À Mesa com o Valor - 50 Personalidades

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Organização

Angela Klinke e Robinson Borges

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personalidades

À mesa com o Valor 1ª edição

Rio de Janeiro 2015


Informação com sabor

Z e c a Pag o d i n h o j á c h e g o u a l m o ç a d o . Pau l o C o e l h o queria trufas. Fernanda Montenegro só tomou duas xícaras de chá de hortelã. O entrevistado podia tentar controlar a fome ou a sede, mas, diante de uma mesa, a conversa nunca é insossa. O convidado sempre se revela entre rangidos de cadeiras, brindes ou garfadas. O mais frugal com as palavras, como Milton Nascimento, parte a picanha, entra na floresta, chega a Três Pontas. Um dos mais ávidos por elas, como Milton Hatoum, passa o peixe na farofa, sai da floresta e conquista o mundo. Esse é o espírito de “À Mesa com o Valor”, prestigiada seção que desde 2009 traz uma grande entrevista publicada no suplemento semanal “EU & Fim de Semana” do Valor. Quase 300 personalidades com amplo arco de atividades, pontos de vista e histórias de vida já marcaram presença: empresários, atores, economistas, chefs de cozinha, escritores, políticos, médicos, diretores de cinema, esportistas. A lista constitui uma espécie de quem é quem no mundo contemporâneo.

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Para celebrar seus 15 anos, o Valor convida para saborear as 50 melhores entrevistas reunidas neste livro. Nestas páginas, garante ao leitor um lugar privilegiado à mesa, com a possibilidade de compartilhar da intimidade de uma refeição e captar, em alta definição, detalhes da vida pessoal e profissional que ajudam a compreender por que essas pessoas chegaram aonde chegaram e fizeram a diferença. Assim como em “Lunch with ft”, clássica seção do Financial Times na qual o Valor se inspirou, a proposta é redescobrir a arte de conversar e contar histórias. Em geral, o cenário é um restaurante escolhido pelo entrevistado, de preferência um lugar que faça parte de sua trajetória. O empresário José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, é tão íntimo da cantina paulistana Jardim de Napoli que até mandou cunhar medalhas comemorativas aos 50 anos da casa. Foi lá que avaliou o futuro da televisão dividindo polpettones com amigos. Thiago Soares quis que a entrevista fosse na cantina carioca Don Camillo, onde tantas vezes jantou com seu mentor Dino Carrera antes de se tornar o primeiro-bailarino do Royal Ballet de Londres. É preciso tempo tanto para se desfrutar uma refeição quanto para desvendar o entrevistado. O empresário Eraí Maggi Scheffer, o mais novo rei da soja, tinha pressa. A secretária avisou que ele não aguentaria nem 30 minutos numa mesa. No restaurante Mahalo, em Cuiabá, no entanto, passou cinco horas rememorando sua história. Chorou ao se lembrar da infância pobre no interior do Paraná e do primeiro patrão. Entre goles de vinho, contou como conseguiu convencer seu empregador na época a lhe vender um Corcel branco em parcelas “a perder de vista”. Ele não queria mais chegar aos bailes de trator. Para garantir espaço na agenda, o banqueiro José Olympio Pereira Neto escolheu o restaurante paulistano Parigi porque

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poderia ir a pé do trabalho. O presidente do Credit Suisse é tão assíduo que tem até salada com seu nome, a jo. Como um dos maiores colecionadores de arte contemporânea brasileira, foi só sentar para discorrer com prazer sobre o assunto – sem deixar de lado o mundo do mercado financeiro. Foi da avó, crítica de arte que se declarava “nada moderada”, que ele herdou a compulsão transformada em patrimônio. “Gosto de tudo intensamente, sou absolutamente compulsivo. Todo colecionador é compulsivo. E não é só de arte, de qualquer coisa. Compulsivo e acumulador.” Até quando comer era complicado, a mesa exerceu seu poder de atração. Carlos Lessa, ex-presidente do bndes, sofre com as sequelas de uma cirurgia numa glândula no rosto. Perdeu parte do paladar, mas não o gosto pela discussão desenvolvimentista. Relegado a uma “periferia conformista”, disse, o Brasil padece da falta de um projeto de nação. E saboreou um sashimi. Para quem o apetite pela vida se manifesta no “trabalho intelectual incessante”, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez piadas até com a sobremesa. Quando a île flottant chegou, uma imensa montanha de ovos nevados, versão turbinada da iguaria francesa, levou um susto. “Isso não é île, está mais para um continent.” Nos encontros marcados em São Paulo, Rio, Saquarema, Brasília, Porto Alegre, Recife, Cuiabá, Taubaté e até Genebra, os entrevistados revelaram receitas de bem viver e pediram receitas de pratos. Criticaram a política, a economia ou o trânsito, mas fizeram as pazes com o picadinho e os frutos do mar. Diante de personalidades tão complexas e instigantes, cada entrevista individualmente funciona como uma entrada ou um primeiro prato. No entanto, ao colocá-las juntas, em sua diversidade de contextos e histórias, o convite é para um banquete. E um cafezinho, por favor. Bom apetite e boa leitura!

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Cardรกpio


Ana Lucia Villela   17 Antônio Delfim Netto  29 Armínio Fraga   47 Carlos Lessa  59 Drauzio Varella  71 Eduardo Campos  83 Emerson Fittipaldi  93 Eraí Maggi Scheffer  103 Erick Jacquin   113 Fábio de Melo  123 Fernanda Montenegro  133 Fernando Henrique Cardoso  145 Fernando Meirelles  159 Ferran Adrià  171 Gal Costa  183 Glenn Greenwald   195 Gloria Kalil  205 Gustavo Kuerten  217 Hector Babenco  227 Hermeto Pascoal  239 Irmãos Campana  251 Ivo Pitanguy  263 João Emanuel Carneiro  275 João Sayad   285 João Ubaldo Ribeiro  295


José Bonifácio de Oliveira Sobrinho   305 José Olympio Pereira Neto  319 José Roberto Guimarães  333 Lars Grael  345 Luis Fernando Verissimo  357 Luiza Helena Trajano  369 Lygia Fagundes Telles  383 Márcio Thomaz Bastos  395 Maria da Conceição Tavares  405 Marieta Severo  417 Marina Silva  431 Milton Hatoum  441 Milton Nascimento  451 Nelson Barbosa  463 Ney Matogrosso  473 OSGEMEOS  481 Paulinho da Viola  491 Paulo Coelho  501 Ruy Castro   513 Sebastião Salgado  525 Sérgio Bermudes  535 Tasso Jereissati  545 Thiago Soares  557 Valter Hugo Mãe  567 Zeca Pagodinho  579



Drauzio Varella Médico sem fronteiras Por

Adriana Abujamra, de São Paulo

22/8/2014

Drauz io Varel la atravessa tão de m ans i nho o salão lotado do Bar da Dona Onça, restaurante no centro paulistano, que, quando nos damos conta, lá está ele, em pé, ao lado da mesa. O porte esguio e a calvície precoce ele herdou do pai, assim como a crença “obstinada no trabalho duro”, lição que segue à risca. Para dar conta da agenda atribulada, aboliu o almoço. “Não consigo comer em paz quando sei que tem pessoas me esperando. Fico ansioso, me atrapalho.” Mas nesta segunda-feira se deu ao “luxo”, já que as filmagens de uma nova série no Fantástico ainda não começaram. Drauzio passou esta manhã na Penitenciária Feminina, onde há oito anos faz trabalho voluntário. Sua sala é uma cela. Tem cadeiras, uma mesa e uma maca. Puxa para si o bloco de notas e a caneta da repórter, desenha pavilhões, galerias e alas do lugar. Esse universo marginal o fascina desde criança, quando assistia a filmes de prisão e acompanhava os planos de fugas mirabolantes dos encarcerados. Sua primeira incursão em um presídio foi no extinto Carandiru, em São Paulo, experiência que transformou

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em livro premiado que depois virou filme nas mãos do diretor Hector Babenco. “Numa cadeia ninguém conhece a moradia da verdade”, prega o ditado da malandragem. Mas depois de 25 anos convivendo com detentos, o doutor é capaz de farejar seus males e manhas. “Homem mente, mas mulher mente muuuito mais”, diz, esticando a vogal para dar a medida da astúcia feminina. Recosta-se na cadeira e passa a contar alguns casos, que estarão em seu próximo livro, As Prisioneiras, a ser publicado pela Companhia das Letras. Outro dia, conta, uma mulher de 60 anos nem bem entrou em sua sala e já foi narrando seu fardo: estava no shopping quando uma moça se aproximou e pediu que segurasse um pacote para ela ir ao banheiro. “Ia fazer essa desfeita?” Segurou o embrulho e esperou que ela voltasse. Bem nessa hora, a polícia apareceu. “Dá cá este pacote!”, ordenou o policial, já puxando e abrindo o enorme volume. “E adivinha só o que tinha dentro? Cocaína. Vejam vocês.” “E a menina que foi ao banheiro? Não voltou?”, provocou Drauzio. “Doutor, e não é que ela desapareceu?”, respondeu a senhorinha, com feições da madre Teresa de Calcutá. Em momentos como esse o médico costuma fazer cara de paisagem. “É raro uma presa que diga ‘sou traficante ou matei fulano’.” Mas há aquelas que falam à vontade com ele. É o caso da jovem que chegou em casa e deu de cara com o marido abusando de sua filha de oito anos. Deixou a menina aos cuidados de uma vizinha, voltou e descarregou o revólver nele. “Em um caso assim”, diz levando o corpo para a frente e cruzando os braços sobre a mesa, “não dá nem para criticar. Não é verdade?” Em seguida se lembra da mulher que viu pela manhã. Sem alfabetização, com quatro filhos, deu à luz o caçula na prisão. Só se deu conta de que estava grávida no sétimo mês de gestação. Consumidora de crack, costumava se prostituir para conseguir a droga.

