Revista Palavra Projeto - Julho 2017

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Nยบ 04 - Julho de 2017

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Editorial

Arte, Gênero e Matemática

FICHA TÉCNICA Coordenação editorial e Editorial: Beth Baldi Capa, contra-capa e ilustrações: fotografias tiradas por professores, alunos, monitores e estagiárias e trabalhos dos alunos.

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É com muita alegria que publicamos mais uma edição da Revista Palavra Projeto, a revista virtual dos(as) professores(as) da Escola Projeto. Desta vez ela reúne textos elaborados pelos três grupos de trabalho que, em 2016, se formaram para estudar diferentes assuntos dentro do nosso programa de formação continuada, que prevê, como uma de suas modalidades, o estudo de um tema escolhido por ano, sempre relacionado à nossa prática, além de acompanhamento e apoio próximos e cotidianos ao trabalho de sala de aula, e de suporte a cursos e seminários, na escola ou fora dela. Os assuntos escolhidos pela equipe foram Arte, Gênero e Matemática e os grupos foram organizados por indicação das coordenadoras ou conforme interesses mais imediatos dos docentes. Depois de várias leituras e discussões em reuniões semanais de trabalho na escola, ao longo do ano passado, cada grupo foi convocado a escrever o que havia estudado, discutido e aprendido. Essa escrita foi realizada em conjunto, incluindo a textualização, a revisão e a ilustração, parte por email e parte em momentos presenciais de nossos seminários (no fim do ano de 2016 e no início de 2017). O resultado do trabalho foi socializado às demais pessoas da equipe, através de apresentação, por grupo, dos artigos produzidos, na primeira reunião de estudos deste ano, no mês de março. E agora esse material fica aqui disponibilizado para nossos leitores e leitoras, esperando que, através dele, conheçam um pouco mais a nossa equipe, suas reflexões e o trabalho realizado. Boa leitura! Direção da Projeto POA, junho de 2017.

Colaboradores: Professores(as) da Escola Projeto educação infantil e ensino fundamental/2017 Projeto gráfico: Turya Elisa Moog

Endereços: Unidade 1: Rua Cel Paulino Teixeira, 394 Fone: (51) 3331-7384 Unidade 2: Av. José Bonifácio, 581 Fone: (51) 3333-4154 unidade1@escolaprojeto.g12.br unidade2@escolaprojeto.g12.br www.escolaprojeto.g12.br


Caminhos da arte na escola

Grupo de Trabalho Andréia A. Oliveira de Souza Deborah Vier Fischer Jéssica Mittmann Loisy Cantú Lucia Guimarães Rathmann Marina Uchôa Barcelos Carlos Nicole Bruna Niche Vanessa Vidor Duarte

Figura 1: Vídeo produzido pela equipe do Grupo de Estudos de Arte. Acervo da escola.

A antiga e sempre atual pergunta O que é Arte? acompanhou o trabalho do Grupo de Estudos de Arte(1), realizado durante o ano de 2016 na Escola Projeto. Já nos primeiros encontros, ao nos questionarmos sobre o que é arte, percebemos que cada uma de nós, pedagogas, trazia concepções diversas e que elas estavam relacionadas, de maneira geral, a trajetórias, vivências e construções pessoais. A questão da dúvida e da incerteza povoou nossas conversas iniciais. Então, diante de uma temática tão ampla e aberta que faz referência, não só aos modos de produção de diferentes artistas, técnicas, linguagens e períodos da História da Arte, mas também ao nosso olhar e nossa prática na escola, nasceram as primeiras discussões. E, entendendo que a pergunta inicial, O que é arte?, abriria para muitas questões, tornando impossível chegarmos a uma resposta única, resolvemos investir na possibilidade de pensar em caminhos. Caminhos de perguntas, de dúvidas e de olhar para o trabalho que realizamos buscando outros modos para que ele aconteça. Caminhos que nos levaram a desconstruir algumas ideias, por vezes, muito rígidas e arraigadas em relação ao trabalho com arte na escola. Ideias como o maior investimento no resultado da produção artística e na sua antecipação, nem sempre levando em conta o processo de cada pessoa e seu protagonismo. Ideias como a noção de belo como o que agrada e acomoda, reforçada por uma determinada maneira de pensar a arte, sem levar em conta que ela muda a cada

Figuras 2 e 3: Materiais utilizados no estudo e momento de produção do grupo. Acervo da escola.

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momento histórico. Sim, porque mais do que estudar linhas de tempo nas aulas de Artes Visuais na escola, por exemplo, vimos que é importante olhar para a História da Arte pensando em narrativas que se modificam de acordo com as concepções de cada época, que contam sobre os modos de pensar de cada momento e que não são melhores nem piores, são apenas diferentes. Funcionam como camadas que vão se sobrepondo e que não desconsideram as anteriores, tanto que retornam de tempos em tempos, mas sempre de outras maneiras, a partir de outros olhares. De acordo com Danto (2010), professor e filósofo americano, ao anunciar o “fim da arte” (em companhia de outros autores), diz que não é mais possível pensar a arte da mesma maneira que fazíamos em outros tempos. O autor nos provoca em relação a essa ideia e sugere o fim de um modo linear de narrar a arte, afirmando que é de outra narrativa que se fala no momento atual, pois “a arte contemporânea não mais se permite ser representada por narrativas mestras de modo algum” (DANTO, 2010, p. XVI). Figura 4: Pierre-Auguste Renoir, Rosa e azul - As meninas (Cahen d’Anvers), 1881, óleo sobre tela, acervo do MASP.

