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Literatura e Memória, um regalo vitalício / Betina Mariante Cardoso .... 24 a

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Valores Congresso

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HUMANIDADES MÉDICAS

Literatura e Memória, um regalo vitalício

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Betina Mariante Cardoso*

Por coincidência, finalizo a escrita deste texto hoje, 23 de abril, Dia Mundial do Livro. E a escrita a seguir é sobre literatura, livros, escritores. E sobre a importância do tema para a Medicina. Nesta, a Psiquiatria. E, finalmente, essa página com a data de hoje é sobre transcender fronteiras da psiquiatria, encontrando novos horizontes em Saúde Mental, tema do nosso Congresso Gaúcho, no próximo outubro. E por falar em fronteiras, aqui abordo aquelas entre Medicina e Literatura, que acabaram por compor, dentro das Humanidades Médicas, a área de Medicina Narrativa.

Essa área nasceu em torno do ano 2000, no que já era a estabelecida união entre as Humanidades e a Medicina, mas o termo em si foi cunhado pela médica americana Rita Charon, que vinha de uma formação específica em Literatura. Charon fundou a Medicina Narrativa na Columbia University de Nova Iorque, promovendo em alunos da faculdade e, hoje em dia, de outras áreas da saúde, o contato com o texto literário e com as Artes de forma geral. Seu objetivo, desde o início, foi promover os princípios da integração entre os campos. A seguir, o porquê.

Mas vou começar contando como cheguei a essa história. Foi em novembro de 1999, período de alegria literária em Porto Alegre pela Feira do Livro, que assisti a uma conversa entre o neurocientista Prof. Dr. Iván Izquierdo e o poeta Prof. Dr. Armindo Trevisan. Ambos escritores, falavam de literatura, de memória, de Jorge Luis Borges e de Funes, personagem do conto borgeano “Funes, el memorioso”. A prosa foi longa,

e, para mim, inesquecível, de uma riqueza cultural ímpar. O momento que gravei e consigo ainda recordar em cores foi quando Dr. Iván Izquierdo falou da grande importância da leitura literária para a memória. Referiu também que, pelo fato de ser necessário construir imagens pelas palavras, é um exercício precioso para o cérebro. Este não recebe a figura pronta da personagem ou das cenas, mas elas passam a existir para cada um como reais, pela transformação da palavra em vida, “alquimia” que o cérebro faz frente ao texto literário.

Por coincidência, na época eu estava justamente lendo o clássico “A montanha mágica”, de Thomas Mann, para ilustrar elementos de um artigo sobre o funcionamento do paciente crônico nas condições médicas. Era então acadêmica do quarto ano da Medicina na PUCRS, atendendo nas equipes do sexto andar alguns dos pacientes que marcaram meu percurso, por sua reação à cronicidade. Mais do que isso: por suas histórias narradas muitas vezes em carne viva, com o peso do tempo, do que não foi feito e do que não será. Narrativas. Os relatos do protagonista do livro, Hans Castorp, que eu já parecia conhecer de vista, se fundiam com o que escutava nas visitas ao leito de cada paciente. E foi naquele momento, enquanto o neurocientista falava em literatura, memória e imaginação, que compreendi a importância que esse tecido de palavras com significado, o texto, tinha para mim como aluna de Medicina: me ajudava a ouvir o paciente nas camadas do seu contar. Eu escutava, imaginava, simbolizava, sentia. Aquilo não

tinha um nome, não para mim. Era apenas uma aproximação que me trazia fascínio. No último ano, para a escrita do artigo para a Acta Médica, escolhi estudar o tema da adesão ao tratamento médico e ilustrar com trechos do livro “A morte de Iván Illitch”, de Tolstoi.

O tempo foi passando, as leituras e a escrita foram acontecendo e, com isso, a escuta se ampliava. Foi no começo do segundo ano da Especialização em Psiquiatria que descobri o Programa de Medicina Narrativa, li sobre Dra. Rita Charon e me encantei pelo tema. A expressão contemplativa e sorridente do neurocientista, naquela conversa, enquanto explicava o papel da leitura literária na memória, cinco anos antes, volta e meia surgiam na lembrança. E isso me fazia ler mais. E ler mais me fazia ler melhor, o que levava a escutar melhor os pacientes. E assim por diante. Essa ideia me remete, pela memória, a um trecho do livro “Como funciona a ficção”, de James Wood:

“Essa lição é dialética. A literatura nos ensina a notar melhor a vida; praticamos isso na vida, o que nos faz, por sua vez, ler melhor o detalhe na literatura, o que, por sua vez, nos faz ler melhor a vida.” (WOOD, J. 2012, p.63)

O trecho acima pode ser aplicado à Medicina Narrativa. A literatura promove, no aluno de Medicina, melhora da capacidade de escuta das narrativas do paciente, pois amplia o perceber da expressão metafórica e simbólica. Além disso, aprimora as potencialidades de observação, interpretação e sensibilização, promove o acesso às competências culturais em Medicina e permite escutar, nas vozes dos pacientes, todas as linguagens do sofrimento. Neste sentido, tem sido apresentado o benefício da Literatura também no desenvolvimento da empatia, necessária durante a formação médica. No contexto da Medicina Narrativa, essa aplicação à empatia aplica-se ao fato de que, durante a leitura, o indivíduo precisa sair de si para o universo do personagem, treinando assim colocar-se no lugar do outro. Todos esses elementos fazem parte

do que Rita Charon e seu grupo de pesquisa chamam de “Escuta atenta”, uma das ferramentas do programa. A segunda dessas ferramentas, não menos importante, é o exercício da escrita criativa. O desenvolvimento dessa potencialidade aprimora a capacidade de descrição, facilitando, no exemplo específico da Psiquiatria, o registro da Psicopatologia na anamnese. A propósito, para Aristóteles, Anamnesis significava busca ou recordação. Voltamos à questão da memória e, com ela, ao Dr. Iván Izquierdo. Em um de seus livros, Memória, ele refere:

