CONEXÕES CIÊNCIA E TECNOLOGIA PERIÓDICO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA DO IFCE
EDIÇÃO ESPECIAL SOBRE GÊNERO
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação Correspondências e solicitações de números avulsos deverão ser endereçados a: [All correspondences and claims for missing issues should be addressed to:] Rua Lívio Barreto, 94, Joaquim Távora, CEP: 60130-110, Fortaleza – Ceará – Brasil Publicação Quadrimestral É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta publicação, desde que citada a fonte. Reitor Prof. Me. Virgílio Augusto Sales Araripe Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação Prof. Dr. Auzuir Ripardo de Alexandria Editora-Chefe Profa. Dra. Rafaela Camargo Maia Editora Ma. Patrícia Fernandes Freitas (IFCE) Conselho editorial Profa. Dra. Rafaela Camargo Maia (IFCE) Prof. Dr. Auzuir Ripardo de Alexandria (IFCE) Profa. Ma. Joelia Marques de Carvalho (IFCE) Rebeca Maria Gadelha de Sousa (IFCE) Profa. Dra. Antonia Lucivânia de Sousa Monte (IFCE) Profa. Dra. Cassandra Ribeiro Joye (IFCE) Prof. Dr. Cidcley Teixeira de Souza (IFCE) Prof. Dr. Elias Teodoro da Silva Júnior (IFCE) Prof. Dr. Francisco José Alves de Aquino (IFCE) Prof. Dr. Gilberto Andrade Machado (IFCE) Profa. Dra. Glória Maria Marinho Silva (IFCE) Profa. Dra. Ialuska Guerra (IFCE) Profa. Dra. Kelly de Araújo Rodrigues Pessoa (IFCE) Prof. Dr. Marcius Tulius Soares Falcão (IFCE) Profa. Dra. Maria de Lourdes Macena Filha (IFCE) Profa. Ma. Maria Lindalva Gomes Leal (IFCE) Prof. Dr. Paulo César Cunha Lima (IFCE)
Prof. Dr. Rinaldo dos Santos Araújo (IFCE) Consultores ad hoc Prof. Dr. Eduardo Gomes Machado (UFPB) Profa. Ma. Flávia Cópio Esteves (IFRJ) Ma. Patrícia Fernandes Freitas (IFCE) Profa. Dra. Rafaela Camargo Maia (IFCE) Mesa editorial Profa. Dra. Rafaela Camargo Maia (IFCE) Prof. Dr. Auzuir Ripardo de Alexandria (IFCE) Profa. Ma. Joelia Marques de Carvalho (IFCE) Rebeca Maria Gadelha de Sousa (IFCE) Secretaria editorial Rebeca Maria Gadelha de Sousa (IFCE) Revisores linguísticos Esp. André Monteiro de Castro (IFCE) Profa. Ma. Candida Salete Rodrigues Melo (IFCE) Profa. Ma. Maria do Socorro Cardoso de Abreu (IFCE) Profa. Ma. Sarah Virginia Carvalho Ribeiro (IFCE) Diagramação Latex Editor Prof. Dr. Auzuir Ripardo de Alexandria Camila de Oliveira Lima Darlene Menezes Capa Darlene Menezes dos Santos
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO SECRETARIA DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ
CONEXÕES CIÊNCIA E TECNOLOGIA PERIÓDICO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA DO IFCE
EDIÇÃO ESPECIAL SOBRE GÊNERO
v. 8, n. 1 Março – 2014
FORTALEZA - CE Conex. Ci. e Tecnol.
Fortaleza/CE
ISSN 1982-176X v. 8
n. 1
p. 1-60
Março – 2014
ISSN 1982-176X (versão impressa) ISSN 2176-0144 (versão on-line)
Indexado por/ indexed by: Latindex Qualificada pela CAPES Publicação quadrimestral Correspondências e solicitação de números avulsos deverão ser endereçados a: [All correspondences and claims for missing issues should be addressed to:] Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE CONEXÕES – CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Rua Lívio Barreto, 94 – Joaquim Távora 60.130-110 Fortaleza/CE – Brasil Telefone: (85) 34012328/2332 E-mail: conexoes@ifce.edu.br
Catalogação na fonte: Islânia Fernandes Araújo CRB 3/917 CONEXÕES - CIÊNCIA E TECNOLOGIA. – Ano 8, nº1, (mar. 2014) Fortaleza: IFCE, 2012 v. ; 27cm Data de publicação do primeiro volume: out. 2007. Quadrimestral A partir do ano de 2011, a revista também passa a ser publicada na versão eletrônica. Centro Federal de Educação, Ciência e Tecnológica do Ceará – CEFETCE até Dez. 2008. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE a partir de Jan. 2009.
ISSN 1982-176X 1. EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA – PERIÓDICO 2. TECNOLOGIA – PERIÓDICO 3. CIÊNCIA - PERIÓDICO CDD – 373.24605
Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva dos autores e não expressam, necessariamente, a opinião do Conselho Editorial da revista ou do IFCE. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta publicação, desde que citada a fonte.
SUMÁRIO
EDITORIAL.................................................................................................................................................7 FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR Violeta Maria de Siqueira Holanda, Felipe Morais de Melo, Amélia Cristina Reis, Antônia Francimar da Silva...............................................................................................................................................................9 A MULHER NA FAMÍLIA, NO TRABALHO E NA DOCÊNCIA EM EAD − UMA ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA Ana Claudia Uchôa Araujo, Patrícia Helena Carvalho Holanda.................................................................21 IMPACTOS DO PROGRAMA MULHERES MIL NA VIDA DE DISCENTES DO IFCE CAMPUS CANINDÉ Renata Maria Paiva Costa, Juliana Silva Liberato......................................................................................28 RESPONSABILIDADE SOCIAL DENTRO DO IFCE: RESULTADOS INICIAIS DO PROJETO MULHERES DE FORTALEZA Julio Cesar Ferreira Lima, Simone Oliveira de Castro................................................................................36 OLHARES SOBRE O ACORDO BILATERAL MULHERES MIL, BRASIL/CANADÁ E A METODOLOGIA IDENTIFICAÇÃO DE SABERES COMO POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL: PROFISSIONALIZAÇÃO, SABERES E MEMÓRIAS Nara Vieira de Souza, Sarah Virginia Carvalho Ribeiro.............................................................................47 A BUSCA DA CIDADANIA PELAS MULHERES E AS DESIGUALDADES DE GÊNERO Maria Claudia Paes Feitosa Jucá..................................................................................................................56
EDITORIAL Patrícia Fernandes de Freitas1
As publicações ora expostas são reflexos de uma visão integrada entre ensino, pesquisa e extensão, que é um desafio colocado a todos/as nós envolvidos/as em percursos educacionais. Partimos da compreensão de que a escola encontra-se atravessada por processos aparentemente contraditórios, mas que, na verdade, coexistem sob uma relação de causalidade, sendo estes os processos de hipertrofia e desvalorização do espaço escolar, pois nele está situada uma série de atividades que o descaracterizam, parecendo que a escola cuida de tudo, menos de ensinar. Tal contradição é inerente à própria origem da instituição escolar, fortemente marcada pela divisão da sociedade em classes, que fez com que fossem erigidos espaços educacionais para as elites (destinados à formação eminentemente intelectual e diretiva) e espaços educacionais para as massas (limitados a ofertar educação básica ou habilitações técnicas. Dentre os grupos mais excluídos do direito à educação encontram-se as mulheres. Essas tiveram, historicamente, a injunção de uma posição secundária na sociedade, tornando-se vítimas de injustiças que se perpetuam até hoje. A condição de subordinação da mulher no espaço doméstico ultrapassa as paredes do domicílio e desemboca no âmbito das relações sociais, no trabalho e na política. O diminuto reconhecimento da mulher nestes âmbitos a impossibilita de constituir sua cidadania, impedindo-a de ter acesso a bens, serviços e processos a que todos os indivíduos deveriam ter direito. Tal situação servil, vivenciada pela mulher, projetou na mentalidade da humanidade, e na dela própria, a ideia de que a submissão de suas vontades, anseios e sonhos em favor aos sonhos dos outros é natural. E, por entendermos que a desnaturalização deste pensamento requer a explanação das razões históricas e das Políticas Públicas e ações que vêm sendo desenvolvidas, trazemos a presente Edição Especial sobre Gênero, aproveitando o importante espaço oferecido pela Pró-reitoria de Pesquisa do IFCE na Revista Conexões, pois acreditamos que, a partir de investigações, estudos e diagnósticos 1
Mestre em Educação Brasileira pela UFC. Especialista em Direitos Sociais e Competências Profissionais pela UNB. Graduada em Serviço Social pela UECE. Assistente Social da Pró-reitoria de extensão do IFCE. Gestora Institucional do Programa Mulheres Mil do IFCE no período de 2012 a julho de 2014.
teremos subsídios para proposição de estratégias que superem as desigualdades, dentre elas as existentes entre mulheres e homens. Assim, os/as leitores/as poderão apropriar-se da história de luta das mulheres pela busca de sua autonomia e cidadania, bem como compreender os vários espaços ocupados pela mulher no contexto do trabalho, da família e da sociedade, independentemente da classe social em que estão inseridas. Poderão, também, conhecer a importante história do Projeto Mulheres Mil, desde seus primórdios, quando da parceria Brasil/Canadá, até a Metodologia de Identificação de Saberes como Política Pública Educacional. Oportunizando, outrossim, o conhecimento de experiências mais atuais, realizadas a partir do então Programa Mulheres Mil, situado,agora, em uma ação maior do Programa Federal Brasil Sem Miséria. Considerando as interpretações expostas pelos/as autores/as, conseguiremos vislumbrar os motivos que extraíram da mulher as oportunidades de construir a sua história, a sua cidadania e a sua participação efetiva na sociedade. Motivos que também a fizeram vítima de diversas formas de violência, desde a negação do acesso à educação até a violência doméstica cometida por maridos e companheiros/as. Dessa maneira, fazse necessário mudar o atual cenário. Estratégias de enfrentamento são emergenciais para reverter esse quadro e proporcionar às mulheres o resgate do seu valor e da sua importância no âmbito individual, familiar e social. Portanto, é fundamental pensar em ações que forneçam estratégias para a constituição da independência das mulheres e a transformação de suas realidades. Uma dessas ferramentas é a educação, que pode ser capaz de constituir um indivíduo emancipado, apto a construir sua história e exercer plenamente seus direitos, pois possibilita a identificação de uma gama de oportunidades, de inclusão e de construção da autonomia. Para tanto, a educação precisa estar em consonância com a edificação de uma nova sociedade, fundada na equiparação política, econômica e social, numa perspectiva de igualdade de gênero. Esperamos, dessa forma, que esta Edição possibilite a evidência de novos saberes essenciais para um processo de mudança cultural e que desperte para o fortalecimento de pesquisas e ações de extensão na área de gênero, levando-nos ao intercâmbio de conhecimentos, com vistas à construção de um mundo melhor. Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir. Mas nós conseguiremos, jovens amigos, não é verdade? (Rosa Luxemburgo)
FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR V IOLETA M ARIA DE S IQUEIRA H OLANDA1 F ELIPE M ORAIS DE M ELO2 A MÉLIA C RISTINA R EIS 3 A NTÔNIA F RANCIMAR DA S ILVA4 1
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) Campus de Pau dos Ferros 1 <violeta@unilab.edu.br>, 3 <amelia.reis@ifrn.edu.br>
2,3,4
Resumo. O objetivo do artigo é apresentar a experiência do Programa Mulheres Mil e sua metodologia do Sistema de Acesso, Permanência e Êxito. O Programa é executado pelos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia do governo brasileiro, pautado pela política de ações afirmativas voltada para as mulheres em situação de vulnerabilidade social. A experiência aqui apresentada refere-se ao projeto Flor do Sertão, executado pelo IFRN, campus de Pau dos Ferros, localizado na região do Alto Oeste Potiguar, Nordeste do Brasil. Elementos como o aprimoramento na autoestima das mulheres e cuidado com o corpo, a vontade de continuar os estudos e ajudar os filhos no processo de ensino e aprendizagem, a ampliação de conhecimentos nas diversas áreas, a promoção da elevação da escolaridade das alunas e, sobretudo, a inserção no mundo de trabalho e o desenvolvimento dos empreendimentos de economia solidária são apontados pela equipe executora como fundamentais para a continuidade bem sucedida do referido Programa. Palavras-chaves: Gênero. Educação. Cidadania. Abstract. The goal of this paper is to present the experience got in the process of Mulheres Mil (Thousand Women) Program and its Sistema de Acesso, Permanência e Êxito (Access, Permanence and Success System) methodology. The Program is carried out by the Institutos Federais de Educação, Ciências e Tecnologia (Federal Institutes of Education, Science and Technology) of Brazilian government, ruled by a politic of affirmative actions focoused on women in social vulnerability situation. The experience presented in this work concerns to Flor do Sertão (Sertão Flower), led by IFRN, campus Pau dos Ferros, city located in Alto Oeste Potiguar region, in the Northeastern Brazil. Elements such as the improvement in women/’s self-esteem and the care with their body, the will of carrying on with the studies and helping their children in the teaching-learning process, the increase of knowledge in several areas, the promotion of a higher level of education and, especially, the insertion in the world of work besides the development of enterprise in solidarity economy are pointed out by the executor team as fundamental for the successful continuity of the Program. Keywords: Gender. Education. Citizenship. 1
INTRODUÇÃO
ência e Tecnologia (IFs), tendo por objetivo criar pontes necessárias para que essas mulheres incrementem seu potencial produtivo, promovam a melhoria das condições de vida de suas famílias, de suas comunidades e contribuam para o crescimento econômico sustentável (BRASIL, 2013).