Observamos que a arte por si só, pelo modo como se apresenta, nos dá pistas sobre o momento histórico e as concepções de cada época, o que colabora para ampliarmos nossos conhecimentos e nosso olhar em relação às variadas temáticas e linguagens. Vimos também que é totalmente possível que esses diferentes períodos históricos possam ser olhados conjuntamente, sem serem apresentados em forma de linha de tempo, e um exemplo disso foi a exposição Histórias da Infância, ocorrida no MASP (Museu de Arte de São Paulo), de 7 de abril a 31 de julho de 2016, em que diferentes representações da infância estiveram lado a lado, provocando indagações e movimentos de pensamento. Qual(is) a(s) noção(ões) de infância expressa(s) em cada imagem? A qual período histórico cada uma delas pertence? É possível termos essas informações apenas através de apreciação? O que essas imagens nos dizem? O que produzem em nós? No site do museu encontramos a seguinte informação sobre a exposição, nas palavras dos(as) curadores(as) Adriano Pedrosa, Fernando Oliva e Lilia Schwarcz:

Figura 5: Bárbara Wagner, Sem título (da série Brasília Teimosa), 2005, jato de tinta, Coleção MASP (http://www.masp. art.br/masp2010/exposicoes_integra. php?id=261&periodo_menu).

Histórias da infância reúne múltiplas e diversas representações da infância de diferentes períodos, territórios e escolas, da arte africana e asiática à brasileira, cusquenha e europeia, incluindo arte sacra, barroca, acadêmica, moderna, contemporânea, e a chamada arte popular, bem como desenhos feitos por crianças” (http://www.masp.art.br/masp2010/exposicoes_integra. php?id=261&periodo_menu). Partindo da proposta da exposição sobre infância, poderíamos ampliar

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ideias e pensar, por exemplo, em outras tantas temáticas a serem olhadas pelo viés da arte: representações do feminino, relações com a natureza, representações da escola e de salas de aula, entre outras. Esses diversos olhares para a arte têm sido objeto de interesse, especialmente, através das provocações da arte contemporânea, que busca apostar na perspectiva da percepção mais do que da interpretação, descrição e análise de resultados. Esse modo de pensar, tendo como base o cotidiano, aproxima a produção do(a) artista ao público, borrando fronteiras, muitas vezes, entre quem produz e quem aprecia, pois traz como mote de trabalho a vida em suas diferentes formas de manifestação, temática que envolve a todas as pessoas.

Figura 6: Alunos(as) desenhando no chão da sala de aula, 2016. Acervo da escola.

O belo na arte, algumas considerações Em determinado momento do estudo nos deparamos com a ideia de belo e de estética, o que nos levou a pensar mais profundamente

na nossa relação com a arte a partir dessa perspectiva. Como suporte a essa discussão, realizamos um breve retorno no tempo, através da exploração de partes do livro A história da Beleza, de Umberto Eco, lendo individualmente e pensando em questões que poderiam ser trazidas para a conversa no grupo. A trajetória proposta pelo autor nos levou a perceber a íntima relação entre o modo como a obra foi retratada e o tempo no qual isso aconteceu, o que reforça a ideia de que a arte se relaciona intimamente com tempos e contextos e a noção de belo também, na medida em que o ideal de belo vai sendo olhado e percebido de diferentes maneiras. O autor diz que seu livro “parte do princípio de que a Beleza jamais foi algo de absoluto e imutável, mas assumiu faces diversas segundo o período histórico e o país: e isso não apenas no que diz respeito à beleza física (do homem, da mulher, da paisagem), mas também no que se refere à beleza de Deus ou dos santos, ou das ideias” (ECO, 2014, p. 14). Analisamos conjuntamente a imagem da Vênus de Willendorf, primeira representação do feminino a que se tem registro, e a discutimos na perspectiva do que traz Umberto Eco. A partir daí, refletimos sobre as representações do feminino hoje, que nos dizem dos modos como nos relacionamos com essa ideia. Muito a pensar...

Com tudo isso em mente, nossas discussões caminharam no sentido de compreendermos o cuidado que precisamos ter ao abordar a noção de “belo” na arte, pois depende de qual narrativa sobre arte se está falando: arte como pura contemplação, arte como desacomodação de verdades, arte como arte, arte como vida, enfim... Chegamos à

Figura 7: Vênus de Willendorf 30.000 a.C.

