra de Ofili publicadas pela grande mídia liberal. Embora comercialmente bem-sucedida para o Brooklyn Museum, Sensation foi um desastre de relações públicas para a reputação da arte e dos artistas nos Estados Unidos. Depois de diversas mudanças na liderança do Fundo Nacional para as Artes, as feridas das batalhas artísticas da década anterior aos poucos vinham cicatrizando, e havia razões para um prudente otimismo em relação ao aumento do financiamento federal para as artes. Sensation interrompeu de imediato esse processo. Os programas conservadores de rádio, agora uma força organizada em nível nacional, informaram generosamente sua vasta audiência acerca do mais recente ultraje. Meus próprios alertas à comunidade artística em minha coluna no Salon.com foram ignorados. Mas o que eu temia aconteceu: com a piora da economia nos anos seguintes, os programas cívicos e escolares de arte, cuja razão de ser não é compreendida por boa parte do grande público, foram drasticamente reduzidos ou completamente eliminados por municípios falidos, em todo o país. As crianças norte-americanas estão pagando o preço do senso delirante de que o mundo das artes tem direito ao financiamento estatal. Este livro é uma tentativa de alcançar um público amplo, para o qual a arte não é uma presença cotidiana. Tentei mapear a história e os estilos da arte ocidental do modo mais sucinto e acessível possível. O formato do livro se baseia nos breviários católicos, com imagens de devoção, como os santinhos. O leitor é convidado a contemplar a obra, vê-la como um todo, e em seguida examinar seus menores detalhes. Todos os pais com recursos para tanto devem ter pelo menos um livro de arte em casa, para que as crianças possam descobri-la por conta própria. Meus jovens pais tinham a História da arte (1950), de e.h. Gombrich, que provavelmente adquiriram pelo Clube do Livro do Mês e que me fascinava, apesar de suas desbotadas ilustrações em preto e branco. Ainda mais influente foi o livro do curador René Huyghe, Tesouros artísticos do Louvre, uma coleção de 1951 de uma centena de grandes e generosas pranchas coloridas que meu pai trouxe de Paris, onde estudara línguas neolatinas durante um ano na Sorbonne (1952-3) com recursos do gi Bill, lei que concedia benefícios a ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial. Esses dois livros formaram a minha sensibilidade na época em que entrei na escola primária. As crianças, bem como os leitores em geral, precisam de livros de fácil manuseio. Um grande número de livros de arte é vítima da síndrome de coffee table XV
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books – exemplares magníficos e pesadões, em embalagens reluzentes. A História da arte, de h.w. Janson, com suas novecentas páginas, que se tornou um gênero de primeira necessidade nas universidades depois de sua publicação em 1962, é um objeto belo, mas intimidante, pesando 3,4 quilogramas. O texto de Janson é magnificamente erudito, mas se move com tal indiferença e rapidez, que o exame das obras individuais se torna deficiente. Já aqui, cada capítulo começa com um período ou estilo específico e em seguida passa a um artista e uma obra representativa. Em prol da legibilidade, não há notas de rodapé. Obras de arte a que ocasionalmente sejam feitas referências (como o maravilhoso retrato de Eleanor Urquhart, de autoria de Sir Henry Raeburn) podem ser encontradas com facilidade na Internet. Preparei um índice, mas não uma bibliografia, o que levaria a outro volume. Serviram de fundamentação para estes capítulos mais de dois séculos de erudição em história da arte. Embora o meu doutorado pela Universidade de Yale tenha sido em literatura inglesa, o meu trabalho, a começar pela dissertação, foi interdisciplinar. Incorporei as artes visuais às minhas aulas ao longo de toda a minha carreira docente, que se passou quase inteiramente em escolas de arte – na década de 1970 no Bennington College, meu primeiro emprego depois da pós-graduação e, a partir de 1984, na University of the Arts, na Filadélfia. Nas últimas duas décadas, também desenvolvi a minha técnica de análise de imagens através de palestras com slides em ritmo de maratona (até oitenta imagens) em locais públicos nos Estados Unidos e no exterior. Minhas ideias sobre arte foram influenciadas por uma antiga atração pela arqueologia, o que confere certa