O Programa Mulheres Mil é desenvolvido pelo governo federal brasileiro a partir de 2007, em cooperação com o governo canadense, visando à formação educacional, profissional e cidadã de mulheres em situação de risco e vulnerabilidade social e pertencentes a famílias com Na região do Alto Oeste Potiguar, Nordeste do Brarenda baixa das diversas regiões do Brasil. É desenvol- sil, as ações são fomentadas a partir do “Projeto Flor vido pela rede dos Institutos Federais de Educação, Ci- do Sertão: cultivando igualdade de Gênero, Emprego e Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 9-20, mar. 2014 9
FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR
Renda no Alto Oeste Potiguar”, desenvolvido no Instituto Federal do Rio Grande do Norte, campus de Pau dos Ferros. O Alto Oeste Potiguar está localizado no semiárido nordestino, área composta por trinta e sete municípios e que agrega uma população de 241.211 habitantes, cerca de 8% da população residente no Estado do Rio Grande do Norte. O centro polarizador da região é o município de Pau dos Ferros que, em 2010, totalizava 27.745 habitantes, sendo 14.229 mulheres e 13.516 homens. A população residente e alfabetizada é de 21.011 habitantes (IBGE, 2010). Ao analisar a qualidade de vida e pobreza na região, podemos perceber, através do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que a maior parte dos municípios apresenta índices inferiores à média estadual e nacional de 0,705 (PNUD, 2003). As atividades econômicas da região envolvem principalmente a agricultura de subsistência e a pecuária, atividades com dependência sazonal e que sofrem bastante em períodos de longa estiagem. Além disso, as atividades do setor secundário (comércio) e terciário (serviços) também estão presentes e concentram-se, sobretudo, em Pau dos Ferros. Em relação à situação das mulheres, em sua maioria não tiveram acesso à educação básica, nem à qualificação profissional, emprego e renda, o que compromete não apenas sua condição de vida socioeconômica, mas a de seus dependentes e da própria comunidade a que pertencem. Ademais, o machismo e o preconceito estimulam diferentes manifestações de violência (simbólicas, psicológicas, culturais, físicas, dentre outras) e a continuidade das relações de dominação e poder dos homens sobre as mulheres, ameaçando o processo de emancipação feminina. Pesquisa realizada sobre a violência contra a mulher na cidade de Pau dos Ferros aponta o aumento progressivo de vítimas com o passar dos anos. Entre 2005 e 2006 foram registrados, na 4a Delegacia Regional de Pau dos Ferros, 338 casos de agressões contra a mulher na região (MAIA; FARIAS; CARNEIRO, 2012). O Projeto Flor do Sertão foi direcionado, inicialmente, a mulheres em situação de vulnerabilidade social residentes na periferia de Pau dos Ferros, onde também se concentra um significativo número de agricultoras que migraram da zona rural em busca de melhores condições de vida. É importante perceber que a reprodução das desigualdades e violências de gênero também se articula a relações e estruturas socioeconômicas que dificultam a inserção produtiva das mulheres e reforçam sua dependência dos homens.
letiva, que tem sua origem no acúmulo e na sistematização de conhecimentos desenvolvidos pelos Community Colleges canadenses em suas experiências de promoção da equidade de gênero e nas ações com populações economicamente empobrecidas e com dificuldades de acesso e usufruto aos direitos fundamentais naquele país. O sistema canadense é denominado ARAP (Avaliação e Reconhecimento de Aprendizagem Prévia) e consiste, em linhas gerais, em certificar todas as aprendizagens formais ou não formais e proporcionar a qualificação nas áreas necessárias à complementação da qualificação (BRASIL, 2013). O modelo brasileiro inova, pois, além de prever o reconhecimento de saberes ao longo da vida das mulheres, a metodologia Sistema de Acesso, Permanência e Êxito contempla instrumentos e mecanismos de acolhimento que viabilizam o acesso à formação profissional e cidadã, com elevação de escolaridade e inserção produtiva no mundo do trabalho, sintonizado com as realidades das diversas populações brasileiras (BRASIL, 2013). No entanto, o desafio se pauta na reflexão sobre as articulações entre gênero, educação e mundo do trabalho. Neste sentido, o Programa buscou estimular a re-criação relacional, intersubjetiva e coletivamente instituída das (1) representações, identificações e práticas sociais e (2) das estruturas, vínculos e relações econômicas objetivas, potencializando a transformação da vida de milhares de mulheres e suas comunidades locais. Para tanto, foi mister considerar o gênero como categoria que traduz a construção social de homens e mulheres, que são educados e socializados de maneira diferente, criando oposição e, às vezes, até mesmo antagonismo. A definição primeira da categoria gênero para as ciências sociais seria a oposição que se estabelece entre “sexo biológico” e “sexo social”, isto é, enquanto sexo refere-se às diferenças biológicas e anatômicas entre homens e mulheres, gênero ocupa-se em designar as diferenças sociais e culturais que definem os papéis sexuais destinados a homens e mulheres em cada sociedade. O conceito gênero se situa na esfera social, diferente do conceito de sexo, posicionado no plano biológico Saffioti e Munoz (1994, p. 83). Scott (1995) sublinha o aspecto relacional no entendimento sobre homens e mulheres na própria construção histórica da categoria gênero,
[...] o gênero sublinhava também o aspecto relacional das definições normativas da femiEm 2012, o Projeto inicia suas ações a partir da imnilidade [...] as mulheres e os homens eram plantação da metodologia Sistema de Acesso, Permadefinidos em termos recíprocos e nenhuma nência e Êxito, desenvolvido pelo Programa Mulheres compreensão de qualquer um poderia existir Mil. Trata-se de um amplo processo de construção coatravés de estudos completamente separados Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 9-20, mar. 2014 10
FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR
(SCOTT, 1995, p. 5). No tocante ao processo educativo historicamente instituído, sentimos que ele contribui para o tratamento desigual entre homens e mulheres. Apesar de ambos viverem no mesmo contexto, o que a mulher pode fazer é, muitas vezes, completamente diferente do que é permitido ao homem. Por isso, é importante observar de forma crítica os lugares e espaços que as mulheres e homens ocupam na família, no trabalho, na escola, na igreja, nas esferas de poder e nas representações políticas. As questões de gênero perpassam todas as relações da sociedade, destacando-se ainda a combinação com as dimensões de classe, raça e etnia1 . Neste contexto, o projeto dialoga com as realidades socialmente constituídas entre homens e mulheres, através de várias técnicas e metodologias, dentre as quais: a realização do diagnóstico situacional da comunidade que considera o levantamento de dados comportamentais e de situações de violência domiciliar; a realização do mapa da vida; a formação através de módulos educativos que contemplam temáticas transversais, tais como gênero, saúde e direito da mulher, cooperativismo, comportamento sustentável, proteção ambiental, dentre outros; a troca de experiências entre alunas e educadores(as) sensibilizados(as) para atuarem na questão; e o incentivo ao diálogo através de rodas de conversas entre alunas, seus companheiros e especialistas em temáticas relacionadas ao gênero. Estabelece-se, então, a necessidade de haver um permanente diálogo entre as partes, uma vez que essas responsabilidades e direitos, além de socialmente construídos, são também historicamente definidos e, portanto, cambiáveis. Na concepção de Saffioti e Munoz (1994, p. 193), “Não basta que um dos gêneros conheça e pratique as atribuições que lhe são conferidas pela sociedade; é imprescindível que cada gênero conheça as responsabilidades-direitos do outro gênero”.
O projeto Flor do Sertão é sensível a essas questões e, além de fomentar uma observação mais crítica e práticas transformadoras sobre as desigualdades de gênero no contexto do semiárido potiguar, contribui para a inserção de mulheres no mundo do trabalho, através da oferta de cursos profissionalizantes e capacitação para o empreendedorismo, o cooperativismo e o associativismo, e também através do fomento para a abertura de Empreendimentos de Economia Solidária (EES). Nesse sentido, a economia solidária torna-se importante na medida em que envolve um conjunto de atividades econômicas - produção, distribuição, consumo, poupança e crédito - organizadas e realizadas solidariamente por trabalhadores e trabalhadoras - sob a forma coletiva e autogestionária (BRASIL, 2005). Em sua perspectiva histórica, Singer (2002) afirma que a economia solidária surgiu em “reação ao espantoso empobrecimento dos artesãos provocado pela difusão das máquinas e da organização fabril da produção”. Portanto, a economia solidária não se apresenta como um campo novo de trabalho, mas como reação ao capitalismo industrial e criação de alternativas às estruturas, vínculos e sociabilidades capitalistas. Diferentemente do modo de produção capitalista, a economia solidária se caracteriza por concepções e práticas fundadas em relações de colaboração solidária, inspiradas por valores culturais que colocam o ser humano na sua integralidade ética e lúdica e como sujeito e finalidade da atividade econômica, ambientalmente sustentável e socialmente justa, ao invés da acumulação privada do capital. Portanto, as práticas de produção, comercialização, finanças e consumo, privilegiam a autogestão, a cooperação, o desenvolvimento comunitário e humano, facilitando o processo de satisfação das necessidades humanas e da justiça social, bem como a perspectiva de igualdade de gênero entre homens e mulheres.
O diagnóstico revelou que um significativo número de mulheres residentes na periferia de Pau dos Ferros termos “raça e etnia” aqui mencionados tomam por base a eram agricultoras migrantes em busca de melhores conconcepção de Weber, segundo a qual “a etnia, como a nação, fica do lado da crença do sentimento e da representação coletiva, contrariadições de vida, com dificuldades para inserção no mermente à raça, que fica do lado do parentesco biológico efetivo” (WEcado de trabalho, por vários fatores: questões relacioBER apud POUTIGNAT; STREIFF-FENNAR, 1997). Assim sendo, nadas à falta de qualificação profissional; preconceito não existe outro motivo senão esse parentesco para se evitar definitipela idade e aparência física; dificuldades para concivamente o conceito de raça, pois, mais do que fazer progredir a compreensão dos diferentes grupos humanos, ele tem respaldado preconliar as atividades domésticas com as atividades educaticeitos e xenofobia. Malgrado as controvérsias em torno do conceito vas e profissionais; falta de autoestima com sentimento de raça, ele foi comumente usado nas ciências sociais e quase semde fracasso e incapacidade de mudança. A partir despre foi confundido com a noção de etnia. No Brasil, desde o final do sas percepções, o projeto Flor do Sertão se inseriu na século XIX, são inúmeros os trabalhos de pesquisa voltados para o tema raça. Mas a sua definição foi problemática, especialmente pela comunidade realizando o levantamento das potencialisua filiação aos caracteres biossomáticos, pois definir racialmente um dades e atividades em que as mulheres já possuíam algrupo, naquele momento histórico, significava observar os traços feguma identidade e o desejo de aperfeiçoamento, aponnotípicos comuns (estatura, cor) e psicológicos (capacidade de inteligência) de um determinado grupo de indivíduos. tando o desenvolvimento de empreendimentos de ecoConex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 9-20, mar. 2014 11 1 Os
FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR
nomia solidária como alternativa possível para superar paulatinamente as diversas dificuldades apontadas.
2
O ACESSO
Durante a implantação das ações do Projeto Flor do Sertão, uma série de providências foi tomada em consonância com o que é estabelecido pelo guia metodológico do Programa Mulheres Mil e pactuado entre as esferas do Ministério da Educação e Institutos Federais. Visando a um melhor acolhimento das mulheres na Instituição, a implantação da “Sala de Acolhimento” é uma ferramenta obrigatória e importante para aproximá-las do universo escolar e permitir que elas transitem com maior segurança nas dependências internas da Escola. Além da infraestrutura envolvendo equipamentos e materiais de escritório, necessários para a execução dos cursos (mesas, computador, impressoras, estantes, livros especializados, etc.), tivemos o cuidado em decorar o ambiente com artesanatos locais, pintura diferenciada, quadros, sofás, almofadas e objetos que elas mesNo que se refere aos processos formativos, a pro- mas foram presenteando para compor o espaço. A Sala posta do Projeto visa à qualificação e formação de de Acolhimento torna-se o espaço de referência para as mulheres cidadãs participativas na sociedade de forma alunas do início ao final do curso. autônoma, consciente e reflexiva. Por conseguinte, Outro passo importante foi a capacitação dos Gestorna-se necessária a adoção de procedimentos meto- tores Locais do Programa na metodologia referida e a dológicos que possibilitem a essas mulheres se posici- formação da Equipe Multidisciplinar, composta por um onar, analisar, falar, colocar seu ponto de vista, argu- conjunto de servidores, profissionais especialistas e parmentar, escutar, perguntar, elaborar, tornando-se sujeito ceiros que, em um trabalho articulado, colaborativo e ativo de sua aprendizagem. Para isso, é preciso que o solidário, viabilizam as ações do Programa na comuespaço escolar − o campus do IFRN em Pau dos Ferros nidade interna e externa ao Instituto. Neste sentido, a − seja um espaço vivo de interações, aberto ao real em equipe multidisciplinar ajuda no planejamento, na exesuas múltiplas dimensões, transformando-se num ato cução e monitoramento das ações do Programa, conde (re)construção do conhecimento em estreita relação forme previsão do guia metodológico (BRASIL, 2013). com os contextos em que são utilizados. Nossa equipe é formada por dois gestores locais, a asReafirmando as idéias de Freire (1996) sobre educa- sistente social, a psicóloga, o enfermeiro, a odontóloga ção, é necessária uma metodologia dialética que cons- e a gestora da incubadora tecnológica, contando ainda trua e vivencie práticas pedagógicas reflexivas, intenci- com a participação fundamental das diretoras geral e onais, críticas, emancipatória, ou seja, uma metodolo- acadêmica do campus. A disponibilidade institucional, gia que considere as habilidades e conhecimentos pré- e muitas vezes pessoal, destes profissionais tem sido vios, para, a partir deles, (re)construir o conhecimento, muito importante para a execução satisfatória do Profundamentado no “aprender a aprender” para o mundo grama. A relação com o poder público como parceiro das do trabalho e da vida, baseado na troca e no diálogo enações do Programa também tem sido muito importante, tre educadores e educandos. Nessa proposta, a resolusobretudo, no processo de mobilização das comunidação de problemas e o desenvolvimento de projetos interdes e identificação das mulheres em situação de vuldisciplinares e integradores são os modos principais de nerabilidade social. A Secretaria Municipal de Assisaprender, por meio de estratégias flexíveis que aproveitência Social auxilia na mobilização das mulheres por tem as experiências e saberes individuais das mulheres meio do contato previamente estabelecido em seus proe permitam o acompanhamento das mudanças e movigramas assistenciais. No entanto, a visita in loco nas comentos do setor produtivo e das relações sociais. munidades e o processo ampliado de divulgação e préEntão, a partir das experiências coletivas entre ges- inscrição realizada pelos próprios Institutos torna o protores(as), professores(as) e alunas na execução da meto- cesso de seleção das cem mulheres uma dinâmica mais dologia Sistema de Acesso, Permanência e Êxito, apre- democrática, sem influências políticas, beneficiando as sentaremos a seguir os relatos da construção do Projeto mulheres com maior prioridade. Tais providências ajuFlor do Sertão. dam a legitimar as ações de extensão do Programa junto Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 9-20, mar. 2014 12 Os cursos de Processamento de Alimentos, Corte e Costura e Beneficiamento de Produtos da Apicultura e Meliponicultura foram apontados pelas mulheres moradoras dos bairros Manoel Deodato, Beira Rio, Riacho do Meio, São Benedito, Manoel Domingos, Perímetro Irrigado e Centro como os mais interessantes para seu processo formativo. Visando a uma sensibilização inicial sobre organização e produção de empreendimentos de economia solidária, a aula inaugural promoveu um encontro com Neneide Lima, que possui proximidade com as mulheres por sua condição de agricultora e forte liderança na região potiguar, por meio de sua inserção na Rede de Comercialização Solidária Xique Xique e no Movimento Marcha Mundial de Mulheres.
FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR
à comunidade. Neste momento, foi aplicado o questionário socioeconômico que auxiliou a elaboração do diagnóstico da comunidade. A observação e identificação dos saberes foram fundamentais para fazer o mapeamento dos conhecimentos preliminares das mulheres, bem como para identificar os objetivos acadêmicos, o desenho dos itinerários formativos e a qualificação para a geração de emprego e renda. A identificação dos saberes é o processo que faz uma analogia entre o que o indivíduo sabe e o que pode fazer, relacionado a um propósito específico à medida que se relaciona com cursos/programas, certificações, padrão ou resultado de desempenho obrigatório (BRASIL, 2013). Diante do perfil de nossas alunas, observamos a ampla satisfação e a surpresa por parte da maioria no momento em que são selecionadas para o Programa. O acesso aos serviços públicos por meio de “favores político-eleitorais” é substituído pela inclusão a partir da noção do Direito. Tal perspectiva é sentida e faz toda a diferença no processo formativo destas mulheres cidadãs, conforme podemos atestar nos depoimentos a seguir2 , Eu sou Mandacaru, participei do Curso de Mel. Nosso primeiro encontro eu lembro como se fosse hoje: era muita gente e no momento que foi feito a pré-inscrição eu quase não acreditava quando eu soube que fui selecionada. Graças a Deus as portas se abriram! Eu vi aquilo como uma nova chance, uma oportunidade única, na qual eu agarrei com força. Enfrentei muitas coisas pra chegar nesse curso. Muitos falavam que não precisava, que não tinha o que aprender, mas eu levantei a cabeça e prossegui, e aprendi muita coisa! [...] Quando ninguém acreditava na gente, nós tivemos a oportunidade, levantamos a cabeça, e com certeza quando a gente chegar lá na frente nós chegaremos e conseguiremos porque nós perseveramos, então, vale a pena e foi ótimo esse curso. Mostra o que a gente sabe fazer e a gente pode fazer e até aonde a gente pode ir (Mandacaru, 31 anos).