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conclusão que essas reflexões interferem diretamente no modo de trabalhar a arte na escola e a forma de encaminhar as propostas junto às crianças, bem como a maneira de construir o processo criativo junto a elas. Voltando à questão O que é arte? comentamos que quando essa pergunta é realizada junto aos nossos(as) alunos(as), é comum termos como resposta, independente da idade das crianças, a palavra “bonito(a)”. Discutimos sobre o quanto é forte em nossa cultura essa referência e que cabe à escola, como espaço de discussão e de questionamento, refletir sobre isso, através de ações como devolver a questão à turma: “precisa ser bonito para ser arte?”, “o que é algo bonito para mim, será que é o mesmo para você?”. Vimos que analisar obras de arte que “desmanchem” ou problematizem, de alguma forma, a ideia de belo e de estética como aquilo que nos agrada, que acomoda o nosso olhar e que é igual para todos(as), pode ser uma maneira de ampliamos e diversificarmos pensamentos, e fazermos com que as crianças percebam, ao fazerem suas escolhas, que o que agrada a uma pode não agradar a outra e que é assim mesmo, pois não existe um modo único de pensar e agir. E ainda, que olhar a arte sob essa perspectiva, libera o pensamento para desacomodar algumas certezas e convicções. Temos na arte contemporânea, em especial, importantes referências em relação a isso. e de nós, docentes, conhecermos diversos olhares e percepções de artistas que trabalham com diferentes linguagens e temáticas, a fim de ampliar repertório, aprendendo juntos(as). Entendemos que oportunizar momentos, na escola, de experimentação e criação, a partir de ideias próprias, sem o olhar “vigilante” do outro, que controla e diz o que e como fazer, introduz um modo de pensar a arte, como um processo individual e, portanto, diferente para cada um(a). Falamos sobre o quanto temos que estar atentos(as) à nossa postura, revendo alguns conceitos que nos foram ensinados, e que o próprio trabalho docente nos impõe, deslocando uma visão tradicional e simplista de que um(a)“apenas”ensina e os(as) demais,“somente” aprendem. Discutimos sobre a importância das

crianças

Experiências que colaboram para (re)pensar os caminhos da arte na escola Figura 8: Acompanhamento do estudo da obra de Zoravia Bettiol - 3º trimestre/2016. Acervo da escola (vídeo).

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Tivemos, no ano de 2016, a possibilidade de conhecer e conviver de forma próxima com a artista Zoravia Bettiol(2), que teve a obra estudada


pela escola, dentro de um projeto que acontece a cada ano, no 3º trimestre, chamado Estudo da obra de um(a) artista. Esse estudo proporcionou, de maneira especial, uma reflexão ampliada sobre a nossa ideia de arte, na medida em que a artista trabalha com muitas linguagens e temáticas variadas, abordando abundantemente a relação arte e vida. Questões ambientais, sociais e políticas, além da vivência com a ideia de infância e ludicidade acompanharam o trabalho da escola e mobilizaram a todos(as), adultos e crianças, na busca por modos de pensar e viver a arte com maior abertura e, consequentemente, menos controle. A partir de nossos estudos, conversas, reflexões e também de nossa experiência muito próxima com Zoravia, como proposta deste grupo de estudos, pensamos em ampliar um pouco mais os caminhos para conceber o currículo de Artes Visuais na Projeto, até então, organizado da seguinte maneira e construído a partir de assessoria com a artista visual Lucia Koch, durante os anos de 2004 a 2007: - Educação Infantil: oficinas sistemáticas envolvendo a experimentação de diferentes técnicas e linguagens das Artes Visuais (1º semestre e parte do 2º semestre); estudo da obra de um(a) artista (3º trimestre – projeto geral da escola); - Ensino Fundamental: estudo de alguma linguagem das Artes Visuais, a cada trimestre, entre pintura, desenho, tridimensional, fotografia, recorte e colagem (1º e 2º trimestres); estudo da obra de um(a) artista (3º trimestre – projeto geral da escola).

repertório de artistas, linguagens e concepções de arte, tendo em Como proposição, então, buscando ampliar o

vista a ideia de diferentes narrativas a cada momento, o grupo traz como sugestão para o currículo/2017, o desafio de experimentarmos, como escola, em algum momento do ano, a vivência de estudos que abordem uma determinada temática, contemplando artistas e linguagens variadas. Desse modo, o currículo passaria a contar com os seguintes projetos, distribuídos ao longo do ano letivo, a serem pensados e elaborados pelos(as) professores(as), coordenação e contando sempre com a participação ativa dos(as) alunos(as) da Educação Infantil e do Ensino Fundamental: - Educação Infantil: oficinas sistemáticas envolvendo a experimentação de diferentes técnicas e linguagens das Artes Visuais (parte do 1º semestre e parte do 2º semestre); 2ª metade do 1º semestre, projeto envolvendo uma determinada

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temática, considerando linguagens, períodos históricos e artistas variados(as); estudo da obra de um(a) artista (3º trimestre – projeto geral da escola); - Ensino Fundamental: estudos e oficinas envolvendo a escolha de uma linguagem das Artes Visuais, contemplando suas diversas formas de manifestação e diferentes artistas, podendo ou não ter uma temática determinada; estudo envolvendo uma determinada temática, considerando linguagens, períodos históricos e artistas variados(as); estudo da obra de um(a) artista. Fica o desejo de um currículo que se mostre expandido, que amplie possibilidades de olhar, viver e sentir a arte, a fim de proporcionar aos(às) alunos(as) e a nós, professores e professoras, experiências cada vez mais desafiadoras, ricas e potentes. Isso porque, de acordo com Dias (2006, p. 202), “estar receptivo à arte é reviver a experiência do criar” e estar na escola é, entre outras coisas, viver a abertura à arte e à possibilidade de criação.

Notas:

O Grupo de Estudos de Arte, formado por professoras e coordenadora da escola, esteve reunido em sete encontros durante o ano de 2016. Essa modalidade de estudo faz parte de uma proposta da Escola Projeto, que prevê momentos de formação à sua equipe, neste caso, através de grupos menores, que se reúnem concomitantemente, para estudar sobre temáticas variadas. Tivemos em 2016, três grupos de estudos: Matemática, Gênero e Arte. O resultado das discussões compõe esse registro, realizado em forma de um artigo, que busca unir palavra e imagem. (2) Zoravia Bettiol é artista visual de muitas linguagens, com 60 anos de carreira artística. Nasceu em Porto Alegre em 1935. Foi casada com o também artista Vasco Prado. Possui uma vasta produção em termos de gravura, tapeçarias, desenhos, pinturas, joias, ornatos, murais, objetos, performances e instalações. (1)

Bibliografia consultada:

DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus, 2010. DIAS, Rosa. Nietzsche e a “fisiologia da arte”. In: Nietzsche e os gregos: arte, memória e educação – assim falou Nietzsche V. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 195-204. ECO, Umberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2014. MÖNDIGER, Carlos Alberto (org.). Práticas pedagógicas em ARTES: espaço, tempo e corporeidade. Porto Alegre: Edelbra, 2013. Coleção Entre Nós.