perspectiva histórica. A primeira crítica de arte que li (com que topei no curso secundário) foi a de Walter Pater e Oscar W ilde, apóstolos do esteticismo. Eles e seus mentores, Théophile Gautier e Charles B audelaire, continuam sendo minhas estrelas-guias na abordagem reverencial, e até extática, da arte. Entre os historiadores da arte, minhas principais influências têm sido dois outros produtos da filologia alemã: Heinrich Wölfflin, com sua crítica das fases de evolução do estilo; e Erwin Panofsky, cuja teoria da iconologia exige uma atenção para as camadas da ideia, da forma e do contexto social. Os livros escritos com lucidez por Rhys Carpenter, Sir Kenneth Clark e Wylie Sypher ampliaram a minha compreensão da arte. Em minha infância no norte do estado de Nova York, a minha família imigrante, com seu meticuloso virtuosismo nas artes da costureira, do alfaiate, do barbeiro, do carpinteiro, do pedreiro, do ferreiro, do fabricante de cestos e de objetos de couro, também me transmitiu a multissecular filosofia italiana de admiração da beleza e de veneração pela arte e seus artistas. XVI
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Introdução
As obras de arte deste livro foram escolhidas para evitar interseções com as de meu primeiro livro, Personas sexuais (1990), que ressaltou a Idade da Pedra, a escultura egípcia e grega, bem como a pintura renascentista, romântica, pré-rafaelita e simbolista. (Clamo à insurreição contra a crescente tendência do marxismo acadêmico de trocar “Renascimento” pela túrgida expressão “primeira Modernidade”, baseado mais na economia do que na arte.) O meio erudito tem tratado abundantemente de obras famosas, como o Laocoonte, o Livro de Kells e a A morte de Marat, de Jacques-Louis David, mas pouco se disse sobre Andrea Doria, de Agnolo Bronzino, O mar de gelo, de Caspar David Friedrich, No café, de Édouard Manet, ou Retrato de Doutor Boucard, de Tamara de Lempicka. O pungente traçado de George Grosz, A vida faz você feliz!, parece praticamente desconhecido, pelo menos nos Estados Unidos. Les Demoiselles d’Avignon, de Pablo Picasso, a mais importante pintura de todos os museus norte-americanos, provocou um sem número de comentários, mas creio ter reparado e comentado pormenores que os outros deixaram passar. O vívido retrato de Xenia Goodloe, de autoria de John Wesley Hardrick, foi reproduzido apenas uma vez, em 1996, no catálogo de uma mostra no Museu de Arte de Indianápolis, Herança compartilhada: a arte de quatro afro-americanos. Vi pela primeira vez os cartões postais de Eleanor Antin para 100 botas reproduzidos no The Village Voice, quando estava na pós-graduação, e jamais os esqueci. Relaxando com a Liberdade, de Renée Cox, foi publicado em 2001 no catálogo de uma mostra no Brooklyn Museum of Art, Comprometidos com a imagem: fotógrafos negros contemporâneos. A tese do meu capítulo final – de que o diretor de cinema e pioneiro da arte digital George Lucas é o maior artista vivo – surgiu durante o processo de redação deste livro, que durou quatro anos. Nada que eu tenha visto nas artes visuais dos últimos trinta anos foi tão ousado, belo e emocionalmente irresistível como o espetacular clímax no planeta vulcânico de A vingança dos Sith (2005), de Lucas. A energia criativa de nossa era está passando das belas-artes para a nova tecnologia. No século passado, o desenho industrial, dos automóveis aerodinâmicos e dos lustrosos aparelhos domésticos aos gadgets intricadamente personalizados de hoje, ofereceu satisfações estéticas antes derivadas sobretudo da pintura e da escultura. Em minha experiência de professora, constatei que os estudantes de desenho industrial têm poderes afiados de observação social e de intuição futurista, além de cabeças independentes e especulativas, algo raramente visto nos intelectuais de hoje, excessivamente ideológicos. O desenhista industrial reconhece que o comércio, para o bem ou para o mal, tem moldado a XVII
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Introdução
