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vol.1, n°1, ano:2013 ISSN 2317-580X EXPEDIENTE Edição Conselho Editorial
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Contato
Sainy Coelho Veloso Santiago Régis Dra. Fernanda Pereira da Cunha (EMAC/UFG) Dr. Marcelo Mari (IDA/UnB) Dra. Luciene Dias (FACOMB/UFG) Dra. Sainy C. B. Veloso (FAV/UFG) Dra. Eloísa Pereira Barroso (UnB) Santiago Régis Santiago Régis sob desenho de Max Slevogt FAV/UFG Câmpus Samambaia (Câmpus II) Prédio da Reitoria CEP: 74001-970 Caixa Postal: 131 - Goiânia - Goiás apublicada@gmail.com
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EDITORIAL
LE GRAND GALAS Gravura em talho doce. FRANÇA, C. 1641, COLEÇÃO MAROLLES
A PUBLICA[CADA] é uma revista que ora inicia suas atividades como espaço de incentivo e exercício democrático do pensar e expressar, voltada para estudantes universitários, sem distinção de áreas e níveis acadêmicos, hierárquicos. Se bem que, nesse primeiro número, contamos com textos, artigos, resenhas, muitos deles produzidos como atividades disciplinares, de estudantes da graduação. O que, de certa forma, contempla o objetivo da revista que é a criação desse espaço para publicação e divulgação da produção textual e artística – ensaios visuais – daqueles que ficam de fora das propostas de revistas de Pós-graduação, artísticas e científicas. Digo de certa forma porque gostaríamos, em uma dimensão ideal, que as trocas de produção e circulação textual, entre níveis acadêmicos, fossem concomitantemente, priorizando o critério de qualidade. Se assim fosse, acredito que, de uma maneira coletiva, a recepção desse conhecimento – a comunidade acadêmica e público em geral - seria mais bem informada e instruída. Mas, enquanto as diferenças são exercitadas como exclusivas e não como trocas plurais e ricas, vamos fazendo a nossa parte. Abrir espaço e percepções. Boa leitura. Sainy Veloso, Santiago Régis
SUMÁRIO
ARTIGO
CORPO E EROTISMO: Sexo como violência auto infligida e repercussões na produção artística
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Julliana Rodrigues de Oliveira ARTIGO
Cartografia dos afetos
José Joaquim Gomes Neto ENSAIO VISUAL
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ENSAIO VISUAL
Sublimação
ENSAIO VISUAL
Velações
Heloá Fernandes
Fabiana Queiroga
Santiago Régis
16 24 34 42
ARTIGO
Análise sinestésica e utilização decorativa de plantas ornamentais do Cerrado em Goiânia
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Cristina Harumi S. Maeshima Fernanda Hirome S. Maeshima ARTIGO
MUZORAMA: uma reflexão audio-visual
Mariana Magri Rodrigues ARTIGO
PROTEJA-ME DO QUE EU QUERO – uma abordagem triangular
Mariana Magri Rodrigues Mirna Marinho
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Julliana Rodrigues de Oliveira1
Corpo e erotismo: sexo como violência auto infligida e repercussões na produção artística Do corpo hoje e da sedução
Resumo Este artigo é uma proposta de reflexão acerca do erotismo e do embate humano com o corpo: meu próprio corpo e o do outro, meus enfrentamentos e questionamentos enquanto artista. O texto referencia-se principalmente o pensamento de Georges Bataille (1987). Trata da ideia de negação do corpo como negação da morte, da aproximação de sexo e morte, bem como da violência presente no conflito entre a violação dos interditos morais e o papel social. Por fim, reflito e exponho como esse enfrentamento se reflete na minha produção artística.
Palavras-chave Erotismo, corpo, desejo.
1 Acadêmica de graduação do curso de Artes Visuais – Bacharelado em Artes Plásticas da Universidade Federal do Goiás – UFG, bolsista de iniciação científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. E-mail: rodriguesdeoliveira5@gmail.com
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O corpo ainda é um grande incômodo da humanidade, segundo Afonso Medeiros (2008). Ora é entendido como representação de todos os males (pecado ou patologia), ora como expressão do intrinsecamente humano. Independente dessas representações, o corpo e seus desejos têm permanecido no centro da cena para artistas, cientistas, filósofos e místicos de todas as épocas e tendências. Digo que o corpo é um incômodo porque mesmo com o crescente movimento em direção à sua banalização, decorrente da superexposição e da supererotização do mesmo, quando é explorado de forma sexual e verdadeiramente íntima ha questões mal resolvidas. Fato é que, lidar com o próprio corpo nos dias de hoje, não é tarefa fácil. Isso porque o que tem sido imposto esteticamente é um corpo idealizado, artificial, cujo papel se assemelha ao dos objetos publicitários. Nesse sentido, tratar da intimidade e das relações sociais de um corpo, aqui objetificado como obra arte, é tarefa penosa. Sobretudo, se ele não corresponder àquilo que a mídia processa como ideal. Estamos programados a nos relacionar e a via dessas relações é a nossa presença. Presença física, presença subjetiva, ora nos colocando como Outro, ora nos colocando como Si. Como sujeito que seduz e é seduzido. Esta relação de sedução não acontece somente do ponto vista sexual, mas no sentido de se colocar no mundo, pois a sedu-
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corar nossa implacável solidão moderna no corpo outro. No entanto, esse outro corpo é escorregadio e o que nos resta depois do sexo é um completo vazio existencial.
Figura. 01 DE COMO TE ODEIO 2011 Detalhe, videoperformance de Julliana Rodrigues de Oliveira
ção é parte do nosso papel social. Usamos o corpo para seduzir. Ele é uma forma imediata de chegar ao outro, quando buscamos parceiros. Para consegui-los é necessário nos tornar desejáveis. Ser/sentir-se objeto de desejo é uma busca universal que poucos admitem de forma explícita. Mas que no fundo todo mundo almeja. O prazer existencial ocorre pelo sucesso em ser objeto do desejo ou do amor do outro. Como pontua Zygmunt Bauman (2004), o que amamos em nosso amor-próprio são os eus apropriados para serem amados. O que amamos é o estado ou a esperança de sermos amados. De sermos objetos dignos do amor, sermos reconhecidos como tais e recebermos a prova desse reconhecimento. O amor-próprio é construído a partir do amor que nos é oferecido por outros. O grande problema nessa busca é que ela nos atormenta. Movimento nebuloso, pois, não sabemos se estamos fazendo o melhor para as pessoas certas. Confundimos amor com sexo, parceiros sexuais com boa colocação social, e quando não temos qualidade nos relacionamentos primamos pela quantidade. O sexo é nesse sentido fonte de prazer e sofrimento concomitantes. Perdemos-nos na facilidade e na efemeridade da presença do outro, nos iludimos dizendo para nós mesmos que o corpo presente em nossa cama é também companhia. O que nem sempre é, e vivemos na incerteza. Mesmo nas relações que buscam exatamente essa presença efêmera existe uma vontade de es-
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Meu trabalho tem sido permeado por essa série de incômodos. O incomodo do refúgio no sexo, o incomodo de colocar meu corpo não ideal à prova do mundo, de sobreviver à solidão e de admitir minhas fraquezas relacionais. É também a busca de um cúmplice ou um parceiro. Parto da consciência de que se eu me incomodo, o outro também se incomoda. Sofremos todos do mesmo mal. Assim, me dou ao olhar do outro numa tentativa de ser, enquanto parte de uma imagem artística, um objeto desejável. Embora sacralizado e intocável na ação filmada ou apresentada é no sexo que meu corpo encontra potência de vida. É no sexo que eu encontro potencia criativa. Permeada por esses pontos, entendo que a obra de arte não traz para o artista respostas, muito pelo contrário, a obra aprofunda os questionamentos e mexe no foco sob o qual o artista observa e se insere no mundo. A necessidade de produzir a obra não advém, também, de uma tentativa de acalmar conflitos, pelo contrário, é uma via sem controle. Como pontua Sandra Rey (1996, p.87), seguidamente as ideias vêm em momentos mais inusitados e, às vezes inoportunos. A obra se faz bem antes de começarmos a fazê -la no atelier. No atelier, sempre que começamos a trabalhar uma ideia, imediatamente se instala o conflito. Entretanto, ainda segundo a autora, a obra se faz, geralmente, num momento que não temos totalmente consciência, é sempre a posteriori que teremos a total compreensão do que fazemos. Minha produção acontece no dia a dia. O trabalho é uma formalização visual daquilo que meu corpo vivencia. Sigo seduzida e tentado seduzir pela estranheza enquanto torno meus espectadores em meus amantes. São meus amantes quando participam, quando se contagiam: O contágio em questão é análogo ao do bocejo ou do riso. Um bocejo faz bocejar, numerosas risadas despertam sem mais, a vontade de rir, e se uma atividade sexual não foge a nossa visão, pode excitar-nos. Ela
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pode também inspirar náusea. O mais simples indicio de uma atividade sexual, seja ele reduzido a uma agitação pouco visível ou a um desalinho das roupas, deixa facilmente a testemunha em estado de participação (basta a beleza dos corpos para dar àquela situação incongruente o sentido do jogo). (BATAILLE, 1987. p. 144) Um desalinho, uma provocação mínima, pode ser mais erótico do que uma nudez explícita do corpo. Convidar o espectador da obra a participar da ação pode ser mais contaminado do que exibir uma cena de penetração. Fico assim em posição de me colocar a disposição para assumir o desejo e o tormento da busca incessante de parceiros no sexo e na vida. Trata-se da relação erótica e da fronteira dissoluta entre erotismo e pornografia, entre arte e vida. Segundo Sandra Rey (2002, p. 128), inúmeros artistas empenharam-se em borrar as fronteiras entre arte e vida, entre arte e ciência, arte e conceito, arte e natureza, arte e realidade. Fui buscar na minha realidade o material para o meu trabalho. O primeiro material é elementar, meu próprio corpo. O segundo material é a relação erótica que possuo com esse corpo e o desafio de assumi-lo, mostrá-lo sem pudor, mesmo que isso me custe à ruptura com o direito de resguardo de minha intimidade. Entretanto, este trabalho não é o levan-tamento de uma bandeira que tenta inserir pessoas que fogem das convenções estéticas como objetos de desejo. Trata-se mais de uma tentativa de apontar como na verdade os impulsos com relação ao sexo aproximam todos os tipos humanos. Isto em âmbitos imagináveis. A atividade sexual é o ponto comum, capaz de aproximar humanos dos instintos animais e que é talvez, junto da situação de morte, aquilo que nos coloca em brutal confronto com a realidade de que não somos tão controlados, controladores ou “civilizados”. De fato nossa aproximação com o animalesco se dá de forma mais fluída do que gostaríamos de admitir. A diferença é que somos conscientes do desejo, mesmo do impulso. Segundo Georges Bataille (1987, p. 27):
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Mesmo estando de acordo com a maioria, a escolha humana difere da do animal: ela apela para essa mobilidade interior, infinitamente complexa, que é típica do homem. O animal tem ele próprio uma vida subjetiva, mas essa vida, parece, lhe é dada, como acontece com os objetos sem vida, de uma vez por todas. O erotismo do homem difere da sexualidade animal justamente no ponto em que ele põe a vida interior em questão. O erotismo é na consciência do homem aquilo que põe nele o ser em questão. A própria sexualidade animal introduz um desequilíbrio e este desequilíbrio ameaça a vida, mas o animal não sabe. Nele nada se abre que se assemelhe com uma questão. Não se trata também de um levantamento historiográfico ou psicanalítico. Posso até me apoiar nessas áreas, mas o que pretendo, é colocar uma problemática global partindo de uma inquietação pessoal, mesmo porque, segundo Sandra Rey (2002, p. 124), para a pesquisa mais importante do que achar respostas é saber colocar questões. A arte produto de pesquisa não se limita à simples repetição de fórmulas bem-sucedidas. A pesquisa faz avançar às questões da arte e da cultura, reposicionando-as ou apresentando-as sob novos ângulos. Muito mais do que responder a mim ou a quem quer que se coloque diante do meu trabalho, a razão de ainda nos colocarmos em conflito com relação à sexualidade e a nudez é fazer com que estas pessoas questionem a si mesmas, suas relações com o próprio corpo, o corpo do outro, e os limites de pudor que as impede de explorá-los.
Negação do corpo A negação do corpo é talvez a maior responsável por tornar o sexo uma fonte de sofrimento. Nos interditos reside à culpa. Perceber-se suscetível aos impulsos, notar a grande capacidade que temos de passar por cima de uma série de tabus sociais afim de secretamente saciar nossos desejos, nos traz a sensação ruim de que não somos afinal, capazes de controlar completa e racionalmente as vontades do nosso corpo. Esse fraquejamento nos afasta completamente da ilusão de sacralidade do corpo, segundo Gina Valbão Strozzi (2007, p. 59):
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xamos de nos opor legitimamente ao erotismo. Não nos opondo mais a ele, deixamos de fazer dele uma coisa, um objeto exterior a nós. Para o autor, devemos encará-lo como movimento do ser em nós mesmos. Minha produção poética nasce na reflexão e exercício de lidar com esse desejo negado ou não admitido; do meu incômodo em perceber que ajo como a maioria das pessoas. Em não admitir essa minha condição animalesca e também, pelo entendimento dos conflitos gerados entre as vontades do meu corpo ou minhas vontades instintivas e a moral imposta a mim desde a infância. Moral essa que me ensinou a negar esse corpo exatamente por sua aproximação do que é profano; que me ensinou a compreender minha genitália como minhas “vergonhas”. Isso se contrapondo ao desejo de me exibir, de provocar, de ver e tocar.