Sites consultados:

www.masp.art.br www.infoescola.com/arqueologia/venus-de-willendorf. www.zoraviabettiol.com.br.

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Escola e Gênero: Quais as intersecções possíveis?

Grupo de Trabalho Ana Carolina Rysdyk da Silva Ana Júlia Poersch Claudia Spieker Azevedo Ianes Gil Coelho Larissa Richter Ferreira Márcia Rolim da Silva Márcio Espírito Santo Neves Maria da Graça Coimbra Machado Rafael Bricoli de Lima Tatiana Canto de Carvalho Virgínia Haensel de O. Veríssimo

O que significa fazer as coisas como meninas

Introdução

O cotidiano de uma escola oferece inúmeros assuntos sobre os quais, enquanto educadores e educadoras, precisamos estudar, refletir, compreender e repensar. Dentre tantas possibilidades, por que a escolha por um grupo de estudos sobre gênero? Os motivos são claros, embora não sejam simples. Vivemos, diariamente, situações que são o reflexo da sociedade. A escola, enquanto espaço formador e de socialização, propicia vivências e inúmeras aprendizagens que não se restringem apenas a conteúdos, mas que revelam diferentes opiniões, experiências e promovem discussões, como, por exemplo, nas duas situações a seguir. Cena 1 Aluno: - Profe, o cantor tá usando calça de mulher, né? Profº: - Por quê? Aluno: - Vamos combinar, sor, florzinha é coisa de mulher! Cena 2 Menina A: - Profe, posso fazer uma capa do Batman? Menina B: - Mas tu é menina! Como tu vai ser o Batman? Menina A: - Eu posso ser o que eu quiser! A partir das cenas apresentadas – que são reais e vividas nas salas de aula da Escola Projeto – nós da equipe docente podemos nos posicionar de diferen-

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tes maneiras: aceitar a visão hegemônica, naturalizando-a, ouvir as opiniões discordantes das alunas e dos alunos envolvidos ou intervir problematizando a situação, a fim de aguçar a reflexão sobre o que ocorre no ambiente escolar e fora dele. Em nossa sociedade contemporânea, em função de diferentes acontecimentos – tais como a luta pela igualdade de gênero e seus desdobramentos, a exposição e visibilidade das parcerias homoafetivas, entre outros – tornouse frequente, em diferentes rodas, inclusive nas salas de aula, nas conversas entre a equipe docente, nas reuniões pedagógicas e com as famílias, discutir situações como as que foram relatadas. Percebendo a importância e a necessidade de aprofundar as reflexões dos professores e professoras sobre o tema, a escola oportunizou para o grupo docente a possibilidade de estudar e analisar as implicações desta questão no fazer pedagógico. O objetivo deste trabalho foi abrir mais um espaço para discussão, buscando compreender como articulamos e regulamos as formas de viver os gêneros e as sexualidades no dia a dia. É necessário, em primeiro lugar, refinar a nossa escuta e olhar com mais sensibilidade para as sutilezas das interações que ocorrem no âmbito escolar para buscar estratégias de intervenção nestas situações. Cabe destacar que as crianças começam a construir a noção de si mesmas, do outro e do mundo, com base em referências culturais e por influência da visão de mundo que recebem de seu entorno. Sendo assim, é importante instigar um processo de reflexão que desafie velhas concepções e, a partir de uma desconstrução gradativa, permita olhar para tais questões de maneira flexível e dinâmica.

Conceito

A sociedade impõe determinados comportamentos e preferências, contribuindo para a normatização dos corpos. Desde a educação infantil, há a imposição de determinadas regras e condutas, pautadas por uma oposição binária, o que se faz ver através dos brinquedos diferenciados para meninas e meninos, das atividades permitidas e incentivadas para cada um dos sexos ou ainda, dos materiais escolares, roupas, calçados, entretenimento, entre outros. Figura 1: Organização dos brinquedos para meninas em uma loja Figura 2: Material escolar para meninos

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Louro (2014) aponta para o fato de que a sociedade parte das diferenças sexuais e corporais para criar e idealizar certas expectativas ou representações de gênero. A autora destaca que o conceito de gênero surgiu justamente para contrapor-se a essa ideia essencialista – muito utilizada até hoje para explicar as desigualdades entre os sexos – pela qual se justifica as diferenças de comportamento entre os homens e mulheres através do viés da biologia.