cultura moderna, cuja característica principal não é a d esigualdade econômica, mas a igualitária comunicação de massa. De fato, o gênio norte-americano foi sempre bem-sucedido nas formas abertamente comerciais, como a publicidade, a arquitetura moderna, os filmes de Hollywood, o jazz e o rock. Mas a cultura de massa é uma selva enfeitiçada na qual é fácil se perder. A minha geração, do pós-guerra, podia brincar com o pop porque recebíamos uma sólida educação na escola primária, voltada para os fundamentos da história e das humanidades. O jovem de hoje transpõe habilmente um denso turbilhão de relativismo e sincronicidade: o pop que se autocanibaliza, com sua amostragem de grife e suas modas retrô, tornou-se uma estupenda superabundância, impossível de absorver e muitas vezes afastada por uma pose protetora de ironia nervosa. A ascensão das mídias sociais borrou as fronteiras entre o público e o privado e tudo ocupou com trivialidades telegráficas, empurrando para fora o discurso sequencial, que convida à releitura. Nosso ambiente visual é altamente cinético, mas instável. Na era d igital, as imagens, mesmo em sites de notícias, podem ser manipuladas com tamanha habilidade, que tudo se tornou escorregadio e evanescente. Rostos famosos são inseridos em situações comprometedoras, enquanto corpos de m ulheres são emagrecidos, alisados e clareados segundo a moda. Fotografias de celebridades em festas de gala podem ser instantaneamente retocadas antes de serem divulgadas online nos antes irrepreensíveis serviços de transmissão. A edição de tv se acelerou violentamente. Os estonteantes e rápidos cortes inaugurados pelo diretor da Nouvelle Vague Jean-Luc Godard e popularizados nos vídeos musicais dos Beatles dirigidos por Richard Lester se tornaram um clichê empolado para gerar falsa excitação. Os filmes, a tv e a Internet dependem demais de efeitos estroboscópicos e de flashes, que cansam a vista e podem prejudicar o desenvolvimento cognitivo de crianças. Poucos jovens hoje, m esmo estudantes universitários, têm paciência com as longas e hipnóticas tomadas e a elegante composição pictórica dos filmes europeus de arte que Godard se divertia em satirizar. Enquanto a fotografia digital suplantava o filme nas duas últimas décadas (para pesar e indignação de muitos dos meus mestres da fotografia), o grande público foi gradualmente perdendo contato com os refinamentos da revelação de filmes à moda antiga. Fotografias impactantes, de alta qualidade, de gente e dos fatos da atualidade, antes preenchiam as seções de rotogravura dos jornais da cidade e das revistas lustrosas em grande formato, como Life e Look, cujas edições surradas hoje se reduziram a alvo de colecionadores. Imagens XVIII
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Introdução
digitais são nítidas e claras, mas carecem do sombreado atmosférico que matiza o nosso senso de contorno e profundidade. A cor digital é supersaturada e berrante, quase caricatural, sem as sutilezas e as gradações da mescla de cores usada na pintura a óleo desde o Renascimento. Se podem parecer desconcertantes vislumbres do belo, as fotografias digitais no fim das contas se revelam um cristalizado cenário de casa de bonecas. As tvs digitais, com suas espetaculares opções de telas amplas, esticam e encolhem a imagem, impondo aos espectadores a distorção como padrão. Os gráficos animados dos video games, dos painéis eletrônicos e das transmissões esportivas criam compressões vertiginosas, arrebatadoras, e curvaturas espaciais que lembram túneis. Os olhos são assaltados, coagidos, dessensibilizados. O único caminho para a liberdade é a educação de si mesmo para a arte. Para qualquer civilização avançada, a arte não é um luxo – é uma n ecessidade, sem a qual a inteligência criativa definha e morre. Mesmo em tempos de economia conturbada, o apoio à arte deveria ser um imperativo nacional. A dança, por exemplo, exige patrocínio não só para garantir um espaço seguro e amplo aos ensaios, mas para preservar a indispensável continuidade do laço professor-aluno. A cultura norte-americana se tornou desequilibrada pela obsessão com o esporte sanguinário da política, um redemoinho voraz que consome tudo pelo caminho. Mostra a história que, tanto para os indivíduos como para as nações, o poder político é passageiro. O verdadeiro legado da América é o seu ideal de liberdade, que inspirou levantes no mundo inteiro. Políticos e partidários, tanto da Esquerda como da Direita, devem reconhecer que também a arte é uma voz de liberdade, que exige apoio e não interferência. A arte une o reino espiritual ao material. Em tempos de máquinas tentadoras e mágicas, uma sociedade que esqueça a arte corre o risco de perder a alma.