Figura. 02 TOMADA 2010 Detalhe, ensaio fotográfico de Julliana Rodrigues de Oliveira
A atitude humana em relação ao corpo é, ademais, de uma complexidade aterradora. A miséria do homem, visto que é espírito, é ter o corpo de um animal e por isso ser como uma coisa, mas a glória do corpo humano é ser o substrato do espírito. E o espírito está ligado ao corpo-coisa que esse jamais deixa de ser assombrado, só é coisa no limite, no ponto em que, se a morte o reduz ao estado de coisa, o espírito está mais presente do que nunca: o corpo que o traiu revela-o, mais do que no tempo em que o servia. Num certo sentido, o cadáver é a mais perfeita afirmação do espírito. Nesse sentido, o erotismo permite a não redução. Para não se sentir fraquejado, o homem tende a negar toda a relação de desejo que tem com relação ao corpo, o próprio e o do outro. Nega dessa forma a experiência erótica. Se esquiva de admitir e excitar com o que lhe dá prazer. Foge de dizer para si mesmo que quase tudo o que faz é para ser desejado e num impulso quase animal, tomar para si os agentes de seus desejos mais íntimos. Segundo Georges Bataille (1987, p. 35), tudo vai bem se o erotismo é condenado. Se antecipadamente nós o rejeitamos, se nos libertamos dele. Mas se a ciência condena a religião, a religião moral - como ela o faz frequentemente - se revela, nesse ponto, ser o próprio fundamento da ciência, pois dei-
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Essa contraposição entre a inibição e a vontade de exibição do corpo é um desejo de transgredir que entra em conflito com a obrigação de cumprir com um papel social, totalmente adequado à ideia de moral instituída por essa mesma sociedade, tal como pontua Georges Bataille (1987, p. 35-36). Se observarmos o interdito, se a ele nos submetermos, não temos mais consciência dele. Mas sentimos no momento da transgressão a angústia sem a qual o interdito não existiria: é a experiência do pecado. A experiência leva a transgressão realizada, à transgressão bem sucedida que sustenta o interdito. Sustenta-o para dele tirar prazer. O que se instituiu é que ser excitado sexualmente é um ato de violência contra o indivíduo. Violência porque se deixar levar pelo desejo e o coloca em meio a esse paradoxo: o que se deseja e o que se deve fazer. O que se deseja e o que se deve fazer colocam ainda um novo problema: o desejo de cumprir o que se deve fazer concomitante ao dever de atender os próprios desejos. Na verdade, ver cenas de sexo que provocam excitação sexual é uma resposta do organismo. A curiosidade é natural. Mas é tratado pelo ser humano como um tipo de fraqueza do indivíduo. “A própria natureza é violenta e, por mais comedidos que sejamos, uma violência pode nos dominar de novo, que não é mais a violência natural, a violência de um
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ser racional que tentou obedecer, mas que sucumbe ao movimento que ele mesmo não pôde reduzir à razão”. (BATAILLE, 1987, p. 37) Existe ainda o fato de que se o sexo nos aproxima da continuidade2, nada o faz de maneira mais implacável do que a morte. Nesse sentido, sexo e morte se aproximam por oposição. Aproxima-se tão estreitamente que despendemos aos dois o mesmo flertes e a mesma aversão, sobretudo a mesma aversão. A natureza opera contra a descontinuidade, ela nos coloca como iguais, como pertencentes a uma mesma massa de seres de toda sorte que perambulam pela Terra e que têm como mesmo fim a putrefação. Isso vai violentamente de encontro ao imenso desejo humano racional, de Ser. De ser um exemplar único que perseguimos por toda a vida. A natureza nos torna contínua quando nos iguala. Ela só é capaz disso no impulso sexual e na morte. Segundo Georges Bataille (1987, p. 58), a sexualidade e a morte são apenas os momentos intensos de uma festa que a natureza celebra com a multidão inesgotável dos seres, uma e outra tendo o sentido do desperdício ilimitado que a natureza executa contra o desejo de durar que é próprio de cada ser. Nesse movimento, o gozo é uma instância de morte. É uma experimentação da morte. “para nossa imaginação, é tão intrigante que a prostração consecutiva ao paroxismo final é considerada uma ‘pequena morte’. A morte é sempre humanamente, o símbolo da retirada das águas que se segue à violenta desordem, mas esse simbolismo não é gratuito, tem a sua razão de ser... Se a reprodução dos seres sexuados não invoca a morte imediata, ela a convoca a longo prazo”. (BATAILLE, 1987, p. 94)
damos à volúpia e ao descontrole, até que nos sentimos seguros para perversamente imolar o corpo próprio e o do outro. Assim, flertamos com a transgressão e a morte. Entretanto, o ato sexual é um problema do indivíduo. Mas ele nunca se dá como o problema de um indivíduo, mesmo no ato masturbatório é necessário outra presença virtual. No embate de dois corpos desejosos se constitui então uma teia de jogos de poder. Jogos extremamente violentos porque o sucesso do ato, ou seja, o gozo, só é possível se tangenciado pela imolação e subjugação do outro. Segundo Georges Bataille (1987, p. 135) se a beleza, cujo acabamento rejeita a animalidade é apaixonadamente desejada, nela a posse conduz à conspurcação animal. Nós a desejamos para maculá-la, para sentir o prazer de que estamos profanando-a.
na reprodução dois seres descontínuos (isolados um do outro por um abismo existencial), se unem de forma contínua (no momento da fusão, em que se tornam um) e formam um novo ser descontínuo, independente enquanto Ser de seus geradores.
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2 O sexo se liga à morte no momento da reprodução,
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PARAFILIA ENCERRADA 2011 Objeto. Julliana Rodrigues de Oliveira
Enfrentamento e jogos de poder Dar-me ao ato sexual, assumir meus desejos, me oferecer como objeto de desejo e fazer isso colocando à prova a ideia geral do corpo desejável é para mim, um ato de autoviolência. Me dou conscientemente à imolação do outro e essa se materializa primordialmente pelo olhar. “Em todas essas acepções não podemos deixar de sublinhar a importância do olhar. O olho deseja, subjuga, quer possuir, objetificar, consumir e, nesse aspecto, o olho é o mais sexual dos órgãos humanos, instrumento por excelência do voyeur. É ele que provoca a mais rápida
A negação do corpo é a negação da morte e do sexo. O corpo fica assim encerrado, negligenciado, até que um impulso natural o tire desse estado, até que secretamente nos
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das respostas libidinosas; é nele que nascem os sentidos do erótico, do obsceno e do pornográfico” (MEDEIROS, 2008, p. 33-34). É esse olhar que me violenta tanto quanto o ato sexual em si. O que pode estar ou não presente explicitamente na obra. Por outro lado a consciência da transgressão é uma violência que eu imponho a mim. O sexo é violento porque me coloca em conflito. Michael Foucault explica que mesmo os gregos entendiam o ato sexual como violento. Somada a esta perspectiva, a autopunição imposta pela racionalidade, tem-se a dimensão do quanto a ato sexual é tão prazeroso quanto doloroso. O ato sexual não é, certamente, percebido pelos gregos como um mal; ele não é, para eles, objeto de uma desqualificação ética. Mas os textos testemunham uma inquietação que recai sobre essa própria atividade. E essa inquietação gira em torno de três focos: a própria forma do ato, o custo que ele provoca, a morte a qual está ligado. Seria um erro ver no pensamento grego somente uma valorização positiva do ato sexual. A reflexão médica e filosófica descreve-o como capaz de ameaçar, por sua violência, o controle e o domínio que convém exercer sobre sí; de minar, pelo esgotamento que provoca, a força que o indivíduo deve conservar e manter; e como uma marca da mortalidade do indivíduo ao mesmo tempo em que assegura a sobrevivência da espécie. Embora o regime dos prazeres seja tão importante, não é simplesmente porque um excesso pode produzir uma doença; é porque na atividade sexual em geral está em jogo o domínio, a força e a vida do homem. (FOUCALT, 1984, p.159) Não se trata de levantar uma bandeira contra o sexo ou de colocar toda a culpa dos nossos problemas relacionais na atividade sexual. Trata-se de enxergar esse conflito mais cruamente e tentar entender meu comportamento, que certamente é o comportamento da maioria das pessoas, no que tange não somente ao ato sexual, mas a todo o âmbito do erotismo com tudo o que ele sugere. É nesse sentido que meu trabalho entende o sexo como uma violência autoinfligida. A violência reside no conflito da suspensão do interdito e a racionalidade. A auto violação que implica no conflito interno entre transgredir e manter o interdito – mesmo banais
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– pois, segundo Georges Bataille (1987, p. 66), “à primeira vista, os objetos sexuais são a ocasião de uma alternância contínua da repulsa e da atração, em consequência do interdito e de sua suspensão”. Há ainda a violência no corpo, sobretudo no meu corpo de mulher: Essa ação violenta – que priva a vítima de seu caráter limitado e lhe dá o ilimitado e o infinito que pertencem à esfera sagrada – é desejada em sua consequência maior. Ela é desejada como a ação daquele que desnuda a vítima que deseja e quer penetrar. O amante não desintegra menos a mulher amada que o sacrificador ao sangrar o homem ou o animal imolado. A mulher nas mãos daquele que a ataca é despossuída de seu ser. Ela perde, com seu pudor, esta firme barreira que, separando-a do outro, tornava-a impenetrável: ela se abre bruscamente a violência do jogo sexual deflagrado nos órgãos da reprodução, à violência impessoal que, vinda de fora, a ultrapassa. (BATAILLE 1987, p. 84) Gina Valbão Strozzi (2007, p. 54), afirma que o grande sentido do erotismo é a fusão, a supressão do limite. A supressão do limite que o erotismo implica nos coloca em uma situação dicotômica no sentido de provocar tanto prazer quanto dor na quebra das regras. Apesar disso, em seu primeiro movimento, o erotismo se exprime pela posição de um objeto do desejo. Ainda segundo a autora, na orgia, esse objeto não sobressai. Na orgia a excitação sexual se dá por meio de um movimento exasperado, contrário à reserva habitual. Mas esse movimento é o movimento de todos. Ele é objetivo mas não é percebido como um objeto. O objeto do desejo é diferente do erotismo, não é o erotismo inteiro, todavia, o erotismo passa por ele. O erotismo é fusão, desloca o interesse no sentido de uma superação do ser pessoal e de todo o limite. O ato sexual implica em explicitar a nudez ao outro. Implica em uma situação de dominação e jogos de poder. Implica em transgredir convenções morais, implica em se dissolver posições sociais. O erotismo exige um movimento de ruptura que prepare os corpos para o prazer. O desnudamento é um desses movimentos,
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pois ele leva ao despudor: a violação ou transgressão de tudo aquilo que constitui o estado normal dos parceiros, ou, em seus termos, o estado fechado ou estado de existência descontínua. A nudez anuncia e é emblema de um movimento de despossamento, fundamental para o sentido do erotismo – levar a um estado em que os envolvidos não sejam mais seres descontínuos, uma fusão na qual eles deixam de ser parceiros, “Uma fusão onde se misturam dois seres que ao final chegam juntos ao mesmo ponto de dissolução”. (BATAILLE apud GREGORI, 2003, p.98) Dissolver-se no outro é perder o poder que se poderia ter exercido sobre este outrora. De acordo com Maria Filomena Gregori (2003, p. 118), o jogo de poder é central na nossa imaginação erótica. A noção que está por trás desta afirmação é que o sexo entre duas pessoas raramente ocorre em meio a um patamar igualitário ou de satisfação mútua em um orgasmo simultâneo. É mais frequente que cada parceiro reveze no controle das sensações do outro.
Erotismo, obscenidade e pornografia, zona fronteiriça na produção artística.
Numa gangorra acionada pela percepção, o corpo e sua representação oscilam constantemente entre o sujeito e o objeto, ou, melhor dizendo, o corpo é sujeito e, ao mesmo tempo, objeto. Na representação do corpo sujeito/objeto, instala-se o erótico, o obsceno e o pornográfico. Pornografia deriva do grego pórne (“prostituta”) ou pórnos (“que se prostitui, depravado”), referência inequívoca aos “excessos” libidinosos e aos profissionais do sexo. Prostituta, michê, puta, garoto(a) de programa, scortboy são denominações (reguladas pela sociedade) de corpos oferecidos a diversidade de apetites, para o exercício profissional (e não amoroso) da sedução e, assim, conceito muito mais próximo do obsceno que do erótico...
Permeada por essa série de reflexões sobre o sexo, minha produção exige a presença do meu corpo na obra. Há, para tanto, uma tentativa frustrada de fugir da representação (porque o trabalho acaba se desdobrando em outras linguagens onde só cabe representar o corpo) e uma ânsia em apresentar esse corpo que é ao mesmo tempo agente e vítima de sua condição erótica. Pensando no corpo como uma espécie de vetor sexual, é natural que se pense também, até onde a representação ou a apresentação desse corpo é erótica, é pornográfica ou obscena. Como falar de sexo, do meu sexo, fugindo da pornografia pura, se é que se possa dizer de uma pornografia pura? Seria mesmo necessário fugir disso? Entendo que não devo fugir de um trabalho artístico que se escore ou que esbarre na pornografia, mesmo porque o erotismo, a pornografia e a obscenidade participam do mesmo corpo e do mesmo ato.
Nesse sentido, é necessário somente que meu trabalho provoque o corpo do outro, mesmo que somente o olho. Para que este seja pornográfico é necessária somente a exibição despudorada de meus órgãos genitais. Isso o torna obsceno, no entanto, quando essa imagem é construída artisticamente o resultado é considerado erótico. Contudo, essas fronteiras ficam completamente borradas, por causa do tema, do objeto e do meio no qual minhas imagens se veiculam.