Fiz o curso de Apicultura e a expectativa foi grande, porque quando eu vi as inscrições, eu fui olhar, observar e fiz. Mas não tinha esperança de ser chamada e fui chamada. Quando eu cheguei à escola, gostei muito. Assim, entrar numa escola depois de onze anos de ter parado de estudar. Então pra mim foi uma oportunidade única, gostei muito. Foi aquela expectativa, eu queria ver como era o curso, ter a oportunidade de fazer novas amizades, de aprender, de ter uma profissão. Foi uma oportunidade que o IF deu pra gente (Angico, 32 anos). Fiz o curso de Processamento de Alimentos. Eu cheguei a primeira vez aqui, eu me senti uma aluna de verdade, pois foi uma oportunidade boa que apareceu pra nós. E quando eu fui chamada, foi quando eu me inscrevi lá na capela no Manoel Deodato... Aí eu nem acreditei que eu tinha sido chamada! Eu aprendi muita coisa, principalmente em termo de autoestima, que realmente tava baixa demais. Discutir saúde da mulher foi muito bom também pra todas nós... (Catingueira, 31 anos). Quando se analisa o nível de escolaridade em que as mulheres estão, constata-se que elas trazem consigo uma aprendizagem que se deu através do cotidiano, de forma empírica, com algumas tendo inclusive completado o nível fundamental, enquanto outras permanecem na linha dos analfabetos funcionais. Considerando este cenário, a identificação de competências e habilidades anteriormente adquiridas é de extrema importância para a recuperação desses conhecimentos, na humanização do processo ensino-aprendizagem, contribuindo também para a elevação da autoestima dessas mulheres (BRASIL, 2013). Azedinha, aluna do curso de Processamento de Alimentos, narra sobre sua dificuldade de leitura, mas grande habilidade com os preparos dos alimentos:
É muito ruim você não saber ler no meio onde todo mundo sabe ler, mas você é inteligente. Tem umas lá que sabe ler e num sabe nem botar um bolo no forno e eu num sei ler e sei 2 Os depoimentos foram coletados pela pesquisadora Violeta Hofazer tudo isso. Aí disseram: essa daí também landa, em agosto de 2013, através da técnica de pesquisa qualitativa sabe fazer um bolo de leite. Aí no outro dia “Grupo Focal”. Foram entrevistadas doze alunas do curso de Procesuma delas chegou lá em casa e disse: ei, como samento de Alimentos e Beneficiamento de Produtos da Apicultura e Meliponicultura, além da entrevista individual com a professora Lué que faz o bolo de leite? Você num sabe ler, ciene Xavier, engenheira agrônoma diretamente envolvida no Projeto. num tem receita? É que ela foi fazer e não deu Visando a resguardar a identificação das alunas participantes durante certo. Mas, pelo o que eu já sei sem a receita, as entrevistas, seus nomes serão substituídos aqui por nomes de flores da caatinga nordestina. dá certo! E a mulher não sabe de nada, nem Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 9-20, mar. 2014 13
FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR
botar uma panela no fogo, e eu sei fazer de tudo, e pra mim foi uma maravilha, porque as pessoas saibam que eu sabia fazer... E se eu for chamada eu venho de novo (Azedinha, 42 anos). A realização do mapa da vida ajuda a compreender os itinerários vivenciados pelas mulheres em sua vida profissional e pessoal. Trata-se de uma ferramenta no processo de construção do Programa que objetiva criar oportunidade e ambiente para a troca de experiências de vida das mulheres, para que elas possam ser compartilhadas e então devidamente registradas, validadas e valorizadas. O método potencializa o sujeito como autor da história da sua vida, da de seu grupo, instituição ou comunidade, ou seja, as experiências podem ser narradas e registradas por seus protagonistas (BRASIL, 2013). Desde então, os conhecimentos, as habilidades, e as competências (aprendizado), além da documentação das alunas, começam a ser registrados colaborativamente entre professores(as) e alunas, por meio do portfólio. Os professores(as) são estimulados(as) a adequar suas metodologias e avaliarem seus componentes curriculares de forma mais qualitativa. Quando sensibilizados(as) e comprometidos(as), os professores(as) também relatam sobre a satisfação com a troca de experiências obtida no Programa. A matriz curricular do Projeto Flor do Sertão contempla uma carga horária de 200h, distribuídas em quatro módulos, a saber: módulo Identidade de Gênero e Cidadania; módulo de Conhecimentos Básicos (Língua Portuguesa, Matemática Básica e Informática Básica); módulo de Qualificação Profissional; e, finalmente, módulo de Gestão Pessoal e Geração de Renda. O primeiro módulo, intitulado “Identidade de Gênero e Cidadania” , é fundamental para a identificação e permanência das mulheres no Programa. As temáticas sobre gênero, autoestima, saúde da mulher, direitos da mulher, violência contra as mulheres, fortalecem os laços entre as alunas e até mesmo entre seus familiares. São vários os depoimentos que ressaltam as experiências positivas após a execução do referido módulo:
não gostava... Também a questão da saúde da mulher, porque eu tinha muitas duvidas que eu passei uma decepção muito grande na minha vida, um problema de saúde muito grande, que eu tive e tirei muitas dúvidas que eu tinha vergonha de perguntar porque quando a gente vai para os postos de saúde a gente primeiro faz aquelas perguntas mais é com muita gente presente, então, na aula eu me soltei, e perguntei até demais. [...] Porque eu tava num relacionamento com o meu marido, a gente já tava separando, sofri muito, ele me batia, fazia de tudo, depois que eu conversei com o enfermeiro e ele me orientou o que eu devia fazer, então, pronto, perdi meu medo, pois eu tinha muito medo dele, não saía pra me divertir, hoje já saio (Angico, 32 anos). Na realidade eu com minhas filhas a gente se dá muito bem, elas me apoiaram muito. Esse curso também me ensinou a ser menos estressada, violenta com minhas filhas. Eu era mesmo, mas depois desse curso melhorei muito com elas e sempre me aconselha dizendo: “Mãe, vá” . Então, meu marido veio me deixar, foi muito bom... (Cumaru, 37 anos). A relação com os companheiros também se mostra expressiva. Sair de casa, estudar, ter outras prioridades além dos serviços domésticos e cuidado com os filhos altera o cotidiano previamente estabelecido. Neste contexto, cabe fomentar o diálogo entre as partes, conscientizando sobre a importância dos direitos das mulheres ao acesso à educação e profissionalização de forma igualitária. Geralmente, a experiência no Programa mostra que elas conseguem travar a discussão, tendo, em sua maioria, resultados positivos no convívio com os maridos, mas também há relatos de rompimentos após a inserção no curso.
No começo, houve um pouco de dificuldade, porque fazia mais de 10 anos que eu tinha O que mais me chamou atenção no começo acabado meus estudos e terminado o segundo foi a autoestima, porque devido eu ser baixiano. A maioria lá em casa achava que eu não nha, gordinha, tudo que eu vestia não me caia precisava mais fazer isso. Mas eu não escubem, mas apesar de tudo, depois do curso, tei, não dei ouvidos para aqueles pensamenas professoras dando as palestras e ensinando tos negativos, levantei a cabeça e comecei a com aprendizagem, eu me empolguei, quer fazer o curso. Meu esposo no começo tinha dizer, hoje eu me orgulhei muito e me sinto aquela dificuldade, perguntava quem iria fiassim uma mulher mil. Gosto de me arrumar, car com as crianças. Mas eu dizia: “Não se que antes eu não gostava, tinha roupas, mas preocupe. Até você chegar do trabalho tem Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 9-20, mar. 2014 14
FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR
uma pessoa pra ficar com eles...”. Era a minha cunhada que mora perto de mim... E foi ótimo eu ter entrado nesse curso, e é interessante que eu lembro que nas quitas e sextas que a gente se arrumava e esperava o carro, então sempre quando a gente fazia a fila chamava a atenção do bairro, com a farda muito bonita, elegante. Bonita também, porque nós somos muito bonitas! E chamava a atenção. Aquela situação foi ótima, pois meu esposo viu que era interessante, que tinha muitas coisas boas aqui pra gente aprender. Ele viu a mudança, eu mudei por inteira. Até a forma de me relacionar com meus filhos e meu esposo. A gente aprendeu tudo isso aqui junto com as outras, então rendeu demais, foi ótimo e meu esposo ficou muito contente também com esse curso. Ele viu que minha autoestima tinha melhorado, ele viu que eu estou mais compreensiva, então ele achou que valia a pena e concordava. Veio até para minha formatura e foi meu padrinho. Ele ficou muito contente, arranjou logo uma roupa social, ele tava bem bonito e todo entusiasmado. Ele concordou e foi muito bom, e se tiver de novo a gente tá aqui pronta pra ir pra frente e pra aprender mais coisas mais interessantes pra gente aprender (Mandacaru, 31 anos). A primeira vez que eu cheguei aqui já me senti vitoriosa por estar aqui. Mas tive obstáculos para ir até o fim, porque o meu esposo me deixou vir no começo e depois não queria deixar mais. Tivemos brigas, depois a gente chegou a terminar, foi muito ruim, porque na hora que ele chegava do trabalho já tava tudo pronto, aí ele dizia: “Eu chego e você sai”. Mas tem que ser assim, a gente se separou, foi a maior bagunça, mas foi importante, passei a me valorizar mais... (Flor de cera, 40 anos).
escolar segura, acolhedora, colaborativa e estimulante, com ênfase na valorização do sujeito. Nesta perspectiva, é importante a implementação de todas as formas de apoio, em uma rede de atividades de suporte que melhorem e ampliem a capacidade da instituição em responder adequadamente à diversidade desse grupo de educandas e de suas demandas sociais, evitando, assim, a evasão. Além disso, deverá ser estruturado e implementado um conjunto de ações visando à inserção da população feminina no mundo do trabalho de forma sustentável (BRASIL, 2013). A sensibilização junto ao corpo docente e técnicos administrativos do IFRN, campus de Pau dos Ferros, vai ao encontro da percepção de que as alunas do Programa Mulheres Mil são alunas regularmente matriculadas e, portanto, possuem os mesmos direitos e deveres dos demais alunos(as). A exposição do vídeo institucional na reunião pedagógica da escola e as conversas cotidianas com os servidores sobre a proposta do Programa foram algumas ações desenvolvidas com este intuito. A grande empreitada após a seleção e o ingresso das alunas se constituía na permanência e conclusão com sucesso de um grupo tão desafiador. Desse modo, as alunas receberam uniformes, tiveram a garantia da merenda e transporte escolar gratuitos, flexibilização em horário adequado à participação das mulheres (as aulas aconteciam sempre nos dias de quinta-feira e sextafeira, nos turnos vespertino e noturno), além da participação em atividades científicas, culturais e esportivas da instituição. As alunas participaram de Encontros de Extensão da Região do Alto Oeste (em Mossoró), de feiras científicas e culturais (com exposição de bazar solidário) e aulas de dança e hidroginástica. A professora Luciene, do curso de Beneficiamento de Produtos da Apicultura e Meliponicultura, fala sobre sua experiência:
Foi um prazer me deparar com o novo e, principalmente, um prazer saber que eu estava transformando a vida daquelas pessoas. Eu não entendi que estava transformando, mas no momento em que as aulas foram acontecendo, principalmente quando chegou na Cada passo é registrado, cada momento torna-se parte técnica, eu senti a mudança delas, do uma conquista para a equipe que acompanha o Prodiscurso, do comportamento, da atitude. Engrama e as alunas que refletem sobre seus avanços e tão, uma coisa que começou como um desadesafios no processo educativo. A seguir, explanaremos fio depois foi um prazer. E agora eu não me a construção de nossa experiência relacionada à Permavejo não fazendo parte do Programa. [...] A nência e Êxito no projeto Flor do Sertão. gente reclama de coisas tão pequenas e minhas alunas têm problemas tão maiores. Sabe 3 A PERMANÊNCIA E O ÊXITO aquela coisa de você deixar de olhar pro seu A Permanência e o Êxito fazem parte de uma cultura umbigo... Eu dizia: “Meu Deus, sexta-feira inclusiva que promove a criação de uma comunidade de 6 às 10 vou dar aula!”. Mas quando eu Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 9-20, mar. 2014 15
FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR
chegava morta de cansada elas estavam todas arrumadas e polvorosas, numa energia. Eu percebia que algumas passavam o dia passando roupa, por que era lavandeira, pra ganhar R$25,00, a maioria ia passar o dia fazendo faxina, pra ganhar R$30,00, outras tinham chegado com marca de violência física e vinha muitos vezes por que tinham discutido com seus esposos, outras tinham que trazer seus filhos, por que tinha ameaçado de não ficar com a criança pra sair pra um bar pra beber, e elas trouxeram as crianças delas e s ficavam naquela angustia: “Menino, fique quieto”, querendo assistir a aula. E eu digo: “Meu Deus, tenho a vida tão confortável!”. E até porque eu to fazendo uma coisa que é minha formação, não to fazendo nada diferente, eu to simplesmente dando aula para um público diferenciado. Mas eu estou dando aula, estou sendo professora, eu estou orientando o estudante, elas são estudantes, e isso me dava uma energia muito grande, uma vontade de fazer muito grande, é como transformar com as ferramentas que você já conhece enquanto professora. Em nenhum momento fui conselheira, sempre fui professora e era a parte que elas mais gostavam era quando eu era professora, quando levava pro laboratório e ia ensinar. Não era pra dar parte de lição de vida, porque a vida delas já era muito dura, podia a vida já dar muita lição a elas, sentiam prazer nesse momento. Quando eu era apenas professora, então, pra elas, era um prazer assim imensurável, era o melhor momento, era na hora que eu tava sendo professora (Professora Luciene Xavier, Engenheira Agrônoma. O processo formativo é sempre muito revelador para as alunas, que relatam suas dificuldades e aprendizagens após a execução dos diversos componentes curriculares.
sultado. Então, eu aprendi, estou passando um pouco para os meus filhos. Tenho um filho de nove e outro de seis anos, que dependem também da matemática. E hoje eu achei uma forma mais fácil de ensinar. Na questão de português eu tenho dificuldade, mas a professora Luna também é ótima professora, nos ensinou coisas práticas também mais simples, para tirar dúvidas no nosso dia a dia. O professor de Informática também foi ótimo, nos ensinou coisas maravilhosas! Hoje eu já sei ligar e desligar o computador normal, Graças a Deus! Com essa oportunidade hoje na minha casa tem computador. Então, tenho orgulho de ter aprendido tantas coisas (Mandacaru, 31 anos). Gostei de todas as aulas, mas a aula que mais gostei foi de informática e a do laboratório. Porque a gente aprendeu a fazer muita coisa, muita coisa diferente! Aprendemos a fazer torta de frango de um jeito diferente, com o mel, aprendemos a fazer sabonete, desinfetante, amaciante e muito mais. (Fuminho, 26 anos). Na aula de informática, eu não sabia nem mexer no computador, nem ligar eu num sabia, nem pra onde ia. E na minha rua quase todo mundo tinha um computador, só não eu, porque eu dizia:“Isso é um bicho estranho”. E com a aula de informática eu comecei a aprender. O professor ensinou a gente abrir o face, olhar a internet, olhar as reportagem... Quando ele ligou o computador e ensinou a gente a fazer um desenho, quando eu fui fazer o garrancho subiu, mas hoje em dia eu aprendi e to aprendendo. Através do curso, cheguei até a comprar um computador pra mim agora (Angico, 32 anos). A formatura também traduz um momento simbólico de significativa importância para as alunas. Na ocasião, o grupo decidiu festejar, convidando seus padrinhos, familiares e amigos, e confeccionar a placa de formatura, deixando registrado no corredor e na memória da instituição a passagem das mulheres mil. São vários os depoimentos que traduzem a satisfação no momento da formatura:
Nós aprendemos muitas coisas e várias disciplinas, como Matemática, por exemplo. O professor nos mostrou que a matemática está com a gente todos os dias, ela é necessária, tudo que a gente vai fazer tem matemática. Então, nós temos que conviver com ela da melhor forma, em tudo, por mais simples que seja, existe a matemática. No meu caso, eu tenho muita dúvida na matemática, mas o professor nos mostrou que tem fórmulas bem práticas e mais simples, que dá o mesmo reConex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v.