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imagens cintilantes
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Ressurreição Rainha Nefertari
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spíritos esculpidos no tempo. A arte egípcia é uma vasta ruína de mensagens vindas dos mortos. Limpas e simples na forma, as pinturas egípcias vacilam num espaço abstrato que não está nem aqui nem lá. O fundo é friamente branco. Tudo é achatado no primeiro plano, um presente eterno no qual faraós de riso tranquilo ora oferecem incenso e rolos de linho aos deuses, ora conduzem as rodas de suas carruagens sobre os inimigos abatidos. Hieróglifos surgem suspensos no meio do ar, grupos de precisos pictogramas de uma corda, um caniço, um pão, uma cobra, uma coruja, uma perna humana ou um olho místico. A ressurreição era o valor dominante numa civilização que sonhava em triunfar sobre os terrores da morte. No coração da religião egípcia jazia um cadáver – a múmia do grande deus Osíris, envolvida por tiras de linho. Osíris fora assassinado e esquartejado pelo perverso irmão, Set, que espalhara pelo Egito as catorze partes de seu corpo. Ísis, a irmã de Osíris e sua dedicada esposa, coletou-as e as reuniu – com exceção do pênis, por ela fabricado com madeira ou barro. Embalsamando-o e reanimando-o, portanto, Ísis agiu como uma talentosa protoartista, reunindo materiais e moldando uma obra de escultura mumiforme que seria reproduzida na arte e no culto do Egito por 3 mil anos. A passagem para o além significava uma descida ao mundo subterrâneo. Almas na esperança do renascimento invocavam Osíris e literalmente se transformavam nele. Apesar da preocupação com a morte, a arte egípcia raramente se revelou claustrofóbica. O além não era um crepúsculo espectral, mas um espaço vivo de necessidades e prazeres físicos. Objetos de uso doméstico, apoio para os pés, cadeiras, mesas, cestos, roupas, perfumes, bálsamos, joias, armas, espadas, bumerangues, carruagens e vasos com vísceras extraídas, o túmulo era uma destilação da vida real. Os aristocratas urbanos que Rainha Nefertari e a deusa Ísis. passeiam pelas paredes têm os olhos arregalados Túmulo de Nefertari, cerca de e estão alegres ao encararem o grande desco1290-24 a.C. Vale das Rainhas, nhecido. Seus deuses guardiães, m ajestosamente Luxor, Egito. 3
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RessurReição
e ntronizados, muitas vezes parecem ligeiramente cômicos, com suas cabeçonas de aves, insetos ou hipopótamos, vestígios do animismo primitivo. A ressurreição também simboliza a nossa moderna recuperação do Egito. Por um milênio, depois da queda de Roma, o Egito esteve envolvido numa névoa de lenda oculta. Depois da chegada do Islã, tornou-se um mundo f echado, cujos restos pagãos foram ignorados e desdenhados. A invasão napoleônica de 1798 ajudou a dar início à egiptologia: a descoberta, por um oficial francês, da Pedra de Roseta levou ao deciframento dos hieróglifos, enquanto o enorme relatório em numerosos volumes, de autoria da equipe de pesquisadores e cientistas de Napoleão, deflagrou