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Jorge Fontoura

JORGE FONTOURA membro do Conselho Superior da International Law Association, ILA/Brasil, é doutor em direito pela Università degli Studi di Parma, Itália, onde foi aluno do professor Túlio Scovazzi, e pela Universidade de São Paulo, USP, onde foi aluno do professor Marotta Rangel. Advogado e professor, UFPR, Uniceub e Instituto Rio Branco, é árbitro internacional, Câmaras de Paris, ICC, e de Helsinque, AAF, e membro titular do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL, TPR, em quarto mandato, por consenso e por unanimidade dos governos de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.

O Mar dos Juristas

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As relações jurídicas entre o Brasil e suas águas são ancestrais. Já o Tratado de Tordesilhas, de 1493, em nossa proto-história, foi claro episódio de direito do mar avant la lettre, prenúncio tanto da vocação atlântica, quanto da índole conciliadora e de compromisso com o direito internacional que haveríamos de cultivar como Nação.

Data da colônia a primeira norma de demarcação de mar territorial, o Alvará Real de 1805, a estipular três milhas, na voga da teoria de Bynkershöek, da bala de canhão: potestas finitur ubi finitur armorum vis. Depois, até a modernidade, nada essencialmente mudou; o mar seguiu como espaço anárquico de meros e dispersos costumes internacionais. Na reorganização do mundo após a segunda-guerra, no entanto, com risco de conflitos sempre maiores, potencializados pelo avanço tecnológico, com mais disputa de riquezas e mais comércio internacional, os esforços onusianos se intensificaram rumo à codificação.

A Declaração Truman, em 1945, também contribuiu para provocar o direito internacional, a precipitar a melindrosa agenda, consolidando dentre outros aspectos o conceito e a terminologia shelf platform. Mais tarde, a mesma plataforma continental que seria de grande interesse para o Brasil e seu pré-sal. A iniciativa unilateral dos Estados Unidos deflagrava o enfrentamento ainda de outros dilemas referentes à soberania, a começar por definir uma extensão de mar territorial de consenso. Historicamente, questão em aberto desde os estudos seminais de Grotius, mare liberum versus mare clausus.

Em 1958, como na Declaração Truman, o Brasil também proclama sua plataforma continental,

com base na reconhecida extensão geológica do relevo continental, a fundamentar o mar dos juristas, como se chegou a referir, tomando em conta a atuação da doutrina, com suas novas concepções de espaços marítimos. A natureza unilateral dessas legislações, no entanto, era formidável geradora de conflitos. Foi o que ocorreu a envolver o Brasil, em 1961, na denominada “guerra da lagosta”: nossa Marinha apreendeu pesqueiros franceses na costa nordestina. A questão ganhou foros de agravo e as esquadras brasileira e francesa prepararam-se para o pior. Resolvido pela diplomacia, o folclórico imbróglio acabou por fortalecer o sentimento nacional de interesse e de defesa de seu mar. Embora com imensa costa, vasto espaço insular, com total amplitude atlântica e antártica, até a “guerra da lagosta” o mar era de fato espaço negligenciado. Sinal dos novos tempos, logo se edita o Decreto Lei 1.098, de 1970, a declarar o mar territorial de 200 milhas. Celebrado com júbilo pela população, o fato transformou-se em samba, Esse mar é meu, ou Das duzentas para lá, em clara alusão ao incidente com a França do General de Gaulle, cantado com gosto por todo o país.

Nas reuniões preparatórias para a Convenção de Montego Bay, desde 1972, o Brasil ocupou papel protagônico, cioso de seus direitos e de sua privilegiada posição geográfica. Na academia e na formulação doutrinária, a quem o Brasil muito deve, destacavam-se os professores Vicente Marota Rangel, Guido Soares e Adherbal Meira Matos Na diplomacia, de igual modo, os embaixadores Gurgel Valente, Araújo Castro e Ramiro Saraiva Guerreiro eram privilegiados intérpretes de nossos interesses. Aprovado o tratado em 10 de dezembro de 1982, paradoxalmente, no plano interno, não foi fácil convencer o Congresso Nacional acerca da urgência da autorização à ratificação. A primeira vista, a diminuição do mar territorial de 200 para 12 milhas era vista como inaceitável, em particular a desavisados de mero raciocínio aritmético, que ignoravam o valor dos novos direitos que se reconheciam, referentes à zona contígua, à zona econômica exclusiva e à plataforma continental e seus acréscimos. Em particular essa última, que embora concebida pelos norte-americanos, parecia urdida para o Brasil e suas inigualáveis circunstancias geográficas.

Possivelmente só por ocasião da descoberta do pré-sal é que bem se realizou a dimensão real e potencial das vantagens auferidas com a firma e a incorporação desse tratado das Nações Unidas. É mister lembrar e louvar o trabalho político do então senador Marco Maciel, professor que foi de direito internacional em sua Recife natal, para dissuadir espíritos contrários, a permitir a aprovação do legislativa a autorizar a ratificação. Por fim, a Convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar foi promulgada pelo presidente José Sarney, por meio do decreto de 12 de março de 1990.

O hercúleo trabalho de balizar fundos marinhos e documentar junto à ONU pressupostos geofísicos que habilitassem à soberania econômica foi realizada exemplarmente pela Marinha, com sua própria dotação de meios e de orçamento. Com o LEPLAC, sigla do plano de levantamento da plataforma continental e de seus limites exteriores, até 350 milhas a partir da linha de base, nos termos do tratado, logo se formalizaram as pretensões brasileiras, aceitas quase em totalidade.

Conforme à tradição histórica, desde Rio Branco, Epitácio e Rui, de reiterado compromisso com a solução pacífica de controvérsias, o Brasil construiu suas fronteira terrestres com nove vizinhos, do cone sul ao caribe, exclusivamente por meio da diplomacia e do direito internacional, o que é raro dentre países continentais. Agora, da mesma forma, também pelos meios diplomáticos é que se conquista a Amazônia Azul, como se convencionou denominar o novo território marítimo brasileiro, mercê de sua vastidão e abundância de recursos. Sem guerras ou conflitos expansionistas, agrega-se pacificamente bem mais de 4 milhões de km2, assim que deliberada a derradeira submissão brasileiras já em 2024, extensão equivalente à cerca da metade de toda a sua superfície terrestre.

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