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“Por incrível que pareça, não pegou aids”, comenta o médico, um dos pioneiros no combate à doença no Brasil. Em 1984, já com vasta experiência no setor de imunologia do Hospital do Câncer, em São Paulo, Drauzio foi fazer estágio em um hospital em Nova York, na época o epicentro da aids. “Não se sabia de nada. Nem que era um vírus. Fiquei encantado. Era uma doença que tinha depressão imunológica, um agente infeccioso e câncer, tudo de que eu mais gostava na medicina”, relata, com olhos brilhando. Drauzio, desde criança, sabia o que seria. “Ouvia as histórias da gripe espanhola e ficava imaginando pilhas de mortos nas carroças e eu, homem adulto, de óculos, capa de chuva e maleta de couro igual à do dr. Isaac examinando os doentes de casa em casa com o estetoscópio, no meio da epidemia”, narra em seu livro Nas Ruas do Brás. De volta ao Brasil, lá estava ele como nos devaneios infantis, no meio de uma calamidade pública. Drauzio era provavelmente o único oncologista que tinha visto de perto casos de sarcoma de Kaposi, câncer que provoca manchas na pele, complicação comum na aids. “Todos os casos vieram para mim e fiquei envolvido com o problema da aids. Morria todo mundo, não escapava ninguém.” Alertar a população era urgente. Foi nesse momento que o jornalista Fernando Vieira de Melo o convidou para fazer pequenas vinhetas em rádios e esclarecer a população sobre a doença que se alastrava. Mas havia um preconceito enorme. “Médico sério não aparecia em televisão, de jeito nenhum.” O convite era um acinte. “Fernando, você quer acabar com minha carreira? Ô loco”, lembra-se. “Era essa a visão da época, imagina. A medicina era conhecimento de uma casta. Mas a função do médico é divulgar esse conhecimento o máximo possível. Foi assim que entrei nessa vida”, conta ele, que se tornou um dos médicos mais conhecidos

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do país. A experiência de duas décadas como professor de cursinho foi de grande valia. Até hoje tem ajudado Drauzio a transpor, em linguagem acessível, os meandros dos mais variados temas de sua área. “Cai fora da seringa, cara. Se você não consegue encarar a vida de cara limpa, fuma, cheira, faz supositório. Mas não injeta na veia”, dizia em um de seus textos na rádio, sempre num tom direto, sem rodeios. Outro que falava sem rodeios era o sonoplasta, um senhor com décadas de experiência em rádio. Drauzio achava que tinha a voz fanhosa — “ainda tenho, mas já não me incomoda tanto” —, e perguntou o que poderia fazer para melhorá-la. “Nada”, disse o homem. “Tem gente que nasce com voz boa, tem gente que nasce com voz ruim. A sua voz é ruim”, e encerrou o assunto. O fato é que as vinhetas deram certo, assim como as medidas inovadoras que ganharam impulso na década de 90. “Nós íamos viver uma das maiores tragédias do mundo”, observa. O Brasil tinha um índice de contaminação equiparado ao da África do Sul, recordistas de casos da doença. O Ministério da Saúde, comandado por José Serra na época, conseguiu conter o avanço da aids, investindo em campanhas de prevenção e oferecendo tratamento gratuito aos doentes. “Quando uma população com hiv positivo é tratada, você inativa a carga viral nas secreções sexuais e, com isso, reduz a transmissão. Demonstramos isso. E política pública em saúde só funciona se for para todo mundo. Quando é só para pobre, esquece, porque fracassa. O Brasil revolucionou o tratamento de aids e virou exemplo para o resto do mundo.” Mas os dados mais recentes são menos alentadores. Um relatório divulgado no mês passado pelo Programa Conjunto das Nações Unidas (unaids) aponta que as novas infecções por hiv no

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Brasil aumentaram 11% nos últimos oito anos. E como diz um de seus quadros na televisão: “E Agora, Doutor?” “A gente deitou sobre os louros obtidos com o tratamento e bobeou com a prevenção. Agora estamos pagando o preço.” A nova geração não viu o impressionante impacto da doença em fase terminal. Graças à medicação existente, a aids se tornou de certa forma uma doença controlável, o que dá a falsa impressão de ser curável. Para Drauzio, seria fundamental que todos fizessem o teste, o que ajudaria a evitar novas transmissões. “Ele poderia ser obrigatório. Qual é o preconceito? Os médicos pedem exame de sífilis e não pedem da aids? Não consigo entender uma coisa dessas.” Com o aumento de novos casos, a Organização Mundial da Saúde (oms) recomendou recentemente o uso de antirretrovirais como profilaxia pré-exposição para homens gays e outros grupos de risco. É uma decisão acertada? A medida, diz, pode reduzir consideravelmente a chance de um indivíduo ser infectado. Portanto, deveria, sim, ser adotada. Mas com ressalvas. “Isso não basta, entende? O problema principal é a aderência. Será que as pessoas vão tomar direito o medicamento? Será que vão se sentir protegidas porque estão tomando o remédio e deixarão de usar preservativo? E não é pelo fato de o cara ser gay que faz ele correr mais risco. O que faz ele correr mais risco é o número de parceiros e sexo desprotegido. Há gays que são absolutamente monogâmicos.” O pessoal da mesa ao lado, que chegou ao mesmo tempo que nós, já está no café, e nós só na conversa. Drauzio pega um cardápio, estica o braço bem longe do corpo e aperta os olhos, miúdos, para conseguir ler as opções do menu. Decide pelo arroz de bacalhau. Para beber? Água. Bebida alcoólica somente nos fins de semana, e olhe lá. “O que eu gosto mesmo é de uma dose de cachaça. Pura. E com os carcereiros costumo tomar uma cerveja.”

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Foi com um grupo desses agentes que Drauzio passou a se reunir depois das longas jornadas de trabalho, em um botequim de frente para o Carandiru, convivência que ele narra em seu livro Carcereiros. A casa de detenção foi extinta, mas não a camaradagem entre eles. “Esse é o programa de que mais gosto. A gente dá tanta risada, de perder o fôlego. Eles têm uma experiência de vida que eu precisaria nascer umas três vezes para adquirir. E eles escutam. No ambiente social em que a gente vive, as pessoas não estão interessadas em ouvir as outras. Quando vou a festas, o que é raro, as pessoas falam sem parar. Não preciso dizer nada. Só presto atenção. Aliás, às vezes nem presto atenção.” O médico exemplar que bebe água à nossa frente também já tomou um grande porre na vida. Foi aos 16 anos, quando entornou uma garrafa de licor de ovos. “Era doce, uma coisa horrível”, conta, fazendo careta. Já na faculdade seu pecado foi tomar anfetaminas, que lhe davam gás para varar noites estudando para as provas. Maconha ele provou mais velho, já formado. Assim que o efeito bateu, viu surgir uma aura verde brilhante ao redor de um de seus amigos. Passada a alucinação, ficou enjoado e teve ataque de pânico. Aliás, a droga foi tema de várias das colunas que publicou recentemente na Folha de São Paulo. O médico apresentou dados científicos apontando os malefícios e os benefícios da maconha e, por fim, concluiu que o melhor seria legalizá-la. Enquanto abre espaço na mesa para o garçom servir a comida, Drauzio explica o porquê. “Essa política de guerra à droga é ridícula. Fala a verdade. É um fracasso retumbante. Faz o quê? Pega um moleque com baseado, prende e põe no meio da bandidagem? É um absurdo esse negócio. O que acontece nessa guerra toda? A gente conseguiu diminuir o consumo? Não para de crescer. Vai mandar todo mundo para a cadeia?”

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Para ele, melhor encarar que as pessoas usam e buscar meios de tornar o uso legal. “Legalizar não é liberar geral. Veja o caso do cigarro. Aprendemos a lidar, considerando a dependência da nicotina e impondo limites ao convívio social. Olha aqui”, diz, abrindo os braços e dando um olhar panorâmico no restaurante onde freguês nenhum está autorizado a fumar. Neste momento, pela janela, vemos uma moça do lado de fora do Dona Onça, na entrada do icônico Edifício Copan, tragando com vontade. Percebe que é observada e se vira de costas. O médico, que encampou uma cruzada contra o tabaco, ri. Afirma que às vezes se sente como a encarnação de “um personagem repressivo.” No Hospital Sírio-Libanês, os funcionários costumam fumar na calçada da entrada. Basta ele apontar ao longe para aquele grupo de homens e mulheres se esconderem. “Tem cabimento?” Termina de falar e só então pega os talheres e quebra, com prazer, a gema do ovo frito que vem sobre o arroz. “Uma de suas pacientes, que teve câncer, voltou a fumar e está com receio de revelar sua recaída para o senhor. Como reage a esse tipo de notícia?” “Pela minha história de vida e pela especialidade médica que escolhi, tenho uma longa convivência com a morte. Perdi minha mãe com quatro anos. Essa é uma contradição fundamental: vida e morte. Tenho tolerância com os erros dos outros, eu também cometo muitos erros.” Para mostrar que é maleável, cita o caso de um de seus pacientes da detenção que se negava a abandonar o crack. Drauzio sugeriu, então, que substituísse a droga pesada pela maconha. “Não é bonito um médico falar uma coisa dessas, mas o que é melhor? Queria que ele não fumasse nada, mas o outro não é como você gostaria que fosse.”

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Resgata uma história em quadrinhos que costumava ler quando criança. O herói era um sujeito que, um dia, pescando, viu cair um raio na água e desmaiou. A partir desse momento passou a sonhar com tragédias que de fato se concretizavam. Ciente de seu poder premonitório, tentou evitar, a todo custo, que as desgraças ocorressem. Em vão. Foi tachado de louco e acabou os dias trancafiado em um hospício. “Sabe, eu me identifico com esse personagem. Quando vejo um homem de 60 anos, com cigarro no bolso, aquela barriga que parece ter oito meses de gravidez, tenho vontade de dizer: ‘Vai te acontecer uma desgraça. Você vai ter um enfarte ou derrame’. Mas não posso, senão também vou parar em um hospício.” Em seguida, ajeitando um montinho de arroz no garfo, lembra-se de seu irmão caçula, oncologista como ele, que morreu aos 45 anos de câncer no pulmão. “Ele me deixava exasperado. Falava todos os dias: ‘Fernando, para de fumar’. Não adiantou nada.” Interrompe o percurso da comida à boca e completa. “Sabe, hoje eu me arrependo. Acho que infernizei muito ele.” E só então finaliza a garfada. Seu celular toca algumas vezes, pede licença e atende. Assim que desliga, conta que acaba de morrer a mãe do convidado que seria entrevistado por ele à noite na Livraria Cultura. “A morte é tão enigmática. Lidar com o fato de a vida terminar”, comenta depois de avisar ao pessoal da livraria que o evento seria cancelado. Drauzio aprendeu cedo que morte é a ausência definitiva. Poucos dias depois que sua mãe morreu, sentado à mesa do café da manhã, o menino perguntou à avó. “Vó, nunca mais vou ver minha mãe?” A senhora espanhola, trajando vestido preto, não conseguiu dizer nada. Permaneceu cabisbaixa na direção da leiteira. O médico tratou do tema da finitude em seu livro Por um Fio, em que conta a sua experiência com doentes terminais e relembra a perda da mãe e do irmão.

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Dispensamos a sobremesa. Drauzio não come doce há décadas, é ex-fumante — embora ainda sonhe com cigarro — e corre maratonas. Está até escrevendo um livro sobre sua experiência nesse tipo de prova. Determinado, o oncologista costuma pular da cama às 5h30 para correr pelas ruas ainda desertas da cidade. Mas até esse homem acostumado a dar conselhos médicos na televisão comete deslizes. Em 2004, ao voltar de uma viagem à floresta amazônica — local que já visitou dezenas de vezes por causa do trabalho de pesquisa que desenvolve no rio Negro —, descuidou da dose de reforço da vacina contra febre amarela e acabou infectado. Achou que fosse morrer. A atriz Regina Braga, sua mulher desde 1981, e as filhas de seu primeiro casamento, a tradutora Mariana e a também médica Letícia, revezaram-se ao seu lado. A história toda foi narrada em seu livro O Médico Doente. Já tomando café, Drauzio, que está com 71 anos, diz que não adianta cuidar só do corpo. “Quando vejo um velho solitário, fico pensando se não está só porque não é interessante. Que vive de lamúrias e lamentações, o que acaba afastando as pessoas. Pode parecer cruel dizer isso, mas é verdade na maior parte dos casos. Acho que você tem que se habituar com a idade, com a mudança de cenário e a perda de pessoas próximas. Por isso, acho importante ter contato com um grupo maior de pessoas, de idades diferentes, e ter vontade de experimentar o novo.” O garçom traz a conta. Quando saco o cartão para pagar, Drauzio interfere indignado. “Sabe, tenho a maior dificuldade de deixar uma mulher pagar minha conta.” Eis uma boa chance para mudar hábitos arraigados e fazer algo novo, não? Ele ri e guarda a carteira, meio a contragosto. São quase cinco da tarde quando saímos do restaurante sob um sol já pálido. Drauzio faz questão de caminhar com a repórter até um ponto de táxi,

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do outro lado da avenida. Abre a porta para que entre e só arreda pé quando o carro some pela avenida movimentada. Há certos hábitos que um cavalheiro à moda antiga não abandona. Jamais.