uma febre pelo estilo egípcio, que varreu a a rquitetura e a decoração da Europa e viria até mesmo a produzir o Monumento de Washington, nos Estados Unidos. Ao longo do século seguinte, graças à fotografia, o conhecimento do Egito se espalhou gradualmente pelo mundo inteiro. Os antigos egípcios alcançaram, enfim, a imortalidade. Desde os tempos primitivos até o Império Médio, os governantes do Egito eram enterrados em necrópoles esparramadas na borda do deserto, perto do Delta, enquanto o Nilo corre em leque para o mar. Os principais distritos sagrados ficavam em Saqqara e Giza, onde a Grande Esfinge, esculpida na rocha, ainda serve de guarda à colossal pirâmide de Quéfren. Depois de uma devastadora invasão síria, a capital do Egito foi transferida centenas de quilômetros ao Sul, para Tebas. Lá os presunçosos faraós guerreiros do Novo Império criaram seu próprio cemitério, com frente para o sol poente ao longo do Nilo – o Vale dos Reis, pouco mais do que uma seca depressão por detrás das encostas altas e íngremes do Planalto Líbio. As pirâmides ou quaisquer tipos de marcos reveladores eram prudentemente evitados, os sarcófagos, enterrados profundamente na rocha e as vias de acesso, cobertas de cascalho. Apesar disso, porém, em dois séculos a maioria das tumbas do Vale dos Reis já havia sido saqueada. Uma das que escapou à detecção pertencia a um rei menor, Tutancâmon, que morreu jovem. Quando o seu túmulo foi descoberto e aberto em 1922, os desconcertantes tesouros, como a caixa de ouro maciço que cobria sua múmia, forneceram perturbadoras sugestões sobre como devem ter sido os objetos deixados nas tumbas de um faraó de primeira grandeza. As rainhas consortes e os filhos eram enterrados no vizinho Vale das Rainhas, onde foram encontradas oitenta tumbas (chamadas “Casas da Eternidade”). A mais suntuosa pertenceu a Nefertari, a primeira e predileta esposa do imperialista Ramsés ii, que gerou pelo menos quarenta e cinco filhos de oito esposas e reinou por mais de sessenta anos, no século xiii a.C. O estatuto extraordinário 4
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Rainha Nefertari
de Nefertari era assinalado pelo fato de sua figura ser composta do mesmo tamanho que a do rei, em seu santuário de Abu Simbel, onde quatro colossos sentados de Ramsés foram esculpidos em um rochedo núbio sobre o Nilo. Nefertari (seu nome significa “A mais bela de todas”) tinha sangue nobre, mas não real. Talvez fosse prima ou mesmo a irmã mais moça de Nefertiti, a carismática rainha do governante monoteísta rebelde Aquenáton. Nefertari foi a mãe do filho primogênito de Ramsés, que morreu tragicamente jovem, inspirando, talvez, a história da maldição de Deus sobre o faraó. (No filme épico de Cecil B. DeMille, Os Dez Mandamentos, Anne Baxter interpreta uma sedutora rainha para o arrogante Ramsés de Yul Brynner.) Nefertari teve pelo menos mais cinco filhos, mas o robusto Ramsés (cuja bem preservada múmia se conserva no Museu do Cairo) sobreviveu a todos eles. Por isso o seu sucessor, Merneptah, foi o filho de uma rainha rival, de menor estatura.