No dia da formatura, eu me senti orgulhosa de ter recebido o diploma, numa escola dessa federal. Fiquei orgulhosa de mim mesma, de tá recebendo o diploma, gostei, e da minha 8, n. 1, p. 9-20, mar. 2014 16
FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR
vida profissional. Costumava a fazer doce pra vender e vou continuar a fazer doce pra vender e com certeza vou fazer coisas melhor já que agora eu tenho mais pratica, como doce de manga aprendi a fazer e outros tipos de doces que eu não sabia fazer. Ficou melhor pra trabalhar e mais novidade (Jitirana, 49 anos). No dia da formatura pra mim foi tudo diferente e foi muito importante, foi um dia especial que jamais vai sair do pensamento da gente, porque quando a gente vestiu aquelas becas, então, ai meu Deus! que eu acho que eu nunca vesti uma coisa tão linda! que eu fiquei tão linda, com aquela roupa, que eu não me intimidei nas fotografias e é uma coisa que eu jamais ia imaginar chegar ali. Se eu cheguei até ali eu vou mais pra frente e agora eu quero subir e não parar só por aqui. No dia da formatura, como eu já falei, meu esposo tava aqui. Eu me achei uma das mais importantes, mas eram todos importantes ali, onde todos pararam para nos observar o quanto nós estávamos felizes, com tudo que nós conquistamos. Então, não foi fácil chegar, a gente teve que passar por muita coisa pra chegar até aqui, até que chegamos e foi ótimo! Agora tem que ter uma companhia pra juntar 2, 3 ou 4 pessoas, porque 4 juntas é muito melhor pra botar um negócio, né? Então, sozinha, eu ainda não me acho capaz pra botar o negócio pra frente, mas eu acredito que um grupo com certeza é bem melhor! (Mandacaru, 31 anos)..
institucionais e políticas, de tomar na dinâmica semanal de atividades até o fim de suas aulas em si, isto é, dificuldades ligadas ao que se poderia denominar de aspectos externos ou contextuais. Comecemos por estes últimos, responsáveis diretos pela execução de apenas duas turmas por vez e, consequentemente, pela duração de exato 1 ano entre o início e o fim da demanda 2012. Apesar de, como já comentado acima, a relação com o poder público ser importante, especialmente por ajudar, pelo intermédio da Secretaria Municipal de Assistência Social, na mobilização e identificação das mulheres em situação de risco e vulnerabilidade social, passo importante para o processo de seleção das alunas, a Prefeitura de Pau dos Ferros não pôde se comprometer com o deslocamento das alunas de suas comunidades ao Instituto e em seu caminho de retorno a casa. Já firmada a vontade de toda a equipe do IFRN Pau dos Ferros envolvida com o Projeto de inaugurar o Programa com as mulheres da Cidade e frente à falta de apoio municipal no que respeita ao transporte, a única solução antojada foi o uso do próprio transporte institucional. Foi na alta demanda desses veículos para as atividades do Instituto que se achou, contudo, o primeiro entrave para a realização concomitante das quatro turmas. Ao lado disso, o fato de os professores para as disciplinas do Programa terem de integrar essa nova tarefa docente à sua carga horária letiva, às vezes já alta, gerou um processo, geralmente desgastante, de rogativas para se conseguir manter o exercício ininterrupto das aulas. Os técnicos-administrativos foram uma peça chave nesse sentido, na medida em que, muito embora com uma carga horária semanal maior do que a dos professores, mostraram-se mais sensíveis e, amiúde, mais atuantes nas atividades do Mulheres Mil.
O último ponto desses desafios externos ou contextuais diz respeito à disponibilidade espacial do IFRN. Encerraram-se as atividades das primeiras 100 Mulhe- Com o crescente aumento de atividades no Instituto − res Mil do Alto Oeste Potiguar, das primeiras 100 flores um maior número de turmas com o passo do tempo ao do sertão. Esta seção final traz − após a apresentação lado da entrada de novas modalidades de Ensino, como supra das orientações teóricas que pautam o Programa o Parfor e o Pronatec, por exemplo − reduziram signie a descrição comentada e ilustrada da metodologia de ficativamente a quantidade de salas livres. A soma desAcesso, Permanência e Êxito − algumas considerações, ses três fatores (uso do transporte institucional, sempre à guisa de relato-reflexão, sobre pontos do percurso e muito solicitado; disposição dos professores; e escasresultados dessa primeira oferta do Mulheres Mil no sez de salas de aula) impediram que as quatro turmas tiIFRN, campus de Pau dos Ferros. vessem aula simultaneamente. Como as aulas ocorriam As dificuldades enfrentadas durante a execução das apenas duas vezes por semana, para que pudessem se atividades do Programa, podemos vê-las agrupadas em adequar ao ritmo de vida dessas mulheres que, em sua dois conjuntos: as relativas à operacionalidade efetiva maioria, são mãe, esposa e dona de casa, o resultado da proposta teórico-metodológica de base do Programa dessa conjuntura foi que, agravado pela irregularidade Mulheres Mil, ou seja, relativas ao que se poderia cha- de um calendário erodido por duas greves, as quatro turmar de aspectos internos ou filosóficos; e as ligadas à mas que representam as 100 mulheres do ano letivo de formatação que as turmas tiveram, devido a questões 2012 tiveram seus cursos iniciados em Outubro de 2012 Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 9-20, mar. 2014 17 4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR
e findos somente um ano depois, em outubro de 2013. reito da Mulher, Saúde da Mulher, Empreendedorismo Na esteira dessa via, tivemos os seguintes resulta- e Economia Solidárias, todos com 8h. Esses compodos. Das duas primeiras turmas (Beneficiamento dos nentes integram os eixos de Identidade, Gênero e CiProdutos do Mel e Processamento de Alimentos Turma dadania (os três primeiros) e Gestão Pessoal e Geração I), cujas aulas se estenderam de outubro de 2012 a abril de Renda (os dois últimos). A distribuição das discide 2013, tivemos um percentual de 94,3% de concluin- plinas pelas 8 horas de aula semanais (4h em cada dia) tes, frente a 5,6% de evadidas. A primeira turma, a de esteve muito em função da disponibilidade dos servidoMel, contava com 25 alunas, das quais apenas 1 não res que iriam contribuir com o andamento dos cursos. concluiu. Da segunda turma, de Alimentos, com 28 alu- Com isso, quando era possível dividir as 4h diárias ennas, apenas 2 não puderam obter sua certificação, uma tre duas disciplinas, o ideal para a dinâmica das aulas, delas porque veio a óbito devido a problemas de saúde. um componente de 8h ainda conseguia se alongar por Um elemento fortalecedor para o grande êxito dessas duas semanas. Porém, nas vezes em que alguma disciprimeiras duas turmas que merece menção foi a pre- plina dessa carga-horária, por pedido dos professores, sença de dois gestores trabalhando em conjunto, e com tinha de ficar com 4h ininterruptas, o componente se encerrava em apenas uma semana. experiência em trabalhos sociais. A segunda metade das alunas de 2012 (Corte e CosAlgumas alunas, ao longo do curso, faltaram e, em tura Vestuário e Processamento de Alimentos Turma alguns casos, essas faltas implicavam, dadas as distriII), ocorreram de maio a outubro de 2013, tiveram um buições das disciplinas referidas no parágrafo anterior, maior percentual de não concluintes: das 50 alunas, a perda total de algum componente, o que provocava 7 (14%) não obtiveram sua certificação. Na turma de a reprovação em um componente, desabilitando, em Costura, com 25 alunas, 3 não chegaram a finalizar to- consequência, a concessão do diploma, que só é emidas as disciplinas; na de Alimentos II, foram 4. tido pelo sistema com a aprovação em todas as disciO saldo total da primeira oferta institucional do Pro- plinas. Essa situação gerou dilemas quanto à solução a grama Mulheres Mil foi o seguinte: das 103 alunas (o ser tomada. Após debates com a equipe que auxilia o excedente se deveu a 3 alunas não selecionadas, de- Programa, decidiu-se que as alunas teriam de voltar na vido ao limite de 100 vagas, mas que insistiram para oferta das próximas turmas, as do ano letivo 2013, para se manter no curso, mesmo sem o direito à ajuda de pagarem os itens perdidos. Essa foi uma razão por trás custo de R100,00 mensais), 10 não chegaram ao fim, re- das 7 alunas (das 50) que não obtiveram a certificação presentando um percentual de 91,3% de formadas con- na segunda metade das turma de 2012. Se, por um lado, ˙ tra 9,7%Algumas observações precisam ser feitas com essa decisão possa reforçar a seriedade do Programa e tenha dado às alunas a chance de retorno para terminar base nesses resultados. Um dado que chama atenção e que reflete o grau de suas disciplinas e garantir sua certificação, é possível, pertença ao Programa que se imprime em cada aluna por outro, que não tenha sido a alternativa mais feliz é o fato de as não concluintes por desistência, que não para tanto. representam o total das não concluintes, sempre terem Para além dos números, quando se pensa nos resulbuscado a gestão para relatar as razões pelas quais não tados de transformação social que um projeto subinpoderiam mais dar sequência ao curso. No geral, além titulado “cultivando igualdade de Gênero, Emprego e da aluna que faleceu, as razões mais recorrentes foram Renda no Alto Oeste Potiguar” deixa, chegamos a um mudanças para outras cidades ou viagens longas para a sendeiro que se bifurca. É notório como o trabalho decapital com o intuito de resolverem problemas de saúde. senvolvido no eixo de Identidade, Gênero e Cidadania O sentimento expresso sempre era o de perda por terem consegue gerar um impacto na vida dessas mulheres. de abandonar o Mulheres Mil. É como se elas passassem a se (re)conhecer como muOutro tópico que merece a pena introduz a segunda lher e (re)descobrissem, em seu gênero, mais um meio sorte de dificuldades enfrentadas na oferta dos cursos forte para a cidadania. Algumas de nossas alunas, esa que se fez alusão no início destas considerações fi- timuladas pelos nortes do curso no que respeita à elenais: são os desafios relativos à operacionalidade efe- vação de escolaridade, voltaram à escola: as que não tiva da proposta teórico-metodológica de base do Pro- sabia ler foram se alfabetizar tanto pelo Brasil Alfabegrama Mulheres Mil, ou seja, os desafios internos ou tizado quanto por projetos não governamentais, como filosóficos, como foram chamados. A matriz de to- o Mova Brasil, algumas que tinham apenas o Ensino dos os cursos contém alguns componentes curriculares Fundamental incompleto procuraram a Prefeitura para com pequena duração, como o são, por exemplo, Au- terminar esse nível do ensino básico e ingressar no Entoestima e Relacionamento Interpessoal, Gênero e Di- sino Médio; algumas se opuseram à situação de subConex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 9-20, mar. 2014 18
FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR
missão humana e física aos maridos, havendo caso de alunas que tiveram de se separar; a grande maioria relata como passaram a se cuidar, a se vestir, maquiar, a se amar e se autovalorizar. Nisso, certamente obtivemos o êxito. Na outra via, contudo, está a inserção dessas mulheres no mercado de trabalho. Salvo casos pontuais de ex-alunas que levaram adiante os conhecimentos aprendidos e estão comercializando seus produtos, é manifesto como este é um dos maiores barreiras a se superar. É possível que mudanças curriculares seja um meio, como o aumento da carga-horária das disciplinas voltadas à geração de renda e um replanejamento de sua ementa, para que palavras de ordem do Mulheres Mil − como“cooperativismo”,“associativismo” e“economia solidária” − tornem-se mais tangíveis como plataforma a ser buscada e efetivada na vida de egressa. Entretanto, é de dispositivos de acolhimento para o trabalho que se precisa de maneira mais urgente: incubadoras tecnológicas para a formação de associações, cooperativas, pequenos negócios são instrumentos sem os quais, parece-nos, o grande diferencial do Programa, que é driblar as relações e redes de poder social e econômico que tolhem a inserção produtiva das mulheres e reforçam sua subordinação aos homens, corre o risco de não sair do papel ou sair, quando muito, de maneira assaz tímida. Demais, acreditamos que uma igualdade de gênero de fato, para que seja sustentável, tem de passar necessariamente pela igualdade de emprego e renda. Finalizada, a experiência relatada nos mostra que precisamos aprimorar os mecanismos para: primeiro, manter e aprimorar a melhoria na autoestima e cuidado com o corpo, a vontade de continuar os estudos e ajudar os filhos no processo de ensino e aprendizagem e a ampliação de conhecimentos nas diversas áreas (português, matemática, informática, conhecimentos específicos, cooperativismo, empreendedorismo, economia solidária e gestão de negócio), elementos que, até hoje, têm apontado a importância e o resultado positivo das ações do Projeto Flor de Sertão; e, segundo, promover de modo mais significativo a elevação da escolaridade das alunas e, sobretudo, conseguir sua inserção no mundo do trabalho e no desenvolvimento dos empreendimentos de economia solidária. Alea jacta est!
constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 22 jan 2010.
REFERÊNCIAS
. Mulheres e direitos. In: Estudos Feministas. Rio de Janeiro: CIEC/ ECO/ UFRJ, 1994. v. 2, n. 3.
ARROYO, M. G. Da escola carente à escola possível. São Paulo: Loyolo, 1997.