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Figura. 04 PROCESSO MASTURBATÓRIO 2011 Detalhe, videoperformance de Julliana Rodrigues de Oliveira
...Pornografia também significa a imagem do corpo que se expõe para provocar o desejo de outro corpo e, portanto, do corpo objetificado: porno-grafia, “prostituição em imagem”, “depravação através de imagens”. (MEDEIROS, 2008, p.35)
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Ainda, me dou assumidamente ao olhar desejoso e/ou repudiado do outro, me aproximando em certo grau da prostituição. Não há em cada mulher uma prostituta potencial, mas a prostituição é a consequência da atitude feminina. Na medida de sua atração, uma mulher serve de alvo ao desejo dos homens. A menos que ela se esquive inteiramente, por um parti pris de castidade, a questão é, em princípio, saber a que preço, em que condições, ela cederá. Mas sempre, preenchidas as condições, ela se dá como um objeto. A prostituição propriamente dita não introduz senão a prática da venalidade. Pelo cuidado que tem com sua beleza, que os adereços põem em relevo, uma mulher considera a si mesma como um objeto que ela, constantemente, propõe a atenção dos homens. Igualmente, se ela se desnuda, revela o objeto do desejo de um homem, um objeto distinto, individualmente proposto à apreciação. A nudez, oposta ao estado normal, tem certamente o sentido de uma negação. A mulher nua está próxima do momento da fusão, que ela anuncia. Mas o objeto que ela é, ainda que o signo de seu contrário, da negação do objeto, é ainda um objeto. É a nudez de um ser definido, mesmo essa nudez anuncia o instante em que seu orgulho passará ao indistinto da convulsão erótica. Em primeiro lugar, é a beleza possível e o charme individual dessa nudez que se revelam. É, numa palavra, a diferença objetiva, o valor de um objeto comparável a outros.(BATAILLE, 1987, p. 123) Além me perceber no impulso de me colocar voluntariamente como objeto, de me oferecer, existe o fato de que me dar como objeto de sedução define meu papel nas relações de poder do sexo. Ora meu corpo é desejado, mesmo que abjeto a alguns, ora meu corpo deseja. A maleabilidade das relações de poder implica para muita gente em uma periculosidade rondando o erotismo no sentido de ser capaz de nos tornar submissos ou descontrolados. Mas não é só esse o ponto de conflito no erotismo. Transgredir as convenções morais é ao mesmo tempo prazeroso e doloroso. Percebi de maneira extremamente pessoal como ocorre esse conflito quando decidi explicitar em vídeo o meu ato
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sexual. Senti verdadeira excitação em quebrar a regra que diziam que as minhas relações sexuais, bem como todos os jogos que a cercam (poder, sociais, fetichistas, entre outros), só dizem respeito a mim. Explicitar uma cena onde mantenho uma relação sexual pode ser entendido como uma cena pornográfica. Mas o fato de os órgãos sexuais estarem velados e o tratamento que a cena recebeu a tornam no fim uma cena erótica. O que de fato, tem pouca importância para mim. Essas definições não me interessam na verdade. O que o trabalho traz é a ideia de provocar o público mostrando aquilo que não se “deve” mostrar. Ideia extremamente sedutora. Em contrapartida, burlar essa regra me trouxe o peso de ter a intimidade explicitada dando ao expectador a possibilidade de invadir e participar daquilo que me é privado. É inerente ainda a ideia de perigo, “hoje, a sexualidade não condensa mais o potencial de prazer e felicidade. Ela não é mais mistificada positivamente como êxtase e transgressão, mas negativamente, como fonte de opressão, desigualdade, violência, abuso e infecção mortal”. (BAUMAN, 2004, p. 56) De como te odeio (figura 01), é um flerte com o exibicionismo, com a morte e com o voyeurismo. Esse é primeiro trabalho em que convido o expectador a participar de minha performance sexual como voyeur. É o primeiro exercício em direção ao cúmplice de que falei no início deste artigo. Esse trabalho parte de uma primeira experiência com a linguagem fotográfica que funcionou como exploração do potencial erótico do meu corpo. Trabalho ainda em certa medida pudico em que o sexo oral é somente insinuado (figura 02). Em ambos os trabalhos há a preocupação de remeter ao erótico usando a cor vermelha. Ambos recortam o corpo. Ambos convidam a uma abertura do corpo e do sexo. A partir de dai, desdobra-se meu trabalho artístico. Em De como te odeio, vejo uma aproximação com o vídeo Flex (2000-2001) de Chris Cunningham. Ambos se aproximam no tratamento do sexo como um misto de afetividade e violência. De como te odeio se constitui com uma cena sexo onde meu parceiro é também um inimigo, no entanto, a cena pro-
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priamente dita, chega a ser afetuosa. O indício de violência só está no nome, na cor e no corte, tal como na obra de Cunningham que é um misto de amor e ódio entre um homem e uma mulher. Segundo Vitoria Daniela Bousso (2002, p. 25) Cunningham trabalha com a ideia do pecado original. Nele um homem e uma mulher são captados em feixe de luz. O que dá a impressão de que estão flutuando. Ainda segundo Bousso, numa série de edições curtas, eles brigam e mantêm relações sexuais. É uma metáfora sobre o amor e o ódio centrado no sexo entre um homem e uma mulher sob a ideia de violência e de salvação. Essa primeira experiência se desdobrou em novos trabalhos que tratam do mesmo tema de um jeito, acredito, menos direto, mas não menos intenso. Talvez mais livre e mais maduro e toma não só minha dimensão do sexo, mas pensa em uma dimensão mais geral. É o caso de trabalhos como Parafilia Encerrada (figura 03) e Processo Masturbatório (figura 04). O primeiro, trata do controle da obscenidade e do fetiche, controle feito pelos nós morais. Aproprio-me de quatro vídeos pornográficos escolhidos segundo sua referência a nomes de filmes conhecidos – que dá ao trabalho um caráter cômico – e por conter práticas sexuais socialmente condenadas. Os títulos são: Bruce Lili, Doce Coração Chinês (homossexualismo masculino), Apocalipse Anal (sodomia), As Transas da Pantera Cor de Rosa (sodomia, homossexualismo feminino e sexo grupal) e Linda Lovelace e seu Cachorro (zoofilia). Esse último, referencia os filmes clássicos do cinema pornô.
observa em ambiente íntimo. Em contrapartida, existe no vídeo o fetiche da exibição, experimentado por mim. Entretanto, o corpo exibido delibera-damente nesse trabalho, como objeto desejável, é um corpo obeso, modificado por tatuagens. É um corpo que além de não convencional, não está de fato nu em decorrência da pele maculada pelo desenho da tatuagem. O corpo que apresento é um corpo comum, adornado e cotidiano. Entretanto, é, ao mesmo tempo, estranho sem deixar de ser sedutor. As imagens caminham em sentido contrário à beleza escultórica dos corpos explorados pelas lentes fotográficas de Robert Mapplethorpe. Mesmo assim, ainda percebo uma aproximação do meu trabalho com o seu. Mapplethorpe apresenta um corpo esculpido, mas não convencional. São corpos dados a toda sorte de desejo e ação, são corpos sexualmente marginalizados, mas sedutores, eróticos, desejáveis. Outra referência artística, de aproximação com meu trabalho artístico, é Jeff Koons, com Parafilia Encerrada. Acredito que a aproximação ocorre pela exploração da cena pornográfica (como na série Made in Heaven de 1989-1991) e na construção de objetos com elementos de gosto “duvidoso”, ou seja, bibelôs, borboletas, florzinhas e no meu caso, das fitas de cetim cor de champanhe.
Já Processo Masturbatório tem um caráter mais intimista. É de fato a filmagem de uma cena intima, cotidiana. A não ser pelo nome, não há nada de sexual na ação: sou eu passando creme hidratante no corpo, que é para mim, um costume diário. O caráter sexual do vídeo está no nome, na ação única realizada por um tempo estendido e na colocação da câmera. Ela é pervertidamente colocada atrás da porta de um armário, mas na imagem não dá para saber ao certo atrás do que ela está escondida. O processo é masturbatório tanto na carícia que a ação sugere em meu corpo quanto na posição de voyeur expectador que deliberadamente me
Minha produção artística, até esse momento, passou pela gravura, pela fotografia, pelo objeto, o vídeo e a performance. Percebo agora que caminha mais para a videoperformance. Mesmo com a intenção de não me limitar a ela, nesse momento é o que melhor atende ao modo escolhido por mim de abordar o tema. As circunstâncias de criação com o vídeo em tempo real e ao vivo permitem ao espectador compartilhar comigo da experiência de trabalho, ao mesmo tempo em que, ocorre o ato criativo sem que necessariamente se ofereçam estruturas significativas encerradas em si mesmas. “Há, dessa maneira, a transformação de uma lógica de prática artística – calcada em idéias estruturalizantes e formalistas – na lógica orgânica da prática vivencial, por meio de um mesmo tempo vivido entre quem faz e recebe a obra”. (MELLO, 2008, p. 145)
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A arte é assim, a minha forma de lidar com estes enfrentamentos. O vídeo e a performance são uma maneira de aproximar arte e vida. Entretanto, meu trabalho não pretende buscar uma solução para as minhas questões pessoais ou uma verdade. No máximo um pouco mais de clareza aos meus questionamentos.
Perspectivas de desdobramento Pretendo continuar com esta pesquisa poética a fim de desenvolver e amadurecer minha produção artística. Busco investigar mais profundamente as questões acerca do erotismo, da pornografia, da moral e de como elas me afetam e às outras pessoas. Também há a preocupação de explorar cada vez mais meu corpo e sua relação social com o erotismo intrínseco.
Existe uma tendência, em um futuro já bastante próximo, buscar encontrar uma maneira de tratar da relação erótica do meu corpo na performance, na intenção de conseguir uma dimensão ainda maior da condição de objeto de desejo e de objeto desejante do meu corpo. Por ora sigo experimentando no dia-a-dia os jogos de poder e sedução até que isso se reflita nas próximas produções.
Referências BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987. BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade das relações humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. BOUSSO, Vitoria Daniela. Intimidade. Paço das Artes: São Paulo, 2002. FOUCALT, Michel. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres., Edições Graal: Rio de Janeiro, 1984. GREGORI, Maria Filomena. Relações de violência e erotismo. Cad. Pagu [online]. 2003, n.20, pp. 87-120. <Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n20/n20a03.pdf. Acesso em: 02/10/2011>. MEDEIROS, Afonso (org.). O imaginário do corpo: entre o erótico e obsceno: fronteiras líquidas da pornografia. Goiânia: FUNAPE, 2008. (Coleção Desenredos: 4) MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. Editora Senac: São Paulo, 2008. REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em artes visuais. In: BRITES, Blanca; TESSLER, Elida (org.) O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Editora Universidade/ UFGRS, 2002. p. 123-140. _________.Da prática a teoria: três instâncias metodológicas sobre a pesquisa em poéticas visuais. Porto Arte, Porto Alegre, v.7, n. 13, p. 81-95, nov. 1996. STROZZI, Gina Valbão. Experiência Erótica e Religiosa em Georges Bataille. Âncora: Revista Digital de Estudos em Religião, Volume III - Ano 2 | Novembro de 2007.<Disponível em: http://www.revistaancora.com.br/revista_3/04.pdf. Acesso em 02/10/2011>
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José Joaquim Gomes Neto1
Cartografias dos afetos
Resumo
Introdução
O presente trabalho insere-se na tentativa de compreender os aspectos singulares que dão significado ao processo de criação. Primeiramente possibilita compreender o corpo numa dimensão de possível cartografia, de reconhecer nossa estranheza frente nosso próprio corpo e das infinitas possibilidades de criar traçados cartográficos. A segunda parte empreende-se em entender as etapas em que o ato criador surge com ato existencial fundante do próprio ser do artista. Por fim, entender a performance Cartografia dos Afetos – Ato 1 em sua complexidade e relevância dentro da minha produção artística atual.
Cartografia surge de um desejo de entender o corpo em instâncias novas, extrapolando as dimensões do meramente biológico ou do meramente psicológico. Acredito que as vias de acesso ao corpo podem partir de um conjunto grande de possibilidades de leituras e vivencias capazes de traduzir em metáforas visuais, nuanças próprias desse caminho de descobertas.
Palavras-chave Cartografia, afetos, corpo, memória, ato criador.
1 Graduado em Filosofia pela PUC-GO. Acadêmico de Artes Plásticas da Universidade Federal de Goiás. E-mail: jjgneto@gmail.com
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Na primeira parte do texto adentraremos na compreensão da cartografia como sendo temporal, memorial, existencial. Na segunda parte, perscrutaremos o ato criador, num sentido em que não se pode perceber a obra como produto de um momento único, mas de um conjunto de ideias, sensações e percepções que não cansam e não param de borbulhar no artista. Por fim, analisaremos o ato fundante da performance Cartografia dos afetos – Ato 1. Toda sua complexidade, sua importância dentro de um processo de criação perene, e de uma profunda descoberta do que é ser artista, num conceito capaz de remeter sentidos novos a minha própria forma de ver o mundo, a arte e a obra de arte. Os desdobramentos de tal ato legitimam-no como marco, em que o sentido e a sua ausência se encontram concomitantemente.