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Erick Jacquin Tem chef que é fogo Por

Tom Cardoso, de São Paulo

16/1 /2015

S e g u n da , t r ê s e m e i a da ta r d e , ba i r r o d o s J a r d i n s , São Paulo. Encobertos pela sombra de uma imponente figueira, árvore centenária que dá nome ao restaurante do grupo Rubaiyat, referência gastronômica na cidade, três garçons, acompanhados do maître — e do repórter, já sentado à mesa —, mostram uma preocupação incomum para o horário, já com pouco movimento. A tensão se justifica pela responsabilidade de servir um dos mais respeitados — e exigentes — chefs de cozinha em atividade no Brasil, um quase brasileiro, que, no entanto, a despeito da paixão pelo país, nunca deixará de ser um autêntico francês: Erick Jacquin. A agonia dos garçons é prolongada pela demora de Jacquin em chegar ao fundo do restaurante. Alçado a categoria de celebridade depois da participação como jurado do MasterChef Brasil, reality show de gastronomia exibido na Rede Bandeirantes com satisfatórios índices de audiência, o cozinheiro, ao lado da mulher, a maîtresse Rosângela Menezes, é assediado por clientes e funcionários. Um dos garçons cochicha com o colega, atrás do repórter: “O que será que o homem vai querer comer, hein?” O outro parece ainda mais aflito: “Não sei, mas o jeito é rezar para ele gostar”.

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A fama, já conhecida pelos seus pares e subordinados, que o persegue e por muitas vezes o prejudicou — a falta de tino para os negócios e o temperamento colérico nunca permitiram a Jacquin lucrar com seu talento —, ganhou dimensões nacionais, depois do reality show, mas também ajudou a humanizá-lo. As duas facetas de sua personalidade foram escancaradas na tv: em vários momentos o chef malcriado, intolerante e irascível deu lugar ao cozinheiro doce, bonachão e engraçado. Antagonismos que fizeram de Jacquin a grande estrela do MasterChef, uma espécie de personagem de si mesmo — diferente dos outros dois chefs jurados, Henrique Fogaça e Paola Carosella, distantes, segundo os que os conheciam bem, do que representavam na realidade. “Não sou diferente daquilo que você viu lá no programa”, diz Jacquin, já sentado à mesa. “Não sei pegar leve, não consigo deixar passar as coisas. Sou da categoria dos homens duros.” Jacquin pede uma água sem gás para Rosângela. Ela ri do último comentário do companheiro, com quem está há dez anos, mas não de “papel passado”. Eles pretendem oficializar a relação em breve, em duas cerimônias, uma no Brasil e outra na França. Os dois se conheceram no aniversário de um amigo em comum, o fotógrafo Luiz Tripolli. Rosângela era na época hostess do Grupo Fasano e ele, dono do La Brasserie, premiado restaurante francês, fechado após acumular dívidas de mais de um milhão de reais. Hoje, Jacquin, que promete “nunca mais assinar uma carteira de trabalho” (ele é citado em mais de 40 processos trabalhistas), presta consultoria para o La Brasserie de La Mer, em Natal (rn), o La Cocotte e o Tartar&Co, ambos em São Paulo. “O Jacquin é assim 24 horas por dia. Mas não é tão durão assim como diz. Ele pode quebrar o maior pau contigo durante o dia todo, mas à noite vai convidá-lo pra jantar”, diz Rosângela, que atualmente trabalha com o marido — é maîtresse do Tartar&Co. “Ele na cozinha e eu no salão. Se fosse o contrário, seria um desastre”, brinca.

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O maître do Figueira serve o couvert, uma combinação de pães de passas, de focaccia de alecrim e pão de queijo. Os garçons parecem ainda inseguros com a presença de Jacquin. O repórter faz um comentário sobre a sua fama de difícil. O chef parece irritado. “O povo aqui é sensível demais, fica chateado com pouca coisa.” Ele lembra quanto os brasileiros, sobretudo os empregados, demoraram a se acostumar com o seu estilo. “Eu não dizia ‘me passa o sal, por favor’, ‘colocar, por gentileza, a comida no forno’. Eu falava ‘sal’, ‘pimenta’, ‘bota no forno’, ‘tira do forno’, ‘monta’, ‘serve’, diz. “E xingava sempre quando preciso.” Sobrava também para os clientes. Nascido em 1964 na pequena Dun-sur-Auron, situada perto do Vale do Loire, região de rica tradição gastronômica, aluno da École Hôtelière de Saint-Amand Montrond e cria de lendas da cozinha francesa, como Gérard Faucher, Philippe Groult e Henri Charvet, o então jovem Erick Jacquin chegou a São Paulo em 1994, aos 30 anos, para chefiar a cozinha do Le Coq Hardy (fechado em 2009, dessa vez não por sua culpa), de Vincenzo Ondei. Ainda se adaptando ao país, quase surtou quando um freguês brasileiro exigiu que ele cozinhasse uma “porção de arroz”. “Eu saí da cozinha, fui até a mesa e disse que não tinha o menor cabimento servir arroz num restaurante francês e que provavelmente o arroz feito na casa ficaria bem melhor que o nosso”, diz Jacquin. “Imagina se eu comprometeria meia hora do tempo da minha cozinha para fazer arroz?” Jacquin chegou a expulsar do restaurante outro cliente que comprou briga por exigir que ele preparasse uma salada de tomate com palmito. “Pedi para ele ir embora. Sou assim, não sei cozinhar para quem não gosto, nunca fica bom.” Mas Jacquin também tem fama de generoso. O aprendiz de cozinheiro Estefano Zaquini, de 20 anos, excluído das fases finais

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do MasterChef, o que o obrigaria a voltar à dura rotina de ajudante de serralheiro na periferia de Santo André (sp), foi convidado pelo chef, logo depois de sua eliminação do programa, em outubro, para um estágio no Tartar&Co, onde permanece até hoje. Não há moleza, muito menos proteção. A cobrança é grande. “Todo jovem que entra para a gastronomia tem que saber que a partir dali ele vai, para sempre, trabalhar duro no mesmo horário em que todos os seus amigos estão se divertindo.” Ele diz já ter visto muitos jovens cozinheiros, talentosos, que não seguraram a barra: pediram para ser dispensados no aniversário da mãe ou da namorada. Não voltaram ou foram mandados embora pelo francês — boa parte dos demitidos o processou. “Os mesmos que me acionam na Justiça são os que colocam no currículo, orgulhosos, que trabalharam um dia comigo.” O couvert permanece intocado por Jacquin. Ele prometeu à mulher e aos chegados que vai cuidar melhor da saúde e inverter a escalada do aumento de peso (está atualmente com 120 quilos), que o acompanha desde que chegou ao Brasil, país que o obriga a cumprir uma jornada muito mais penosa do que a enfrentada pelos cozinheiros europeus — na França, a cozinha dos restaurantes fecha por volta das 21 horas, algo ainda impensável por aqui. “Enquanto o Brasil não mudar as leis trabalhistas e tributárias, eu não abro mais restaurante nenhum. Por enquanto, só consultoria e olhe lá”, promete. Mas Jacquin diz que o país evoluiu muito nos últimos anos quando o assunto é gastronomia. A figura do chef ganhou relevância, os pedidos por porções de arroz e saladas de palmito diminuíram. Não que ela tenha se livrado das aporrinhações. “Amor, conta aquela história do tiramisù do Fasano”, diz Rosângela. Jacquin toma um gole de água, contrai o rosto e arregala os olhos — e ele é dono de um interminável repertório de caretas. “Conto.” As suas respostas, por mais longas que sejam as perguntas, são sempre monossilábicas. No La Brasserie, um cliente, depois de

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servido o jantar, chamou o maître e disse que queria “um tiramisù igual do Fasano”. A exigência chegou à cozinha, mais precisamente ao chef e dono do restaurante. A reação natural de Jacquin, já conhecida por todos os funcionários, seria ir até a mesa do cliente e explicar, com a habitual “elegância”, que o tiramisù era uma sobremesa italiana e a especialidade de seu restaurante, de origem francesa, era preparar o melhor petit gâteau da cidade. Jacquin, porém, decidiu por outra solução. Ligou para o Fasano, mandou vir um tiramisù no prato do estrelado restaurante italiano e o serviu pessoalmente. Cobrou o preço do tiramisù do Fasano, bem mais caro do que qualquer sobremesa de seu restaurante, e fez questão também de cobrar o frete. “Deu mais ou menos R$ 120. O cara nunca mais voltou ao meu restaurante e, para ser sincero, não fez a mínima falta.” A rabugice faz parte do charme de Jacquin. Pelo menos para Rosângela e os que convivem com ele — brasileiros ou franceses. Ela diz que a família inteira do marido é assim e o mais divertido é assistir a uma briga do chef com sua mãe, uma típica senhora francesa. Quando parece que estão brigando um com o outro, estão apenas “se explicando”. Quando estão brigando, de fato, é melhor sair da frente. “Ele é igualzinho à mãe. Quando começam a conversar, parece que estão brigando. São teimosos, discordam sempre um do outro, mas se adoram”, revela Rosângela. A mãe ficou pela França. Durante as crises vividas em São Paulo, pelos mais variados motivos, Jacquin pensou diversas vezes em voltar a cozinhar em Paris. A paixão pelo Brasil sempre o empurrou de volta, mesmo quando, em 2003, ele se separou da primeira mulher, a sommelière francesa Katia Lefriec, com quem tem um filho, Edouard — os dois retornaram para a França e ele decidiu ficar por aqui. O maître apresenta o cardápio, dispensado sem cerimônia por Jacquin. “Quero comer carrne”, diz. O sotaque francês ainda é