. Atlas da Economia Solidária no Brasil. Brasília: MTE/SENAES, 2005. . Lei Maria da Penha. Brasília: [s.n.], 2006. . Manual para formadores: descobrindo outra economia que já acontece. Brasília: MTE/SENAES, 2007. . PROEJA Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos, Documento Base. [S.l.]: MEC, 2009. . Guia Metodológico do Sistema de Acesso, Permanência e Êxito. Brasília: SETEC, 2013. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index. php?option=com_content&view=article&id= 12299:programa-mulheres-mil-&catid=267: programa-mulheres-mil-&Itemid=602>. CAMURÇA, S.; GOUVEIA, T. O que é gênero. 4. ed. Recife: SOS CORPO - Instituto Feminista para a Democracia, 2004. 40 p. CORRÊA, S. Relações Desiguais de Gênero e Pobreza. Recife: SOS Corpo, 1995. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GADOTTI, M. Perspectivas atuais da educação. Porto Alegre: Artmed, 2000. IBGE. Atlas geográfico escolar. Rio de Janeiro: IBGE, 2002. . Censo demográfico: dontagem da população 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: <www.ibge.gov.br.> JELIN, E. Construir a cidadania: uma visão desde baixo. In: Lua Nova. São Paulo: CEDEC/ Paz e Terra, 1994.
MAIA, A. P. R.; FARIAS, F. T.; CARNEIRO, R. N. A violência contra a mulher na cidade de pau dos ferros/rn. revista do laboratório de estudo BRASIL. Constituição da República Federativa do da violência. Revista do Laboratório de estudo da Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, out 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Violência..UNESP/Marilia., v. 9, Maio 2012. Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 9-20, mar. 2014 19
FLOR DO SERTÃO: CULTIVANDO EDUCAÇÃO, TRABALHO E CIDADANIA NO ALTO OESTE POTIGUAR
PNUD. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. PNUD, 2003. Disponível em: <www.pnud.org.br/atlas.> POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENNAR, J. Teorias da Etnicidade. São Paulo: UNESP, 1997. QUEIROZ, F. M. de. Não de rima amor e dor: cenas cotidianas de violência contra a mulher. Mossoró: UERN, 2008. . Políticas públicas no contexto de desconstrução de direitos: desafios à materialização da lei maria da penha. In: Serviço Social na Contra Corrente: lutas, direitos e políticas sociais. Mossoró: UERN, 2010. SAFFIOTI, H.; MUNOZ, V. Mulher Brasileira é Assim. Rio de Janeiro: UNICEF/ NIPAS / Rosa dos Tempos, 1994. SCOTT, J. Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica. Recife: SOS CORPO, 1995. SINGER, P. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.
Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 9-20, mar. 2014
20
A MULHER NA FAMÍLIA, NO TRABALHO E NA DOCÊNCIA EM EAD − UMA ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA A NA C LAUDIA U CHÔA A RAUJO 1 PATRÍCIA H ELENA C ARVALHO H OLANDA 2 1
Instituto Federal do Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará 2 Universidade Federal do Ceará 1
<anac.uchoa@gmail.com>
Resumo. Entre o século passado e o começo do século XXI, a mulher tem começado a ocupar diferentes e novos espaços profissionais na sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que concilia as funções de mãe, esposa e dona de casa. Neste sentido, este texto objetiva discutir intersecções entre o trabalho exercido pelas mulheres, notadamente a docência em Educação a Distância - EaD, e os seus impactos na constelação familiar contemporânea através das contribuições de teóricos como Chodorow, Del Priore, Segnini, entre outros. Esta pesquisa é de natureza bibliográfica, metodologia baseada em Flick, Lakatos e Marconi, tendo sido realizada a partir da leitura de documentos e pesquisas que tratam da temática estudada, bem como de obras de autores especialistas em estudos da mulher. Diante das leituras e análises realizadas, esta pesquisa sinaliza a precarização da docência e a necessidade do estudo da regulamentação das leis trabalhistas para o ofício do tutor a distância, com especial atenção para o caso das mulheres, que têm necessidades específicas advindas da maternidade e que repercutem na dimensão laboral. Palavras-chaves: Mulher. Família. Trabalho. Docência em EaD. Abstract. Since the period between the last century and the beginning of the 21st Century, the woman has begun to occupy different and new professional spaces in the Brazilian society, while reconciling the roles of mother, wife and homemaker. In this sense, this study discusses the intersections between the work done by women, especially teaching in distance education programs, and its impact on the contemporary family constellation through the contributions of theorists such as Chodorow, Del Priore, Segnini, amongst others. This research has a bibliographic nature, with the methodology based on Flick, Lakatos and Marconi, having been held from the reading of documents and researches which deal with the subject in question, as well as works by authors who are experts in women’s studies. Given the readings and analyzes, this research indicates the precariousness of teaching and the need to study the regulation of labor laws for the work of a tutor in distance education programs, with special attention to the case of women, who have specific needs due to motherhood and have repercussions on the employment dimension. Keywords: Woman. Family. Work. Teaching in distance education. 1
INTRODUÇÃO
da cibercultura. Como, em nossa pesquisa mais ampla, temos estudado a relação entre o trabalho docente exercido pelas Este artigo está diretamente relacionado ao nosso promulheres, notadamente na Educação a Distância - EaD, jeto de tese de Doutorado, pertencente à Linha de Pese o fenômeno da precarização da docência, nesta pesquisa de História da Educação Comparada e ao Eixo quisa específica, temos buscado investigar as intersecTemático de Família, Sexualidade e Educação, do Proções entre o trabalho exercido pelas mulheres e os seus grama de Pós-Graduação em Educação Brasileira da impactos na constelação familiar contemporânea. UFC, cujo título é Da Formação no Ensino Normal ao Papel de Tutora no Ceará: uma genealogia da feminiPara o referencial teórico, temos nos ancorado em zação do trabalho docente e sua precarização na era autores referendados nesta temática, em virtude das Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 21-27, mar. 2014 21
A MULHER NA FAMÍLIA, NO TRABALHO E NA DOCÊNCIA EM EAD − UMA ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA
suas muitas contribuições em trabalhos que tratam da mulher na sociedade, na família e no trabalho, como Chodorow (2002), Priore (2011), Priore (2013), Segnini (1998). A importância desse estudo reside no fato de que, ao se estudar o percurso feminino na docência e divulgar seus achados, se mune o coletivo de mulheres, quer aquelas atuantes na docência ou não, quanto a informações acerca da história contemporânea da mulher brasileira no mundo do trabalho, bem como os processos de construção de subjetividades, inclusão e exclusão que o permeiam, sobretudo, no atual periodo, em que as crescentes industrialização, mecanização e virtualização das relações têm “empurrado” a mulher para o mundo além de sua casa, obrigando-a a assumir uma jornada de trabalho dupla ou tripla, dentro de uma sociedade em transição entre o conservadorismo e os novos padrões de vida e relacionamentos, num contexto crescentemente urbano. Para a elaboração deste texto, foi feita uma pesquisa bibliográfica e documental, metodologia baseada em Flick (2009) e Lakatos e Marconi (2005). O estudo foi realizado a partir da leitura de documentos e pesquisas que tratam da temática estudada, bem como de obras de autores acima citados. O artigo está estruturado da seguinte forma: na fundamentação, abordam-se a mulher na família, relacionando-a ao cenário contemporâneo mais amplo, bem como a mulher no mundo do trabalho, notadamente, aquele relacionado à docência na EaD. Finalmente, nas considerações finais, são apresentadas as compreensões advindas da pesquisa.
Em contrapartida, entender o percurso da mulher na sociedade possibilita-nos também compreender a história desta sociedade e de como são construídas suas expectativas em relação aos seus membros. Para Chodorow (2002), por exemplo, as tarefas relacionadas à maternidade são aprendidas através da cultura, sendo reforçadas e difundidas através das práticas familiares e sociais. Em outras palavras, uma mulher aprende a ser mulher e mãe com a sua mãe e tende a reproduzir com os seus filhos e filhas os modelos de ser mãe de sua genitora, aos quais foi exposta. Este fenômeno, todavia, por ser direcionado à mulher, merece ser visto no âmbito do sistema de regulação sexo-gênero e das desigualdades de ordem de gênero e sexo existentes na sociedade, os quais também sofrem interferência da esfera econômico-produtiva. Assim, não podemos perder de vista, o acúmulo gradativo de funções destinadas à mulher, não mais vista apenas como mãe, mas também operária e força-motriz da família, uma vez que [...] O incremento da instrução escolar para a população feminina foi uma demanda da sociedade capitalista. Era necessário capacitar minimamente as mulheres da classe proletária para o desempenho das atividades laborais. Ao mesmo tempo, aquelas pertencentes a classes mais elevadas passaram a ter acesso à leitura e à escrita, pois ser letrada constituía um atributo necessário à boa esposa e mãe de família (MENDÉZ, 2005, p. 52).
Destarte, se fizermos uma retrospectiva, desde a vida primitiva, quando os homens se embrenhavam na 2 FUNDAMENTAÇÃO floresta para a garantia da sobrevivência do grupo e as Fundamenta-se aqui o arcabouço teórico da temática in- mulheres ficavam confinadas nas cavernas para cuidar vestigada, procurando abordar as implicações dos múl- das crianças, foi se estabelecendo um ordenamento ditiplos papéis assumidos pela mulher na sua configura- ferenciado para homens e mulheres, de modo que aqueção como pessoa, mãe e profissional, sem deixarmos les ficaram marcados para as atividades públicas e de de considerar que o seu ingresso da mulher na família, prestígio no bando, pois estas envolviam a caça e capno mundo do trabalho e na escola é datado no tempo e tura de animais e, consequentemente, a demonstração no espaço e não está isento de circunstâncias políticas, da força e coragem e as últimas, para as atividades de pouca sociabilização externa, por serem de âmbito doeconômicas, religiosas, entre outras. méstico, como a tarefa de cuidar de criança. Com o desenvolvimento da vida em sociedade, ho2.1 A MULHER NA FAMÍLIA mens e mulheres saíram das cavernas e construíram ciInicialmente, estudar a mulher, enquanto mãe, esposa, dades, porém as tarefas divididas por sexo continuaram dona de casa e profissional, implica em “[...] apontar com a mesma divisão de outrora, embora os instrumencomo as mudanças que ocorrem na estrutura econô- tos de trabalho fossem outros e tenham provocado remica e social têm impacto sobre as organizações fa- dimensionamentos. É fato que até o período de exismiliares, gerando diferentes expectativas sobre os pa- tência da família medieval, como já explicado, toda a péis e as funções de homens e mulheres nas famílias parentela era muito próxima, as mulheres executavam e na sociedade” (DINIZ; COELHO, 2005, p. 139). as lidas domésticas com as meninas e os homens e os Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 21-27, mar. 2014 22
A MULHER NA FAMÍLIA, NO TRABALHO E NA DOCÊNCIA EM EAD − UMA ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA
meninos executavam o trabalho para o sustento fami- cuidar e reproduzir. No caso da professora tutora a disliar numa oficina geralmente situada em sua casa. Em tância, nosso sujeito da pesquisa, a sua carga horária outras palavras, as atividades eram repartidas com os de trabalho pode chegar a ser de três expedientes, sem membros da família, consoantes a competência de cada levarmos em consideração o tempo que destina aos cuium, ao mesmo tempo em que o homem mantinha o po- dados com a família e a casa. Isto é um indicativo de der de mando em relação à esposa e aos filhos, uma vez que a divisão das tarefas por sexo atravessou os tempos que as ações se davam sob o seu olhar e regência. e chegou à contemporaneidade, repercutindo nos arranNo moderno capitalismo, isto se alterou profunda- jos familiares atuais, uma vez que a mulher ocidental mente, uma vez que de dono do seu próprio negócio, continua, na sua grande maioria, sendo mais responsáo chefe da família passou a ser vendedor de sua força vel pelo cuidado dos filhos do que o homem, ao mesmo de trabalho, ter de se mostrar submisso aos seus superi- tempo em que precisa estudar, trabalhar e cuidar das taores e trabalhar distante de seu lar uma grande parte refas domésticas, conforme atesta Silva (2011, p. 1). de tempo, em função da rotina no chão de fábrica, Contudo, este modelo de sociedade com constituindo-se um duro golpe para o patriarcado, que as mulheres trabalhando somente dentro de entra, desde então, em crise Ceccarelli (2005). Somoucasa, responsáveis pela reprodução de uma se a isto o fato que a carga de trabalho extenuante deste família, e o homem como provedor, trabapai trabalhador ainda lhe tirava o ânimo e as condições lhando fora nunca ocorreu de maneira plena. de interagir com os filhos e esposa, durante a folga ou Desde sempre muitas mulheres acumulam os fins de semana. Por isto, cumpre discutirmos os imuma dupla jornada de trabalho, dentro e fora pactos vividos pela família em função do capital. de casa, e a participação das mulheres no A situação acima descrita se, por um lado, signifimercado de trabalho sob o capitalismo vem cou mais liberdade da mulher e das crianças do jugo crescendo de forma contínua. Porém, este patriarcal, no início da modernidade, por outro, esvacrescimento ainda enfrenta uma grande resisziou o homem de sua força na família, ao mesmo tempo tência social de aceitação do direito das muem que sobrecarregou a mulher, posto que além de reslheres ao emprego, e não vem acompanhado ponsável solitária pelo cuidado e educação dos filhos, da responsabilização dos homens pelo trabapassou a ser também anteparo e conforto para o marido lho reprodutivo, o que revela a atualidade do cansado e fragilizado. peso da divisão sexual do trabalho na estruNo Brasil, esta mulher foi bem representada pela setura de nossa sociedade. nhora burguesa, de posses, no século XIX e início do Entretanto, no âmbito da sociedade capitalista atual, século XX. Conforme D’Incao (2011) esta mulher, embora servisse de vitrine social e moral para o marido, a necessidade de todos estarem inseridos na cadeia procomo esposa devotada e mãe exemplar, não passava dutiva tem feito com que a família nuclear composta por nunca de uma coadjuvante, sendo restrita a sua tarefa mãe, pai e filhos sofra visíveis transformações, sobreao esteio familiar, ajudada por empregadas ou mulheres tudo nas relações de gênero, como pondera (MENDÉZ, 2005, p. 52-53). Tem-se assim o fenômeno de diversas pobres. Porém, os anos se passaram e o mundo passou por famílias chefiadas por mulheres, solteiras, divorciadas inúmeras transformações, o que nos move a investigar ou casadas, o que traz implicações diretas no ordenacomo as mulheres têm vivido em meio a isto, em busca mento da família e na distribuição do mando e do poder do entendimento das mulheres do ontem, cujas vidas que ocorre na constelação familiar. A este respeito, a 1 repercutem no nosso hoje, ou como diz Priore (2011, p. pesquisa do IBGE realizada em 2011 revela que 7), da vida das “irmãs do passado”. Foi identificado ainda um crescimento signiComo já vimos acima, as mulheres, também pela ficativo na proporção de lares chefiados por pressão do capitalismo moderno, tiveram de ocupar mulheres. No total de domicílios onde resipostos de trabalho, e logo passou a reclamar por direitos dem casais sem filhos, 18,3% têm a mulher a oportunidades iguais, pois “[...] passaram a integrar o como figura principal. Em 2001, tal propormovimento operário, lutando ao lado dos homens pela ção não passava dos 4,5%. superação do capitalismo que os oprimia [...] (MENJá 18,4% dos lares com casais com filhos têm DÉZ, 2005, p. 52-53)” na figura feminina o personagem prepondeAtualmente, a mulher trabalhadora, casada ou sol1 Trecho da reportagem intitulada IBGE: casais sem filhos e lares teira, mãe ou não, concilia os diferentes papéis a ela impostos, ainda com a sobrecarga das tarefas ligadas ao chefiados por mulheres aumentam Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 21-27, mar. 2014 23