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Cartografia Lugares ocultos em memórias retalhadas. O tempo imprime no corpo suas marcas. Como navalha retalha-nos impiedosamente, desenhando contornos por vezes insólitos, mas fulguram na memória os suspiros, os lampejos de lembranças ardentes, de lágrimas, de sorrisos a desenhar novos caminhos entre lábios/palavras recolhidas e professadas; olhos/imagens negadas e desejos iluminados, nariz/cheiros sufocados e desejos exalados, mãos/despedidas lamentadas e toques apaixonados. O tempo, ladrão vil, nos rouba e nos faz desejosos de deleite e gozo, deixando-nos o vazio, o silêncio, a memória, a saudade. A experiência vivida é fundamentalmente o modo como a existência humana se define, além de ser o tema fundamental da fenomenologia. Nesse ponto, tomo de Maurice Merleau-Ponty (1999) a oposição à ideia de corpo como res cogitans que compreende o mundo como mera consciência que se faz dele, apregoada pelos racionalistas e/ou como res extensa assimilando o mundo como o que se observa acerca dele, como compreendia os empiristas. Essa dualidade foi rejeitada pela fenomenologia de Merleau-Ponty. Não tomemos o corpo nem como mero suporte, tão pouco como uma máquina. A vida é, nesse sentido, um entrelaçamento entre a carne que sofre e executa a ação, a subjetividade que vive essas ações em níveis psíquicos ou biológicos, a cultura que orienta modos particulares de percepção e a própria consciência. Esses são pois, modos de compreensão da relação do homem com o mundo e por isso são modos de traçar, delinear experiências, portanto, compreendo-o como uma espécie de cartografia: dos afetos, perceptos e outros tantos que ao final compreendem-se como cartografia do corpo. “Não toco a mão -ideia, uma pedra-ideia, um mundo-ideia, toco com meu corpo o mundo. Se posso me pensar com sujeito (...) só posso fazê-lo enquanto corpo e enquanto corpo no mundo” (PONTY apud OLIVEIRA, in V.A p. 98). O tempo, artista hábil, grava nosso corpo profundamente, transpondo essa imagem plástica que reflete vertiginosa no espelho.
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Essa linha que nos delimita, exprime-se como caminhos, levando-nos a corredores longínquos de memória e ausência. Essas linhas manifestam-se numa cartografia da existência, um poema dramático, épico, lírico, trágico, cômico. Reconhecer a vida é concomitantemente reconhecer a morte. O que é o passado? O que é o ontem? Marcas, vestígios, frestas... Dados semióticos? Será possível compreende-los fora do corpo que sente sem palavras, que sente simplesmente? São caminhos que vemos, mas não nos é permitido o passo. O que é o presente? O que é o agora? O gesto, a força, a morte inscrita dia após dia, segundo após segundo, como um soneto escatológico. Cada escolha, cada mudança, cada sorriso esboça em nosso corpo as marcas de outrora. Por que existir é tão angustiante? Jean -Paul Sartre diz ser o nada o responsável por isso, mas o nada aqui se refere ao conjunto infinito de possibilidades que se projetam à nossa frente, esperando nosso toque, nossa entrega, nossa recusa. Milan Kundera (1983, p.14) afirma na obra A insustentável leveza do ser: “Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Com se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo esboço não é a palavra certa porque esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro”, Não podemos vislumbrar a obra que irrompe, pois quando o artista a finaliza fecharemos os olhos. Cartografia do corpo empreende-se numa caminhada pelo corpo compreendido como lugar da consciência, dos afetos, dos perceptos. Proponho captar e transformar esses modos de percepção em narrativas visuais. Não como um itinerário com um finalismo, mas uma incessante busca à imensidão íntima. Inúmeros movimentos efervescem até que a obra irrompa, tais borbulho constituem matéria de vislumbramento. O ato criador, o momento em que todo esse conjunto de complexas relações, devem e serão
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abordadas num olhar desbravador, um olhar de pesquisa, de busca de uma compreensão do ato criador.
Ato criador Na obra crio um eu estranho e intimo Quando nos deparamos diante das nuanças próprias de uma obra de arte, suas curvas, tensões, continuidades e descontinuidades, cores, formas, ritmos, percebemos um passo além do movimento originário, àquele de um artista e de um mundo, do homem e seu universo próprio, da realidade e do gesto. O ato criador da arte possui uma característica única dentre as produções de sentido no universo do fazer humano, seus caminhos e contornos, partidas e chegadas, pressões e impressões produzem pulsões capazes de retirar o artista de seu lugar cômodo, de uma possível inércia, até que nada resta a não ser a força, a ato do gesto, a tonificação da forma. Tal movimento é necessário para que a obra salte de sua existência imaterial e alcance a realidade própria do cotidiano.
ordenação, onde o artista ou melhor o homem, visto que tal situação não é restrita ao universo de uma arte singular, mas na pluralidade das expressões: na literatura, na artes plásticas, na música e por que não na filosofia, essa solidão é um momento necessário em que o homem impele-se no desejo de ordenação. Um demiurgo no emaranhado de imagens do seu universo interior. Ou o inverso, uma subversão das simetrias do sempre dado, sempre pensado, sempre visto, sempre experimentado. Maurice Blanchot afirma que essa experiência talvez nos oriente no sentido do que buscamos. A solidão do escritor, essa condição que é o seu risco, proviria então do que pertence, na obra, ao que está sempre ates da obra. Por ele, a obra chega, é a firmeza do começo , mas ele próprio pertence a um tempo em que reina a indecisão do recomeço (BLANCHOT, 1987, p.14).
Os regalos desse processo são velozmente percorridos pelo artista, que apesar de estar munido de impressões, imagens, ideias, formas, observações, memórias, anseios, necessidades, afetos e desafetos, desejos e desconsolos, o faz de maneira solitária, mas não é uma solidão sufocante, é a solidão de
Encontrando-nos defronte a esse estado perene, abrimo-nos às pulsões que delibe -radamente nos movem a uma decisão, a uma ação, a um gesto... Mas decisão, ação e gesto, são ressonâncias de um corpo que, segundo Edith Derdyk (2001) em sua obra Linha de horizonte: para uma poética do ato criador: “cria pensamentos, o corpo sustenta uma ação, o corpo vive os ritmos, as (des) constinuidades, as intensidades, as disjunções, as alternâncias. O pensamento borbulha o corpo, o corpo contrai com pensamento, o pensamento gera um movimento, o movimento do corpo provoca as matérias do mundo”. É através das vivencias, das experiências temporais vividas pelo corpo, seus modos de percepção, absorção de sensações que o pensamento encontra matéria para uma síntese que ao mesmo tempo transforma, por processo semiótico, o mundo e a própria noção de corpo. O pensamento vaga por caminhos de topografia aciden-
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Deleuze afirma que se o artista não se deparar numa situação de estrangulamento não produz arte. Essa pressão é forjada por um conjunto de impossibilidade (DELEUZE, 1992, p.167). É esse conjunto de impossibilidades que o gesto encontra seu poder de ação e é nessas inconstâncias que as brechas do possível são encontradas.
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Figura. 01 CARTOGRAFIA DOS AFETOS: ATO 1 2011 Algumas imagens, videoperformance de José Neto
tada, por geografias singulares, por locais que somente ele pode acessar, lugares que a experiência cotidiana não consegue assegurar. O cotidiano dos sentidos mantém-se contornados pelo tempo. O pensamento encontra bifurcações, soma, multiplica com o dado do fazer ordinário. É igualmente alto, abstrato, metafísico, intocável, abismal e ao mesmo tempo baixo, delineado, físico, experimentável. O pensamento e a experiência, são, segundo Edith, tão inerentes quanto distantes na participação existencial deste corpo (cf. DERDYK, 2001, p.)
rença de que o artista não tem consciência. Por conseguinte, na cadeia de relações que acompanha o ato criador falta um elo. Esta falha que representa a inabilidade do artista em expressar integralmente a sua intenção; esta diferença entre o que quis realizar e o que na verdade realizou é o “coeficiente artístico” pessoal contido na sua obra de arte. Em outras palavras, o “coeficiente artístico” é como uma relação aritmética entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não intencionalmente (DUCHAMP in BATTOCH, 1986, p. 196).
O corpo capta a obra nascente em seu interior e a projeta para o exterior. Mesmo sendo o ato criador fruto da intenção, não podemos deixar de reconhecer que há no próprio movimento do gesto uma dimensão cega, ou seja, que extrapola a própria intenção, que escapa à minha percepção consciente da própria dimensão de alcance do gesto.
As apropriações de Duchamp - ready made fazem uma crítica radical à própria noção de autoria; elas operam uma torção pela qual o autor do gesto é posto em questão, no mesmo movimento que faz do objeto uma obra. Em primeiro lugar, Duchamp insiste aí em alargar a concepção da criação para além dos limites da técnica e da subjetividade do artista. Este não só não é capaz de descrever objetivamente suas decisões durante o processo de criação, nota ele, como “não desempenha papel algum no julgamento do próprio trabalho” (DUCHAMP in BATTOCH, 1986, p.197). O contemplador assume, na obra, um papel fundamental, complementando o do próprio artista. O ato, escreve Duchamp, “não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador” (DUCHAMP in BATTOCH, 1986, p.198). Mas o próprio ato é esburacado; o que o faz artístico é o conflito, o hiato que o constitui. Ainda nas palavras do grande artista, há uma “falha”, uma “inabilidade” necessária do artista em “expressar integralmente sua intenção”, e nesse descompasso entre o que se queria realizar e o que se produziu reside o “‘coeficiente artístico’
A obra de arte possui um conjunto de signos que podem abrir clareiras e apontar trilhas de interpretação. Essa semiose é a palavra do ato criador expressa na obra; produz uma centelha no mundo da obra, revelando conceitos, forças, ideologias, olhares, sensações, movimentos próprios, criptografados em signos visuais, auditivos e verbais. Mas entre a intencionalidade do artista e a obra de fato, possui uma discrepância, Duchamp afirma: o ato criador, o artista passa da intenção à realização, através de uma cadeia de relações totalmente subjetivas. Sua luta pela realização é uma série de esforços, sofrimentos, satisfações, recusas, decisões que também não podem e não devem ser totalmente conscientes, pelo menos no plano estético. O resultado deste conflito é uma diferença entre a intenção e a sua realização, uma dife-
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pessoal contido na obra”. Se tal coeficiente é “pessoal”, ele não confirma, contudo, a pessoa do artista, muito pelo contrário: ele despersonaliza, na medida em que desbanca a intenção e a expressão do artista. O ato criador mostra-se então hi-ato: descontinuidade entre intenção e ação do artista que se reproduz, em ato, no “olhador” da obra. Ao atribuir papel importe ao espectador da obra, critica-se a posição soberana do autor no processo de criação. Questionar essa leitura da obra a partir do autor, é atribuir-lhe valor em si, é renunciar as possíveis legendas, é garantir seu caráter de movimento, seu devir, seu gerúndio. O precursor do gesto é aquele que recebe as pulsões da natureza externa, a fertilizar, empresta seu universo à ação, seu corpo traz à tona a obra, mas esta a partir da ação, já lhe é diversa. É o que Umberto Eco designa como obra aberta (ECO,1988), ou seja, não se encerra no traço último do artista, mas o continuo movimento de significação e resignificação confere a obra novos pontos de contato. Roland Barthes em seu texto intitulado “A morte do Autor” afirma que uma vez o autor afastado, a pretensão de “decifrar” um texto torna-se totalmente inútil. Dar um Autor a um texto é impor a esse texto um mecanismo de segurança, é dotá-lo de um significado último, é fechar a escrita. Esta concepção convém perfeitamente à crítica, que pretende então atribuir-se a tarefa importante de descobrir o Autor (BARTHES, 2004). Não podemos deixar de verificar e constatar que há na relação entre o artista e sua obra um processo de estranhamento, como se lhe fosse diverso o próprio criado. Essa compreensão de que a obra de arte articula-se numa dinâmica própria, em que o movimento incide sobre a própria forma novas proposições caracteriza o gerúndio na arte. Henry Bergson profere que a forma ISSN 2317-580X
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é coisa que não existe, pois pertence ao domínio do imóvel, ao passo que a realidade é movimento. Real é a mudança contínua de forma: a forma é apenas um instantâneo tirado durante uma transição. Mais uma vez, portanto, a nossa percepção arranja maneiras de solidificar em imagens descontinuas a continuidade fluida do real (BERGSON, 1971, p. 295). Tal realidade me toca, me cinge, produzindo uma fenda na minha consciência e expandindo minha percepção. Um mundo de acontecimentos escondidos, de matérias encobertas, de texturas negadas ao toque, uma explosão de fricções no meu ser; colocando-me em movimento, movimento fenomenológico. Mas não uma fenomenologia qualquer; o acontecimento a que me imerso proporciona-me a ruptura do silêncio mortal da funcionalidade dada à matéria. O devir subverte a ordem, impele a matéria, bruta ou não, a revelações, a manifestações, a sentidos sempre novos. Por isso mesmo, caracteriza-se uma fenomenologia do “baixo”. Não entendamos baixo como um lugar em que uma lógica formal possa criar uma estrutura comparativa, numa dinâmica de inferior e superior. Baixo, neste sentido, evidencia aquilo ou aquele local onde a percepção alcança somente através do movimento, da abertura ao curvar-se-sobre, da descoberta de novas perspectivas de visão, de ruptura com o enrijecido, com o formal, com o factual, com o sólido. É encarar a vertigem a que Milan Kundera (1983, p. 65) refere-se na obra Insustentável Leveza do Ser: O que é a vertigem? O medo de cair? Mas por que sentimos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada? A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio embaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados. APUBLI[CADA] ∙ vol 1 ∙ nº1 ∙ ano 2013
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Figura. 02 FURIGEM 2011 Algumas imagens, videoperformance de José Neto
Quando o artista vê tais fendas, tais forças, tais tensões, tais contradições, através do gesto próprio de quem já viu o abismo que se projeta a sua frente, cria a obra sintetiza através da expansão, forja paradoxos. A partir daí, o espectador, através das lacunas deixadas pelo modo não totalizante de construir do artista, é capaz de encontrar a lógica do movimento da obra, tornando-se co-autor, co-herdeiro, não necessariamente do gesto originário, mas do encontro com esses novos olhares, novas frestas e perspectivas que o gesto se atualiza, nas novas significações e experiências estéticas. Observando os aspectos desse itinerário metafísico, de surgimento da obra do plano das ideias, ao plano do concreto, fenomenológico, compreendemos os alcances da obra enquanto manifestação de uma linguagem singular, sendo segundo Ana Rey (2002) tal linguagem ultrapassa as categorias fundamentadas nas técnicas e substancia-se na colocação em cena de uma série de códigos formais e visuais. Os códigos são um espelho ao qual o artista subjetivamente se revela, a obra comunica-se numa linguagem dialética...tese, antítese, síntese; da síntese é projetada uma nova tese, espera-se uma nova antítese e assim sucessivamente. Esse processo de significação traduz-se constantemente em sentido, mas este ao certo, não se revela num finalismo, ou seja, não há de maneira estrita um sentido último. O sentido último é uma nova possibilidade de descoberta de algum lugar cujo olhar não penetrou, lugar este, incompreendido ou ignorado pelo próprio autor. Ao final, o coeficiente artístico revela a impossibilidade de dominar as variáveis do processo de criação, mesmo que tais ímpetos sejam produzidos no mais intimo do autor.
