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Paulo Edvandro da Costa Pinto
PAULO EDVANDRO DA COSTA PINTO Doutor em Direito Internacional pela Universidade do estado do rio de janeiro e em Política e Estratégia Marítimas pela Escola de Guerra Naval, Professor de Direito Internacional e Coordenador de Ensino na Escola Superior de Guerra (Campus Brasília).
O controverso artigo 76 da Convenção da Jamaica e a Delimitação da Plataforma Continental Estendida
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Este ensaio é uma antítese às teses que, com pequenas variações, postulam que a submissão à Comissão de Limites da Plataforma Continental das Nações Unidas (CLPC) de informações sobre os limites da Plataforma Continental além das 200 milhas marítimas (PC estendida ou jurídica), por um Estado costeiro, implica na consequente mutação da natureza jurídica dessa parcela de espaço marítimo.
Atrai a atenção essa proposição pela afirmativa que se daria de forma pronta e automática essa transformação: uma vez realizada essa submissão, este espaço marítimo seria subtraído do acervo do patrimônio comum da humanidade (Área) e passaria a integrar o do Estado costeiro postulante. É preocupante essa tese em face dos efeitos jurídicos do “fenômeno legal de mutação” ocorrer na forma proposta e, pelos desdobramentos dessa mutação no plano internacional, particularmente no que diz respeito à proteção da Área e possíveis “corridas” por extensão de PC jurídicas pelos Estados costeiros a partir de declarações unilaterais.
Nos moldes dessa tese, na hipótese da ocorrência da submissão, ela resultaria na possibilidade do exercício “imediato” pelo Estado costeiro dos chamados direitos de soberania para a exploração e aproveitamento econômico dos recursos existentes no espaço marítimo postulado “antes mesmo de qualquer manifestação da CLPC”. Pelo fato do Estado costeiro uma vez ter realizado e submetido à apreciação da CLPC os seus estudos e evidências geomorfológicas sobre a pretensa PC estendida, consoante a normativa do artigo 76 (8) da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), articula a tese que caberia então somente a ele, no exercício de sua soberania, fixar os limites exteriores dessa plataforma.
Nesse pensar, argumenta-se que os direitos do Estado costeiro sobre sua PC lhes são inerentes desde sempre, ou seja, são direitos que existem ipso facto e ab initio jure e que são oponíveis erga omnes. Por conseguinte, como a soberania que o Estado exerce sobre a massa terrestre do seu território também recai sobre a PC, pois esta é uma extensão submersa daquela e, o seu exercício independe de qualquer ocupação ou declaração expressa, como disposto no artigo 77 da CNUDM, por extensão, isso também se dá em relação à parcela da Área pleiteada.
Finalmente, alega-se que a observância pelo Estado costeiro das recomendações da CLPC não teria o caráter cogente. Seriam elas apenas orientações não vinculativas, haja vista que a CLPC é um órgão da Assembleia Geral das Nações Unidas e, portanto, as suas decisões têm a mesma natureza jurídica deste órgão: não são obrigatórias. Assim, ao receber as recomendações da CLPC, cabe ao Estado costeiro discricionariamente aceitá-las ou rejeitá-las, no todo ou em parte. Dessa forma, o Estado costeiro poderia fixar unilateralmente os limites de sua PC estendida. Levada ao extremo, essa tese compreende que o Estado costeiro pode até fixar os limites da sua PC estendida sem fazer qualquer submissão à CLPC, basta a ele declará-los.
Tanto as premissas assumidas quanto as conclusões dessa tese se revelam bastante questionáveis sob a ótica do Direito Internacional, bem como temerárias sob o prisma das relações internacionais.