No entanto, pensamos que o modo de ser das pessoas e seus desejos não podem simplesmente ser definidos a partir deste ponto de vista, pois, ainda de acordo com a autora, as identidades de gênero são construídas pela cultura e influenciadas pelo tempo histórico. Assim, as identidades devem ser entendidas como plurais e maleáveis, e não fixas. É importante pontuar que não estamos anulando todas as diferenças; estamos apenas enfatizando que as nuances entre as pessoas não sejam tomadas para justificar hierarquias e injustiças. Igualdade implica respeito, independente do sexo, da raça, condição econômica ou qualquer outro aspecto ou característica. Lins (2016) ressalta que o antônimo da palavra “diferença” é “semelhança”, e de “igualdade” é “desigualdade”. Então, a autora pergunta: “Por que não criarmos uma sociedade em que diferença e igualdade caminhem juntas?” (p. 24, grifo nosso). Felipe (2016) toma emprestado o conceito de scripts, utilizado no teatro, no cinema e na televisão, elaborados por autor/autora/produtor/produtora com uma série de instruções escritas que têm por objetivo nortear a atuação de atores/atrizes/apresentadores/as na construção e no bom andamento da interpretação de suas personagens ou programas. Segundo ela, tais scripts sempre podem sofrer inúmeras negociações, recusas ou adesões, sejam elas totais ou parciais. Assim, também os scripts de gênero tanto quanto os scripts de sexualidade vão sendo construídos, tramados, aceitos, alterados ou rompidos desde a mais tenra infância.

Figura 3: Roupas, brinquedos e materiais com as cores tradicionais para cada sexo

Figura 4: Meninos brincando de carrinho Figura 5: Meninas brincando de casinha

Desde pequenas, é exigido das crianças que ocupem um espaço pré-estabelecido, controlando seus corpos e comportando-se de acordo com o que é definido como sendo de meninas ou de meninos. A sociedade prescreve que as meninas, por exemplo, sejam delicadas, meigas, dedicadas, cuidadosas com sua aparência. Já os meninos precisam ser ágeis, fortes, ativos e com iniciativa. As brincadeiras e as experiências que são disponibilizadas a um e a outro, o incentivo da sociedade para que desenvolvam certas habilidades, assim como o que é dito e esperado deles mostra o quanto a construção desses scripts de gênero se dá diariamente e de diversas formas. De acordo com Carvalho (2016), a orientação sexual (homo, hetero ou bissexual) e a identidade de gênero (se a criança se percebe como menina ou menino) não são determinadas pelos brinquedos utilizados e/ou brincadeiras realizadas; elas implicam processos psicológicos mais profundos. Ou seja, ao escolher brinquedos e/ou brincadeiras que, tradicionalmente, não coincidem com as escolhas esperadas para o seu sexo, as crianças estão tendo a oportunidade de compreender o mundo em que vivem de forma mais ampla.

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E na escola o que acontece? “Profe, né que meninos não choram?” “Eu não quero meninas no meu time. Elas são fracas.” “Tu vai pegar folha rosa? Mas rosa é de menina!” “Profe, ele me chamou de gay!” Sendo a escola o primeiro espaço social da criança, é nela que as interações, os questionamentos, as certezas e incertezas aparecem. É nesse ambiente que as crianças ouvem, expressam suas ideias e seus sentimentos, assim como refletem, constroem e descontroem diversos conceitos. Através do diálogo entre equipe docente, alunas e alunos, o conhecimento é construído, a partir de diferentes vozes de nossa sociedade, representadas aqui por um conjunto heterogêneo de famílias e pontos de vista. Muitas vezes, ainda é difícil para professores e professoras encaminharem algumas situações que acontecem em sala de aula, visto que a reflexão sobre gênero é recente no ambiente escolar. A abertura de um espaço para diálogo entre o grupo docente torna-se imprescindível para que possa atuar com maior segurança e tranquilidade com os alunos/alunas e suas famílias. Além disso, a equipe precisa estar atenta sobre como agir no cotidiano para evitar posturas que reforcem comportamentos esperados de meninas e meninos, já que gênero é uma construção social.

Figura 6: Menino brincando de boneca, 2016. Acervo da escola

Quando abrimos espaço para a discussão dentro da escola, aguçamos os sentidos para a busca de outras maneiras de agir pedagogicamente, de modo que as crianças possam vivenciar situações diversas desde cedo, ou seja, tenham contato com o mundo de forma plena, sem um patrulhamento excessivo sobre os seus comportamentos e as formas de brincar. Isso não quer dizer que seja preciso impor certas situações para que as crianças vivenciem determinados papéis, tampouco agir no momento em que alguma atitude preconceituosa acontece, julgando ou deixando-as em uma situação constrangedora perante a turma. Todavia, a escola pode e deve usar os acontecimentos como matéria-prima para as reflexões e os questionamentos em sala de aula. Na medida em que a equipe docente problematiza essa questão e cria diferentes oportunidades nas quais alunos e alunas reflitam sobre os diferentes scripts de gênero, ela propicia um incremento da capacidade crítica que subsidiará as crianças a questionar os padrões veiculados pela mídia e reforçados pelos adultos. A escola sofre influência da sociedade na qual está inserida, ao mesmo tempo em que a influencia, contribuindo para suas transformações. Deste modo, pode colaborar de forma efetiva para alterar o cenário de discriminação e preconceitos. A educação voltada para o respeito ao que é diferente deve ser uma tarefa de todos(as). A escola, que tem uma tradição homogeneizadora, precisa rever sua postura frente às situações discriminatórias. O silêncio diante delas é uma maneira de não reconhecer que existem preconceitos; por isso, torna-se imprescindível haver um estímulo aos professores e professoras para estarem alertas à valorização da diversidade em sala de aula, evitando a legitimação das desigualdades.