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Criador do ato Nos caminhos da memória, encontrei flores e monstros. O que seria uma obra de arte autêntica tendo como base a arte contemporânea? Autentico é o que comunica uma verdade, é o ser do artista revelado na obra. Há sem sombra de duvidas aspectos de nós mesmos, de nossa história que escapa à nossa compreensão, há portas longínquas em nosso íntimo, esconderijos de segredos demasiado belos, demasiados grotescos, imensamente pe-quenos, e esmagadoramente grandes. Desse conjunto de percepções que, por sua vez, podem empreender-se num jogo de sensações contrarias cuja nomenclatura foge ao controle, ao domínio racional, surge o momento exato em que a vulnerabilidade impera, cuja capacidade de negação tornase vã. Nesse instante as convenções e normativas caminham nos trilhos de uma única e imperativa prerrogativa: explosão de sentidos, de sensações. A experiência a qual denomino de Carto-grafia dos afetos: ato 1 (figura 1) surgiu de uma proposta feita por mim a uma colega de faculdade. Procederia da seguinte forma: tendo como base o desenho cego, seria preparado um ambiente tranqüilo e com o mínimo de espaço, em que o desenho surgiria pressionando vários lápis fixados em partes do corpo e transferidos ao papel. Até aí, nada de mais, o que se segue é que tais desenho surgiriam de sentimentos insurgentes de momentos de silêncio e concentração. Posteriormente percebi que a ideia apontada a esta colega, poderia ser de grande valia para mim. Decidi, pois, me sujeitar a essa experiência. Em um ambiente devidamente preparado, me coloquei sobre um papel (2x2m), liguei a câmera filmadora, para registrar
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o processo do desenho. Entretanto, o que aconteceu, fugiu completamente do planejado, extrapolou toda margem por mim definida. A tensão sentida por mim, a sensação de esvaziamento arremessou-me em um peso existencial, o borbulhar desses afetos: solidão, euforia, medo, fragilidade, alegria culminara em um momento em que todo sentido escapa a supremacia do cogito, a libertação se dá como as compotas abertas num represamento. O choro é incontrolável, tornando-se e tomando uma demissão catártica. Compreender tal ato como cartografia é reconhecer aspectos singulares do meu corpo memorial, e concomitante traçar novas formas de me reconhecer, ou o reverso, formas de estranhamento de mim mesmo. O gesto sentido, executado e transferido ao papel perde força à imagem captada no vídeo. Na filmagem vemos um artista sozinho, como quem vê o mundo, e todo conjunto de possibilidades são ao mesmo tempo excitantes e apavorantes. O caminho temporal transfere o artista a uma condição placentária, momento este em que o parto arremessa o sujeito num mundo estranho. Ao mesmo tempo em que explode em grande quantidade as percepções, o medo domina por uma única via: sentir-se frágil, indefeso.
relação corpo/memória/afetos/perceptos, ou seja, nas múltiplas e infinitas formas de traçar significados à nossa existência. Novas formas de delimitar o corpo, formas estas superadas no plano meramente físico, e multiplica em sentimentos e memórias. A performance “Furigem” (figura 2) une o conceito de fúria de quem deseja libertar-se e a ferrugem que come a dureza e frieza do metal, tornando-se ato e metáfora daquele gesto vivido em Cartografia do Corpo – Ato1. Neste sentido, pude metaforicamente trazer materialmente o que senti fisicamente naquela experiência. Perceber a importância do ato criador na constituição da obra é de suma importância, mas essa relação tem múltiplas vias, há de levar em conta que o ato criador pode ser constituinte do autor do ato, dandolhe sentido, fazendo-o também obra. Obra esta inserindo artista, obra, ato, numa dinâmica capaz de gerar novos traçados, novas formas de compreender, de ver a arte, o processo de criação e ao mesmo tempo, torna-nos capazes de reconhecer que esse processo é perene, constante....e que está muito além da capacidade do artista de dar nomenclatura e significados.
A experiência descrita acima marcou sobremaneira meu modo de compreender meu próprio projeto Cartografia do Corpo. A partir daquele instante, libertador e frágil, coloco-me inteiramente a pensar toda essa
Furigem exprime com força uma metáfora existencial. De um lado o artista, angustiado, asfixiado por uma sensibilidade que lhe escapa e lhe atravessa, por outro lado, há um impulso de vida, desejo de movimento. O neologismo Furigem composto de “fúria” e “ferrugem”, são duas expressão que apresentam um impulso de torna-se, de um lado a força explosiva cujos estilhaços afetam quem observa, convidando-o a mover-se na dor, a pedir por um alento e por de outro lado vemos uma entrega ao descafelamento, à morte. O que aparece nas imagens? O homem sendo, existindo, movimentandose, recusando-se à lacuna. O silêncio invade-nos e nos convida a imaginar os suspiros, os gemidos, o alivio que parece não chegar, e que de fato não chega, pois tudo aponta para um rebento, um mar que está sempre revolto num turbilhão de sentimentos, desejos, e claro, gozos.
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Percebi que o ato ocorrido naquela experiência não poderia ser refeito na mesma intensidade, tornando-o singular, destacando ainda mais sua importância em uma cartografia dos afetos. “A atualidade do gesto cortante é a vivencia temporal de um presente eterno irresgatável por um novo ato”. (FABBRINI,1994, p.95).
Desdobramentos
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1/4 Heloá Fernandes Acadêmica de graduação do curso de Artes Visuais – Bacharelado em Artes Plásticas da Universidade Federal do Goiás – UFG. Fotógrafa freelancer com formação tecnológica em fotografia e imagem na Faculdade Cambury - Goiânia - GO. E-mail: heloafsiqueira@gmail.com
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Minha relação com a arte partiu da fotografia. Me desenvolvi profissional-mente como fotógrafa e durante algum tempo isso foi suficiente. Depois de muitos trabalhos, senti uma necessidade de me desprender das construções plásticas impostas pelo mercado. Senti, de certa forma, presa em um mundo de imposições técnicas e estéticas. Mas após entrar no curso de Artes Visuais na Universidade Federal de Goiás, me debrucei sobre uma inquietação antiga, do início da minha carreira profissional. O desconforto em relação ao retrato. Passei a observar a constante estranheza e as vezes rejeição das pessoas em relação a própria imagem, inclusive descobri esse desconforto em mim mesma.
Utilizei então meu próprio corpo para problematizar várias questões. Como me enxergo? Como o outro me enxerga? Qual é a minha identidade quando me fotografo? A fotografia força o expectador a se confrontar. Tento discutir o outro através da minha própria identidade e dos meus espaços, colocando-me como objeto de enfrentamento. No caso da série 1/4, estendo minha identidade ao espaço fechado do meu quarto.
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Fabiana Queiroga É especializada em Arte Contemporânea. Possui formação em Design Gráfico pela Federal de Goiás e Pós-Graduada em Fashion Design pelo Instituto Europeu di Design. Participou do curso de Cool Hunter pelo IED de Milão. Há oito anos atua em Goiânia com Design de Superfície, foi também precursora do movimento Toy Art em Goiás e ministrou vários worksohops de Toy Art e ilustração de moda na PUC-GO e UFG. E-mail: fabqmm@gmail.com Site: www.fabq.com.br
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Sublimação
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Desde o início de sua produção Fabiana Queiroga dialoga desenho e vestuário. Talvez a experiência como ilustradora de moda, trouxe o simbolismo feminino tão presente em seus trabalhos artísticos. Ora menina ora mulher Fabiana, por traços lúdicos, apresenta de maneira crítica seu mundo feminino e contemporâneo. Creio que a artista buscou vários elemen-tos de todo o seu repertório para criar a série Sublimação, fazendo uma verdadeira imersão em sua própria produção. Temos, portanto, uma maturidade profissional e consciente. Na série, aquarelas suaves permeadas de fantasia trazem mulheres e meninas delicadas e sedutoras num jogo de esconde/mostra por entre pilhas de tecidos elegantes. As roupas e tecidos possuem papel fundamental neste processo de sedução, uma relação direta do corpo com o meio, algo que Fabiana atua como veterana. Santiago Régis
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Santiago Régis Maranhense de Davinópolis. Já morou em Goiânia e hoje atua em Belo Horizonte. É bacharel em Artes Plásticas pela Universidade Federal de Goiás e há muito trabalha com o universo infantil e literário. A relação palavra-imagem sempre despertou seu interesse e assim a ilustração acabou virando sua principal válvula de produção. Suas ilustrações já tomaram paredes de Galerias, páginas de livros infantis, estampas e animações E-mail: santiagoregis@gmail.com Site: www.santiagoregis.com
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Não saberei dizer quem sou se não considerar aqueles que me entendem. Às vezes o pensamento do outro é também o meu. Então eu sou eu, eu sou ele e também outros. Às vezes o meu pensamento é também o do outro. Salve aquele que me entende Rogai por nós filosofia confluente Santa música de bom significado Bendita seja a boa literatura Agora e na hora de minha morte. Amém Santiago Régis
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Cristina Harumi S. Maeshima1 Fernanda Hirome S. Maeshima2
Análise sinestésica e utilização decorativa de plantas ornamentais do cerrado em Goiânia Resumo
Introdução
A relação natureza e homem são tratados pela análise sinestésica. Foram aplicados questionários a viveristas e clientes dos mesmos que permitiram clarificar esta relação e como estas plantas podem influenciar no ambiente. Assim, traçou-se o perfil dos clientes, quais plantas do cerrado são de conhecimento deste público, o pouco conhecimento do cuidado com as mesmas e como a presença das plantas no ambiente podem influenciar no estresse. Mostrando assim a necessidade do designer na aproximação e aprofundamento desta relação.
Sinestesia é uma palavra de origem gre-ga: “syn” (simultâneas) mais “aesthesis” (sensação). Significa “muitas sensações simultâneas”, sendo esta oposta de “anes-tesia”, ou “nenhuma sensação”. Sines-tesia é conceitualmente definida como associações espontâneas que variam con-forme os indivíduos. Entre sensações de natureza diferentes que, relacionadas, pa-recem sugerir umas às outras evocando o sentido. As representações que se fazem na mente são resultantes de múltiplos dados que sincronizam e se estocam, processando-se na memória, como estímu-los em contaminação (DOMINGUES, 1998, p. 10).
Palavras-chave Sinestesia, decoração, cerrado.
