Para revisitar a natureza Organização: Prof. Caroline Theml A leitura de um dossiê jornalístico, organizado pelo jornalista Paulo Tavares em 2017 e publicado na revista mineira Piseagrama, foi o ponto de partida para o debate dos estudantes da 1ª série do Ensino Médio. No dossiê, lido e fichado pelos estudantes, ativistas, ecologistas, lideranças políticas, entre outras figuras sociais, discutem a emergência de uma revisão sobre a relação entre homem e natureza, em meio à crise ambiental que a humanidade enfrenta no século XXI. A leitura do artigo pelos alunos se dá após o fechamento do projeto interdisciplinar “Natureza e Cultura: entre saberes em fazeres”, que incluiu um estudo de meio nas cidades de Cananeia e Iguape, com visita a comunidades tradicionais na Aldeia Takuari-ty, no Quilombo do Mandira, e em comunidades caiçaras da Ilha do Cardoso. Artigos científicos trabalhados na disciplina de Geografia também compuseram o repertório dos alunos, que dissertaram, então, sobre o lugar atribuído à Natureza pelo ser humano – tanto do ponto de vista de modelos econômicos adotados, quanto de seu estatuto jurídico na Constituição. O resultado foi a produção de textos críticos, com abordagens diversificadas e autorais, bem como o exercício da construção do conhecimento por meio do diálogo e intertextualidade com autores, trabalhando recursos como citações diretas e indiretas. Trata-se de uma preparação para a escrita de textos acadêmicos e imersão no universo de artigos e ensaios, que devem – junto aos cânones literários – compor o repertório de leitores críticos e engajados com a construção de uma sociedade melhor. O resultado motivou o surgimento de um novo “dossiê” (dessa vez nosso) com alguns dos melhores textos. É o que se lê a seguir.
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Nossos Direitos Luiza Castiel 1970, ONG Siena Club entra na justiça contra a companhia Disney com a intenção de impedir a construção de um parque em uma importante área ambiental na Califórnia. A Suprema Corte dos Estados Unidos alega que, sem direitos patrimoniais sobre a floresta, não poderiam impedir a construção. “No entanto” – segundo o jurista Mário Melo, no artigo “Além do humano” –, “um dos juízes, William O. Douglas, fez uma intervenção significativa, questionando por que as próprias árvores não poderiam ter direitos e exigir justiça”. Muitos juristas e colegas não consideravam possível um não humano ter direitos, o que deu origem a um debate jurídico. Um dos argumentos utilizados pelos favoráveis foi o fato de, no sistema ocidental, corporações (“pessoas” não jurídicas) terem direitos, e se corporações e “pessoas fictícias têm direitos” – questiona Melo –, “por que não a natureza, cuja existência é inegável?”. Essa é uma consideração que merece reflexão: pensar que a natureza é um ser vivo (enquanto corporações não), e que é a base de tudo – é tudo que existe e vive –, já é motivo suficiente para que tenha seus próprios direitos. Outro argumento que pode ser usado para a criação de direitos da natureza é o do geógrafo Aziz Ab’Sáber, em Os domínios da natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas brasileiras: “paisagem é sempre uma herança em todos os sentidos da palavra: herança de processos fisiográficos e biológicos, e patrimônio coletivo dos povos que historicamente as herdaram como o território de atuação de suas comunidades”. O que Ab’Sáber diz é que toda paisagem natural (realmente vinda da Terra, ou animais) e cultural (produto da ação humana) é resultado de processos naturais, considerando-se que o ser humano é um animal, ou seja, é natureza. Inclusive, são resultados desses processos os seres humanos de hoje, aqueles que querem construir parques, prédios, fábricas, aqueles que, por poder, não pensam que, sem os seres vivos não humanos, os seres vivos humanos não existem. A criação de direitos da natureza é a garantia da conservação e preservação dessa, que é também a garantia da vida humana e, no fim, de seus direitos.
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A dependência humana dos direitos não humanos Júlia Guaraciaba Em 5 de novembro de 2015, ocorreu o pior acidente da mineração brasileira, no município de Mariana, em Minas Gerais. O rompimento da barragem provocou uma enxurrada de lama e dejetos que devastou o distrito de Bento Rodrigues, causando impactos ambientais incalculáveis e possivelmente irreversíveis, como assoreamento de rios e a esterilização do solo. Isso nos mostra que a capacidade tecnológica e os efeitos da interferência humana se tornaram quase iguais a uma força geológica, mostrando a necessidade da criação de direitos não humanos – assunto abordado no texto “Direitos não humanos”, publicado na revista Piseagrama. “A natureza, não mais entendida como um objeto inerte disponível para a apropriação sem limites, deveria ser entendida como um sujeito participante de uma forma de ‘contrato social’” – afirma o jornalista Paulo Tavares, ao comentar O contrato natural, de Michel Serres. A natureza deve ser dotada de direitos que respeitem suas leis biológicas, como ocorrido no Equador. No Equador, em 2008, foi aprovada uma nova Constituição Nacional, na qual a natureza é transformada em um sujeito da lei, assim como os seres humanos. A aprovação de leis desse tipo é de extrema importância, pois elas têm em vista a dependência dos direitos humanos aos não humanos. Desastres ambientais afetam até hoje a vida de pessoas e do ecossistema, como foi o caso de Mariana. “Vivemos em uma época perigosa. O homem domina a natureza antes que tenha aprendido a dominar a si mesmo” – diz o filósofo Albert Schweitzer. É preciso visar à sustentabilidade e à igualdade entre esses direitos, de forma que eles cooperem entre si.