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forte, mesmo com quase metade da vida morando em São Paulo — ele é naturalizado brasileiro. É curioso vê-lo trocando palavras e errando a concordância das frases. “Não vou ser nunca um verdadeiro brasileiro e nunca vou deixar de ser um francês. O Brasil não mudou minha maneira de viver, minha cultura, nem nada.” Com o fim do La Brasserie, Jacquin diz que não existe mais nenhum restaurante francês aberto no Brasil — os que são chamados assim ou são adaptados ao país, uma mistura de francês com brasileiro (onde, provavelmente, ele diz, deve se servir “até” arroz e salada de tomate e palmito), ou bistrôs, com um cardápio mais reduzido e limitado. “Restaurante francês clássico, verdadeiro, não tem, não. Só tinha o meu.” Há, sim, um pouco de brasilidade nesse francês que se diz “legítimo”, torce para o Corinthians, adora caipirinha e Carnaval, embora tenha se adaptado aos trancos e barrancos à cultura local. O primeiro grande “choque cultural”, lembra Jacquin, se deu numa ida à padaria. Sem falar uma só palavra em português, o jovem chef levou um papel em branco escrito “presunto” por um amigo e mostrou ao atendente. Diante da pergunta sobre quantos gramas ele desejava, Jacquin mostrou oito dedos — queria “oito fatias grossas”, como sempre pediu na França, para comer com pão, antes do jantar. “O cara me entregou uma montanha de presunto: 800 gramas”, relata. “Não tinha costume de guardar presunto na geladeira, como a maioria dos brasileiros.” Passou a guardar, pelo menos até aprender as primeiras palavras em português. Duas suculentas porções de baby beef, uma das especialidades da casa, são servidas para o chef e o repórter — Rosângela já havia almoçado. Jacquin confere o ponto da carne, bem malpassado, faz uma nova careta (que quase sempre não significa algum sinal de reprovação), para desespero do garçom ao lado, e conta que a primeira ida ao Carnaval do Rio, assim como no caso da padaria,

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também foi inesquecível. O taxista do Santos Dumont, aeroporto carioca, só aceitou levá-lo à Sapucaí com o taxímetro desligado, malandragem aplicada para enganar turistas, sobretudo os estrangeiros, mais suscetíveis ao golpe. No fim do percurso, foi cobrado o triplo do que daria a tarifa. Jacquin sorri. “Dei uma de louco. Puxei uma nota de cem reais e disse, arregalando os olhos e franzindo a testa [uma de suas especialidades] que ele podia ficar com tudo, mas que aquele era o dinheiro do diabo e a partir daquele momento ele e sua família sofreriam para o resto de suas vidas”, diz. “O taxista ficou desesperado, passou a correr atrás de mim com a nota nas mãos, tentando devolver, mas não conseguiu — eu entrei no camarote e ele ficou do lado de fora, chorando.” Atualmente, quando volta ao Rio, o chef, que não gosta da forma apressada de dirigir dos motoristas cariocas, também paga cem reais por corrida, desde, porém, que ele vá dirigindo e o taxista no banco de trás. “Eles sempre topam. Tem um que me liga para perguntar: ‘Seu Jacquin, quando o senhor vem ao Rio dirigir o meu táxi?’” Rosângela solta uma gargalhada. O maître pergunta se o ponto da carne está bom. Nova careta. Um pouco de suspense e a resposta lacônica de sempre: “Sim”. O idiossincrático chef francês não deve voltar tão cedo a dirigir táxis no Rio. Com o sucesso do MasterChef não há praticamente mais tempo para viajar a lazer. Os convites para dar palestras multiplicaram-se depois do fim do reality show, para organizar jantares para clientes e empresas, também. “O programa mudou minha vida. Não imaginava que faria o sucesso que fez e que eu ia me dar tão bem na televisão”, revela Jacquin. Ele recebeu diversos convites para estrelar programas culinários, nos moldes dos apresentados por outras estrelas da gastronomia, como o também francês radicado no Brasil Claude Troisgros, mas não tem pressa para tomar uma decisão. “Tem que ser com as pessoas certas, de

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preferência com gente de que eu gosto. Se não for assim, não vai dar certo.” Jacquin também recebeu uma proposta para escrever um livro, a quatro mãos, com um jornalista. Já começou. Não será um livro de receitas, que ele abomina. “Nunca precisei de livro para cozinhar. A minha inspiração sempre foi o cheiro da comida, os produtos e não as receitas”, conta. “Será um livro sobre comida e com boas histórias sobre a minha vida.” Se não bastasse, ele também recebeu um novo convite, este inusitado: para estrelar uma peça de teatro. Interpretaria um pouco o papel de si mesmo, o de um cozinheiro excêntrico, engraçado, mas de grande talento. Quando soube que o teatro, assim como a cozinha, exige dedicação quase integral, rejeitou prontamente a proposta. Só topa se puder subir ao palco apenas no domingo. Quarta, quinta, sexta e sábado, nem pensar. “As pessoas acham, principalmente depois do MasterChef, que eu sou um chef milionário, que tenho uma vida confortável, que posso me dar ao luxo de largar tudo e viver de falar sobre os meus pratos e minha vida”, diz. “Se parar de cozinhar, morro de fome. Aliás, como sempre estou no trabalho, quase não tenho tempo para jantar fora ou para cozinhar para a minha mulher”. Rosângela diz que tomou uma bronca de sua mãe, quando esta soube que ela jamais havia cozinhado para o marido. “A minha família é de São José do Rio Preto, interior de São Paulo, um pouco machista. Minha mãe, quando soube que eu nunca tinha entrado na cozinha de casa e mesmo sabendo que eu havia me casado com um grande chef, perguntou, indignada: ‘Filha, você não tem vergonha de não cozinhar para o seu marido?’” Jacquin faz biquinho. “Eu gosta de cozinhar para você.” E para os amigos mais chegados. Sempre que pode, ele arruma tempo para organizar grandes jantares em seu apartamento nos Jardins. A maioria

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dos profissionais, com excesso de trabalho, como ele, aproveitariam o tempo livre para fazer outras coisas, menos voltar à labuta, mas Jacquin, não: costuma sair diretamente da cozinha dos restaurantes para a cozinha de casa. “Não sei fazer outra coisa. E minha diversão sempre foi cozinhar.” Dois cafés são pedidos. Jacquin dispensa a sobremesa, o repórter também. O chef parece menos tenso, a informalidade da conversa o relaxou. O temido francês é menos duro do que aparenta. Para os amigos, um grande gozador, um frasista de primeira — mesmo que alguns aforismos sejam incompreensíveis, pela já citada dificuldade em falar o português correto. “Jamais vou perder o sotaque; se perder, vou ter que baixar o preço dos meus pratos.” Quando perde o senso de humor, o que é raro, os amigos reclamam. “Mesmo quando estou deprimido, não deixo de fazer palhaçada.” Aliás, só a realização de um sonho, alimentado desde a infância, seria capaz de mantê-lo longe do fogão: ser dono de um circo. “Se um dia eu ficar rico, vou comprar um circo. E não para trabalhar como palhaço, não. Serei o dono.” Rosângela solta outra gargalhada. “Imagina o Jacquin dando bronca nos palhaços. Coitados.” Até o garçom, enfim mais relaxado, ri junto.

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Gustavo Kuerten O grunge volta à quadra Por

Paulo Totti, de Florianópolis

3/12/2010

O B ra s i l s e q u e r sa b i a da e x i s t ê n c i a d e G u s tav o Kuerten. De repente, um desengonçado riponga catarinense, tênis preto, cabelo encaracolado, aparece em Paris e ganha o Roland Garros numa manhã de sol do dia 8 de junho de 1997. “O surfista grunge chegou lá”, registrou Veja no fim de semana, em texto de Maurício Cardoso, para quem “nunca se vira antes um azarão desse quilate”. “Como foi isso?” “Foi realmente surpresa para mim, para o Larri, e até para a maior torcedora, d. Olga, minha avó. Na volta, em Florianópolis, havia carro de bombeiro esperando. E o povo todo na rua. Uma catarata do Iguaçu caiu na nossa cabeça.” “Você tinha quantos anos?” “Vinte.” Aos 34, se Guga mudou não dá para perceber, pois o sorriso é o mesmo. E o que nele se destaca ainda é a simpatia tranquila, identidade que vai carregar para sempre. Após o arrasador 6/3,

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6/4, 6/2 sobre o espanhol bicampeão de Roland Garros, Sergei Bruguera, entusiasmava os fãs recém-conquistados a falsa displicência com que o garoto se apresentava: “Short solto, faixa na cabeça. Nas finais, queriam que mudasse o uniforme e eu falei ‘pô, agora?’. Não mudei”. “O uniforme da Diadora era escandaloso?” “O azul e o amarelo brilhavam, talvez fosse mesmo chocante para os padrões elitizados do tênis de então. Hoje, mudou um pouco, Agassi quebrou a barreira, usava rosa e chegou a jogar de jeans. Mas ele é americano...” Guga só abandonou o tênis profissionalmente. Pratica surfe nas horas vagas, despacha em seu escritório, e se prepara para o jogo de exibição no Rio contra Andre Agassi, ganhador de oito títulos do Grand Slam. Há exatos dez anos, derrotou Agassi, 3/0, na final do Masters Cup de Lisboa, e, com a vitória, passou a número um no ranking mundial, posição em que permaneceu por 43 semanas. Enfrentaram-se outras dez vezes em jogos oficiais, com sete vitórias do americano e três do brasileiro. O jogo é no próximo dia 11, num Maracanãzinho lotado, espera-se*. O restaurante que Guga escolheu para este “À Mesa com o Valor” tem muito a ver com ele, até no nome, “Café, Riso e Etc.”. O “Riso...” satisfez já nas entradas: carpaccio de polvo (pescado com pote de cerâmica), fatiado com máquina e guarnecido com brotinhos de saladas da estação, geleia de limão siciliano, casca de limão e pimenta biquinho; e mil-folhas de puré de alcachofra, camarão grelhado e azeite de trufas. Maître Vitor sugeriu, sob aplausos. “Você toma vinho?”

*

Guga voltou a vencer o americano, desta vez por 7/5 e 7/6. [N.E.]

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“Não. Pode ser uma água, um suquinho.” O repórter se conforma com água sem gás, mas isso não durará muito. A conversa, longa, acabou por exigir algo mais consistente para hidratá-la. “Desde quando você não é campeão?” “No meu aniversário, sempre há um torneio de futebol lá em casa. Sou penta.” “Estou falando de tênis…” “O último título internacional foi em 2004, na Costa do Sauípe, Bahia.” “Torneio ajeitado para você ganhar?” “Que nada! Uma suadeira. Eu já estava todo quebrado, a perna detonada. Minha primeira cirurgia foi em 2001. Voltei a jogar e fui o número 12, 13 do mundo. Ganhei até do suíço Roger Federer, 3/0, em Roland Garros, 2004 – esse mesmo que agora ganhou do Rafael Nadal. Os amigos me chamavam de Saci porque eu dava uma mancadinha. Depois de 2001, ganhei uns quatro torneios “Você falou em perna, mas o problema não era no quadril?” “Na perna que eu falo é aqui, no quadril. Ruptura do labrum.” Labrum, ou lábio acetabular, é a fibrocartilagem que envolve a articulação do fêmur com o quadril. Sua lesão provoca muita dor e a cicatrização é difícil. Tenistas e bailarinos, por causa da rotação brusca do quadril, são as suas vítimas mais frequentes. “E a causa?” “É igual à queda de um avião, nunca tem uma causa só. É uma série de circunstâncias, uma casualidade. Faz parte do meu show, como disse o Cazuza.” “Mas os campeonatos não foram uma casualidade. São, como a lesão, um acúmulo de fatores, desta vez positivos. Roland Garros resultou de muito trabalho, não?”