1 Graduanda em Design de Ambientes pela Universidade Federal de Goiás.
2 Mestranda em Ecologia e Produção Sustentável pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: cris.maeshima@gmail.com
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De acordo com SEVILLA (2006, p. 301), a sinestesia é um fenômeno estável, de carácter perceptivo e unidirecional. Ocorre de maneira automática e, geralmente, produz memórias. É a estabilidade de per-cepções tem sido um dos pré-requisitos da sinestesia utilizados por alguns pesquisa-dores. Segundo essa autora, as percepções são automáticas, involuntárias e difíceis de suprimir, pois tal fato simplesmente acontece. São genéricas, pois quando uma palavra dá lugar a uma cor ou a um objeto, não se usa uma percepção elaborada. O mesmo ocorre quando se testa diferentes sabores e odores. Segundo BASBUM (2003), estes múltiplos dados são o conjunto de sentidos constituindo um tecido único de sensações, inconcebível sem que suas naturezas, eventualmente distintas, possam ser com-paradas umas às outras (pela razão), a fim de serem
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Figura. 01 Faixa etária dos clientes de viveiros de plantas ornamentais de Goiânia, GO
compreendidas. A partir desta compreensão busca-se ampliar, além dos estudos comparativos com som e cores existentes, mas enfocar na experimen-tação destas sensações com os seres vivos, como as plantas. Sendo que através destas podemos comprovar a sua importância que vai além da utilização medicamen-tosa, assim como os efeitos causados pela sua presença: desde a purificação do ar a alterações comportamentais dos indiví-duos. Muitos profissionais como médicos, arquitetos, biólogos e paisagistas direcionaram suas pesquisas para investigação dos efeitos que as plantas provocam no ser humano. Um bom exemplo é o Dr. Roger S. Ulrich, professor de Arquitetura da Universidade Texas A&M. Ele foi um dos primeiros a documentar cientificamente que a visão da natureza pode trazer benefícios importantes na recuperação do paciente e nos seus desfechos clínicos, segundo ULRICH (1995, p. 97-109). Os dados de sua pesquisa relacionam natu -reza e recuperação de pacientes. Ter acesso a um espaço verde no ambiente hospitalar pode viabilizar a recuperação do senso de controle do paciente, enten-dido “como a capacidade de decidir o que fazer em diversas situações, ter es-paço para sociabilizar com os amigos e parentes, distraindo-se da aura hospitalar e da realidade que se está vivendo”. Sérgio Simon, oncologista do Hospital Israelita Albert Einstein, conta que seus pacientes solicitam atendimento ao ar livre, entre plantas, árvores e pássaros: “O jardim tem um efeito calmante
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e tranquilizante sobre eles, fazendo com que sintam menos alguns dos efeitos colaterais da quimiote-rapia, principalmente a náusea”. Simon diz que existem casos de pessoas que só conseguem receber a quimioterapia no jardim: “Nos dias de chuva, por exemplo, eles precisam ser atendidos dentro do am-bulatório, mas apresentam muito mais enjoo, chegando até mesmo a vomitar” (ALMEIDA, 2012, p.1). Existem ainda muitos trabalhos acerca da influência das plantas no comportamen-to do ser humano, com resultados que indicam a redução de atos violentos até o aumento da atenção e da produtividade (MENEGATTI, 2011). Por fim, as plantas apresentam variadas propriedades que podem equilibrar um ambiente, assim como beneficiar com aspecto estético. Pois agregam um valor ao imóvel interno e ex-terno, proporcionando ainda equilíbrio e tranquilidade que é trazer saúde e o mais importante: qualidade de vida. Assim, o espaço pode ser um grande contribuidor para essa conquista tão necessária nos dias atuais. Plantas de diversos biomas são utiliza-das nessa busca por equilíbrio. Com as plantas do Cerrado não poderia ser diferente. Afinal este constitui um dos seis principais biomas brasileiros, segundo RIBEIRO & WALTER (1998, p. 89-168). No Cerrado, em condições naturais, as plantas nativas enfrentam um regime de chuvas marcado pela estacionalidade. Mas, estas podem ter suas características alteradas, principal-mente no que se refere à frutificação, em razão da interfe-
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rência em estímulos naturais, fa-tores de estresse como o frio e a escassez de água, que provocam a queda de folhas e induzem a floração. Com a irrigação as plantas podem produzir em épocas diferentes ou apresentar uma carga de frutos diferenciada, maior ou menor. Por, isso é necessário um tratamento adequado devido a esta estacionalidade (BITTENCOURT, 2006). Segundo BITTENCOURT (2006) cultivar frutíferas do Cerrado em quintais e jardins de imóveis urbanos e rurais é uma opção que vem ganhando adeptos fiéis. Essas plantas têm a vantagem de ser totalmente adaptadas às condições da região, são perenes e depois que atingem a fase adulta resistem ao longo período de estio sem a necessidade de irrigação. Embora haja quem ainda não reconheça o valor ornamental das espécies que compõe o bioma, muitos não abrem mão de manter amostras da rica variedade de árvores de troncos rugosos e tortuosos que caracterizam nossa flora nativa. Os frutos, dos mais variados sabores, podem ser consumidos in-natura ou processados de diversas formas e são, com toda a certeza, a melhor maneira de atrair pássaros e favorecer a qualidade do ambiente que se quer ornamentar.
características podem conduzir as espécies que são utilizadas, para a exploração desordenada, como no caso de espécies das famílias Xyridaceae e Eriocaulaceae e, também, constituir um aproveitamento restrito de recursos na-turais com elevado potencial de geração de renda para comunidades rurais. A utilização de espécies de plantas ornamentais nativas do Cerrado pode cons-tituir uma alternativa futura de renda, principalmente para pequenos e médios agricultores, considerando principalmente que não há necessidade de plantio em grandes áreas para viabilizar a inserção no mercado. Além disso, a utilização racional de espécies de plantas nativas pode ser um mecanismo eficiente para valorizar e conservar a biodiversidade (EMBRAPA, 2012, p.1).
Apesar do elevado potencial ornamental de várias espécies de plantas nativas no Cerrado, a utilização ainda é restrita e, muitas vezes, essencialmente extrativista. Estas
Cultivar frutíferas nativas é uma maneira de preservar a flora e manter viva a tradição regional, com o privilégio de degustar seus frutos e contemplar a qualquer momento alguns exemplares do patrimônio vegetal que beira o risco de extinção. Quando se mudou para um condomínio fechado em Goiânia, o professor universitário Ildeu Moreira Coelho preocupou-se em adquirir uma área maior, de pouco mais de 3 mil metros quadrados, para cultivar frutíferas. Entre elas, alguns exemplares da flora do Cerrado. O plantio de alguns pés de mangaba, uma antiga paixão, possibilitou o resgate de sensações e lembranças do tempo da infância (BITTENCOURT, 2006).
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Figura. 02 Espécies nativas do Cerrado comercializadas em viveiros de Goiânia, GO.
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Figura. 03 Principais espécies nativas do Cerrado mais encontradas em viveiros de Goiânia, GO.
Estas plantas tem importância variada atingindo a ecologia com a preservação do meio e ao mesmo tempo associa-se com ocu-pação do espaço urbano em que vivemos. A perda da cobertura vegetal tem provocado outros problemas com assoreamento de rios e posteriormente a vegetação, assim como a degradação do meio. Portanto, devemos atentar para a preservação da mesma utilizando do cultivo de diferentes espécies. Além de também auxiliar na valorização do ambiente esteticamente e sinestesicamente. E possuir um valor econômico, já que o Brasil tem crescido no mercado de comercialização com plan-tas, que vão desde a produção de flores até as plantas ornamentais (JUNQUEIRA & PEETZ, 2008, p. 37-52). Torna-se interessante também pelo aspecto medi-cinal e até farmacológico. Além de ampliar a visão sustentável e os cuidados com a preservação do meio ambiente. Por isso é tão interessante e necessário cuidarmos não só a parte sinestésica, mas atentarmos as necessidades do padrão de vida mo-derno. Segundo COUTINHO (2012, p. 1) ao longo do tempo, com a evolução natural da sociedade e o desenvolvimento dos grandes centros urbanos a configuração das famílias foi lentamente se modifi-cando, fato notado especialmente por aquelas que moram nas zonas urbanas. No modelo de família con-
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temporânea homens e mulheres estudam e trabalham, quando ainda não acumulam outras atividades, e assim como os homens as mulheres passam grande parte do seu dia fora de casa, cumprindo longas jornadas, de forma que quando retornam as suas casas, normalmente não tem energia para se dedicar a outras tarefas como cuidar de uma horta, e o habito saudável de cultivar seus próprios alimentos foi abandonado quase que completamente. É uma importante atividade capaz de aliviar o estresse acumulado no dia a dia e traz benefícios emocionais hortoterapia é uma atividade recomendada por muitos médicos e terapeutas para seus pacientes, servindo como válvula de escape das pressões cotidianas e produzindo muitos efeitos positivos na saúde dos pacientes Segundo SOUZA (2009, p. 75), por pesquisas o estresse é um dos fatores que afetam a saúde, podendo ate chegar ser um fator degenerativo, exigindo tratamento especial. Assim as pessoas têm buscado adotar medidas que possam trazer o conforto que o ambiente pode nos proporcionar associado á busca de plantas para este objetivo, como a utilização da hortoterapia. A hortoterapia ou jardim terapia é uma prática muito antiga que já era utilizada por
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nossos antepassados com o único diferencial que naquela época não era considerada como uma terapia, mas sim como uma ocupação normal, manter e cuidar de uma horta fazia parte do cotidiano de quase todas as famílias. Atualmente por diversos motivos são muito poucas as famílias que cultivam seus próprios alimentos ou cuidam de uma horta, perdendo oportunidade de cuidar da saúde física e mental (COUTINHO, 2012, p. 1). Segundo BARNES & MARCUS (1999, p. 611) a hortoterapia, tem auxiliado no beneficio da saúde, técnica combina cultura de plantas e jardinagem ativa e passiva (contemplação ou “jardim-reflexo”). É considerada eficaz como coadjuvante das terapias convencionais contra o estresse e outros como nos casos de dependência química ou alimentar, fisioterapias, doenças mentais, no tratamento de idosos e doentes senis, bem como entre crianças com necessidades especiais ou não. Assim, esta relação planta e ambiente auxilia a entender e ate encontrar meios que nos proporcionem preservar a natureza e usufruir de suas riquezas de maneira sustentável e saudável.
ling Gardens (Jardins da cura) da Faculdade de Agronomia e Farmácia da Universidade de Estudos de Milão, autora do livro II giardino che cura (“O jardim que cura”, Ed. Giunti, sem tradução para o português), Cristina Borghi conta que a terapia nasceu antes que a psiquiatria se tornasse uma ciência. Entre os séculos XVIII e XIX, observou-se que pacientes psiquiátricos melhoravam quando se envolviam em atividades de jardinagem em sentido amplo (cortar lenha, preparar o fogo, carpir ou realizar atividades domésticas). O contrário, ou seja, se manter inativo, piorava a saúde física e mental dos doentes. A partir daí, a hortoterapia passou a ser uma alternativa útil que faz do paciente um protagonista do próprio restabelecimento. É que a terapia funciona colocando em movimento três mecanismos distintos: a interação com as plantas, a ação e a reação (ALMEIDA, 2012, p.1).
Médica e consultora especializada em Hea-
Segundo ALMEIDA (2012, p. 1) a capaci-dade de interagir é fundamental para pessoas que sofrem com depressão, ansiedade, autismo e demência. A terapia também atenua sintomas como a pouca resistência ao estresse, falta de autoestima e vitimismo, completa. O segundo mecanismo, a ação, mantém
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Figura. 04 Espécies nativas do Cerrado procuradas por clientes de viveiros de Goiânia, GO.
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Figura. 05 Espécies nativas do Cerrado mais procuradas pelos clientes.
o doente ocupado, distraindo-o, dandolhe segurança, e é um ótimo substituto do trabalho. Favorece a concentração, sendo também um satisfatório processo criativo. O terceiro e último mecanismo, a reação, constitui um elemento de ligação entre o paciente e o jardim, que se estabelece a partir da resposta emotiva que uma paisagem ou uma flor suscitam. Esse mecanismo alcança o inconsciente porque somos psicologicamente dependentes das plantas, já que elas possuem uma esta-bilidade dinâmica que opera por meio da mudança.
Metodologia Inicialmente, realizou-se o embasamento teórico por meio de sites, revistas, artigos científicos e livros da área. Além disso, foi feito o levantamento das principais espécies de plantas nativas do Cerrado utilizadas em Goiânia para a decoração de eventos e ambientes, por meio da aplicação de um questionário oral sem gravação e com a anotação dos entrevistados como questionário em tabela (Apêndice 1) a viveristas. Por meio deste, foram obtidas informações sobre a composição e a harmonização destas espécies. Para se conhecer sobre sinestesia e funcionalidade destas plantas no meio, clientes destes profissionais viveristas foram arguidos por meio de outro questionário (Apêndice 2). Estes questionários foram aplicados a 10 profissionais proprietários de viveiros, e a 20 de seus clientes. Os viveiros foram escolhidos aleatoriamente, localizados no município de Goiânia, GO.
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Levantaram-se os dados para a pesquisa quantitativa por meio de questionários, levando-se em consideração que não basta apenas a coleta de respostas sobre questões de interesse, por isso baseie em analise estatística do programa Excel 2010, para a validação dos resultados. Partindo da análise estatística, esta pesquisa auxilia o pesquisador que desconhecem os princípios básicos a serem cumpridos, os dados necessários para seu embasamento. Levando-se em consideração aspectos como tamanho da amostra, tipo de questionário elaborado, as questões levantadas, a forma de análise dos dados, como relacionar o questionário com os dados obtidos, a seleção de indivíduos que devem ter na amostragem, entre outros fatores que devem ser levados em consideração nesta e em outras pesquisas. (MANZATO & SANTOS, 2012, p. 1).