vale dos reis, luxor, egito. Montanha em forma de pirâmide sobre o Nilo em Tebas. Hoje chamada al-Qurn (O Chifre). Nome antigo: ta dehent (o pico). Lar sagrado de Meretseger (Aquela que ama o silêncio), deusa serpente e guardiã vingadora da necrópole tebana. 5
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RessurReição
O túmulo de Nefertari foi descoberto em 1904 por Ernesto Schiaparelli, erudito italiano e diretor de museu. Enterrado doze metros na rocha, tinha dois eixos alinhados à rosa dos ventos e consistia em duas amplas câmaras cerimoniais ligadas por uma escadaria, tendo como anexos capelas e nichos laterais. Tudo o que sobrou do sarcófago de granito cor-de-rosa da rainha foi a tampa despedaçada. Os tetos da tumba foram pintados de azul meia-noite e semeados de estrelas douradas, para representarem os céus, enquanto as paredes e as colunas quadradas eram ornamentadas com cenas e símbolos religiosos. A superfície de calcário era primeiro revestida com um reboco de lama do Nilo, esculpido em baixo relevo. Uma sutil camada de gesso de boa qualidade era então aplicada, sobre a qual se pintavam desenhos em têmpera – sempre de pigmentos minerais misturados com um aglutinante desconhecido, talvez uma goma das acácias de Tebas. Foi usado como vedante um esmalte brilhante, feito de ovos. O túmulo de Nefertari sofreria danos causados por um terremoto e considerável deterioração em razão dos cristais de sal de rocha que lentamente se depositaram por detrás do gesso pela água da chuva. Graças a um grande projeto de restauração do Getty Conservation Institute, em colaboração com a Organização Egípcia de Antiguidades (1986-92), a sepultura foi restaurada, estabilizada e reaberta ao público. A consolidação e a limpeza meticulosas por parte dos conservadores (sem qualquer acréscimo de pintura) revelaram a cor ainda brilhante do mural. As pinturas são uma narrativa da viagem de Nefertari ao além. Ela é apresentada como uma alma peregrina, em busca de justificação e ressurreição. Estranhamente, há poucas referências na tumba ao seu marido, e nenhuma aos filhos ou à sua biografia. Tudo se concentra na busca espiritual de Nefertari. Embora respeitosa e confiante em seu valor, ela é uma destemida e solitária andarilha enfrentando os aterradores poderes e mistérios do cosmos. Demônios aguardam para pular sobre ela a cada cinco portas (das doze tradicionais) que levam a Duat, o mundo subterrâneo. Mas Nefertari conhece as fórmulas sagradas, é aprovada no teste e ganha a ressurreição, cuja prova é ser repetidamente chamada de “Osíris”. Num ponto crucial de suas viagens, Nefertari recebe as boas-vindas de Ísis, que a toma afetuosamente pela mão e a conduz para a próxima câmara, no sentido leste. A deusa fala, prometendo salvação: “Vem, grande esposa do rei, Nefertari, bem-amada de Mut. Dou-te um lugar na Terra Sagrada”. O nome da rainha paira em dois cartuchos de ouro (medalhões heráldicos anelados). Agora ela deve passar pela avaliação e pelos desafios dos outros grandes 6
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Rainha Nefertari
euses, inclusive o deus-sol Rá, a deusa-escorpião Serquet e Thoth, de cabeça d de íbis. Ela fará oferendas, pedirá socorro e disputará um jogo semelhante ao xadrez (senet) com um adversário invisível, o Destino. As figuras de Ísis e de Nefertari exemplificam as convenções rigorosas da arte egípcia, que permaneceu praticamente a mesma durante três milênios (salvo durante a breve experiência de Aquenáton com o naturalismo). As posturas são formais e os contornos, delineados com firmeza. Na pintura ou na escultura em relevo do Egito, a cabeça, o nariz e os pés são mostrados de perfil, enquanto os olhos, os ombros e o peito são vistos de frente – um interessante, mas anatomicamente impossível híbrido. Enquanto as perucas ou os tecidos são finamente estampados, o desenho costuma ser amplo e