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“Em 1997, me sentia preparado, mas pensávamos que chegar às quartas de final já era uma vitória. Quando ganhei de Andre Agassi, por um triplo 6/4 na final de Lisboa, em 2000, depois de ter perdido para ele durante o torneio, também não foi um acaso. Resultou de esforço físico e técnico. Pensar o contrário é desmerecer os adversários.” Em 1997, em Paris, os adversários eram o belga Filip Dewulf, o russo Yevgeny Kafelnikov, o austríaco Thomas Muster, o catalão Sergi Bruguera. Superastros eram também os adversários nas outras duas vezes em que foi campeão em Roland Garros. Em 2000, em Lisboa, já jogava com dores e teve de derrotar a superelite do tênis: Kafelnikov, o sueco Magnus Norman, o americano Petros “Pete” Sampras e Agassi. O reconhecimento mundial, os aplausos que ainda recebe fora das quadras — e o sorriso perpétuo — parecem indicar que a vida de Guga, campeão predestinado, foi uma maravilha. Dupla falta! Aldo Kuerten, dono de pequena fábrica de esquadrias de alumínio, jogava basquete e tênis e “por uma questão mística, um insight talvez”, resolveu que o futuro do filho seria o tênis. Guga tinha sete anos e o pai o apresentou a um gaúcho, cujas qualidades o mundo admiraria mais tarde, Larri Passos. O técnico tinha compromissos no sul, e não pôde ser treinador de Guga — isso só aconteceria seis anos depois. Sem treinador famoso, mas com imensa dedicação, Guga, já aos oito anos, foi participar de um campeonato da “categoria dez anos” em Curitiba. Foi, então, e ali, que morreu seu pai. Numa quadra, Guga assistia a um jogo de garotos. Na quadra ao lado, o pai era o juiz de outra partida. Matou-o um fulminante ataque cardíaco. “Você é religioso? Tem essas coisas de fatalismo, destino?” “Sou católico de formação, mas hoje não tenho religião definida. Minha mãe, d. Alice, é mais religiosa. Deus, se for para

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categorizar, é algo superior, provém dele uma energia e estamos no mundo para utilizá-la em benefício do nosso semelhante…” A morte do pai não foi um impacto apenas emocional, causou problemas à família, que teve de se desfazer da metalúrgica, vender o carro, o piano, e viver do salário de d. Alice, assistente social da Astel, associação de funcionários da companhia telefônica de Santa Catarina. “Não sobrava nada, mas minha mãe encontrava uma forma de investir na minha carreira. Há o patrocínio de pai, paitrocínio. No meu caso, foi mãetrocínio.” “Como foi seu primeiro contato profissional com o Larri?” “Virei adulto aos 13 anos. Larri se mudou para Blumenau, onde treinava os meninos de um clube local. Fui para lá treinar, morar sozinho, comer de marmita, tomar dois ônibus, assistir aula numa escola pública e ter saudade de casa. Durou quase um ano. Depois Larri se desentendeu com o clube, saiu e acabou indo morar em Camboriú. Eu voltei para Florianópolis. Aqui havia o filho de um médico, Bernardo, que queria ser treinado pelo Larri. O pai dele, então, entrou na história de trazer o Larri para nos treinar duas vezes por semana. O médico bancava.” Guga já era uma revelação, mas o técnico, seu “segundo pai”, sabia que o pupilo precisava ganhar experiência internacional. Partiram para a Europa, com dinheiro curto e hospedagem na casa de amigos. Era 1992 e Guga tinha 15 para 16 anos. Passaram três meses por lá, participando de torneios da categoria até 18. “Perdi e ganhei dos melhores do mundo.” Um dos adversários nesse tour europeu foi o russo Yevgeny Kafelnikov, que seria o número 1 do ranking da atp em 1999 e a quem, nos anos seguintes, Guga derrotaria em Roland Garros. “Você amadurecia como pessoa…” “Vi de perto, inclusive, o reflexo dos horrores da guerra. Na Alemanha, ficamos na casa de uma família amiga do Larri. Estava lá

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também uma senhora com sua filha, croatas, refugiadas. O pai da menina estava na guerra da Bósnia. Quando eu perdia um jogo, voltava triste. E o que dizer daquela mulher que há um ano não tinha notícia do marido? E da menina que não sabia se o pai estava vivo ou morto?” Nessa temporada, Guga esteve em Paris e pela primeira vez entrou em Roland Garros. “Pagaram ingresso?” “A gente enrolou o guarda. O Larri disse que eu estava disputando o torneio juvenil. Na verdade, não me classifiquei. Mas assistimos ao torneio principal masculino [campeão, o americano Jim Courier] e deu aquela sensação: ‘Como é bom isso’. No ano seguinte, pisei na quadra de Roland Garros no torneio de juvenis. Cheguei às quartas de final, já era um dos melhores do mundo na categoria. Consegui até o patrocínio da Sadia, que cobria 80%, 90% dos custos.” Guga foi subindo no ranking. “Quando saí dos juvenis, era o número três do mundo. Entrei para os adultos e me disseram ‘vai lá para trás’. Virei, sei lá, o 700, o 800. Começaria tudo de novo. Mas na despedida dos juvenis, sofri outro choque.” Em Miami, às vésperas do Natal de 1994, realizava-se o maior torneio de juvenis do mundo. “Estou na final do torneio, a decisão está marcada para o dia 25, contra o equatoriano Nicolás Lapentti. Amanhã posso ser campeão. Na noite do dia 24, conseguimos mesa num restaurante lotado de Miami e a ceia de Natal foi com Larri e eu, silenciosos. Percebi que os olhos de Larri às vezes se enchiam d’água. Pensei que fosse por causa do Natal. Nós dois ali, longe da família. No dia seguinte perdi.” “Perder é do jogo. Foi esse o choque?” “Não. Larri não quis me dizer na ceia de Natal que acabávamos de perder o patrocinador. A Sadia levou sua verba para a Fórmula Indy.”

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Maître Vitor aparece: “Um peixinho, uma carne?” Guga olha o cardápio e sugere pavê de dourado, com risoto de alho poró e molho de limão siciliano. “Sem patrocinador, fiquei meio perdido. Estava preparado para a vida profissional, e agora? Mas seis meses depois ganhei o patrocínio do frigorífico Chapecó. Deu para executar um planejamento sério. Tentei Roland Garros, mas era o 404 do ranking e só podia se candidatar quem estava abaixo de 400. Esperei na fila em Paris que três se machucassem ou desistissem. Só dois desistiram. Peguei minha raquetinha e voltei.” No fim de 1995, já era o 170 no ranking da atp e, no Brasil, o número dois (o primeiro, Fernando Meligeni). Guga acabou 1996 entre os 100 primeiros do mundo, ao ganhar do espanhol Carlos Moyà, que já era o 16. Estar entre os Top Cem permitia participar das eliminatórias de todos os torneios, inclusive os do Grand Slam (Melbourne, Roland Garros, Wimbledon e Nova York). E Guga já passara a número um do Brasil. Foi então que o frigorífico Chapecó entrou em concordata e o Banco Real o substitui no patrocínio. “Consideraram meu potencial. Apostaram um pouquinho melhor do que os Furlan”, ironiza, referindo-se aos controladores da Sadia. O contrato com o Real garantia US$ 60 mil anuais. E surgiu também a Diadora, com o patrocínio da roupa. Rendimentos modestos, mas o tênis daquela época não era “a vitrine de hoje”. O ano de 97 já começara promissor: uma vitória, em março, sobre Agassi, em Memphis. “Ele estava entre os 30 melhores do mundo, acho que entre o 16 e o 24, e eu lutava para chegar entre os 50”. E finalmente, em junho, Roland Garros. Ali, à quadra principal, um brasileiro jamais chegara. “Uma taça de branco ou tinto?” O peixe está realmente bom e Guga se rende. “Sim, traz uma tacinha.” “Chardonnay?” “Se fosse

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na quadra dava palpite, mas aqui...” E assim, com uma taça do chardonnay chileno Tierra del Fuego, Guga quebrou uma abstinência de mais de três meses. “Bem, estávamos em Roland Garros…” “Aproveitei que os adversários não me conheciam ou não se preocupavam muito com meu jogo. Mas, na quadra, ou no videoteipe, tinha visto eles jogarem 50 vezes.” Guga é assim, modesto. Diz que treinou muito, observou muito, concentrou-se, mas não se refere à sua técnica, excelente para a época — se assim não fosse, não seria o campeão depois de sete partidas na competição de tênis mais charmosa do mundo. A partir daí, a história do garotão (um metro e noventa) é conhecida: fraco desempenho em 1998 (eliminado em Roland Garros); o bi e o tricampeonato na mesma quadra em 2000 e 2001, e a ascensão a primeiro do mundo, além das Master Series e atp Tours que conquistou em três continentes. Ganhou de todos os grandes e seguiria ganhando, não fosse o labrum. Em Florianópolis, Guga desenvolve atividades comerciais e filantrópicas, sob duas razões sociais, Guga Kuerten Participações e Instituto Guga Kuerten. O irmão mais velho, Rafael, o Rafa, já em 1996 “desertou da computação” para cuidar dos negócios do tenista. Guga ainda empresta sua imagem à publicidade e licencia produtos com seu nome (Banco do Brasil e Grendene estão entre seus clientes), mas dedica parte do patrocínio à difusão do esporte entre crianças carentes e à inclusão social de deficientes. “O apoio aos deficientes é homenagem à memória de seu irmão mais novo?” “É um trabalho inspirado nele e incentivado por minha mãe. Guilherme tinha paralisia cerebral e morreu em 2007.É servida a sobremesa. Alice, Rainha Doce: bolinho de mandioca, morno, sorvete de melado de cana, embebido em cachaça.”

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“Você fez curso superior?” “Não consegui. Mas agora estou na Universidade Estadual de Santa Catarina, num curso muito interessante: teatro.” “Teatro?!” “Achei fundamental me interessar por algo não diretamente ligado à minha vida. Estou empolgado, mas com dificuldade de acompanhar. Tive de trancar a matrícula”“ “Ator, autores, de seu agrado?” “Ator, José Wilker. Diretor, José Celso Martinez Corrêa. Autor, Augusto Boal.” “Você é solteiro?” “Há um mês estou casado com Mariana, fonoaudióloga aqui de Florianópolis. O pai de Mariana já morreu e minha sogra está casada com um economista conhecido.” “Quem?” “Paulo Nogueira Batista Jr., representante do Brasil no fmi. Teoricamente, o Paulo é meu sogro. Estivemos juntos na Copa do Mundo. E ele veio ao casamento.” “E no tênis você tem herdeiros?” “Tem uma gurizada muito boa. Thomaz Bellucci está entre os 30 do ranking mundial, só superado por mim.”