Discussão De acordo com os dados levantados, podese traçar o perfil dos clientes (Figura 1) que frequentam os viveiros avaliados na cidade de Goiânia, GO, sendo a maioria de homens com mais de 30 anos, seguidos por mulheres de 18 a 30 anos. Isto indica um público relativamente jovem e, curiosamente bem informado sobre as espécies de plantas ornamentais nativas do Cerrado. A Figura 2 apresenta as espécies nativas do Cerrado usualmente comercializadas neste viveiros, em um total de 38 espécies. Dentre estas, dez se destacam como principais,
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sendo, em ordem decrescente, o ipê amarelo, ipê roxo, ipê rosa e branco, pequizeiro, mangabeira e, por último, o muricizeiro, aroeira, baruzeiro e cagaiteira (Figura 3). A Figura 4 mostra as espécies nativas do Cerrado procuradas pelos clientes, em um total de 28 espécies, destacando-se as dez principais (Figura 5): ipê roxo, ipê rosa e branco, ipê amarelo, pequizeiro, jacarandá mimoso, quaresmeira, buriti e cagaiteira e, por último, o cajuzinho do Cerrado. Comparando-se as espécies mais encontradas nos viveiros (Figura 3) com as mais procuradas pelos clientes (Figura 5), percebe-se, dentre as espécies comer-cializadas pelos viveiros, o araticum, guariroba, imburana, jenipapo, lanterneiro e pau ferro não foram citadas pelos clientes, talvez por desconhecimento ou pela menor aceitação. Por outro lado, algumas espécies, como aroeira, bromélias, aroeira mole, jacaran-dá mimoso, pau formiga, pau papel, qua-resmeira e rosa do cerrado, apesar de serem procuradas pelos clientes, não são comercializadas pelos viveiros. Isto demostra que as espécies produzidas pelos viveiros estão atendendo em parte a procura, aceitação e demanda dos clientes. E que os clientes, por não encontrarem as espécies procuradas, provavelmente se decidem por outras, nativas do Cerrado ou exóticas. Contudo, sabese da importância, inclusive ambiental, do uso de espécies nativas do Cerrado nos ambientes, por estarem, inclusive, mais adaptadas às condições ambientais locais. Observou-se que a maioria é de espécies arbóreas e de uso em ambiente externo, para jardins de residências, chácaras e/ou fazendas. É interessante notar, pela resposta dos clientes e viveiristas, a crescente busca destas plantas para reflorestamento, além da conscientização dos clientes sobre a conservação das dife-rentes espécies. Nota-se que a maioria dos viveiristas concorda em dizer que as plantas nativas do Cerrado por eles comercializadas não auxilia na redução do estresse; diferentemente da opinião dos clientes, já que a maioria destes acredita que sim, que o estresse pode ser reduzido pela presença de tais plantas no ambiente (Figura 6). Portanto, é interesISSN 2317-580X
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sante perceber como estas plantas afetam os seres humanos, valendo ressaltar o seu uso para o tratamento de estresse. Como nos estudos de Ulrich (1995), ao ressaltar estudos correlacionados à importância das interações do homem com as plantas, o que auxiliaria no tratamento de pacientes sobre estresse até com doenças mentais. De acordo com os resultados, o viveirista acredita que o cliente adquira as plantas nativas do Cerrado, primeiramente, pela beleza, item citado para 63,15% das espécies, seguida por outros motivos (52,63%), pelo uso condimentar (23,68%) e medicinal (21,05%). Do total das 38 espécies citadas, 42,10% poderiam ser adquiridas em função de mais de um destes motivos (Figura 7).
Figura. 06 Percentual de viveiristas e de clientes que acreditam no potencial das plantas nativas do Cerrado em atuar na redução do estresse.
Já, para o cliente, do total de 28 espécies, 67,85% seriam adquiridas por outros motivos, além da beleza (64,28%) ou uso condimentar (17,85%). Deste total, 42,85% poderiam ser adquiridas em função de mais de um destes motivos (Figura 8). Dentre os outros motivos citados pelos clientes, pode-se mencionar a utilização da madeira para fabricação de mobiliários, a refrigeração do ar por meio da utilização da sombra e o reflorestamento como principais. Em termos de uso como medicinal, cita-se a utilização de variadas espécies, como o articum e o pau óleo, entre outras. Já, o condimentar vem como o último motivo, voltado para sucos, doces, geléias e compotas. Os dados coletados sobre as principais dúvidas dos clientes (Figura 9) a respeito dos cuidados com as plantas serviram para indicar que uma minoria conhece sobre os principais cuidados, e a maioria necessita do auxilio de viveiristas e ou/ profissionais, como paisagistas e designeres. APUBLI[CADA] ∙ vol 1 ∙ nº1 ∙ ano 2013
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Figura. 07 Expectativa de aquisição de espécies nativas do Cerrado por clientes de viveiros de plantas ornamentais em Goiânia, GO.
Figura. 08 Razão de aquisição da espécie nativa do Cerrado por clientes de viveiros de plantas ornamentais em Goiânia, GO.
Considerações Finais As plantas têm uma gama de funções experienciadas no presente trabalho, tais como utilização para mobiliários, uso comestível e até de reflorestamento, ressaltando o aspecto de importância ecológica. Com a análise sinestésica se permitiu observar a interação entre as pessoas e as plantas, dado que os clientes possuíam certo conhecimen-
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to sobre as plantas ornamentais do Cerrado. Porém, a maioria não possuía conhecimento sobre os principais cuidados com as mesmas, necessitando da ajuda de profissional capacitado. Apesar de os viveristas possuírem muitas espécies arbóreas do Cerrado, faltam lhe espécies adaptadas para vasos menores e/ou potes, o que
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Anexos Apêndice 1. Questionário aplicado a proprietários de viveiros de plantas ornamentais de Goiânia, GO.
Obs: Não transcrevi todo o conteúdo das entrevistas. Caso aja necessidade a pesquisa de campo esta disponível em forma de questionários para consulta.
Apêndice 2. Questionário aplicado a clientes de viveiristas do entorno de Goiânia, GO.
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Mariana Magri Rodrigues1
MUZORAMA: uma reflexão audio-visual
Resumo
Introdução
Este trabalho visa uma reflexão narrativa de um processo construtivo de percepção visual, sensível e de produção de sentido da animação MUZORAMA, do desconhecido internauta e autor com pseudônimo de MUZO. Minha interpretação é calcada nas três categorias básicas da semiótica, a saber, a primeiridade, secundidade e terceiridade. Reflito sobre a sequência de um conflito de valores psíquicos e de símbolos criados pela abordagem do filme e considerados intencionalmente distorcidos quando abalizados pelas animações tradicionais. O que faz com que nós, expectadores tenhamos certa estranheza da percepção visual de mundo proposto pelo autor que prioriza o surreal sem desconsiderar que a percepção visual é também, processo do inconsciente que pulsa na região sensorial de nosso consciente. Este percurso de produção de sentido se constrói com destaque em alguns recursos como os meios de estudo de percepção da animação.
Palavras-chave Cinema, metalinguagem, inconsciente, tempo, espaço.
1 Estudante de Licenciatura na Faculdade de Artes
Visuais, da UFG. Formada em Fotografia Básica e Profissionalizante na Canopus Escola de Fotografia em Goiânia. E-mail: marianinha.magri@gmail.com
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“As câmeras começaram a duplicar o mundo no momento em que a paisagem humana passou a experimentar um ritmo vertiginoso de transformação...” (SONTAG, 2004, p. 26 ) Impressões sensoriais nos tomam o corpo quando por observância direcionamos o primeiro olhar, ainda que muito superficial, ao domínio imagético e sonoro da animação Muzorama, de Muzo. O magnetismo inicial do barulho do relógio que se constrói na mesma velocidade da cena ou da cena formulada na mesma velocidade do áudio do relógio, dão um impulso involuntário, surrealista dos acontecimentos. Uma angústia decretada pelo estranhamento diante do que não é de natureza comum causa um distanciamento muito grande entre o observador e a obra. Concentrar-se no sequencial de fatores torna-se um passatempo de raras identificações e incômodos sutis para o observador. A sensibilidade urbana que o autor traz é quase uma captura da nossa insensibilidade. As relações humanas se constituem em uma ruptura do que tendemos a considerar certo e errado. O movimento é constante, de cada elemento principal, sempre correm contra o tempo, até mesmo, aqueles que para nós, são totalmente inanimados. Percebe-se uma mudança simbólica dos instrumentos de desejo e cerimoniais dos personagens. Como por exemplo, as flores oferecidas à mulher são depreciadas ou apreciadas (?) pelo paladar não somente pelo olhar.
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Uma realidade alheia de um conjunto de pretensões que poderiam denunciar um perigo social demográfico em nossa cultura “realista”. Cabeças que giram e continuam com a voracidade da vida sem terem seus corpos acoplados à elas; e corpos que andam desalojados em busca de suas cabeças. A cena é tratada no filme com muita naturalidade,ou seja, é comparada igualmente com a nossa perda comum, cotidiana, de um objeto de importante valor. Ha nesta cena que percorre todas as entranhas das outras cenas do filme, uma questão muito intrigante que é direcionada à posição do limite existencialista da vida em uma realidade subjetivada. Afinal, o corpo como a condução material e grosseira da estética humana, carrega em si um princípio inteligível, muito além dele próprio. O mundo se torna mental. A vida está em uma individualidade compreensiva a conjuntura de sentido que cada um constrói em seu pensamento, na interação de sua vida interna e externa. O personagem/homem da animação existe, mesmo tendo seu corpo por pedaços simbolicamente deflagrado. Ele ainda existe em um corpo de sentimentos e pensamentos, um corpo além do corpo.
Surrealismo, subconsciente e nonsense.
Figura. 01 Cena da animação Muzorama. Mulher comendo flores
“Na primeira fase da poética surrealista, a arte possui justamente um caráter de teste psicológico, mas, para que este seja autêntico, é preciso que não haja intervenção da consciência...” (ARGAN, 1992, p. 360). Acredito que pela habilidade de se vincular ao Manifesto Surrealista e na temática escondida por trás das obras surreais, está sempre o inconsciente como escultor deste processo. Familiaridade primeiramente sentida na obra Muzorama com seu autor. Tratado denotativamente como a intervenção que é feita sem pensar, sem reflexão, uma intervenção que está além da vontade consciente do indivíduo, podemos pensar em uma atividade psíquica bem presente na obra. Se pensar no sentido de racionalizar, pois a criação segue livre em sem sentido associativo.
Figura. 02 - direita Cenas de cabeça na animação Muzorama
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As ações simultâneas e contínuas dos personagens, muitas vezes padecem de um aspecto de medidas sem consciência. O que não significa que a própria obra seja de cunho inconsciente, uma vez que a função problemática do autor não é nada ingênua. Percebe-se a proposital objetividade e intenção no seqüencial de suas ações. Essa falta de sentido, essas ações impulsivas e aparentemente desordenadas que separadas nos parecem muito inconscientes diante da simetria de ações que constituem a simétrica função humana da consciência, é um marco do filme. É uma questão que se desencadeia diretamente no Surrealismo. Um aspecto além do real, uma profunda avaliação de tempo, na qual podemos imaginar ter fechado os olhos e ter vivido, por um momento retraído de nossa imaginação, todo aquele cenário, todas aquelas vibrações do filme. Quando acordamos, o mundo estava em seu lugar, à sua maneira. Portanto, não precisamos que a obra fizesse total sentido. Só precisou ser vivida naquele estreito museu da mente, movimentado de signos e símbolos, e de natureza sensível que autorizasse uma liberdade de criar dentro, o que não se vivia fora. “O inconsciente não é apenas uma dimensão psíquica, explorada com maior facilidade pela arte, de-
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vido á sua familiaridade com a imagem, mas é a dimensão da existência estética e, portanto, a própria dimensão da arte,” afirma Argan (1992, p.360). Neste trecho a respeito do Manifesto Surrealista, Argan fala da potencialidade existencial que condiciona a arte á este ambiente vívido de criação mental, onde as referências imagéticas são base de significados que foram para o artista muitas vezes tão ou mais importantes que a realidade padrão. E sendo a arte comunicação e representação vital, Muzorama afirma uma vitalidade de originalidades energéticas de um mundo imagético que, apesar de ser real e além de ser somente realidade, é parte de um conjunto de imagens que foram interpretadas em um sentido pessoal. As noções de descontrole dos fatos desencadeiam-se em uma duplicata tratada por estudos da arte em uma distribuição interminável de falta de sentido, non sense. Interminável eu diria, pois o final do filme me parece sem fim, se liga diretamente com o início, e quando se procura sentido firme desta ligação, não o encontra. Se perdeu pelo caminho dos fatores das imagens. Desperta em nós um humor perturbado pela operação impactante com a memória que nos faz pensar: isso não faz sentido algum! E todo o sentido, se en-
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Figura. 03 Cena da animação Muzorama
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Figura. 04 Abertura da animação Muzorama. Tomada de câmera em ângulo elevado.
contra nesta falta de sentido. É a representatividade de uma sociedade. Onde está a nossa produção de subjetividade diante das entrelinhas de nossas relações humanas? Talvez, não tão diferenciada.
Metalinguagem e linguagem audiovisual em um desdobramento de tempo e espaço “O termo metalinguagem é muito amplo, pois se refere a toda leitura relacional, equação, referências recíprocas de um sistema de signos, de linguagem...” (MONTEIRO, 2007, p. 8). A modalidade linguística da animação de Muzo, diante das comparativas da metalinguagem, se respalda em um caractere luminoso da animação. Tomemos o casamento entre a animação e a metalinguagem dela própria. “Se uma mensagem organiza-se de modo a provocar reconhecimento de conceitos e formas já adquiridos pelo receptor porque fazem parte do senso comum da cultura, o público se amplia, na medida em que
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este conhecido repele o novo e trás a tona o velho”(CHALUB, 1988, p. 15). A animação atualmente tem esse aspecto do novo, que está em processo de ser velho, então, já ser aceito como uma linguagem de expressão e comunicação culturalmente comum em nosso meio. O filme se utiliza vivamente deste recurso em uma edição dinâmica diretamente relacionada ao áudio, e com uma astúcia de cores muito marcante. A animação em 3D tem em seu meio de atuação a síntese de dar vida a objetos e elementos estáticos. Essa questão é muito bem explorada em Muzorama, uma vez que não só os personagens que representam os seres humanos ganham vida, mas há uma vivacidade, uma alma oculta também em vários objetos. Como por exemplo, nos prédios que se erguem e voltam á superfície solar como meio de circulação do trânsito. O caos da obra se dá além de todo o estranhamento já citado anteriormente. Nessa questão a animação pode permitir ser tão bem explorada pelo seu criador. Esse gênero se desencadeia na produção de metalinguagem das cenas, uma vez que o aspecto revigorante despertado na criação animada acaba por demonstrar e falar através da própria imagem sobre a construção de repertório dela mesma. È a linguagem da animação falando sobre si própria. ARTIGO
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Figura. 05 Cena da animação Muzorama
Tempo, espaço e construção subjetiva “Vive o ser humano preso, bloqueado pelas três dimensões cartesianas, em que os valores de espaço e de tempo são dominantes...” (AZEVEDO, p. 27) Suspeita o homem por acaso saltar fora dessas dimensões de espaço e tempo? Há para nós, uma possibilidade que nem percebemos cotidianamente de movimento e reconstrução das coisas que nos cercam. Ela está alojada na presença do tempo e de formações de situações e vivências dentro de nosso pensamento. É um tempo mental, atemporal, que está fora do aspecto de parâmetros do tempo casual, das vinte e quatro horas que temos de experiências e de instituição como horas correspondentes a um dia. Paralela a elas, temos mais um sequencial de tempos redimensionados, vivências, interpretações e criações dentro de nossos sentimentos e reelaboração mental. O que constitui uma dialética que caminha também conosco e nos implica ressonâncias de convivências diferentes das que temos lá fora, no mundo exterior à nossa realidade psíquica e construção subjetiva.