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De objeto inerte a sujeito Sofia Abreu “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.” Este é o terceiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948), assegurando a vida a qualquer ser humano. Contudo, com as pesquisas, descobertas, teorias do último século, fica claro que o ser humano não é capaz de sobreviver sem a natureza. A natureza dá origem a tudo. Então, afirmar que seres humanos devem usá-la de forma predatória porque ela é uma pedra no meio do caminho do progresso, é dizer que humanos são esse empecilho, esse obstáculo. Afinal, somos diretamente dependentes dela para a nossa sobrevivência e prosperidade. Não se trata de uma via de mão única. O homem pode ser benéfico e importante para o meio ambiente, dependendo de como a comunidade é organizada. Populações tradicionais são um belo exemplo dessa cooperação, em que se usam os recursos disponíveis de modo consciente e sustentável, contribuindo para o equilíbrio e fiscalização do ambiente. Uma espécie de mutualismo. Dessa forma, é possível concluir que os direitos da natureza, os “direitos não humanos”, são também uma questão de direitos humanos. Entretanto, com essa conclusão, é muito fácil recair na ideia de que a natureza está na Terra para a humanidade. No Equador, em 2008, quando os direitos não humanos foram garantidos na Constituição, um dos argumentos era, essencialmente, natureza para humanidade. No artigo “Socialismo biocêntrico”, do escritor e ativista equatoriano Alberto Acosta, há a seguinte passagem: “estritamente falando, os direitos da natureza estão relacionados a uma cosmologia moderna, porque são um exemplo em que humanos concedem direitos ao mundo animal e a todos os seres vivos”. Fica claro que o problema reside no verbo “conceder”, que estabelece uma relação hierárquica entre homem e natureza, colocando a humanidade acima do meio ambiente e até implicando que o motivo da preservação da natureza é o ser humano. E, ao ser capaz de conceder direitos à natureza que está à sua mercê, só se alimenta o enorme ego humano, que, em si próprio, é uma das origens de diversos problemas. Para se ter uma ideia da gravidade, basta considerarmos a era geológica em que estamos. A era do Antropoceno, a era em que o homem é uma força natural, capaz de alterar, na escala de tempo da Terra, as paisagens, com suas bombas atômicas e poluição. Contudo, deve-se questionar: se humanos são uma força natural, a natureza não deveria ser humanizada? Os direitos não humanos foram a solução encontrada no Equador para que a natureza deixasse de ser objeto e passasse a ser sujeito, como Paulo Tavares, organizador do dossiê “Direitos Não Humanos”, da revista Piseagrama, afirma: “a natureza, não mais entendida como um objeto inerte disponível para apropriação sem limites, deveria ser entendida como sujeito participante”.
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A natureza não é minoria (apesar de ser tratada como tal) Lena Giuliano Não é só a natureza que se transforma, as civilizações também se alteram constantemente, assim como a relação entre os dois fatores – o natural e o social –, que depende da circunstância de cada um. “Mudam-se os tempos”, dizia Camões. A cada revolução ideológica, faz-se uma revolução nas ruas. Negros, mulheres, deficientes, populações tradicionais, homossexuais e transexuais – todos recorreram à força da palavra para combater a violência que lhes era (e ainda lhes é) dirigida. Mudam-se as ideias, e a próxima vítima é a noção de que a natureza está aí para servir a humanidade. Em meio a uma sociedade que aceita a conquista de direitos de modo gradual, finalmente começou a ser compreendida a importância de reconhecer uma instância não humana, até para a própria sobrevivência da humanidade. O debate sobre a valorização da natureza em relação à humanidade surgiu com visibilidade nos anos 1970, quando povos tradicionais da América Latina começaram a reivindicar seus direitos e trazer à tona a discussão de manter uma relação harmônica com a natureza, ao mesmo tempo em que as populações colonizadas se rebelavam contra os colonos europeus. Os incas, por exemplo, usam a palavra Pachamama, que abrange tanto a comunidade humana quanto a natural, e permite reconhecer que a comunidade é de todos e para todos. Luís Macas, líder político quíchua e membro fundador da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador, explica que “a natureza não é um objeto, mas um sujeito (...), é isso que chamamos de comunidade”. Além disso, o fim da Guerra Fria fez emergir a discussão em busca de um novo modelo político nos moldes biocêntricos, já que os dois sistemas econômicos que disputavam o poder traziam insatisfação à ideologia recente que busca os direitos não humanos. De um lado, o capitalismo objetifica a natureza e a vê subordinada às necessidades do Homem. Do outro, o socialismo prioriza o ser humano em todos os sentidos, ao falar de “liberação do Homem”, deixando a natureza em segundo plano. De modo geral, o valor dos recursos naturais foi colocado ideologicamente em seu devido lugar, mas assim como as minorias que estão na luta há décadas, ainda tardará para que a natureza seja reconhecida e tratada como intrínseca à humanidade.
* Fotos por Luiz Mello Lula. Ao início do texto, artesanato guarani da aldeia Takuari-ty; ao final, entrada da comunidade do Marujá, na Ilha do Cardoso
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