caricatural. A palheta é reduzida: os pigmentos aplicados em amostras homogêneas de cinco cores primárias, sem sombreamento. As pinturas egípcias eram feitas como joias, em partes cintilantes e justapostas. Em toda a tumba, Nefertari é apresentada como modelo de graça e beleza, resumindo os altos padrões da elite egípcia. A mulher de alta condição era quase sempre retratada como magra, graciosa e de seios pequenos – ainda que a realidade madura estivesse longe disso. Nefertari veste um conjunto elegante de linho translúcido: um xale vivamente plissado e amarrado sobre um vestido justo, de cintura alta, que vai até os tornozelos (kalasiris), inventivamente recoberto por uma cinta pendente e texturizada. Ísis, em contrapartida, juntamente com todas as outras deusas presentes no túmulo, veste um tubinho grácil, opaco, que deixa os seios à mostra, com faixas nos ombros – um desenho que aparecera pela primeira vez na arte egípcia mil anos antes e nunca mudou, simbolizando o poder atemporal da deusa. Sobre a longa e negra cabeleira de Nefertari repousa um magnífico chapéu de ouro em forma de abutre, que representa Mut, a deusa-abutre hermafrodita, padroeira de Tebas. Seu bico se projeta altivamente das sobrancelhas da rainha, enquanto as asas abraçam, protetoras, a cabeça. Duas plumas de abutre que carregam um disco solar se elevam sobre a coroa. As joias da rainha consistem em duas pulseiras em forma de faixa; um colar de ouro, plano, amplo (wesekh); e uma cobra retraída (o uraeus real do Baixo Egito) enrolada ao lóbulo das orelhas. A cabeleira de Ísis é envolta em uma faixa e sobre ela se eleva o disco solar da deusa celeste Hathor, juntamente com chifres de vaca, do qual se projeta outra cobra. O cajado verde de Ísis é o cetro was da autoridade; envolto ao redor do pescoço, sobre o colar irisado, está outro colar com dois tubérculos (menat), o emblema da fertilidade de Hathor. Seu pesado 7
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RessurReição
c ontrapeso de ouro está suspenso sobre o ombro direito de Ísis. Os olhos das mulheres (como também os dos homens, no Egito) são pintados e ampliados com kohl, uma máscara fuliginosa que refletia e arrefecia a luz solar. A pele da rainha é vermelha, próxima ao bronzeado – algo que se afasta notavelmente dos tons amarelados normalmente dados às mulheres egípcias da aristocracia. Sua pele se aproxima de forma surpreendente da dos deuses, e não das deusas, presentes no túmulo. Em geral a cor da pele na arte egípcia representava um sinal de classe, mais do que de raça: as mulheres nobres nem trabalhavam sob o sol quente, como as camponesas, nem se exercitavam e guerreavam ao ar livre, como os homens. A pele escura de Nefertari talvez se refira à sua atividade não especificada na esfera pública, também sugerida por seu título oficial, “Senhora do Alto e do Baixo Egito”. Como um motivo masculino, sua cor da pele, portanto, concorreria com o kilt de faraó, o véu de cabeça e a barba cerimonial apropriados pela formidável Rainha Hatshepsut, na dinastia anterior. É também, pelo menos teoricamente, possível que Nefertari, como filha do sul, apresentasse tons de pele cor de mogno para exibir e promover uma ascendência núbia. O Egito é uma sociedade conservadora, cujo autoritarismo era alimentado pelo duro ambiente desértico. Fazia-se necessária uma organização complexa, que se estendesse por grandes distâncias, para a construção, a irrigação, o comércio e o governo. A ordem, inseparável da verdade e da justiça (ma’at), era vista como bela e necessária. Assim, a suave sofisticação projetada por deuses, reis e rainhas tinha um significado ideal mais amplo. No Egito, os artistas, embora meros artesãos anônimos, eram mensageiros fiéis do código cultural, gerando, eras depois de eras, essas elegantes aparições que até hoje nos assombram.
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