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Hermeto Pascoal “Minha política é a música.” Por

Claudia Safatle, de Brasília

19/9/2014

As notas musicais vão brotando da cabeça. Hermeto Pascoal escreve música no guardanapo, em sacolas de supermercado, na parede, no rolo de papel higiênico. Aos 78 anos, o entusiasmo do músico impressiona e contagia. “Minha música é a minha droga”, diz ele, enquanto conta histórias. Começa do começo: o dia em que decidiu, aos 14 anos, fugir de Lagoa da Canoa (Alagoas) para tentar a vida de músico no Recife, o aprendizado que teve com os sons dos bichos, o encontro com Sivuca [1930-2006] e Miles Davis [1926-1991] e como era visto no meio musical. “Diziam que eu era doido.” A prosa não para. “Minha doideira é a minha música”, repete. Ainda criança, começou a tocar uma pequena sanfona oito baixos e causava estranheza nos bailes da cidade. “Os caras chegavam pro meu pai e diziam: esse galego pequeno aí tá tocando muito esquisito, ninguém consegue dançar com ele!” Antes de se apresentar no Teatro da Caixa, em Brasília, para três shows, Hermeto conversou com o Valor. Marcou um lanche de fim de tarde no restaurante Outback, em um shopping onde

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passeava com Aline Moreno, sua mulher, cantora e parceira. Pediu uma salada e meia garrafa de vinho Miolo Reserva. Sua história começa em uma tarde de 1950, quando ele, com 14 anos, e o irmão mais velho, José Neto, com 15, partiram para o Recife sem avisar aos pais. Ambos menores de idade, inventaram uma história dramática e muito choro para convencer o motorista do ônibus a levá-los. “Se eu dissesse pra eles [os pais] que ia sair de casa, eles não iam deixar. Eu sabia que o futuro ia ser legal, eu sabia que eles iam ter uma surpresa boa. Minha cabeça era assim.” Desembarcaram na rodoviária e ali mesmo saíram a perguntar o endereço da Rádio Jornal do Commercio, onde Sivuca tinha um programa chamado “A Felicidade Bate à Sua Porta”, e da Rádio Tamandaré. Com a cara e a coragem, bateram na jc. “O dono da estação, dr. Pessoa de Queiroz, achou bonito nós três branquinhos assim, eu, meu irmão e o Sivuca, que já era um sanfoneiro famoso e apenas seis anos mais velho que eu.” Os dois meninos ganharam cada um uma sanfona, que não faziam a mais pálida ideia de como tocar. Hermeto só conhecia e manuseava “aquela sanfoninha primitiva, oito baixos, que no Nordeste a gente chamava de pé de bode e, no Sul, o pessoal chama de gaita ponto”. Estava criado o trio O Mundo Pegando Fogo — os três branquinhos, albinos, que tocaram juntos pela primeira vez no programa de Sivuca ao vivo, na rua, em cima de um caminhão. Aliás, Sivuca tocava. Os dois faziam mímica. “Eu não tocava nada nem meu irmão. O Sivuca disse: ‘Oh, quando eu me balançar vocês se balançam também.’ Ele foi muito solidário, né?” Esse início de carreira foi curto. Durou só aquele dia, porque o diretor da rádio dispensou Hermeto e o irmão. “Ele disse que nós não dávamos pra música.” Foi cada um para um lado. A família ficou sabendo por carta onde estavam as duas criaturas. “Eu fui pra Caruaru, meu irmão

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foi pra Garanhuns.” Depois de quatro meses Sivuca foi tocar na rádio de Caruaru, onde Hermeto se apresentava. “Ele chegou na gerência e perguntou: ‘Escuta, quem é esse sanfoneiro? Tá bonito, esse cara tá tocando bem!’ O gerente explicou que eram ‘dois galegos, o que estava ali e o irmão que tinha ido para a outra cidade’. E completou: ‘Eles não vão durar muito tempo nesse emprego porque não são do ramo’.” “Quanto é que ele ganha aqui por mês?”, perguntou Sivuca. “Ele ganha uns Cr$ 500,00”, respondeu o gerente. “Pois eu tenho Cr$ 2 mil para ele se vocês não o quiserem.” “Você está brincando! Não... Então vou pagar Cr$ 2 mil para ele!” Hermeto e José, que trabalhava na rádio do mesmo grupo em Guaranhuns, foram promovidos. Um tempo depois, Sivuca foi para o Rio, acompanhar Carmélia Alves, a rainha do baião. A amizade dos dois, porém, durou para sempre. Sivuca costumava dizer que Hermeto é o “Beethoven do século xx”. Miles Davis, que gravou duas músicas suas — “Igrejinha” e “Nem Um Talvez” —, chamava-o de “albino louco”. Eles se conheceram nos anos 70, em Nova York, por intermédio do músico catarinense Airto Moreira, que já era parte da banda do trompetista americano. “Eu fui pra casa dele tocar. Toquei umas 12 músicas no violão. Quando eu terminei ele disse: ‘Ah, meu Deus, se eu pudesse gravar todas!’” Hermeto escolheu as duas citadas acima e foi convidado a tocar com Miles Davis. “Eu não quis porque estava formando meu trabalho no Brasil.” Na edição do disco de Davis, não foi dado o crédito ao músico brasileiro, falha corrigida posteriormente e repetida depois da morte do músico americano. A genialidade do arranjador e multi-instrumentista alagoano — toca piano, flauta, acordeão, escaleta, saxofone, trompete, violão, chaleira com água, sem água e todo e qualquer objeto que

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lhe apareça pela frente — não transformou seus hábitos simples nem o enriqueceu. “Como diz minha mãe, fiquei rico de pena e bico, quer dizer, de experiência, que é o mais importante”, diz e ri. “Aprendi deduzindo.” Quando criança, tocava para os bichos que encontrava no mato. Com um talo de mamona, fez o primeiro instrumento e o testou junto a seu público especial: os animais. “Eu sei tocar pra passarinho, pra boi, pra vaca, pra porco, pra sapo, pra todos os bichos do mato, do rio, porque eu me criei assim. Inclusive eu aproveitava e estudava no mato. Sou autodidata até hoje.” Tentou estudar teoria musical, mas não foi adiante. O professor o dispensou porque havia pouco a lhe ensinar. “A teoria é lógica. Você olha em um livro e vê assim: a mínima vale dois tempos. A semínima vale um tempo. Quando olhei a colcheia, eu disse ah, então é meio. É tudo matemático. A teoria é pra ser usada. Não é pra você depender dela pra tocar.” Uma coisa é aprender teoria e tocar partitura. Outra é ser uma pessoa musical. Hermeto ensina: “A teoria é o saber e a música é o sentir”. A partir da sua experiência — que primeiro começou a criar, no meio do mato, com os sons dos bichos, para depois saber teoria —, ele não recomenda pôr os filhos ainda pequenos na escola de música. “Se você tem um filho musical, vai notar logo. Aos oito anos ele já vai querer ficar tocando uma coisa aqui, batendo noutra ali, numa coisinha e tal. Já se nota isso, certo? Só que você não deve ter pressa. Se quiser arrumar um professor, tudo bem. Tem que ser um professor que ensine a tocar de ouvido. A criança começa a tocar e vai tendo aquele gosto maravilhoso. Quando ela tiver os seus 12 anos e for aprender teoria, já vai com a cabecinha feita.” “O que você acha da música eletrônica?”

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“Nada. Não acho nada.” Pensa um pouco e prossegue: “Aquilo é a verdadeira droga da alma!” “Eu gosto de arrancar som de onde deve ter e de onde aparentemente não tem. Pegar um instrumento, sair tocando e criando as coisas, sabe?” Dizem que o “bruxo dos sons”, como é chamado, quando toca, acalma os animais. Ele assegura que sim, mas há alguns segredos. O primeiro é não repetir para os animais os sons que fazem, pois não gostam de ser imitados. O segundo é não ter pressa. Hermeto conta que quando morava em São Paulo recebeu um pessoal da Alemanha para gravar essa experiência. “Era para eu tocar no zoológico.” Aceitou o desafio. “Eu cheguei à entrada do zoológico e tinha uma girafa, assim, deitadona.” Aline, de 34 anos, sentada ao seu lado, corrige: “Não era girafa, era uma avestruz”. O animal estava muito doente e o veterinário que cuidava dele se aproximou, desconfiado. “Ele me viu cabeludo e já pensou que era daqueles caras hippies.” Com a flauta, Hermeto foi se aproximando e tocando. “Conversei mentalmente com ela, que não podia se levantar.” O médico falou que o bichinho estava desenganado. Ele começou a tocar e, meia hora depois, ela criou ânimo, se levantou e foi com o bico em direção à sua cabeça. “Ela me disse: pode ficar aí que eu não vou fazer nada com você.” O veterinário, preocupado, não estava gostando nada daquela experiência. “Dei uma cotovelada no médico e continuei tocando. Ela veio com aquele bicão, aquele pescoção, fez assim em mim oh!”, mostra, tocando na sua cabeça com as mãos. Os alemães filmaram tudo. “A Globo também pegou carona e deve mostrar isso quando eu morrer.” Influência musical ele teve poucas: Luiz Gonzaga [1912-1989] e Jackson do Pandeiro [1919-1982]. “O que me influenciou mais

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foi a vida. Música pra mim é a vida.” Com Jackson, tocou na Orquestra Jazz Paraguary, da Rádio Jornal do Commercio. “O Jackson era meu irmão. Um dia ele me disse: ‘Seu Hermeto, eu vou dizer isso pra você, mas não fala pra ninguém, senão vou perder meu emprego. Se você continuar tocando pandeiro, você não vai tocar mais sanfona aqui’.” Hermeto resistiu a continuar no pandeiro e foi mandado embora da orquestra. Instrumentos? Gosta de todos. “Quando eu estou tocando uma chaleira, eu curto tanto quanto o piano. Gosto de todos. Mas o piano é o dono da música, é o carro-chefe.” Não foram apenas os moradores de Lagoa da Canoa que reclamaram da música “esquisita” de Hermeto Pascoal. Os músicos brasileiros também o chamavam de “doido” e isso o chateava muito. “Fiz um disco, Por Diferentes Caminhos, e com ele eu ganhei todos os prêmios, até da capa. Tudo. E eles diziam: ‘Tu pega uma chaleira suja pra tocar!’ Eu dizia: ‘Cara, você está muito no andar físico. Fica no andar espiritual que você vai ver o que eu estou fazendo na chaleira, eu estou tocando bonito. Entendeu?’.” Seu estilo é universal. Tem frevo, maracatu, samba, forró, jazz. Só com a voz, de roncos a assovios, gravou “Hermeto Pascoal de Corpo e Alma para as Criancinhas Velhas e Novas”. A criatividade, o talento e a sensibilidade musical de Hermeto o levaram aos mais cobiçados palcos do mundo. A partir de 1976, com o lançamento do clássico Slaves Mass, seu nome passou a ser reconhecido por grandes músicos internacionais. No I Festival Internacional de Jazz, em 1978, em São Paulo, seu grupo mereceu uma “canja” de Chick Corea, John McLaughlin e Stan Getz [1927-1991]. Em 1979, participou do Festival de Montreux, na Suíça, onde foi ovacionado. O noticiário da época relata que ele salvou a apresentação de Elis Regina, que subiu ao palco do festival e, com Hermeto ao piano, cantou “Rebento” e “Águas de Março”,

