Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas
A criação da reserva, além de permitir a conservação do cerrado, permite também a manutenção do modo vivendi dos povos e comunidades do cerrado. Por isso Dona Lúcia faz questão de ressaltar a importância da Bíblia como condutora dos caminhos trilhados pelos Geraizeiros nos momentos de luta. Sobre a celebração da conquista pela criação da RDS ela disse que “então pra nós é uma conquista sem cálculo de tão grande que ela é pra nós, muito boa, e foi de grande sofrimento, chegar até onde chegamos hoje, a gente teve que se expor a muita ameaça de morte sabe, enfrentar empresário de frente, confrontar mesmo com a situação, parar máquinas, enfrentar ameaças de morte e foi dolorido, mas graças a Deus foi um parto que agora a criança nasceu”. Zé da Silva lembra ainda que a conquista da RDS foi algo muito desejado, sonhado e que a importância desse decreto é que agora está garantido o Cerrado em pé e a preservação da natureza. Agora as nascentes vão ficar protegidas. Lembra ainda que mesmo com a criação do decreto a luta continua, citou exemplo de invasão do território por empresários, querendo construir barragens com apoio do prefeito de Vargem Grande, mesmo após a criação da RDS, ou seja, demonstra consciência de que a criação da RDS trouxe um grande avanço para o movimento, mas que é preciso ainda ficar alerta e articular em defesa do território.
A Conquista da RDS não foi resultado somente da luta do povo Geraizeiro, mas sim da Aliança dos Povos, por isso os quilombolas dançam batuque comemorando a vitória e a representante do Instituto Chico Mendes celebra junto com as comunidades.
Com a entrega do diário oficial pelo secretário da casa Civil os povos celebram a conquista. A bandeira do movimento Geraizeiro se tornou sinônimo da luta.
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Ano 8 • nº1606 Março/2015 RDS -Nascentes Geraizeiras Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas
RDS-NASCENTES GERAIZEIRAS: o processo de luta para criação da reserva extrativista que garante modos de vida da população Geraizeira no Norte de Minas Gerais Implantação dos projetos de eucalipto no norte de minas. O Norte de Minas Gerais vem sofrendo desde as décadas de 1970-1980 com a implantação de maciços florestais de eucalipto. O incentivo para a implantação desse empreendimento foi uma orientação governamental, do período militar. Com um discurso de que era preciso ocupar os espaços vazios e levar desenvolvimento aos sertões norte mineiros, realizou-se um verdadeira tentativa de assassinato cultural dos povos tradicionais que habitavam as chapadas sertanejas dos Gerais de Minas. As firmas foram ocupando as terras, ora por meio de processos de grilagem, ora forçando as populações à migração, já que perderam os seus meios e modos de vida. Contudo, muitos resistiram, esperaram o término da concessão das terras e autodemarcaram seus territórios. Organizaram-se, entraram em movimento, debateram sobre o que estava acontecendo com seus modos de vida, fizeram denúncias, se colocaram na linha de frente em defesa dos seus territórios. Esse é um pequeno pedaço dessa história de resistência às opressões, aos desrespeitos à racionalidade cultural e ambiental dos povos sertanejos na sua relação com o território, lembrando que território é mais que espaço; para os povos tradicionais é memória, cultura e identidade. O Processo de perda do Território Segundo Zé da Silva, liderança comunitária de Roça do Mato – Montezuma “nas décadas de 60 e 70 as terras era nas mãos dos agricultores, todo mundo usava ela coletiva, já na década de 70 para cá começou a grilagem das terras pelo coronelismo, querendo ser dono, também nessa ganância de ter essas terras, então ficou limitado o uso delas pelas comunidades tradicionais, isso envolvendo politico dos municípios, isso atrapalhou muito as comunidades, ficou muito tumultuado, sem ter para onde ir, porque as terras foram griladas, pelos grileiros lá, principalmente em Alto Rio Pardo. Teve muito isso na questão da grilagem de terra”. Perder território não significa simplesmente que os povos vão ter que mudar, toda uma cosmovisão de mundo é construída em torno das relações com os territórios.
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Segundo Eliseu José de Oliveira, agricultor e liderança do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Pardo, “as terras para os povos tradicionais são terras de uso comum, de uso comunitário, o gado fica pastando solto”. Uma qualificação muita usada e simbólica, que representa a ligação com o território, é que os Geraizeiros falam que o “gado fica na solta, ou na larga”. Eliseu afirma que isso aponta para o uso comunitário do território, o que reflete também na relação com o Cerrado. “Antes da perca do território o povo usava o território para extrativismo, como dizem hoje, mas a gente na época falava catar pequi, pegar plantas medicinais, plantar roça, pescar”. Tudo isso tem uma relação simbólica para o Geraizeiro. Com a perda do Território, que vem ocorrendo por grilagem de empresas de eucalipto, por políticos e até mesmo o Estado, no passado e no presente, o seu sentido de vida se esvazia.