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E quer melhor maneira de se perder na realidade do tempo do que em Muzorama? Primeiramente me perdi no tempo de conexão da minha própria compreensão do que a imagem que eu via podia me dizer. E posteriormente pela própria análise que nos é atroz e ora nos desenfreia pela percepção da questão de vários tempos tratados de maneira muito contestante no roteiro do filme. O barulho pesado do relógio, a cena do início que tem uma junção com a cena do fim, quase como um filme do Quentin Tarantino, fazem com que a ideia do nó espaço e tempo seja sacudido e desamarrado em nossa mente. Não se sabe ao certo o início e o fim da cidade Muzorama de Muzo. Talvez, ela mesma não saiba disso em si, nem seu criador pois, não ha nem começo nem final. Ha somente sua existência em um espaço de tempos entrecruzados, mental. De fato, a animação foi dirigida por várias cabeças: Laurent Monneron, Elsa Brehin, Raphaël Calamote, Mauro Carraro, Maxime Cazaux, Emilien Davaux e Axel Tillement, em apenas seis semanas. O Muzorama é um filme de animação curta experimental: através do universo de uma autoria, os estudantes fizeram um universo animado. Supõe-se que o estranho universo de Muzo, seja do ilustrador surrealista francês Jean-Philippe Masson. APUBLI[CADA] ∙ vol 1 ∙ nº1 ∙ ano 2013
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Figura. 06 Cena da animação Muzorama
Muzorama está construída no lampejo do sonho, da construção imagética e simbólica de signos que se interagiram e usaram a liberdade da criação a seu favor. Romperam então um conceito de realidade que se firmava em um espaço comum e inesgotável de situações esperadas. Muzorama se anexou a um tempo tão passageiro como o ulti-
mo sonho antes do despertar. A desconexão factual dos acontecimentos em meio a desconstrução de um mundo com sentido e por nós identificado como tal, faz com que esses acontecimentos vão e voltem a um mesmo ponto. Um eterno retorno? Uma caminhada na mão e contra essa mão, que ao certo, eu caminharia até o fim do dia.
Referências ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna: Tradução Denise Bottmann e Frederico Carotti. 2ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 1992. AZEVEDO, José Lacerda de. Espírito/Matéria: novos horizontes para a Medicina. Porto Alegre: VEC, 2002. CHALUB, Samira. A meta-linguagem. São Paulo: Àtica, 1988. MONTEIRO, Marco Antônio. A Metalinguagem no cinema, Um estudo do discurso metalingüístico presente na obra de Woody Allen. Belo Horizonte, 2007. SONTAG, Susan. Sobre Fotografia: Tradução Rubens Figueiredo. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Filme de animação: Muzorama. 3’.13’’.Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=V-0O2kEjl9U>
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Mirna Marinho1 Mariana Magri Rodrigues2
Proteja-me do que eu quero: uma abordagem triangular
Resumo
Introdução
Este trabalho propõe uma reflexão narrativa visual com referenciais na abordagem triangular fundamentada metodologicamente por Ana Mae Barbosa. A obra analisada nesta narrativa de pesquisa será uma proposta contemporânea da artista plástica Jenny Holzer. As tramas sensitivas, perceptivas e dialógicas serão tragas a partir de uma contextualização interpessoal e de relações de vida com a imagem. Uma questão também cultural. Onde se construirá uma formação de sentido pessoal e que ao mesmo tempo tem ligações sócio-culturais.
Palavras-chave Abordagem triangular, arte contemporânea, arte nas ruas, tempo, percurso.
1 Cursando o Oitavo período em Artes Visuais
Licenciatura na Universidade Federal de Goiás em Goiânia. E-mail: mirnamarinho123@hotmail.com
2 Cursando o Sétimo período em Artes Visuais
Licenciatura na Universidade Federal de Goiás em Goiânia. Formada em Fotografia Básica e Profissionalizante na Canopus Escola de Fotografia em Goiânia. E-mail: marianinha.magri@gmail.com
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“A bagagem mais leve, é a velha lição que não se aprende, mas que nos acompanha em toda a parte quando a compreendemos”... (MACÉ,Gérard, Ano.2004, p.8) A obra de arte proposta como material de análise corresponde a artista plástica americana Jenny Holzer. Atuante e representante de uma contextualização ampla e que valoriza a divulgação da arte contemporânea, Jenny possui uma característica muito marcante de produção nas ruas das cidades. Uma arte em movimento, uma arte que gera movimentos e que se torna viva no movimentar das pessoas que passam por ela desper-cebidas em seus cotidianos. E acabam por conviverem com a obra, muitas vezes sem nem perceberem. Seus trabalhos têm um cunho muito dialético com a propaganda e com a tipografia que são grandes representantes do discurso e do diálogo humano. São atuantes nos espaços públicos e em produções da arte conceitual. Jenny, nestes projetos visuais trabalha com mensagens que despertam incômodos e reflexões diante de contextualizações comuns da divulgação midiática e da propaganda, como por exemplo, banners e cartazes. Uma arte deste cunho é vívida em seu tempo. Uma vez que vivenciamos uma situação pública e social direcionada á produções de consumo e a desejos de produtos, a propaganda e os destaques visuais coletivos nas
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Figura. 01 PROTEJA-ME DO QUE EU QUERO 1999 Detalhe, instalação Jenny Holzer
grandes cidades fazem parte da corriqueira vida moderna. Tempos modernos de Chapplin, são mais modernos ainda pela mídia. E uma manifestação artística que dialogue com os percursos naturais do domínio imagético e do caminho superficial da produção de desejos humanos está totalmente inserida na realidade por nós vivida. O magnetismo de estímulo da reflexão, diante de uma mensagem traga por ambientes e situações que já são padrões, pode ser um despertar para produção de sentido pessoal e análise de escolhas. Com seu foco principal no uso das palavras e ideias em quase todas as obras, defla-graremos a perspectiva analítica visual da obra acima.
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“Arte-Educação é epistemologia da Arte.” (RIZZI, Maria Chistina de Suza, Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte, cap.5) Diante da necessidade de se pesquisar a arte e principalmente o ensino das artes em uma abordagem mais abrangente e que conduza valor a diversidade e a dialética, utilizamos da abordagem triangular proposta por Ana Mae Barbosa. Os paradigmas desses estudos da arte acabam por se traduzirem em referências de um pensamento reflexivo e que permitam espaço para pesquisa das relações ambientais, filosóficas e históricoculturais formativas do indivíduo. A contextualização e integração com outros conteúdos e com as experiências de vida se tornam performances de análises aceitas e
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valorizadas como pesquisa e metodologia. A arte-educação passa a fazer parte de processos analíticos e de ciências direcionadas a campos diversos de inter-relações no que tange o indivíduo e sua capacidade de produção e construção de conhecimento. Este procedimento acaba pela cognição de como nos relacionamos com as obras de arte, tanto de nosso tempo como do tempo que “não mais é nosso”. E esse processo de leitura e de interpretação será feito na obra pela abrangência de um critério de desenvolvimento sequencial de determinadas observâncias. Lembrando sempre que o corpo ideológico e a natureza de produção de conhecimento de cada indivíduo são diferentes por si só. E que uma análise visual de obra de arte, não está fixa no domínio imagético do observador, nem na estética em sim, (pós-modernismo). Ela percorre caminhos do inconsciente, da memória e da trajetória de vida. Logo, nosso olhar da maneira como fora operado á esta combinação de valores que levantará uma interpretação do conteúdo, não é estágio final de verdade. É por si, uma construção formativa de ideias e de relacionamento que sistematizou um conteúdo diante do que foi visto. Ele é real, e no tempo que outros olhares direcionam outras ideias fundamentadas e pesquisadas, várias realidades se produzem, se interagem e se disciplinam. E a Arte passa a fazer mais sentido no mundo dos homens que fundamentam seu movimento “do ver” na pesquisação e na reflexão. “...o objeto de interpretação é a obra e não o artista...” (MAE, Ana)
Ler a obra de Arte, fazer Arte e Contextualizar A partir da leitura visual da obra proposta acima, vemos uma construção de elementos sobrepostos na tradicional trazeira de um caminhão. As cores se manifestam em um fundo predominantemente preto do centro para baixo e predominantemente vermelho do centro para cima. Cores muito fortes. O vermelho se contrasta com o branco em forma de linhas e da escrita. Situação que chama muito atenção pela intensidade. Há
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abaixo uma faixa amarela com preto o que representa claramente uma sinalização de trânsito. Ênfase que se dá a cores presentes nos sinais e recursos visuais do trânsito. Colocam a situação proposta ligada a uma contextualização de percurso e caminho. De estar se percorrendo uma “estrada” e passando por lugares. Palavras que constroem a imagem como, “mantenha, rali e distância”, nos colocam em uma situação real e muito comum com as visualidades tradicionais dos caminhões que trafegam pelo nosso país. E abaixo de toda essa contextualização visual percebemos a intervenção mais prioritária a temática pretendida pela artista.
“Proteja-me do que eu quero” A obra passa a representar-se como um texto em uma imagem, é uma frase em um pára-choque de um caminhão de carga que quando lemos a visualidade é composta por um todo formando uma imagem. Ela se reverbera em mais uma transitoriedade de caminhos uma vez que há o caminho de percurso: São Paulo/Rio de Janeiro. O que nos daria a interpretação de que sua mensagem não se fundamentou em uma unidade fixa. Ela influiu por uma estrada direcionada entre duas cidades brasileiras, tendo a propriedade de expansão entre espaços urbanos com códigos de culturas locais. Logo, interpretações locais e pessoais. A arte nas ruas isola uma “alma” cognitiva de abrangência de visualidades vizinhas da imagem. Quando qualquer trabalho é levado ao meio aberto das cidades, ele também é entregue á uma competitividade de disputas do olhar, o que faz com que muitas vezes, a obra nem seja percebida como obra e sim como parte daquele contexto cotidiano. Ai se fundamenta a grande importância da “arte fazer parte”, se comunicar no dia a dia, ter responsabilidade de interação com questões que nos são habituais e corriqueiras. As visualidades são muitas e nossa seleção do olhar e do que se ver, se torna confusa na responsabilidade excessiva do ver. Mas, e qual a potencialidade de estar fiel em uma viajem ao pedido de “proteção diante do que eu quero”?
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É bem comum vermos no pára-choque e até mesmo em outros lugares dos caminhões frases de pedido de proteção, frases de uma cultura cristã e também, linguagens que representem algo de importante para aquele viajante. Essa cultura se forma uma vez que esses trabalhadores passam muito tempo longe de suas casas, e que existem perigos em se trabalhar percorrendo estradas. Pedir proteção é uma ação cultural, dentro de um fundamento social de fé e princípios de tradições familiares. A frase logo é colocada dialogando meta-foricamente com essa ação que já existe no meio ao qual a arte está sendo divulgada. O que faz com que a manifestação artística seja quase despercebida havendo este caminhão percorrendo as estradas São Paulo/Rio. Mas se caso fosse vista, a mensagem se desloca um pouco da cultura tradicional do pedido de proteção, por exemplo, percorrendo o caminho de uma indagação que causa certo desconforto, pela não habitualidade. Do que realmente devemos ser protegidos? De nós mesmos? Ou dos outros? Nossas ações impensadas e nossos dese-jos nos oferecem um caminho de en-tranhas entre nosso emocional e nossa interpretação das coisas. Caminhos que não neces-
sariamente são favoráveis para nós ou para os outros que estão ao nosso redor. Se cada um tivesse sua educação consciente nas escolhas de suas ações e na observância de seus desejos, talvez a fé do motorista de caminhão, não precisasse ser tão dependente do medo da estrada. Indica uma reflexão da própria artista perante o medo do que queremos. Da inquietação de vontade pessoais que tomam nossas decisões e direcionam processos de vivências em nossas vidas. A mensagem é um incômodo á um pensamento um pouco mais reflexivo perante nossos próprios pensamentos. Proteja-me do que eu quero, direciona-nos a pensar a respeito de nossas escolhas pessoais e ao direcionamento que elas podem vir a tomar. A forma de divulgação da obra é magnífica e o meio de teorização também. A arte conceitual e contemporânea nos dá essa “liberdade” de diálogo com toda a con-textualização externa e de caminhar ao lado da diversidade de possibilidades visuais. Ela existe no meio, onde existe todo o resto das visualidades e das comunicações. Alguns percebem sem ver, outros, veem sem perceber.
Referências BARBOSA, Ana Mae. Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte. São Paulo, 2008. SONTAG, Susan. Sobre Fotografia: Tradução Rubens Figueiredo. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna: Tradução Denise Bottmann e Frederico Carotti. 2ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Site Oficial de Jenny Holzer. Disponível em <http://www.jennyholzer.com/> Acesso em 12/02/2013. <http://en.wikipedia.org/wiki/Jenny_Holzer> Acesso em 12/02/2013. <http://www.magnetoscopio.com.br/jenny_holzer.htm> Acesso em 12/02/2013.
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APUBLI[CADA] ∙ vol 1 ∙ nº1 ∙ ano 2013
ARTIGO
ISSN 2317-580X
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