A MULHER NA FAMÍLIA, NO TRABALHO E NA DOCÊNCIA EM EAD − UMA ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA
rante. Em 2001, as mulheres que eram casadas e tinham filhos chefiavam 3,4% dos lares. Os dados claramente nos revelam que cada vez mais mulheres assumem a dianteira financeira e, consequentemente, de mando no campo familiar, o que nos move a perguntar sobre como tem se dado a conciliação das tarefas de maternidade e de cuidado com o lar, cultural e socialmente atribuídas às mulheres, com aquelas relacionadas ao campo profissional. Isto, contudo, precisa ser estudado levando em conta que [...] a fim de se alterar efetivamente a condição de desvantagem da mulher na sociedade, faz-se necessário uma melhor compreensão do efeito limitador da maternidade sobre a participação das mulheres no mundo público, bem como das soluções que têm sido abertas e buscadas por elas para melhor lidar com a questão (COUTINHO, 2005, p. 127). No bojo destas mudanças nos contornos familiares, as quais geram novas demandas para os homens e, sobretudo, para as mulheres, podemos citar também a ocorrência do fenômeno da juventude tardia, em que filhos de trinta anos ou mais, embora empregados, preferem permanecer morando com os pais, a ter de arcar com os gastos e a responsabilidade de uma vida adulta. Há, ainda, a nova divisão das atividades domésticas, em que o homem e os filhos estão cada vez mais, em diversas famílias, partilhando com a mulher a responsabilidade pela limpeza da casa. Todas estas situações pedem a nossa análise apurada, sem que deixemos de ver a atuação feminina no mundo do trabalho. 2.2
A MULHER NO TRABALHO E NA EAD
cada vez mais mulheres. O que ilustra esta afirmação são os dados do DIEESE2 , coletados em 2009 e publicados em 2010, os quais informam que tem crescido a participação de mulheres na composição da mão de obra no setor de comércio no Distrito Federal e nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Fortaleza e São Paulo. Neste período, a quantidade de mulheres tem chegando a quase metade daquela formada por trabalhadores assalariados neste setor, ou seja, 840 mil trabalhadoras comerciárias. Um detalhe digno de menção, nesta pesquisa, é a extensa jornada de trabalho a que estas mulheres são expostas, pois embora a carga horária seja menor que a dos trabalhadores, perfaz 44 horas semanais3 . No tocante ao índice de mulheres exercendo o magistério na Educação Básica, de acordo com os dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) coletados em 2001 e disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, em 2003, há uma grande variação na distribuição de professores quanto ao sexo, levando-se em consideração a série e a disciplina lecionada. Sabe-se, também, que, em muitas cidades de nosso país, para o público feminino, a primeira opção de emprego é o magistério da Educação Infantil e dos primeiros anos do Ensino Fundamental, sendo este o principal motivo para o grande número de mulheres nestes níveis da Educação Básica. Alguns dados chamam a atenção nesta pesquisa: as mulheres são maioria na disciplina de Língua Portuguesa, independentemente da série estudada. Por exemplo, na 4a série, são 92,1% contra 7,9% de docentes do sexo masculino. Porém à medida que a série aumenta, o número de docentes do sexo feminino diminui. Quanto à disciplina de Matemática, embora, na 4a série do Ensino Fundamental, as mulheres sejam maioria, este número vai baixando gradativamente e no 3o Ano do Ensino Médio, os docentes do sexo masculino passam a ser majoritários, perfazendo um quantitativo de 54,7% conforme a tabela 1 apresentada pelo INEP, intitulada Distribuição percentual dos professores por disciplina e série, segundo o gênero e a unidade geográfica − Sis-
A mulher brasileira, ainda no passado, já trabalhava e muito, conforme atesta Priore (2013, p. 89): “Há centenas de anos, a mulher brasileira trabalha. Nos primórdios da colonização, elas foram fazendeiras, comerciantes, lavadeiras, escravas”. Na contemporaneidade, tem assumido diversos postos de trabalho e acumulado funções historicamente e social atribuídas a ela, como aquelas relacionadas à ma2 Boletim Trabalho no Comércio. Mulher Comerciária: Trabalho ternidade e aos cuidados do lar, advindas pelas modi- e Família. 3 A respeito desta temática, a pesquisa em andamento, intitulada ficações ocorridas em nossa sociedade por ocasião do Arranjos Familiares e Rotina de Trabalho das Mulheres Comerciásurgimento, expansão e consolidação do Capitalismo. rias Mulheres Professoras no Ceará: Subjetivação, Sexualidade, CiDados do IBGE (2011) em relação ao Brasil mos- dadania em perspectiva histórica e comparada, sob a coordenação tram que o percentual da população ocupada, formada das Professoras Patrícia Holanda e Zuleide Queiroz e situada na Lipor mulheres, passou de 40,5% em 2003, para 45,3% nha de Pesquisa de História da Educação Comparada e no Eixo Tede Família, Sexualidade e Educação, tem empreendido uma em 2011. Quanto aos homens, este percentual se ele- mático investigação desde o ano de 2013, que se encontra em fase inicial de ˙ vou de 60,8% para 63,4%No tocante à ocupação salarial coleta de dados e já sinaliza uma aproximação com a realidade ora feminina, além do magistério, o comércio tem atraído apresentada. Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 21-27, mar. 2014 24
A MULHER NA FAMÍLIA, NO TRABALHO E NA DOCÊNCIA EM EAD − UMA ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA Tabela 1: Distribuição percentual dos professores por disciplina e cia5 da Universidade Aberta do Brasil - UAB6 , nossos série, segundo o gênero e a unidade geográfica, Sistema de Avaliação sujeitos de pesquisa, analisar a sua atuação e sua condida Educação Básica, Fonte: MEC (2003, p. 36)
ção de trabalho no contexto da EaD, requer que façamos uma análise contextual do mundo do trabalho, a partir do instante histórico em que as mulheres se viram cada vez mais impelidas a deixar seus lares, quer por necessidade financeira, quer por necessidades acadêmicas ou pela satisfação de seus ideais, bem como pelos horizontes sociais e culturais traçados para estas mulheres. A explicação de Ribeiro (2011) parece oferecer pistas a respeito da razão do trabalho intelectual feminino e de sua utilização no mundo do trabalho:
tema de Avaliação da Educação Básica − Saeb/2001. Outro dado que chama a atenção é que a maioria dos alunos que estudam na EaD é composta por mulheres que estudam e trabalham, pois, de acordo com os dados do Censo brasileiro de EaD de 20114 , as mulheres ocupam 57% das vagas nos cursos de Educação a Distância, autorizados pelo MEC e 57% nos cursos livres (cursos de aperfeiçoamento e atualização pessoal ou aprimoramento profissional), perdendo apenas nos cursos corporativos, ofertados por meio desta modalidade, com 48% das vagas contra 52% das ocupadas por homens. Estes dados comprovam que as mulheres cada vez mais têm procurado outros horizontes formativos, ao mesmo tempo em que se inserem no mundo do trabalho, notadamente, a partir do século XX até a contemporaneidade, e que, além disto, o magistério, sobretudo, aquele ofertado para a Educação Básica, é predominantemente feminino. No entanto o magistério das disciplinas consideradas “duras”, como a Matemática, tende a ser masculino. O Censo da EaD de 2008, embora apresente o quantitativo de quase 30.000 docentes, envolvidos com a educação a distância, não apresenta os quantitativos destes profissionais distribuídos por gênero, tampouco informa se estes desenvolvem outras atividades profissionais em paralelo com a que executam na modalidade docente, uma lacuna que demanda uma pesquisa mais apurada. No caso das mulheres professoras tutoras a distân4 Reportagem divulgada na UOL, sob o título: Mulheres que trabalham são maioria em cursos a Distância.
Como se sabe, o desenvolvimento de novas tecnologias para a produção requer cada vez menos o trabalho braçal, necessitando-se cada vez mais de trabalho intelectual. Consequentemente, criam-se condições cada vez mais favoráveis para a inserção do trabalho da mulher nos mais diferentes ramos de atividade. No entanto, a crescente mecanização e o trabalho virtualizado (ou o teletrabalho) na docência em EaD ou em qualquer outro ramo de trabalho, além do próprio processo de feminização, precisam ser vistos pelo prisma do impacto que a reestruturação produtiva e reestruturação capitalista tem causado, uma vez que [...] A microeletrônica, possibilitando o desenvolvimento da automação, da robótica, da telemática, se insere no contexto de mudanças nas relações sociais, sobretudo nas relações de trabalho. Reestruturações organizacionais expressam novas relações de poder assim como a emergência de novas formas de 5 Segundo
documento do MEC (MEC, 2010, p. 8) tutor é “profissional selecionado pelas IPES vinculadas ao Sistema UAB para o exercício das atividades típicas de tutoria, sendo exigida formação de nível superior e experiência mínima de 1 (um) ano no magistério do ensino básico ou superior, ou ter formação pós-graduada, ou estar vinculado a programa de pós-graduação”. Ainda, o Ofício Circular 20/DED/CAPES de 15 de dezembro de 2011 informa que dos tutores exige-se: a) “formação na área da disciplina ou do curso em que atuam, garantindo assim a qualidade da formação em nível superior oferecida no âmbito do sistema UAB; e b) estar vinculado ao setor público, ser aluno de programa de pós-graduação de IES pública ou possuir outro tipo de vínculo com a IES de atuação.” 6 O Sistema Universidade Aberta do Brasil - UAB foi criado, de acordo com o MEC (2003), para “[...] ampliar e interiorizar a oferta de cursos e programas de educação superior, por meio da educação a distância. A prioridade é oferecer formação inicial a professores em efetivo exercício na educação básica pública, porém ainda sem graduação, além de formação continuada àqueles já graduados. Também pretende ofertar cursos a dirigentes, gestores e outros profissionais da educação básica da rede pública. Outro objetivo do programa é reduzir as desigualdades na oferta de ensino superior e desenvolver um amplo sistema nacional de educação superior a distância.”
Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 21-27, mar. 2014
25
A MULHER NA FAMÍLIA, NO TRABALHO E NA DOCÊNCIA EM EAD − UMA ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA
conflitos e resistências. Também são observáveis novas exigências quanto à qualificação no trabalho, a obsolescência de algumas funções e o desenvolvimento de outras (SEGNINI, 1998, p. 16-17). Esta reestruturação organizacional também se faz presente na EaD e implica diretamente na qualidade do trabalho da tutora a distância, no perfil desta profissional e na articulação correta e precisa de sua função com as ações executadas pelos demais componentes da equipe, uma vez que nesta modalidade [...] Normalmente cabem a diferentes profissionais as tarefas de produzir o conteúdo do curso, de organizar didaticamente o material, de converter o material para a linguagem da mídia (impressa, audiovisual, virtual, etc.), de coordenar todas as atividades de um curso e manejar/gerenciar a turma. A quantidade de membros da equipe polidocente na EaD pode variar, assim como variam suas funções. Por isso, considera-se difícil, senão impossível, um único profissional dar conta de todas as atividades envolvidas − mesmo quando detém os saberes de todos os membros da equipe [...] (MILL, 2010, p. 25). Nesse sentido, a conduta do profissional em EaD exige, de certa maneira, um sincronismo. No caso da tutora a distância, seu trabalho mobiliza diversos e novos saberes, que vão desde os didático-pedagógicos, relacionados à docência propriamente dita, até aqueles tecnológicos, que envolvem o conhecimento acerca do ambiente virtual de aprendizagem e as ferramentas tecnológicas utilizadas para a mediação entre o conhecimento e o aluno. Esta profissional, que ainda não podemos quantificar dentre o contingente total daqueles que atuam em nosso país , demanda de nós um estudo criterioso, a fim de responder às seguintes indagações: quais as suas condições reais de trabalho? Qual a sua área de formação? O ofício da tutoria a distância, remunerado por bolsa, é a sua única atividade laboral? Qual a repercussão do trabalho remunerado por bolsa e sem vínculo empregatício na atividade docente desempenhada pela professora tutora a distância? 3
para o caso das mulheres, que têm necessidades específicas advindas da maternidade e que repercutem na dimensão laboral. E se o ingresso da mulher tutora no mundo do trabalho contribui para o aumento da participação profissional feminina, pois engrossa as estatísticas nacionais, há de se pensar, porém, que tal ocupação momentânea não lhe dá nenhuma perspectiva de vínculo empregatício, o que pode caracterizar a docência virtual como um “bico”, algo que vai sendo conduzido como der. Diante destas questões esboçadas, a revisita à história das mulheres de ontem e de hoje nos faz voltar o olhar para a mulher do agora, a mulher professora da EaD. Este olhar é curioso, no sentido de investigar seus anseios e temores, as interfaces estabelecidas entre a sua vida familiar e profissional. Procuramos imaginar em que medida a mulher burguesa, dos séculos XIX e XX, se aproxima desta mulher conectada às redes sociais e à educação a distância. Cumpre, porém, perguntar: qual a distância social e econômica, além do tempo, que separa a ambas? REFERÊNCIAS CECCARELLI, P. R. Família e casal: efeitos da . Rio de Janeiro: contemporaneidade. In: Ed. PUC-Rio, 2005. cap. Violência simbólica e organizações familiares. CHODOROW, N. Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2002. COUTINHO, M. L. R. Família e casal: efeitos da contemporaneidade. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2005. D’INCAO, M. Ângela. História das mulheres no brasil. In: . São Paulo: Editora Contexto, 2011. cap. Mulher e família burguesa. DINIZ, G.; COELHO, V. Família e casal: efeitos da contemporaneidade. In: . Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2005. cap. A História e as histórias de mulheres sobre o casamento e a família. FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009. LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. de A. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2005.
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
MEC. Estatísticas dos Professores no Brasil. Ed. A pesquisa realizada nos leva a pensar na precarização PUC-Rio, 2003. Ed. PUC-Rio. Disponível em: da docência e no estudo da regulamentação das leis tra- <http://www.sbfisica.org.br/arquivos/estatisticas_ balhistas para o ofício do tutor a distância, sobretudo, professores_INEP_2003.pdf.> Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 21-27, mar. 2014
26
A MULHER NA FAMÍLIA, NO TRABALHO E NA DOCÊNCIA EM EAD − UMA ANÁLISE BIBLIOGRÁFICA
. Resolução/CD/FNDE no 8, de 30 de abril de 2010. http://www.fnde.gov.br/fnde/legislacao/resolucoes/item/3390resolu[s.n.], 2010. MENDÉZ, N. P. Do lar para as ruas: capitalismo, trabalho e feminismo. [s.n.], 2005. Disponível em: <://revistas.fee.tche.br/index.php/mulheretrabalho/ article/view/2712.> MILL, D. Polidocência na educação a distancia: múltiplos enfoques. São Carlos: EduFSCAR, 2010. MOURA, S. M. S. R. de; ARAÚJO, M. de F. A maternidade na história e a história dos cuidados maternos. Psicologia: Ciência e Profissão, scielo, v. 24, p. 44 – 55, 03 2004. ISSN 1414-9893. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S1414-98932004000100006&nrm=iso>. PRIORE, M. D. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2011. . Histórias e Conversas de mulher. São Paulo: Planeta, 2013. RIBEIRO, P. S. O papel da mulher na sociedade. [s.n.], 2011. Disponível em: <http://www.brasilescola. com/sociologia/o-papel-mulher-na-sociedade.htm>. SEGNINI, L. R. P. Mulheres No Trabalho Bancário: Difusão Tecnológica, Qualificação e Relacões de Gênero. SÃO PAULO /BRASIL: EDUSP- EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 1998. SILVA, R. Trabalhadoras, licença maternidade e a luta por autonomia econômica. [s.n.], 2011. Disponível em: <http://www.sof.org.br/textos/5>.
Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 21-27, mar. 2014
27
IMPACTOS DO PROGRAMA MULHERES MIL NA VIDA DE DISCENTES DO IFCE CAMPUS CANINDÉ R ENATA M ARIA PAIVA C OSTA 1 J ULIANA S ILVA L IBERATO2 1,2
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) Campus de Canindé 1 <renatampc5_5@yahoo.com.br>, 2 <julianasilva.liberato@gmail.com> Resumo. O presente trabalho tem como objetivo conhecer os impactos do Programa Mulheres Mil na vida das mulheres participantes, assim como observar qual importância da educação na transformação social. Trata-se de um estudo de campo realizado com o grupo de estudantes de um curso de qualificação profissional desenvolvido através do Programa Mulheres Mil no campus de Canindé, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará. A partir de uma abordagem qualitativa, tem-se a intenção de apreender as compreensões e elaborações das discentes ao vivenciarem uma experiência educacional que tem como foco a perspectiva da inclusão social. A pesquisa se desenvolve por meio de questionário estruturado com perguntas abertas, em que as estudantes podem expor, através de um discurso livre, suas opiniões sobre a experiência de participar do Programa. Dessa forma, observa-se que as mulheres que recebem a capacitação profissional por meio do Programa desenvolvem não apenas sua capacidade laborativa, mas também outras habilidades intelectuais e emocionais que poderão contribuir para a construção de sua autonomia e para o vislumbre de novas perspectivas de vida. Palavras-chaves: Educação profissional. Gênero. Inclusão social. Abstract. The present work aims to know the impact the "Mulheres Mil" Program caused in lives of women participants, as well as observe what importance education has in social change. This is a field study conducted with a group of students from a vocational qualification course developed through the "Mulheres Mil" Program on campus Caninde, from the Federal Institute of Education, Science and Technology of Ceará . From a qualitative approach, we aim there is the intention to grasp the insights and elaborations of the students when they experience an educational experience that focuses on the perspective of social inclusion. The research was developed through a structured questionnaire with open questions, in which students were able to expose, through a free speech, their thoughts about the experience of participating in the Program . Thus, it was observed that women who received professional training through the Program have developed not only their working capacity, but also other intellectual and emotional skills that will contribute to the construction of their autonomy and the glimpse of new life perspectives. Keywords: Vocational education. Gender. Social issue. 1
INTRODUÇÃO
ção capitalista. À educação, nessa conjuntura, é atribuída uma importância primordial, como instrumento que pode fornecer as ferramentas para o enfrentamento das sequelas da questão social, presentes no cotidiano das populações menos favorecidas economicamente. Ao mesmo tempo, o pouco investimento na educação aparece como fator que contribui para a intensificação da desigualdade social no país.
A perspectiva da inclusão social através da educação, na contemporaneidade, aparece como proposta para a superação de situações adversas vivenciadas por grande parte da população brasileira. Situações provocadas pelo acirramento da questão social, num cenário de capitalismo selvagem, acumulador de riqueza e socialmente excludente. Entende-se a questão social como o produto das deGrande parte da população vivencia uma situação de sigualdades sociais emergentes do sistema de produ- vulnerabilidade social em decorrência da pobreza e da Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 28-35, mar. 2014 28
IMPACTOS DO PROGRAMA MULHERES MIL NA VIDA DE DISCENTES DO IFCE CAMPUS CANINDÉ
violação de direitos. As diversas faces da questão social como o desemprego, a violência urbana e doméstica, a drogadição, a inclusão marginal, a pobreza extrema são fenômenos que permeiam a vida de indivíduos e os colocam numa posição de risco iminente, demandando ações urgentes para reverter esse quadro de degradação. Quando se faz um recorte de gênero, observa-se que quando se trata sobre vulnerabilidade social, a posição da mulher se encontra ainda mais agravada, visto que está submetida a uma condição de subalternidade e de negação de direitos. Historicamente, a posição imposta à mulher na sociedade é secundária, e isso fez com ela se tornasse vítima de injustiças que se perpetuam até hoje. A condição de subordinação da mulher no meio doméstico ultrapassa as paredes do domicílio e desemboca no âmbito das relações sociais, no trabalho, na política. A ausência de reconhecimento da mulher como um sujeito de direitos, a impossibilitou de constituir a sua cidadania, impedindo-a de ter acesso a bens, serviços e processos a que todos os indivíduos deveriam ter direito. A situação servil que a mulher sempre vivenciou, projetou na mentalidade dos seres, e dela própria, a ideia de que a submissão de suas vontades, anseios e sonhos em favor dos de outros é natural. Estar subordinada à vontade dos pais, do marido, dos filhos, dos patrões, sempre significou algo comum na sociedade, enraizando cada vez mais a concepção de que a mulher desempenha um papel secundário. Tais motivos tiraram da mulher as oportunidades de exercer a sua cidadania e a sua participação efetiva na sociedade. Motivos que também a fizeram vítima de diversas formas de violência, desde a negação do acesso à educação até à violência doméstica cometida por maridos e companheiros.
índices de violência contra a mulher e ampliar o debate em torno das questões de gênero na sociedade. Dessa forma, a necessidade de se conhecer os impactos desse Programa na vida das mulheres atendidas no campus de Canindé, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), incitou a realização desse estudo, em que são mostrados os resultados alcançados pelas discentes após concluírem o percurso formativo. A partir de uma abordagem qualitativa, a qual “[...] aprofunda-se no mundo dos significados, das ações e relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas ”(MINAYO, 2000, p. 22), a presente pesquisa buscou adentrar no universo de símbolos e conhecer o que a experiência de participar de um programa educacional proporcionou nas discentes atendidas. Por meio de questionário elaborado com perguntas abertas, puderam-se identificar com riqueza de informações, as impressões que as discentes tiveram ao vivenciarem o cotidiano de aprendizados adquiridos e construídos na instituição. Tais impressões estão expressas no trabalho, através de depoimentos contidos nos questionários de algumas participantes, para as quais são adotados nomes populares de plantas típicas do semiárido brasileiro, identificando o período de aplicação dos questionários. A escolha dos pseudônimos se deu pelo fato de aquelas plantas mostrarem força e resistência em meio a condições adversas, tal como a realidade das discentes participantes do referido Programa. 2
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O LUGAR DA MULHER NA SOCIEDADE
Muitas ações, programas e políticas hoje têm foco nas Dessa maneira, observa-se que estratégias de em- mulheres, logo se faz necessário identificar algumas bate são emergentes para reverter esse quadro e pro- questões pertinentes ao universo feminino para se comporcionar às mulheres o resgate do seu valor e da sua preender a gênese do investimento no atendimento a importância no âmbito individual, familiar e na socie- esse público. dade, sendo, portanto, fundamental a implementação Por muito tempo a mulher ficou relegada a uma pode ações que forneçam as ferramentas de transformação sição secundária, resignada em sua condição de suborda vida das mulheres, para que elas possam vislumbrar dinação, numa sociedade marcadamente patriarcal, em novas possibilidades em suas realidades. Assim, a edu- que seu papel pouco ou nunca ultrapassava o de procricação emerge como meio de identificar oportunidades adora. À “rainha do lar” eram reservadas as funções de de acesso, de inclusão e de constituição da autonomia cuidadora da casa, da família, de mantenedora das condesses seres, tornando-as aptas a construir sua história e dições favoráveis à reprodução da sobrevivência. Uma exercer os seus direitos. Uma das estratégias organizada tarefa árdua para a qual não era, na maioria das vezes, pelo Estado é o Programa Mulheres Mil, no âmbito da atribuído o valor merecido. Com o passar dos tempos, educação, o qual visa fornecer capacitação profissional no entanto, a mulher começa a ultrapassar os limites para mulheres, bem como objetiva alcançar a elevação então impostos a ela, principalmente quando se dá sua de suas escolaridades. Aliado a esse objetivo central, o entrada no mundo do trabalho, pois ela começa a se perreferido Programa pretende contribuir com o fortaleci- ceber como sujeito dotado de potencial de transformamento da política de igualdade de gênero, diminuir os ção. Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 28-35, mar. 2014 29
IMPACTOS DO PROGRAMA MULHERES MIL NA VIDA DE DISCENTES DO IFCE CAMPUS CANINDÉ
A entrada das mulheres na cena coletiva, através da reivindicação de seus direitos civis e políticos, da incorporação expressiva no mercado de trabalho remunerado fora do lar, e do acesso aos diferentes níveis educativos trouxe - ao mesmo tempo - uma fratura do espaço público, tradicionalmente considerado território masculino, com a constituição paralela de um espaço predominantemente feminino (CRUZ, 2012, p. 190). Principalmente a partir do século XX, se observa essa ruptura com a ideia ultrapassada de que o lugar da mulher é no ambiente doméstico. Pelo contrário, nessa conjuntura, entende-se que o seu lugar é onde ela quer estar, participando ativamente da cena social, nos âmbitos político, educacional, religioso e cultural. A partir desse movimento, observa-se o despertar para a luta por igualdade de condições, em que a mulher pudesse ter possibilidades de construção de sua cidadania, até então negada. Dessa forma, o público feminino identifica seu espaço e busca pela ampliação dele, num processo de constate reconhecimento de seus direitos. Cruz (2012, p. 190) ressalta que, é importante destacar que, mais do que conquistas efetivas marcadas pelo século passado, as possibilidades concretas de superação das desigualdades sobre as quais a nossa sociedade está assentada dependerão da organização e participação de homens e mulheres nos espaços de decisão da sociedade civil. A questão da igualdade se realiza quando a mulher se reconhece como sujeito de direitos, os quais devem ser respeitados e exercidos em sua plenitude. Assim, o marco para o reconhecimento e auto reconhecimento da mulher como sujeito de direitos ao longo do século passado foi a sua participação na vida política e no mundo do trabalho. Ela, então, emerge como ser dotado de poder de decisão sobre sua vida e sobre uma coletividade. Há ainda de se considerar que a entrada e permanência da mulher nos espaços educacionais, onde se observa um processo de elevação da escolaridade, em muito contribuiu para que ela pudesse questionar a sua posição no cenário social.
A entrada no mundo do trabalho, a inclusão educacional e o reconhecimento como sujeito de direitos impulsionou a mulher a cobrar ações específicas para a sua categoria. Várias conquistas foram observadas, a partir do momento em que a mulher saiu da passividade e começou a atuar na sociedade em busca de melhorias para a sua condição. Mais ainda, ela busca igualdade de condições e de acesso, num processo de construção da sua história, da sua autonomia e sua emancipação. Não obstante a isso, percebe-se que num panorama de acirramento da questão social, as mulheres sofrem os seus impactos mais fortemente, com a crescente expulsão e/ou não inserção no mundo do trabalho e com a dupla ou tripla jornada por sua sobrevivência e de suas famílias. São situações que o sistema capitalista impõe, em que esses sujeitos ou se tornam reféns ou se rebelam contra ele, inaugurando um processo de busca por melhores condições de vida. Com isso, observa-se que a mulher vem reivindicando o exercício dos seus direitos, num movimento que força a elaboração de respostas para suas demandas por parte do poder público e da sociedade como um todo. Dessa forma, a pressão que é exercida sobre esses atores expressa a constituição de ações que visam atender às necessidades e anseios desse ser. Pode-se citar, por exemplo, a criação da Secretaria de políticas para Mulheres junto à Presidência da República e a constituição do Plano Nacional de Políticas para Mulheres, exigências de movimentos sociais e feministas. Assim, torna-se fácil compreender que a expansão de programas, projetos e políticas voltadas para o público feminino não se deu por acaso, mas a partir de um grande processo de rupturas e construções de novos consensos sobre o lugar da mulher na sociedade e o papel exercido por ela.
É perceptível, entretanto, que apesar desse processo de transformação, ainda há muito a ser superado. A mulher, neste século, ainda vivencia situações de degradação, subalternidade e negação de direitos. Realidades em que se identificam cenários de violência doméstica contra mulheres; situações de desigualdade no mercado de trabalho, onde mulheres que exercem a mesma profissão de homens são remuneradas com valores inferioCom a expansão da escolaridade, mudanças res; situações de degradação da imagem quando é coculturais levaram a revisão do papel social locada em posição de objeto com apelo sexual. Enfim, das mulheres, constatando-se sua maior partiainda se faz necessária à ampliação de políticas públicipação nas lutas sociais, impulsionando uma cas específicas para mulheres, visando a efetivação dos nova visão do papel das mulheres na sociedireitos da mulher, num exercício constante de respeito dade (CRUZ, 2012, p. 195). a sua dignidade. Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 28-35, mar. 2014 30
IMPACTOS DO PROGRAMA MULHERES MIL NA VIDA DE DISCENTES DO IFCE CAMPUS CANINDÉ
3
PROGRAMA MULHERES MIL NO IFCE CAMPUS DE CANINDÉ
O Programa Nacional Mulheres Mil, elaborado pelo Ministério da Educação (MEC), surge como alternativa para oportunizar ao público feminino o acesso ao sistema educacional, proporcionando o aprendizado de novos saberes capazes de instrumentalizar as mulheres assistidas para constituição de seu processo de emancipação. “Por meio da formação e elevação de escolaridade, pretende-se dar-lhes condições de melhorar seu potencial de empregabilidade, a qualidade de suas vidas, de suas famílias e de suas comunidades” (BRASIL, 2012a, p. 3). Inúmeros cursos de qualificação profissional são desenvolvidos nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) em todo o país, ofertando uma gama de conhecimentos em diversas áreas de atuação profissional. A oferta de capacitação profissional pelo IFCE campus Canindé às mulheres, em situação de vulnerabilidade social, severamente atingidas pela questão social, viabilizada pelo Programa Mulheres Mil, cumpre com o compromisso dos IFs em promover a cidadania e inclusão social e das Metas Estabelecidas pelo Termo de Acordos e Metas-TAM junto ao MEC. No conceito de inclusão, temos que abrigar o combate a todas as formas de preconceitos, também geradores de violência e intolerância, através de uma educação humanista, pacifista, preocupada com a preservação da natureza e profundamente vinculada à solidariedade entre todos os povos independentemente de fronteiras geográficas, diferenças étnicas, religiosas ou quanto à orientação sexual (PACHECO, 2010, p. 10).
com recursos naturais precários e com parco desenvolvimento econômico, em que as oportunidades de acesso a bens e serviços necessários à plena sobrevivência da população são limitados. O município de Canindé está localizado a 120 km de Fortaleza, capital do Ceará, na região denominada Sertões de Canindé, que compreende os municípios de Boa Viagem, Canindé, Caridade, Itatira, Madalena e Paramoti. Com uma área territorial de 3.208.462 km2 , Canindé apresenta uma população de 74.473 habitantes, de acordo com o censo demográfico de 2010, sendo que 36.912 são homens e 37.561 são mulheres. Parte dessa população se encontra na faixa etária de 15 a 39 anos de idade, correspondendo a 40, 50% do total. Deste montante, 20, 37% são de mulheres nessa faixa de idade. O território urbano concentra a maioria da população, em que se verifica uma massa de 46.875 habitantes, e na zona rural se identificam 27.598 habitantes. Dessa maneira, observa-se a existência de uma população predominantemente urbana e jovem, a qual demanda um maior compromisso com o desenvolvimento de políticas nas áreas de educação, saúde, trabalho e assistência social. No que se refere ao cenário econômico, Canindé apresenta como principais atividades aquelas ligadas aos setores de Agropecuária (11,62%), Indústria (29,63%) e Serviços (58,74%), segundo dados da Prefeitura Municipal de Canindé. Observa-se, assim, que o setor de serviços é a base da economia canindeense, com destaque para as atividades ligadas ao comércio varejista. A hotelaria e alimentação são outros serviços que vêm ganhando ênfase na economia, devido ao potencial turístico religioso presente no município. Evidencia-se, no entanto, que os setores econômicos são incapazes de absorver a demanda de emprego/trabalho apresentada pela população, deixando parte desta sem os meios de produção e reprodução da sua sobrevivência. Dessa forma, muitas famílias que se encontram em situação de pobreza compõem uma imensa lista de beneficiários de programas de transferência de renda do governo federal, como o Programa Bolsa Família. De acordo com dados da gestão do Cadastro Único em Canindé, atualmente mais de 13 mil famílias são beneficiárias do Bolsa Família, cuja renda é a principal ou única utilizada para suprir as necessidades básicas dessas famílias.