Comunidades se Organizando Diante do contexto de negação de seus direitos, o povo do Cerrado se organizou para pensar em estratégias e saídas para os problemas colocados. Vários movimentos foram articulados nesse sentido, tais como o movimento Mastro – Movimento Articulado dos Sindicatos dos trabalhadores rurais do Alto Rio Pardo -, o movimento Pequizeirão – momento de ocupação na cabeceira do córrego Roça do Mato e expulsão de empresário - e o Movimento Geraizeiro. Todos esses movimentos têm em comum a luta pelo território tradicional dos povos do lugar. Para tanto, organizam também as conferências Geraizeiras. A 1ª ocorreu na comunidade de Tapera (2004-05) – município de Riacho dos Machados; a 2º no Vale do Guará – município de Montezuma,(2006), a 3ª em Vereda Funda – Município de Alto Rio Pardo (2007) e a última em Cútica – Município de Fruta de Leite (2014). As conferências Geraizeiras são momentos de conversa sobre a realidade regional e nacional. Os Geraizeiros se reúnem para discutir o significado de sua existência e seus direitos, refletir o impacto na dinâmica de suas vidas com a chegada dos grandes empreendimentos (monocultivo de eucalipto mineração). Realizam reflexões sobre o modelo de desenvolvimento que os coloca à margem e buscam afirmar um novo modelo de desenvolvimento baseado na convivência com o Cerrado. Nesse sentido, as conferências mostram que o povo não pode ficar parado, que precisa se organizar para defender seus direitos e fazer denúncia das situações de opressão, exploração e das ameaças sofridas. As conferências Geraizeiras e os movimentos articulados criaram ações que possibilitaram a efetivação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável RDS-Nascentes Geraizeiras e também fortaleceram a ideia e a necessidade de um movimento permanente em defesa do Cerrado. Dentro desse processo de luta e resistência em defesa do modelo de vida Geraizeiro, as mulheres tiveram um papel fundamental. As mulheres também são protagonistas de embates frente ao ataque dos grileiros e empreiteiras na tentativa de derrubar o cerrado para implantar um modelo de desenvolvimento excludente.
Articulação Semiárido Brasileiro – Minas Gerais
Participação das Mulheres no processo de luta – “a parada das máquinas” As mulheres Geraizeiras por diversas vezes se posicionaram dentro do processo de luta e preservação dos ecossistemas do cerrado. Um dos momentos mais simbólicos desse longo processo foi quando, por diversas ocasiões, as mulheres se colocaram na frente das máquinas, fazendo-as parar. Duas mulheres trazem um relato de resistência frente à destruição do Cerrado. Neuzita e Maria Lúcia, da comunidade de Água Boa, Rio Pardo de Minas, dão um lindo depoimento de bravura e coragem da mulher sertaneja: Neuzita: ‘‘nós tentamos conversar, tia Lúcia conversou com ele, falando que não tava mais nessa época de desmatar, que aqui era Constantemente máquinas eram paradas, os Geraizeiros nosso ganha pão. Aí ele falou assim 'Ah, mas isso aqui eu tenho sempre se colocaram na frente da luta licença, tá a caminho de ser liberada a licença”, falou que depois de chegar a licença pra fazer a denúncia, achou que nós eramos besta.’’ Lúcia: ‘‘Independente da licença, se o senhor insistir nós vamos buscar mais pessoas, que hoje é só nós, essas mulheres que você está vendo aqui, mas se o senhor insistir nós vamos chamar mais umas 200 pessoas, outros companheiros de outras comunidades, aí ele decidiu parar. Mas aí nós refletimos um pouco, que nos não íamos aceitar que as máquinas ficassem aqui não, as máquinas teriam que descer primeiro, aí eles perguntaram se não confiamos, mas vai que à noite eles voltam e terminam de detonar tudo. Como ele viu que não íamos dar moleza para ele mesmo, porque a área é território da comunidade aqui, a gente que quer continue do jeito que era sempre, já detonou alguma coisa, mas daqui pra frente não é para fazer mais nada.’’ O protagonismo dessas mulheres, e de muitas outras, possibilitou naquele dia que um pedaço do Cerrado do Alto Rio Pardo não fosse derrubado. Mais do que isso: influenciou e deu energia para movimentos em defesa da vida.
Dia 13 de outubro de 2014. Cria-se o Decreto RDS – Nascentes Geraizeiras
Maria Lúcia, Geraizeira do norte de Minas, é agricultora extrativista e uma personagem importante na luta pela criação da RDS – Nascentes Geraizeiras, principalmente porque é um exemplo de como a espiritualidade esteve presente desde o começo na luta pela criação da RDS. Dona Lúcia relata como sua fé a fortaleceu durante o processo de luta para criação da RDS. “Eu sou uma pessoa de muita fé, desde pequena gente apreendeu a buscar na palavra a solução, a palavra de Deus para nós sempre foi uma condutora da vida da gente. E essa palavra foi muito forte pra mim, me encorajou, sabe, meu medo, o medo que eu tinha da batalha na resex acabou. Ai moço, quando eu tive essa palavra que falou de reserva também eu nem me controlei”. A espiritualidade sempre esteve presente no processo de luta para criação da RDS-nascentes Geraizeiras.
A conquista é resultado de uma longa luta social