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em um momento único da música nacional que teria sido melhor que o próprio show da cantora. O evento resultou no álbum duplo Hermeto Pascoal Montreux ao Vivo e ficou registrado para a eternidade no disco Elis Regina — Montreux Jazz Festival. No Japão tocou com Sadao Watanabe. Com Dizzy Gillespie [1917-1993], fez shows na Argentina e uma turnê pelo sul do Brasil. E assim foram todos esses anos e mais de três dezenas de discos. Viu peças de sua autoria serem regidas por maestros como Julio Medaglia e Isaac Karabtchevsky. “Eu, um autodidata, vindo lá de Lagoa da Canoa, estava ali como dono da orquestra sinfônica”, diz e se emociona. “Eu tenho certeza absoluta de que se eu fosse tocar para uma plateia que me vaiasse eu encarava a plateia e morria feliz, mais do que se eu ficasse calado e quieto.” Isso, porém, nunca aconteceu. Dos seis filhos que teve do primeiro casamento, Fábio é o que trilha a carreira de músico como percussionista no grupo do pai. Mas Hermeto não o considera herdeiro da sua música. “Existe a semelhança, a influência indireta. Mas não admito ninguém me imitar nem quero ensinar o que sei para ninguém, porque, quando eu ensino, o que ensinei não faço mais. Já faço outra coisa. Olha que legal!” Como percussionista, diz que o filho é nota dez. Músicos bons continuam a existir no país. Ele cita Itiberê Zwarg, André Marques, Vinícius Dorin, Fábio e Aline Moreno, sua companheira desde o início dos anos 2000, gaúcha de Erechim, com quem vive em Curitiba. “Ela está fazendo o trabalho dela, tem o próprio grupo e tudo. Nada de imitar.” Quando conheceu Aline, estava viúvo havia dois anos. Como compositor, “o Guinga é dos melhores que nós temos”, afirma. Hermeto tem grande admiração pelo carioca Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar, o Guinga, compositor e violonista brasileiro. Parceiro de Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc, entre

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outros, teve suas músicas gravadas por Elis Regina, Michel Legrand, Sérgio Mendes, Chico Buarque, Ivan Lins, Leila Pinheiro. Os sucessos que invadem a mídia hoje, a exemplo do sertanejo universitário, são “geração de fortuna instantânea”. Para ele, porém, “o fato de a gente respirar droga musical não é culpa do músico, eu acho que é culpa do conjunto da obra. Você liga o rádio, tem aquela porcaria tocando. E eles [os músicos] acham que fazendo isso estão saindo do quadrado para o moderno.” Para ele, compor é como comer, tomar banho. Um ato diário. “Eu tenho vontade. Todo dia, todo dia. E hoje eu componho mais do que quando era mais novo. Componho mais e mais rápido.” E começa a descrever suas últimas empreitadas. “Agora estou fazendo um trabalho com tudo o que você possa imaginar de objetos, guardanapo, sacola de supermercado, de loja de departamentos, pratos. Aliás, já tem guardanapo demais. Eu sempre olho nos restaurantes e boto os guardanapos no bolso antes, pra ninguém notar. Agora estou nas bandejas também, tem umas bandejinhas maravilhosas.” Nesses objetos ele escreve a melodia e as cifras. Aline o interrompe: “Até em papel higiênico! É. E eu fiquei brava com ele quando ele escreveu em papel higiênico, porque como é que se vai guardar?” “Eu vou comprar os mais baratos que são mais resistentes”, rebate o músico. Ele pretende fazer o “Show das Sacolas” ou o “Espetáculo dos Guardanapos”. Cada dez sacolas equivaleria a um ingresso, por exemplo. “Você tem alguma crença?” “Sim, na música.” “Além da música você é religioso, acredita em alguma coisa? Na reencarnação, por exemplo?”

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“Eu acredito, mas não confirmo. A coisa mais forte neste mundo é o ponto de interrogação que há para todos. Ninguém conhece Deus. A gente só ouve falar. Então, a gente tem que ter esperanças de que exista uma força maior que tudo, porque dentro de tanta coisa que eu sei fazer na vida, tantas coisas boas que me acontecem, tem que existir algo que organize isso, que dê sentido.” “Quando não está envolvido com a música, o que gosta de fazer?” “Ele gosta de assistir a jogo de futebol, responde Aline. No Rio ele é Fluminense, em São Paulo é Palmeiras, no Rio Grande do Sul é Colorado [Internacional].” Hermeto é um torcedor peculiar. “É. Eu gosto de futebol, mas, se eu estiver torcendo pelo meu time e ele estiver jogando mal, viro a casaca. Fico com raiva e torço pra ele perder.” Se ganhar, melhor ainda. “Mas eu fico com raiva quando vejo o jogador não lutar. Agora, se o meu time perder correndo e mordendo a bola, aí perder é uma consequência. Entregar o jogo, não.” “Então você detestou o desempenho do Brasil na Copa, os 7 a 1 da Alemanha.” “Fiquei uma fera! Agora, uma coisa eu tenho que dizer: eu nunca vi uma situação em que todos os jogadores tinham a mesma reação em campo, ao mesmo tempo. Parecia que os 11 caras tinham nascido na mesma casa, padeciam da mesma doença e tomavam o mesmo remédio.” Nas suas relações, tem um jeito generoso de ver o outro. Quem conta é Aline: “O Hermeto é tão louco por música que parece que, se a gente matar alguém, mas for uma pessoa que toca bem, ele perdoa!” Ele explica: “A música é, para mim, uma coisa tão vibrante que uma pessoa má não vai tocar bem. Se ela toca bem, não é de todo má. Fica pelo menos em um meio-termo”.

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No auge da bossa nova, ele morava em São Paulo e não era lá muito aceito pelo movimento. “Me chamavam de Baiano. Meu apelido era Hermeto Baiano, Dois Acordes”. Nesse tempo ele tocava especialmente forró e baião, e o forró — explica — tem praticamente dois acordes. Costumava dizer, na época, que o forró era a música do futuro, que não era uma música piegas. “É. E ainda digo.” “Então o futuro já chegou?” “Mas não estou falando dessas coisas aí. Tem que ser bem tocado, entendeu? Mas forró pra mim é um termo. Não significa dizer que você tem que tocar um só estilo. Tem coisas misturadas, entendeu? Mas tudo bonito, moderno. É como uma roupa que a gente usa.” “Você se interessa, acompanha a política?” A pergunta não o empolga. “Mesmo que não queira, você é obrigado, né? Mas me interessar, não. Quando me perguntam sobre política, eu já digo logo: ‘A minha política é a música’.” Mas dá uma opinião: “Eu gostaria que no Brasil fosse como é nos Estados Unidos. O voto tinha que ser liberado pra quem quiser. Precisava acabar com esse negócio obrigatório. Vote se quiser e em quem quiser e, se não quiser votar, não vota.”

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João Ubaldo Ribeiro* O escritor e o seu duplo Por

Tom Cardoso, do Rio

7/ 2 / 2 0 1 4

O pânico tomou conta do repórter. Ele havia entrado no apartamento errado. Por certo, a diarista, imersa nos seus afazeres, contribuíra para a gafe, autorizando a entrada do estranho. Ali dificilmente moraria João Ubaldo Ribeiro. As duas estantes da sala, de frente ao sofá, estavam abarrotadas de pelo menos 30 miniaturas de heróis e vilões de hqs, do Coringa ao Surfista Prateado, da Mulher Maravilha ao Lanterna Verde. O romancista e cronista baiano, autor de Viva o Povo Brasileiro, clássico da literatura brasileira, agraciado com o Prêmio Camões, imortal da Academia Brasileira de Letras (abl), teria sido acometido, aos 73 anos, por uma espécie de síndrome de Peter Pan? E o que fazia aquele retrato de Elvis Presley apoiado em Conan, o Bárbaro? Não há registros de seu entusiasmo pelo rock americano dos anos 50. “A foto de Elvis foi um presente dado a Berenice, minha mulher.” A voz, de trovão,

*

João Ubaldo Ribeiro morreu em 18 de julho de 2014, aos 73 anos, em

decorrência de uma embolia pulmonar. [N.E.]

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de preto velho baiano, vinda do alto da escada, que liga o primeiro ao segundo andar do apartamento, era inconfundível. De bermuda, camisa xadrez e chinelo de couro, surge Ubaldo. O arquétipo do homem nascido em Itaparica, pelo menos, estava preservado. O mal-entendido é desfeito rapidamente. Não há chance de Ubaldo levar as miniaturas para os chás da tarde na abl. Ele continua não tendo o menor interesse por super-heróis. Muito menos por vilões. A coleção pertence ao filho Bento Ribeiro, ator, humorista e aficionado por brinquedos até hoje, aos 32 anos. As miniaturas estão no apartamento do pai até que Bento, de mudança de São Paulo para o Rio, ache um novo lar para Batman, Robin e companhia. Outro pai, provavelmente, não aceitaria transformar o espartano apartamento numa espécie de Sala de Justiça da Marvel. Mas Ubaldo não é de dizer não. Nunca foi. O que explica a demora para concluir o novo romance, prometido, há anos, à editora Objetiva. Além de acatar o pedido do coadjuvante do romance, que exigiu virar protagonista, insurreição que obrigou o escritor a começar tudo de novo, ele tem que suportar as aporrinhações do dia a dia. “O livro desanda quando a gente deixa de tomar conta”, diz Ubaldo. “E tem uns cinco, seis anos que eu não consigo trabalhar. Dou conta apenas da minha coluna semanal [publicada nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo].” Também credita a falta de tempo ao aumento do número de feiras literárias. “Toda cidade com mais de dez mil habitantes tem sua feira literária. Até Xique-Xique [município do semiárido baiano] tem a sua”, diz. “Parece mentira, mas tenho como provar: recebo um ou dois convites por dia para palestras.” Ubaldo recusa todos. Vai abrir uma pequena exceção em breve: viajará a Paris a convite da Universidade Sorbonne. Pretende começar para valer o romance assim que puder — se os

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telefonemas cessarem. Para um homem que tem dificuldades em dizer não, cada ligação é um tormento. Mesmo que o convite seja dos mais absurdos, facilmente recusável, como no dia em que recebeu a proposta de João Alves, então deputado pela Bahia, para escrever sua biografia. Na época, em 1993, Alves era o chefe do esquema conhecido como Anões do Orçamento, um dos maiores escândalos de corrupção do país. Alves justificava o enriquecimento repentino, incompatível com sua renda de parlamentar, pelas dezenas de vezes que ganhara na loteria. Acuado na época, em meio ao tiroteio, o deputado ligou pessoalmente para Ubaldo. Apresentou-se como amigo do pai do escritor, o professor e político baiano Manuel Ribeiro, e pediu que Ubaldo escrevesse um livro contando “a verdadeira história do caso”. Pagaria o que fosse preciso. “Ele não era amigo do meu pai coisa nenhuma e, mesmo que fosse, é claro que eu não aceitaria escrever, por dinheiro nenhum, um livro como aquele”, afirma Ubaldo, que recusou, com a elegância de sempre, a oferta de Alves. Não foi suficiente: “Para ele desistir foi um saco. Um dia, calhou de a minha irmã estar aqui em casa. Ela, sempre decidida, pegou o telefone e encerrou a conversa.” A diarista serve o café. Com certo ar de tédio, Ubaldo revela que, se pudesse, recusaria não só o convite da palestra em Xique-Xique como também o da Sorbonne. “Sabe jornalista que sai da redação e vai bater papo sobre jornalismo ou o médico que vai para o boteco falar sobre cirurgia? Eu escrevo, mas não sou ligado ao métier”, comenta. “Acho papo literário muito chato. Eu vou porque é necessário, mas eu não gosto, não. Não é um sacrifício, mas prefiro ficar quieto no meu canto.” O canto, um apartamento simples no Leblon, onde Caetano Veloso morou nos anos 70 e abrigou também o amigo e jornalista Tarso de Castro, é o lugar onde ele se protege dos chatos. Como a maioria dos amigos já se