Em termos de Direito internacional, a tese se mostra falha ao tentar demonstrar o seu enunciado. Nesse sentido, afirma-se que a “submissão” (ou “intenção do Estado costeiro”, como disposto no artigo 4 do Anexo II da CNUDM), ao contrário do que enuncia a tese, “não tem como consequência automática e imediata” a mudança da natureza jurídica do espaço pretendido. Em momento algum isso está convencionado no texto da CNUDM. Esse espaço marítimo segue sendo patrimônio comum da humanidade até que esteja concluso todo o processo da submissão, como será demonstrado. Destarte, a articulação dos artigos 4, 7 e 8 do Anexo II da CNUDM conclui que para que o resultado final desse processo seja favorável à intenção do Estado costeiro, uma combinação de requisitos geomorfológicos e de procedimentos devem ser necessariamente atendidos. Taxativamente o artigo 4 determina que a “intenção do Estado costeiro deve se dar em conformidade com o artigo 76 da CNUDM”. Por sua parte, o parágrafo 8 desse artigo estabelece que a submissão à CLPC e a observação de suas recomendações pelo Estado costeiro “servem de base” para que os limites do espaço pleiteado se tornem “definitivos e obrigatórios”. Portanto, tem-se dois pré-requisitos (conditio sine qua non) para que o Estado costeiro possa, nos termos convencionados, exercer “legalmente e legitimamente” os seus direitos de soberania sobre o espaço intencionado. São obrigações primárias do Estado costeiro submeter sua intenção à CLPC e observar suas recomendações.
É certo que as recomendações da Assembleia Geral não são em regra vinculantes. Todavia, elas poderão ser se assim os Estados acordarem, como é o caso das recomendações da CLPC: elas são mandatórias, porque assim os Estados resolveram convencionar na CNUDM. Conforme os princípios de Direito Internacional esculpidos na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, os tratados existem para serem cumpridos pelas partes (pacta sunt servanda) e de boa fé. O que a tese em pauta sugere escapa a isso.
Quanto à submissão, destaca-se que ela é apenas uma das fases de um processo que visa a satisfação da intenção do Estado costeiro. Nesse sentido, ela possui natureza declaratória, mas não constitutiva de direitos. A mudança da natureza jurídica do espaço marítimo poderá ocorrer, ou não, ao final desse processo e, estará circunscrita às evidências levadas à CLPC e às recomendações dessa Comissão.
Pode-se dizer que a submissão opera como uma declaração internacional do Estado costeiro a respeito de “uma reserva condicionada” de uma parcela da Área, dotada de um certo grau de certeza jurídica do que se pleiteia e, objetiva um possível reconhecimento internacional de direitos de soberania oponível erga omnes. É a CLPC, através de suas recomendações, quem dá legitimidade e declara a existência física (ipso facto, ab initio jure e com efeitos ex tunc) da plataforma continental estendida.
É certo que os Estados partes da CNUDM têm competência para estabelecerem os limites exteriores de suas plataformas continentais. Contudo, eles em momento algum convencionaram que isso seria orientado por uma declaração unilateral. Dessa maneira, para exercer os direitos de soberania intencionados, o Estado costeiro tem que primeiro se ocupar do seu direito subjetivo de vê-los declarados, como formulado no artigo 76 (parágrafos 4 (a), 7 e 8) da CNUDM pois, caso contrário, a PC estendida não subsistirá.
A mudança da natureza e do regime jurídico do espaço marítimo intencionado quando ele deixa de integrar a Área e se incorpora ao território do Estado costeiro como PC estendida, ou seja, quando ele passa de patrimônio comum da humanidade e se torna patrimônio estatal sob jurisdição nacional ocorre, como já sublinhado, se dará, na forma do artigo 76 (9) da CNUDM. É com o depósito junto ao Secretário Geral das Nações Unidas pelo Estado costeiro de todos os mapas e informações pertinentes que descrevam definitivamente os limites exteriores da sua PC, conforme as recomendações da CLPC, a fim de que ele dê a devida publicidade a esses documentos, que o processo de submissão em tela se exaure, resultando no reconhecimento internacional Plataforma Continental estendida para além das 200 milhas marítimas.
Esse entendimento é corroborado pelo Tribunal de Internacional para o Direito do Mar, como expressado na sua decisão no Caso da Disputa relativa à delimitação da fronteira marítima entre Bangladesh e Myanmar na Baía de Bengala em 2012:
Assim, a tese apresentada no início desse estudo mostra-se questionável. Como demonstrado, seus argumentos não resistem a uma interpretação sistemática da CNUDM. Ao instar pela unilateralidade declarativa, o próprio enunciado da tese se opõe à eficácia dos propósitos, aos objetivos e ao espírito da CNUDM. Ademais, seus argumentos ignoram os poderes e funções da CLPC, além de sugerirem a violação das obrigações pacta sunt servanda e da boa-fé moldadas na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados.
Por fim, não resta dúvida que o Estado costeiro pode e deve exercer seus direitos de soberania, contudo, ele modular o seu exercício de acordo com o Direito Internacional.