“A criatividade tem sido definida por Jaime Vaz Brasil como a conjunção de duas ou mais memórias. Não se cria a partir do nada: cria-se a partir do que se sabe, e o que sabemos está em nossas memórias (...)”. (IZQUIERDO I., 2011, p.127)

Em outra parte do livro, encontro uma referência que me tocou muito sobre o tema:

“Podemos afirmar, conforme Norberto Bobbio, que somos aquilo que recordamos, literalmente. Não podemos fazer aquilo que não sabemos, nem comunicar nada que desconheçamos, isto é, que não esteja na nossa memória. Também não estão à nossa disposição os conhecimentos inacessíveis, nem formam parte de nós os episódios dos quais esquecemos ou os quais nunca atravessamos. O acervo de nossas memórias faz com que cada um de nós seja o que é, um indivíduo, um ser para o qual não existe outro idêntico.” (IZQUIERDO, I. 2011, p.11, grifo do autor).

Então, quando lemos, além de beneficiarmos nosso cérebro na construção da memória e da imaginação através da palavra, estamos também ampliando o conjunto daquilo que somos, através da narrativa ficcional. Isso amplia quem somos e, mais ainda, amplia nossa capacidade de

escuta dos pacientes sobre quem eles são. Quanto maior nossa bagagem, melhor nossa recepção das histórias que nos são contadas. E nosso ofício, como médicos, é composto dessas histórias, sobretudo na Psiquiatria. De acordo com a pesquisadora norte-americana Eloisa Palafox, contá-las é um dos comportamentos da evolução do homo sapiens, enquanto sabemos que ler é um comportamento humano complexo, através do qual aprendemos através de...histórias. Em Psiquiatria, essas são representadas através do que o paciente nos conta em sua narrativa, mas também através de como somos capazes de guardar esses elementos de sua biografia em nossa memória e traduzi-los na escrita detalhada da psicopatologia. Dessa forma, quanto melhor “lemos” um paciente na escuta, melhor será a descrição que faremos dele. Quanto mais lermos literatura, maior é o incremento à memória, mais amplos ficamos, melhor ouvimos e melhor nos comunicamos com o paciente em sua linguagem, pois, como referido acima, aguçamos o ouvido para escutar “todas as linguagens do sofrimento”.

A neurociência tem trazido cada vez mais descobertas sobre o benefício da literatura para o cérebro; a Medicina Narrativa tem conversado de modo cada vez mais interativo com outros profissionais das áreas da Saúde e das Humanidades, cada vez mais se trabalha o desenvolvimento das Humanidades Médicas nas faculdades estrangeiras. Que bom ver o crescimento deste campo no mundo e, sim, chegando também por aqui, devagarinho. E sempre que se fala no tema, meu referencial é o Professor Iván Izquierdo contando a importância do livro para nossa memória e imaginação. Aquele ponto foi o começo do aprendizado de como ler histórias nos ajuda a ouvi-las em nuances de cor, sons,

cheiros e até com os gostos que a narrativa desperta.

A fronteira entre a Saúde Mental e a Literatura sempre foi destacada, não é novidade essa interface. Talvez a novidade esteja na forma operacionalizada que a Medicina Narrativa trouxe para essa aproximação, como forma de ensino. Leitura e escrita literária tornaram-se ferramentas do aprendizado médico e, por que não dizer, psiquiátrico. Como trabalhar com os residentes em Psiquiatria através de trechos, de personagens, de obras completas? Quais as formas disponíveis e como criar o aprendizado através delas? Como estimular alunos da graduação em Medicina e nas especializações em Psiquiatria a deixarem, no meio de uma rotina corrida durante o percurso formativo, tempo para o texto literário? Parece utopia, sim. Mas é possível que, em passos miúdos, esse caminho vá sendo trilhado, as fronteiras sendo exploradas, a sensibilização para o tema sendo percebida. Sendo, no gerúndio.

Um gerúndio esperançoso.

Por enquanto, basta a curiosidade, a pesquisa, a pergunta do “será que funciona mesmo?”, pois é assim que começa esse despertar para as Humanidades Médicas e, aqui referida, a Medicina Narrativa. Pra começo de conversa, sugiro o livro: “The Principles and Practice of Narrative Medicine”, de Rita Charon e autores convidados. E, sobretudo, por enquanto basta que a leitura literária nos desperte, nos faça pensar e promova em nós a amplidão através da memória, segundo o neurocientista que, em 99, me deu este ensinamento tão valioso e a vontade de saber mais sobre o tema.

Gracias pela leitura! Um abraço, Betina Mariante Cardoso

* Betina Mariante Cardoso Médica (PUCRS) e Psiquiatra (UFRGS). Mestrado em Psiquiatria (UFRGS). Mestrado em Teoria da Literatura (PUCRS).

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