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foi — e continuam indo —, o escritor tem saído cada vez menos de casa. Só arreda o pé dali aos sábados e domingos, quase sempre para ir ao Tio Sam, o boteco da esquina. Na sua mesa, fala-se sobre tudo, menos de literatura. Nenhum dos amigos é escritor. “É gente normal: de ex-comandante da Varig a contador”, conta Ubaldo. “Ao contrário do que se diz por aí, amizade de boteco é algo muito bom.” Depois de onze anos bebendo guaraná diet no Tio Sam, Ubaldo voltou a beber uísque. Ele considera o seu caso raríssimo: o do ex-alcoólatra que, ao voltar a beber, depois de tantos anos, volta bebendo menos. “Bem menos”, assegura. “Bebo só quando viajo, o que é raro, e quando encontro os amigos no Tio Sam, no fim de semana. Não tem bebida aqui em casa. Antes bebia até dormindo, quase morri”, relata. “Eu sei que o fanático de aa [Alcoólatras Anônimos] vai dizer que estou mentindo, mas o fato é que a bebida deixou de ser um problema para mim.” Antes, lembra o escritor, era duro conviver com a doença. Não só por uma questão de saúde — acometido por uma pancreatite, passou quinze dias lutando contra a morte no hospital. “Depois que saí na capa de uma revista com a cara inchada, passei a ser o único cachaceiro do país. Se um bêbado atropelava alguém na rua, ligavam imediatamente para mim.” O cada vez mais recluso Ubaldo só não deixa de ir a Itaparica, sempre que pode — e deixam. Os amigos continuam por lá. Ele poderia, teoricamente, escrever as crônicas e livros na ilha baiana, mas a mulher, Berenice, não acha prudente. Ubaldo também não. “Minha velha [Berenice] fica, com razão, preocupada de eu ter um treco em pleno inverno [sic] de Itaparica, época em que chove muito — depois das nove da noite a ilha fica deserta, não há um poste de luz aceso.” A idade, como se vê, impôs algumas limitações a Ubaldo, mas também permitiu que se livrasse mais

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facilmente dos aborrecimentos diários — ou de se preocupar exageradamente com as coisas, a imagem ou o desempenho profissional. “É claro que não tem muita graça você ficar lidando com o enfraquecimento do organismo, mas velho tem uma coisa que é muito boa: não paga mico”, comenta. “Como não tenho mais nada para provar, dificilmente me meto em encrenca. Já os jovens não, esses, por pura ansiedade, vivem pagando mico.” Ubaldo cita o avô materno, o “coronel” Osório Pimentel, que a certa da altura da vida já não fazia a menor questão de manter a compostura. O escritor era criança quando o avô recebeu em casa o então governador da Bahia, Régis Pacheco (1895-1987), e alguns secretários de Estado. Depois do banquete, da banda de música, dos discursos, conta Ubaldo, todos se sentaram no sofá para jogar conversa fora. “Assim que começaram a papear, meu avô, cercado de puxa-sacos do governador, soltou uma sinfonia de puns. Minha avó o cutucou e levou uma bronca ali mesmo, na frente do governador e dos secretários ‘Me deixe em paz, mulher! Faz um mal tremendo ficar prendendo essas coisas! Àquela altura ele não tinha nada a perder”, lembra-se Ubaldo. “Eu não faço esse tipo de coisa em público, mas não ficaria mortificado se tivesse que fazer.” Talvez, no máximo, ele levasse um pito do “Grande Ubaldo”. São duas personalidades convivendo, nem sempre de forma harmônica, numa mesma pessoa: o Grande Ubaldo e o Pequeno Ubaldo. O primeiro é disciplinado, educado e cordial. O segundo, hedonista, indolente e irascível. Ubaldo detesta o Pequeno, que o impede de trabalhar, de fazer o que é preciso ser feito, mas no fundo o escritor não saberia viver apenas com o Grande Ubaldo. Nada mais insuportável que uma personalidade metódica. “O problema é que o Pequeno se sobrepõe cada vez mais ao Grande. Ele é chato pra caramba, uma coisa horrorosa, não larga do meu pé. Um preguiçoso”, afirma Ubaldo. “Essas duas entidades vivem em

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permanente guerra dentro de mim. No fundo eu preciso desse equilíbrio de forças, todos nós precisamos.” Por enquanto, com o Pequeno Ubaldo vencendo a batalha, os fãs do escritor têm que se contentar com uma edição comemorativa de 30 anos de Viva o Povo Brasileiro, que será lançada em breve pela Objetiva com prefácio do cineasta Cacá Diegues. Ao contrário de outras obras, como Sargento Getúlio, que virou filme, em 1983, dirigido por Hermano Penna; O Sorriso do Lagarto, minissérie da tv Globo, adaptada em 1991 por Walter Negrão; e A Casa dos Budas Ditosos, sucesso no teatro com Fernanda Torres, até hoje o seu livro mais cultuado não foi adaptado para nenhum formato, apesar de a história ser cobiçada por vários diretores ao longo dos anos — Walter Avancini (1935-2001) sempre sonhou em dirigir um longa-metragem sobre Viva o Povo Brasileiro. “Ele [Avancini] queria muito, mas infelizmente morreu antes”, diz Ubaldo, que gosta das adaptações de Sargento Getúlio e de A Casa dos Budas Ditosos. A minissérie da Globo Ubaldo começou a ver, mas desistiu logo nos primeiros capítulos: “Não tem um negro no elenco. E no Sorriso do Lagarto tem — como em todos os meus outros livros — negro a dar com um pau”. Depois do café, o escritor sobe vagarosamente a escada que liga o primeiro ao segundo andar do apartamento, onde fica o escritório, território dos acirrados embates entre o Pequeno e o Grande Ubaldo. O Pequeno certamente é responsável pela bagunça: pilhas e pilhas de livros misturados a jornais e revistas, sem nenhuma ordem. Já o Grande Ubaldo responde pela organizada parafernália tecnológica, capaz de causar inveja ao mais nerd dos escritores: dezenas de aplicativos e um computador de última geração que roda seis dicionários ao mesmo tempo, além de um programa que avisa — com a voz da mulher, Berenice — a hora que ele deve tomar os remédios, caso seja dia do indisciplinado Pequeno Ubaldo. O autor

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lembra que ele foi um dos primeiros da sua geração a adotar o computador. Na época, morando em Berlim, um amigo o alertou que o uso do computador — e o abandono da máquina de escrever –– alteraria para sempre o estilo de seus romances. “Eu achei uma bobagem, mas com o tempo passei a concordar com esse amigo”, diz Ubaldo. Ele cita como exemplo a feitura do próprio Viva o Povo Brasileiro, nascido de uma provocação do editor Pedro Paulo de Sena Madureira, que dizia que “brasileiro só sabia escrever livros ‘fininhos’, para ser lidos na ponte aérea.” O escritor baiano, possuído pelo Grande Ubaldo, escreveu um romance bem extenso, grosso, denso, “para esfregar na cara de Pedro Paulo”. E sem a ajuda do computador. “Deu 6 quilos e 700 gramas de papel”, lembra-se. Se Ubaldo decidisse alterar algo na página 600, tinha que, automaticamente, mudar uma passagem na página 320. E outra na 195. E mais uma na 56, o que implicava revirar a enorme pilha de papel. Um trabalho braçal que nem o esforçado Grande Ubaldo estava disposto a encarar. “Quase sempre eu desistia de fazer as alterações”, diz. Com o surgimento do computador, o escritor passou a dividir o mesmo espaço com o “editor”. “Não tenho dúvida de que essa facilidade tirou um pouco da espontaneidade dos meus livros.” Que deixem, agora, Ubaldo trabalhar. É com os seus aplicativos — e a disciplina do Grande Ubaldo — que o romancista espera contar a partir de abril, quando pretende, finalmente, dar rumo ao esperado livro. Ele continua um tanto cético, porém, quanto ao destino do romance, que voltou, pelos já sabidos motivos, à estaca zero — o autor nem sabe se serão várias histórias interligadas ou uma só. A única certeza que tem é que será ambientado no Rio. Para chegar lá, Ubaldo faz um pedido: que parem de lhe pedir opinião sobre tudo. Nos últimos anos, ele falou incontáveis vezes sobre os mesmos assuntos. No topo da lista, o polêmico projeto

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da ponte que liga Salvador à ilha de Itaparica. “Falei 5.437 vezes sobre o tema.” Seguido pela não menos controversa discussão sobre trechos racistas na obra de Monteiro Lobato. Ele lembra que durante uma semana inteira, todos os dias, também falou sobre a sua recusa a ir à Festa Literária Internacional de Paraty (flip), em 2004 (ele desistiu de participar alegando que a feira priorizava os autores da Companhia das Letras). Atualmente, diz Ubaldo, a moda é perguntar a ele sobre a polêmica da lei das biografias e a atuação de Joaquim Barbosa na presidência do Supremo Tribunal Federal (stf), como se sua opinião sobre o julgamento do mensalão — e sobre a censura prévia — já não tenha sido expressa diversas vezes na coluna semanal. Ubaldo é um crítico feroz do governo Dilma, assim como já era do governo Lula, a ponto de receber um e-mail do ex-deputado José Dirceu pedindo o seu endereço. “Ele disse que desejava que eu conhecesse a versão dele de toda a história e me mandou um livro, que eu nunca li. Não me sinto obrigado”, alega. “Não acho que ele [José Dirceu] seja santo nem que deva ser banido da sociedade. Não sinto ódio por ele. Aliás, não sinto ódio de ninguém, não faz parte do meu temperamento.” E — para não perder o costume — o que ele acha da atuação de Joaquim Barbosa na presidência do stf? “Não há dúvida que ele tem desempenhado um papel importante”, responde. “Mas me formei em Direito. Na minha época, ministro do Supremo era uma figura quase sagrada, não saía dando entrevista por aí ou batendo boca com o colega ao vivo na televisão.” Antes de voltar à sala, para o terceiro café deste discreto “À Mesa com o Valor”, Ubaldo se acomoda na cadeira do escritório para o ensaio fotográfico. O fotógrafo pede que o escritor faça “pose de erudito”, no estilo “gênio trabalhando”, logo ele que detesta esse tipo de coisa — mão no queixo nem pensar. Por fim,

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Ubaldo é convencido a retirar um livro da estante e abri-lo numa página qualquer. Ele pede que o repórter desça à sala e pegue o seu atual livro de cabeceira. É o romance Fim, da atriz e amiga Fernanda Torres (ela dedica o livro a Ubaldo). “Estou gostando muito. Ela já é uma escritora pronta, madura.” O ensaio é feito. Ubaldo se esforça para atender a todos os pedidos do fotógrafo. É um homem cordial (o novo romance, pelo jeito, não sairá tão cedo). Antes da despedida, vamos à cozinha para mais um café. Há um pote de jaca, fruta muito apreciada pelos baianos, na mesa. O repórter faz a última indagação: “Você gosta de jaca mole ou de jaca dura?” Ubaldo abre um grande sorriso. “De jaca dura”, diz. “Está aí uma pergunta que nunca me fizeram.”

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