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Precisamos ter atenção a quem tem voz e a quem não tem, às imagens dos materiais didáticos apresentados, observando o que está representado e como é esta representação. O currículo escolar deve estar aberto ao novo, reconhecendo e absorvendo os diferentes valores culturais dos alunos e alunas – considerando e acolhendo as novas configurações familiares, por exemplo – como uma forma de reconhecer e respeitar o que emerge do confronto das diferenças. Respeitar o que é diferente a partir do outro como semelhante, é uma capacidade que necessita de oportunidades de sensibilização. “O sensível mobilizado pela experiência estética favorece a aproximação do outro, que não é tocado apenas pelo que conhecemos cognitivamente” (Guimarães, 2016, p. 41). Dentre as várias alternativas/estratégias, destacamos que as artes e a literatura são fundamentais para incentivar a sensibilidade, a capacidade criativa, o pensamento crítico, o debate. Mas esta já é uma questão que merece outro capítulo desta história. O mais importante é estar consciente de que as questões de gênero inevitavelmente surgirão na escola, em algum momento, nas relações entre as crianças e merecem ser tratadas com um olhar sensível e cuidadoso. Nesse sentido, o estudo realizado pelos professores e professoras, valendo-se de pesquisas recentes e desafiando seus próprios paradigmas, revela o quanto a formação da equipe docente mostra-se como um ponto de partida significativo.

Bibliografia consultada:

CARVALHO, Marília Pinto de. Promover mudanças para um mundo mais igualitário. Revista Pátio – Educação Infantil, 48, jul./set. POA, Artmed, 2016. FELIPE, Jane. Scripts de gênero na educação infantil. Revista Pátio – Educação Infantil, 48, jul./set. POA, Artmed, 2016. GUIMARÃES, Luma Riella. A formação ética na educação. Revista Pátio – Educação Infantil, 49, out./dez. POA, Artmed, 2016. LINS, Beatriz Accioly, MACHADO, Bernardo Fonseca & ESCOURA, Michele. Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola. São Paulo, Ed. Reviravolta, 2016. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis/RJ, Vozes, 2014.

Site consultado:

https://www.youtube.com/watch?v=mOdALoB7Q-0

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Grupo de Trabalho Ana Cristina Franz Rodrigues Andréa Paim Bruna Braga Silveira Caliana Pauline Zellmann Carla Binfaré Débora Pessatto Pereira Michele Hoeveler da Silva Nathalia Maffei dos Santos Raquel Silveira de Oliveira

De Alunas a Professoras: memórias da matemática

Como é a nossa relação com o conhecimento e com a aprendizagem em um lugar e outro? Será que conseguimos, hoje, em nossas práticas, nos colocar no lugar de quem aprende?

A sala de aula é um lugar bastante presente em nossas vidas. Os artefatos próprios do cenário escolar na época em que fomos alunas ainda se fazem presentes: quadro negro, giz, cadernos, lápis e estojo permanecem a postos. O que mudou no espaço-tempo é a posição que passamos a ocupar nesse lugar, isto é, de estudantes a educadoras. Como é a nossa relação com o conhecimento e com a aprendizagem em um lugar e outro? Será que conseguimos, hoje, em nossas práticas, nos colocar no lugar de quem aprende? Tais questões irão conduzir a nossa reflexão daqui por diante, pois este trabalho se debruçará no modo como aprendemos e como ensinamos - especialmente a matemática -, nas mudanças que se estabeleceram, ao longo do tempo, acerca das metodologias e dos recursos didáticos, entre outros aspectos que consideramos relevantes. Para tanto, vamos recorrer às nossas memórias, como alunas, bem como a outros elementos que fundamentaram as práticas de ensino, durante essa passagem no tempo.

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Da cartela da tabuada à sequência didática: um longo percurso Cena 1: 1994 – 2º série do ensino fundamental, em uma escola da rede estadual de Porto Alegre A professora passa o tema de casa: fazer uma cartela com a tabuada do 1 ao 10, seguindo o modelo. Ela logo explica como haveria de ser o quadro, que funcionava como uma tabela, cheia de linhas e colunas, tudo muito bem organizado. Salienta, também, quanto ao capricho do material, que serviria, a partir de então, como um instrumento de consulta, e reforça a importância da ajuda dos familiares para “tomarem a tabuada”, que deveria ser decorada. Sim, a tabuada deveria estar devidamente na ponta da língua até a segundafeira seguinte. A aprendizagem é algo que acaba por deixar marcas, seja pelo encantamento que ela produz, seja pela sua ausência. Nesse caso, infelizmente, fui marcada pela falta. Lembro como se fosse hoje, que tudo nessa tarefa me causava certo incômodo. Primeiramente, porque não conseguia traçar as linhas da forma desejada, deixando a cartolina amarela repleta de borrões. Depois, evidentemente, porque não consegui “dar conta” de decorar todos aqueles números e fiquei tão atrapalhada quanto frustrada com a atividade. Na segunda-feira, como o esperado, a professora tomou a lição até a tabuada do cinco, mas por alguma razão, deveríamos ter estudado até o dez. Na sequência, passamos a resolver problemas matemáticos de multiplicação, nos quais poderíamos utilizar nossa tabela como material de consulta, caso fosse necessário. Os problemas eram passados no quadro, ou em folhas mimeografadas, descritos em sequência e, de modo geral, deveriam ser solucionados individualmente. Na maior parte das vezes, não eram difíceis de resolver, ainda mais com a possibilidade de consulta. E, no final das contas, consegui decorar a tabuada, passei para a terceira série e, só depois de algum tempo, compreendi o que tudo aquilo significava. *********** Cena 2: 2016 – 2º ano do ensino fundamental, em uma escola da rede privada de Porto Alegre Em aula, professora propõe a resolução de um problema matemático. Cada grupo resolve e compartilha com os demais grupos a forma de resolução.

