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Exercício para um Diário / Ana Cristina Tietzmann ............... 28 e
from JA - Julho/2021
by APRS
*Ana Cristina Tietzmann
ESPAÇO DO SÓCIO
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Exercício para um DiárioAna Cristina Tietzmann*
Sexta-feira, 04 de dezembro,2020.
Acordo antes do despertador mas volto a dormir. Ao som do segundo toque, penso: hoje não posso tirar aquele cochilo fatal que acaba em correria. Não adianta, acabo demorando demais em frente ao guarda-roupa e conferindo o Instagram. Bebo um iogurte e saio em seguida, quase 10 minutos atrasada. O dia está claro, ensolarado, temperatura amena. Sinto que estou confiante. No trajeto, lembro que esqueci de fazer o exercício do diário para a oficina literária de amanhã. É um dia interessante para relatar. Incomum, para a maioria das pessoas. Para observar e sentir o momento, não ligo o rádio. Também preciso me concentrar no trânsito, tentar recuperar aqueles minutinhos perdidos. Por sorte, pego uma “onda verde” nas sinaleiras do bairro, sem precisar parar. São minutos preciosos, preciso chegar até as 7h. Mais relaxada, ligo o rádio para ouvir alguma atualização sobre a situação dos hospitais. Por coincidência, está bem na hora do boletim diário da pandemia: hospitais de Porto Alegre começando a ficar lotados novamente. Moinhos de Vento e Mãe de Deus estão com 100% dos leitos COVID ocupados. Desta vez, fico mais assustada. Há alguns meses não sentia isso. Medo do vírus. Sinto uma ponta de angústia quando lembro que estou indo para o hospital e, entre outras coisas, tenho a agenda cheia. Penso que não falei com a minha mãe nos últimos dias. O que ela deve
estar aprontando esta semana? Será que está usando a máscara nova que levei para ela?
Chego na garagem e estaciono. Desde o início da pandemia, não deixo mais o carro para o manobrista. É mais seguro para todos, já que trabalho em ambiente de risco, exposta. Já peguei o jeito, segundo ele. Lembro que ainda não sei o seu nome, apesar de encontrá-lo todos os dias. Ainda dentro do carro, coloco a máscara N-95. Pego a mochila e saio caminhando em passo acelerado pela avenida Independência. Entro pela porta da Garibaldi para acessar o elevador até o bloco cirúrgico. Satisfeita, vejo que consigo bater o ponto eletrônico às 6:59 e o elevador está aberto. Mais um passo e consigo pegar carona com uma colega, técnica de enfermagem, que já me conhece. Ao entrarmos no vestiário feminino, vejo que a residente já está terminando de se vestir. Coloco a roupa, touca, propés e guardo a mochila. Quando entro no bloco cirúrgico, vários técnicos de enfermagem ainda estão em conversas matinais e a sala de cirurgia ainda vazia. Cheguei antes do anestesista! Quem diria! para quem tinha saído atrasada, uma pequena vitória.
A primeira paciente é a mesma adolescente da semana passada. Transtorno Bipolar, 17 anos. Está na quarta sessão. A residente já tinha as orientações da equipe assistente, a paciente estava tranquila pois já conhecia o procedimento. Havia feito no Hospital de Clínicas. O anestesista chega
em seguida, prepara as medicações, regulamos o aparelho, todos a seus postos, cronômetro ligado, e... tudo corre bem. Em seguida, a paciente é levada para a sala de recuperação. Enquanto a equipe prepara novamente a sala, vou conversar com a segunda paciente. É sua primeira sessão. Na pasta, o diagnóstico é de depressão grave. Ela tem 26 anos e me diz que está calma, também já conhece o procedimento. Fico pensando na tristeza de ter que lidar com uma doença tão grave nesta idade, a ponto de estar precisando de ECT – Eletroconvulsoterapia. De qualquer forma, tem o privilégio de ter conseguido a vaga. Muitas não têm acesso a este tratamento que, literalmente, pode salvar suas vidas.
Os procedimentos transcorrem tranquilamente. O anestesista, e a enfermagem, já não têm mais preconceito e não se assustam pois vêem as pacientes melhorando. A residente, no final do primeiro ano de residência em psiquiatria, já domina a técnica. Eu, depois de tantos anos, não fico mais ansiosa com a responsabilidade de ser a preceptora e “cirurgiã” em sala. Afinal, minha escolha pela psiquiatria foi para ajudar as pessoas a encararem seus problemas de frente. Acabei aprendendo também.
Saindo do bloco cirúrgico às 8h10, pego o elevador até o térreo e atravesso, pelo corredor da Emergência Pediátrica, para o prédio do ambulatório. Subo pelas escadas até o quinto andar. Estou atrasada novamente. Já tem um paciente esperando, segundo a estagiária da recepção. Guardo a mochila no armário, visto o avental branco, pego o material de desenho (para os pequenos), o carimbo e os receituários especiais. Pego a chave da sala, atravesso o corredor interno, onde os alunos de medicina esperam os professores. Dou um bom dia apressado e sigo
em frente. Abro a sala, a janela, ligo o computador, organizo a sala, limpo as cadeiras e alguns brinquedos com álcool 70%. Dou uma olhada na agenda: vários pacientes do interior, por isso chegam mais cedo. Muitos passam a madrugada viajando nos transportes das prefeituras já que, praticamente, não existem psiquiatras de infância no interior.
Manhã cheia, vieram todos. Só tive tempo de tomar alguns goles de água entre um paciente e outro. Precisei indicar internação para um menino de 13 anos. Já tínhamos combinado na última consulta, caso não respondesse ao novo medicamento, não teríamos escolha. Fiquei chateada, mas não tinha dúvidas de que era necessário. A situação estava muito grave e a família sem condições de suportar. A equipe do CAPS também concordava, ia acabar acontecendo uma tragédia se ele não fosse hospitalizado. Uma outra adolescente, que tive que mandar internar no final de outubro, por risco grave de suicídio, veio para revisão e estava se mantendo muito bem. Foi ela quem acabou usando os lápis coloridos para me fazer um desenho, enquanto conversávamos sobre seu novo amigo. Saio do hospital às 13h20, cansada e com fome. Vou direto para casa.
Novo ritual, tirar sapatos, limpar as chaves com álcool, lavar as mãos e trocar de roupa, ainda a tempo de entrar na reunião remota do grupo de pesquisa em Bioética. Assisto a palestra de um convidado chileno, sobre a Declaração de Bioética e Direitos Humanos, enquanto almoço um sanduiche. Às 15h30, teoricamente, inicia meu final de semana. Escrevo o texto para o diário no final da tarde. Ao revisar a agenda, descubro que estou na escala de sobreaviso até domingo, e penso: amanhã, espero que ninguém me telefone durante as preciosas horas da oficina de escrita.
*Ana Cristina Tietzmann Psiquiatra e consultora em Bioética Clínica. Atualmente, também, tem se dedicado à área da literatura, tendo publicado seu primeiro livro de poemas “Canto Próprio” no final de 2019 pela editora Artes e Ofícios.