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Professora expõe na sala as diferentes estratégias. Outro dia, realiza-se, no pátio, o jogo Bola ao Cesto, em que cada bolinha depositada dentro da caixa vale três pontos. As crianças fazem o registro na folha e somam os pontos de cada equipe. Nas semanas seguintes, a professora propõe outro jogo:

JOGO DO GENERAL Material: cinco dados (1 a 6), tabela de registro, lápis e borracha Regras do jogo: • Os(as) alunos(as) estão organizados em equipes. • Um(a) jogador(a) da equipe lança os 5 dados, procurando formar o General, ou seja, todos os 5 dados com o mesmo valor. • O(a) jogador(a) poderá escolher por qual nº gostaria de começar, dependendo do que sair nos dados (isso dá mais agilidade ao jogo e também a criança terá mais operações para calcular); não é preciso seguir a ordem da tabela. • Em cada rodada, o(a) jogador(a) terá três chances para lançar os dados. Em cada chance separa aqueles dados que caíram com o valor que se deseja e lança-se novamente os dados que sobraram. • Após as três chances, calcula-se os pontos da rodada, juntando-se as quantidades iguais dos dados e desprezando aqueles que não indicaram a quantidade desejada. Quando conseguir formar um general, acrescentar ao total, mais 10 pontos pelo prêmio do General. Em outro momento, a professora propõe a resolução de alguns problemas, diferentes para cada grupo. As crianças resolvem primeiro individualmente, conferem no grupo e, depois, discutem com a turma. A professora fica circulando pela sala, entre os grupos, intervindo se alguém precisar de ajuda e observando as diferentes estratégias utilizadas. No decorrer do trimestre aparecem, ainda, outras atividades: • Jogo de Boliche (soma sucessiva dos valores estipulados pelos grupos); • Jogo Trimória da multiplicação (um jogo de memória em que o participante precisa encontrar três cartas correspondentes, por exemplo: 3 x 5; 5 + 5 + 5; 15); • Construção do álbum das tabuadas (com problemas matemáticos que permitem a sistematização das tabuadas, uma a uma, organizando em um pequeno livro para consulta e estudo). ***********

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Analisando as duas cenas, com propostas bastante distintas, percebemos alguns pontos importantes para a nossa discussão. Quando nós aprendemos as tabuadas (cena 1), a proposta era decorar. A “decoreba” era requisito básico para “saber a tabuada”, afinal um(a) bom(a) aluno(a) sabia a tabuada “de cor e salteado”. Não se refletia sobre o que realmente representavam aquelas listas de multiplicações intermináveis. Apenas aprendíamos que deveríamos decorá-las! De lá para cá, algumas coisas mudaram, felizmente, e vemos que: • o papel do(a) professor(a) se ampliou e hoje inclui também dar sentido aos conhecimentos ensinados, trazendo propostas que auxiliem nesse aspecto (cena 2); • o ensino tradicional (cena 1) pouco auxilia que o(a) aluno(a) estabeleça relações, experimente, viva a matemática, pois está pautado em decorar e não em aprender, mesmo que o aprendizado em algum momento adiante aconteça; raramente proporciona momentos de diálogos ou trocas entre os(as) alunos(as), tampouco situações em que se sintam valorizados em sua forma de pensar e possam exercitar a argumentação, explicando o seu entendimento do conteúdo estudado ou mostrando outras estratégias para solucionar os problemas; • as propostas atuais, construtivistas (cena 2), viabilizam, nesse caso, que: • a criança crie suas próprias estratégias para solucionar os problemas (heurísticos); • haja espaço para discutir, mostrar, argumentar sobre suas construções; • a aprendizagem aconteça de modo processual e progressivo, a partir de sequências didáticas especialmente pensadas para que as crianças elaborem o conhecimento de acordo com as suas capacidades a cada momento; • as crianças se familiarizem com diferentes ideias da multiplicação (adições sucessivas, análise combinatória e configuração retangular); • construam as tabuadas, aos poucos, compreendendo o processo; • através dos jogos, seja proporcionada maior percepção das propriedades da multiplicação, a partir de experimentos e situações que se criam com eles. A partir da exploração de objetos com diferentes atributos (formas, texturas, cores e tamanhos, entre outros), as crianças estruturam o conhecimen-

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to físico. A manipulação e a experimentação possibilitam a abstração das propriedades desses objetos por parte da criança. Desde muito pequenas, elas estão imersas em um universo do qual os números fazem parte. Número da casa, preços no supermercado, telefones, quantidade de degraus da escada e quem chegou primeiro são exemplos de situações diárias nas quais os números se inserem em nossas vidas. As primeiras noções e associações surgem da curiosidade e da necessidade de fazer parte desse mundo que nos rodeia. Por isso a nossa escola, tanto na educação infantil como no ensino fundamental, trabalha a matemática através de explorações dessas situações cotidianas em que os números aparecem, e também provocando jogos e brincadeiras em que apareçam, oportunizando aprendizagens significativas e contextualizadas. Ensinam-se conceitos, mas também ensina-se a pensar, a criar estratégias e a construir o cálculo mental e o raciocínio lógico, que podem estar presentes no dia a dia do(a) aluno(a). Adição, subtração, multiplicação e divisão passaram a ter mais sentido dentro e fora da sala de aula. E isso faz com que a matemática, como um todo, tenha mais relevância. É interessante analisar as relações que os(as) alunos(as) estabelecem diante dos mais diversos cálculos matemáticos com os quais se deparam ao longo da caminhada escolar. Por muito tempo, aprender as quatro operações foi algo memorizável. O algoritmo convencional (a conta pronta, armada) era imposto aos(às) alunos(as) e feliz daquele que sabia reproduzi-lo com sucesso, logo após sua apresentação pelo(a) professor(a). “Vai um”, “empresta um”, “abaixo o número” e “fica dois, sobe um” eram ações muito executadas, mas pouco compreendidas, em centenas de exercícios, que acabavam sendo automatizados. A memorização era predominante e vinha recheada de cópia e estratégias convencionais sem sentido, ensinadas pelo(a) professor(a) e reproduzidas pelo(a) aluno(a). Felizmente isso vem mudando. Houve uma valorização da infância e da criança e, além disso, estudos e pesquisas da área da psicologia e da educação mudaram a maneira de ver a criança também dentro da sala de aula. Assim,

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mudou também a maneira de ensinar, o que por sua vez oportunizou que se ampliasse a formação de alunos(as) pensantes, que experimentam, compreendem conceitos e criam estratégias próprias para resolução de cálculos. Saber como esses conhecimentos são construídos é imprescindível para que o professor organize atividades adequadas para favorecer esta construção, que embora seja influenciada pela experiência adquirida e pelas interações sociais, resulta de um processo interno de pensamento no decorrer do qual o sujeito coordena diferentes noções entre si, atribuindo-lhes um significado, organizando-as e relacionando-as com as anteriores. Trata-se de um processo inalienável e intransferível. (Constance Kamii – Artigo: Construtivismo e Aprendizagem – Livro: Jogar e aprender matemática) Compreender as tabuadas como adições sucessivas que podem ser representadas pelas multiplicações é um processo complexo, que exige tempo. Logo que as crianças começam a estabelecer relações de soma, a multiplicação está presente, mesmo que despretensiosamente. Quando planejamos situações que levam os(as) alunos(as) a pensarem sobre formas de agilizar o pensamento matemático, percebe-se que há diferentes maneiras de representar o mesmo cálculo. Dessa forma, as tabuadas vão sendo construídas junto a estratégias compartilhadas. No entanto, após esse processo de construção, se faz necessário a memorização para agilização de cálculos. Devemos considerar que memorizar é diferente de decorar. Memorizar é encontrar recursos e compartilhar estratégias que facilitem as aprendizagens desses cálculos básicos, requisito para tantos outros.

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Além dos cálculos, na escola tradicional em que estudamos, os problemas matemáticos eram pouco desafiadores, não trabalhavam as ideias das operações e não eram atrelados ao cotidiano, sendo assim acabavam tendo pouco significado e pouca relação com as questões vivenciadas na escola e na vida, enfatizando apenas o resultado e a resposta completa. Expressões como “ao todo”, “somando”, “perdeu” nos indicavam diretamente a operação a ser realizada, não exigindo maior reflexão por parte do estudante. Pensando ainda sobre as diferenças entre as estratégias de avaliação, lembramos as provas sobre conteúdos trabalhados e ensinados em aula. Na maioria das vezes, eles eram cobrados em avaliações exaustivas que contavam com uma preparação no mesmo teor: exercícios e mais exercícios! É preciso pensar a construção do conhecimento como processo, acompanhar o(a) estudante na sua trajetória. É fundamental o espaço e o tempo para pensar coletivamente, discutir, compartilhar e experimentar diferentes estratégias, tornando tudo isso parte da avaliação. Enfim, numa escola que se propõe a pensar diferente, o ensino de matemática mostra-se muito mais dinâmico. Na realidade, precisa ser, se concebe a educação através do olhar da construção, da interação, da troca, do compartilhamento. Pensar a “matemática ontem e hoje” nos permite uma reflexão sobre que marcas (positivas ou negativas) a educação pode deixar no(a) estudante.

Bibliografia consultada:

ASSIS, Orly Z.M. Conhecimento físico, conhecimento lógico-matemático e conhecimento social. In: PROEPRE: Fundamentos Teóricos (pág. 57 a73). POA, Artes Médicas, 1999. CLARK, G. e KAMII, C. Reinventando a Aritmética – implicações da teoria de Piaget. SP, Ed. Papirus, 1985. DEVRIES, R. e KAMII, C. O conhecimento físico na educação pré-escolar: implicações da teoria de Piaget. POA, Artmed, 1986. KAMII, Constance. A criança e o número. SP, Ed. Papirus, 1982. KAMII, Constance. Construtivismo e aprendizagem. In: Jogar e aprender matemática, pág. 13 a 40. LP Books, 2001. KAMII, Constance. Crianças pequenas continuam reinventando a aritmética. POA, Artmed, 2015.

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“Entendo que há muito a ser escrito na escola, há muito a ser compartilhado, guardado, referido na prática docente, há muita vida na escola e essa vida ganha mais força e potência se firmada pela palavra, como documento que permite a permanência, de algum modo, da experiência. Permite outros olhares, outras interpretações, outras significações. Histórias que contam histórias. Registros de aprendizagens dos professores sobre conteúdos diversos que mudaram a sua relação com o modo de ser docente.” Deborah Fischer Revista Palavra Projeto/2015

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