Nesse sentido, a educação deve estar afinada com a construção de uma nova sociedade fundada na igualdade política, econômica e social, numa perspectiva democrática e de justiça social. Assim, os IFs apontam uma proposta que vincula a educação a um projeto democrático, comprometido com a emancipação dos segmentos explorados e com a superação da desigualdade social e de gênero. O campus de Canindé aderiu ao Programa Mulheres Mil no ano de 2012 e procurou atender, prioritariamente, as mulheres da zona urbana da cidade, moraSemelhante a tantos outros municípios brasileiros, doras das áreas periféricas, em que a questão da vulne- Canindé vivencia uma realidade de escassez, tanto no rabilidade social é mais evidente. Isto porque as situa- aspecto referente aos recursos naturais, quanto no que ções de pobreza e violação de direitos incidem veemen- remete ao usufruto dos produtos do capital. A desigualtemente. Considerando-se ainda que, se trata de um mu- dade social é evidente e se expressa da forma mais pernicípio situado no interior do estado, numa região árida, versa quando se observa as condições precárias em que Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 28-35, mar. 2014 31
IMPACTOS DO PROGRAMA MULHERES MIL NA VIDA DE DISCENTES DO IFCE CAMPUS CANINDÉ
vive grande parte da população. Principalmente na peNo que se refere à escolaridade, observou-se que o riferia da cidade, percebe-se a realidade de privações acesso à educação foi restrito, visto que do grupo de que centenas ou milhares de famílias vivenciam, e se trinta (30) mulheres, treze (13) tinham o ensino fundaencontram em situação de vulnerabilidade social, prin- mental incompleto e apenas nove (9), o ensino médio cipalmente em decorrência da pobreza. completo. E, ainda, 16 (dezesseis) estavam afastadas Levando-se em consideração essas características dos estudos há mais de 10 anos. Em se tratando da sido município, foi formada então a primeira turma do tuação profissional, constatou-se que 13 (treze) mulhePrograma em Canindé, sobre a qual foi feita a presente res estavam em busca de emprego (desempregadas), 6 pesquisa. Seguindo a metodologia preconizada pelo (seis) nunca trabalharam fora e 11(onze) se declararam Programa em atuar na perspectiva da inclusão, formou- autônomas (mercado informal de trabalho). A heterogeneidade de público tratado incitou o dese um grupo de 30 (trinta) discentes com um perfil hesafio de elaborar uma intervenção afinada com a especiterogêneo, composto por mulheres de idades e escolarificidade do grupo e comprometida com o propósito de dades diferentes, porém com vivências comuns como o fornecer uma formação profissional de qualidade, capaz matrimônio e a maternidade precoces, o abandono dos de instigar o espírito crítico, criativo, empreendedor e estudos, o desemprego, dentre outras situações. laborativo das mulheres atendidas. Tal compromisso se A composição da turma se efetivou a partir de um mostrou necessário, visto que as educandas ingressaram processo que envolveu uma rede de parceiros, detentonessa nova realidade acadêmica cheias de expectativas res de um conhecimento mais aproximado do públicoe desejos de atingir metas planejadas, mas que por inúalvo do Programa. Nesse sentido, buscou-se estabelecer meros motivos, foram abandonadas. um diálogo com entidades da sociedade, como a PastoTrabalhar com as expectativas dessas mulheres é um ral Social, o Sindicato de Trabalhadores Rurais, o Terricampo bastante complexo, pois se faz necessário uma tório da Cidadania e a ONG Instituto Vida Melhor, a fim abordagem cuidadosa, para que novas frustrações não de subsidiar na seleção das participantes. Ao conhecer a fossem experimentadas por elas. Pessoas que diversas realidade do município mais de perto, esses parceiros se vezes tiveram sonhos podados e que, como numa esapresentaram como fundamentais para a identificação pécie de proteção, custam a acreditar em promessas. das regiões menos favorecidas, em que a necessidade Desse modo, as mulheres atendidas chegaram cheias de intervenções nas áreas de saúde, educação, trabalho de expectativas e ávidas por oportunidades capazes de e assistência social são mais urgentes. Dessa forma, tais transformarem suas vidas. Diante disso, o desafio se contribuições foram básicas para a identificação dos sutornou ainda maior, era preciso desenvolver uma a interjeitos participantes do Programa; muitos deles marcados por histórias de perdas e negação de direitos, que, venção profissional fundada no compromisso ético de em muitos casos, eliminaram ou adiaram a construção fornecer uma educação de qualidade; de maneira que de projetos e objetivos pessoais. São realidades que se novas perspectivas de vida fossem vislumbradas e noentrecruzam e que são permeadas de riqueza de expe- vos meios de construir uma vivência o mais aproximada riências, fazendo do grupo um campo de exploração de do ideal de autonomia e emancipação fosse possível. potencialidades e talentos até então reprimidos. As estudantes eram moradoras da zona urbana da 4 AS EXPECTATIVAS DAS EDUCANDAS DO PROGRAMA MULHERES MIL NO IFCE cidade, na sua maioria, residentes nos bairros perifériCAMPUS DE CANINDÉ cos, onde a pobreza é mais incidente. São eles: Alto Guaramiranga, Bela Vista, Monte, CAN, João Paulo II, Ao se abordar a temática das expectativas das educanCampinas, Matadouro, Santa Luzia, Cachoeira da Pasta das do Programa Mulheres Mil, percebeu-se que muitos e Palestina. A faixa etária das mulheres atendidas vari- de seus anseios giravam em torno de uma perspectiva ava de 20 a 54 anos de idade, a maior parte pertencente economicista, em que a busca por condições de satisfaà faixa de 25 a 34 anos de idade. zer as necessidades básicas de reprodução da vida era A questão da vulnerabilidade social das alunas fi- mais emergente. São sujeitos que vivenciam uma recou evidente, quando se observou os dados relativos alidade de desigualdades, mas que a ela resistem e se à renda familiar, pois a renda per capita familiar era opõem. Seres que reivindicam o básico para a sobreviinferior a meio salário mínimo em 100% dos casos. vência, em que Considerando-se ainda que a renda familiar era composta por atividades remuneradas eventuais, comple[...] o básico expressa algo fundamental, prinmentada por benefícios de programas sociais do gocipal, primordial, que serve de base de susverno. tentação indispensável e fecunda ao que a ela Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 28-35, mar. 2014 32
IMPACTOS DO PROGRAMA MULHERES MIL NA VIDA DE DISCENTES DO IFCE CAMPUS CANINDÉ
se acrescenta. [...] o básico requer investimentos sociais de qualidade para preparar o terreno a partir do qual maiores atendimentos podem ser prestados e otimizados (PEREIRA, 2007, p. 26).
observam que o mais importante são os meios de garantir a sobrevivência cotidiana. 5
IMPACTOS DO PROGRAMA MULHERES MIL NA VIDA DAS DISCENTES DO IFCE CAMPUS DE CANINDÉ
Com a análise das entrevistas realizadas no processo A proposta do Programa Mulheres Mil em si, ultrade seleção das discentes, observou-se que, quando passa o fornecimento de conhecimentos técnicos para a questionadas sobre as expectativas quanto à participaprofissionalização e busca atingir a perspectiva de proção num curso profissionalizante e à obtenção de uma ver também uma formação mais completa, do ponto de qualificação profissional, o desejo da inclusão no mervista teórico-crítico. Até mesmo porque um dos procado de trabalho foi o objetivo mais almejado. pósitos do referido programa é trabalhar o processo de Do grupo de 30 (trinta) mulheres, 11 (onze) gosta- autonomia e emancipação cidadã. riam de participar do curso de capacitação profissional As diversas disciplinas estudadas para além do para ter mais oportunidades de trabalhar, de arrumar um campo da profissionalização contribuíram para que as emprego. Obter mais qualificação para atender ao mer- mulheres pudessem ter uma leitura mais apurada da recado de trabalho foi a resposta de 05 (cinco). Quanto alidade. Foi dada a elas a oportunidade de refletir sobre às expectativas, 06 (seis) disseram que suas expectati- a dinâmica da sociedade, ultrapassar o senso comum vas eram aprender uma profissão, 07 (sete) almejavam e tecer um olhar crítico sobre o seu papel e lugar no aumentar a renda familiar por meio do aprendizado de mundo, bem como sobre os direitos que lhes assistem. uma profissão e 01 (uma) possuir uma certificação. Di- Sendo assim, ao término do curso, quando lhes foi feita ante dessas manifestações, considerou-se que, no seu uma consulta avaliativa, observou-se que para muitas núcleo, o fator preponderante era o econômico. Mostra- alunas dessa primeira turma, as experiências difundidas se então, uma das facetas mais incidentes da questão nas aulas foram além do repasse de métodos e técnicas social, ou seja, a precarização das relações de traba- para o aprendizado de uma profissão. É o que se pode lho, que influi negativamente na realização das condi- observar no depoimento a seguir. ções objetivas de vida, acirrando cada vez mais a situa“Para mim foi uma experiência bastante agradável. ção pobreza. Como se pode perceber em alguns depoiSempre tive muita vontade de fazer um curso assim e mentos, existe o desejo de se conquistar um lugar no não tive a oportunidade, mas agora consegui e por isso mercado de trabalho para se garantir as condições de sou uma privilegiada. Tentei aprender o máximo que sobrevivência delas e de suas famílias: deu, não desperdicei nada do que esteve disponível para “Espero ter mais oportunidades no mercado de mim. E agora que terminei estou me sentindo mais pretrabalho e possuir uma certificaçãó” (Q. Malva em parada para o sucesso” (Q. Catanduva em maio/2013). maio/2013). Assim, percebe-se que o curso ofertado pelo Pro“Espero ter um aprendizado e que tenha a chance de grama Mulheres Mil desperta as discentes para uma arrumar um emprego e melhorar as condições familia- compreensão de mundo mais elaborada, que visa reperres” (Q. Chanana em maio/2013). cutir na tomada de atitudes condizentes com a posição “Espero ter muito aprendizado e maior oportuni- de sujeitos sociais que podem protagonizar mudanças dade de trabalho” (Q. Camará em maio/2013). nos âmbitos individuais e coletivos. “Espero que seja uma oportunidade de me capaciPara 60% das estudantes, a capacitação profissiotar para o trabalho e melhorar a renda” (Q. Bugi em nal ofertada pelo Programa superou suas expectativas, maio/2013). principalmente por envolver conteúdos de disciplinas Na verdade, as expectativas das estudantes pode- complementares, como ética, direitos das mulheres, arriam se resumir em uma só: a busca por uma qualifi- tes, empreendedorismo e língua estrangeira, as quais as cação profissional certificada, que oportunizasse a en- instigaram a estudar, refletir, questionar, propor; e, as trada e fixação no mercado de trabalho. O cunho eco- incitaram a superar a mera posição de espectadoras e nomicista das respostas é facilmente explicado quando receptoras de conteúdos prontos. Assim, nessa experise leva em consideração que as demandas objetivas de ência, as discentes tiveram a oportunidade de elaborar, reprodução da vida são tão gritantes e urgentes que não de construir o conhecimento, como se pode verificar nas sobra espaço para outros anseios além do trabalho. É falas abaixo: evidente que outras aspirações permeiam a vida dessas “Me senti muito feliz que eu aprendi a ver coisas que mulheres, mas ficam relegadas a segundo plano quando não tinha visto, e saí com mais vontade de aprender” (Q. Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 28-35, mar. 2014 33
IMPACTOS DO PROGRAMA MULHERES MIL NA VIDA DE DISCENTES DO IFCE CAMPUS CANINDÉ
Jacarandá em maio/2013). “Me senti de fato assistida, como aluna, como mulher. Nos deram a vara pra pescar e os rios de oportunidades estão aí, basta cada uma de nós buscar” (Q. Jurubeba em maio/2013). Um fator relevante observado foi o acesso a um serviço qualificado. Acostumadas a serem alvo de “políticas pobres para os pobres”, permeadas de ações pontuais, serviços precários e de baixa qualidade, as discentes mostraram-se satisfeitas em estar envolvidas num projeto educacional com o suporte de profissionais qualificados e de uma estrutura adequada. Numa conjuntura em que as estatísticas são mais relevantes, os números se sobrepõem à eficácia e eficiência das ações; a questão do acesso não se resume apenas à quantidade de sujeitos atendidos, mas à quantidade de atendidos com qualidade, numa perspectiva de se superar um processo de inclusão marginal. Um dos impactos que se pode considerar como positivo revela-se no âmbito da motivação das discentes. O retorno aos bancos escolares propiciou o ressurgimento da vontade de avançar nos estudos, mesmo daquelas que se encontravam há mais de uma década afastadas da escola. Aliado a essa motivação, existe o sentimento de superação das limitações e de poder ir além do que está posto, num exercício constante de elevação da autoestima. Ao observar-se os depoimentos das discentes, percebe-se que a participação no Programa Mulheres Mil representou um marco em suas vidas, em que puderam se identificar como sujeitos de um processo. “Quando me inscrevi pensava que era apenas curso de costura, mas quando cheguei aqui tudo era além do que imaginava” (Q. Mulungu em maio/2013). “Me senti muito lisonjeada, porque tudo que conquistamos foi com muito esforço. Vou sair daqui mais forte, sabendo que posso enfrentar a vida” (Q. Jurema em maio/2013). Assim, mais do que a conclusão de um percurso formativo, a experiência no Programa traduziu o verdadeiro sentimento de ser partícipe de um processo de construção e continuidade, o qual não se encerraria com a certificação, mas se daria, a partir de então, o início de novas configurações em suas vidas.
dade social é crescente e de difícil combate. A educação, nesse sentido, na contemporaneidade, se apresenta como meio mais eficaz para transformação social, para auxiliar os indivíduos na superação das problemáticas causadas pelo agravamento da questão social. Porém, é inegável reconhecer que a educação cada vez mais se rende a atender às demandas do capitalismo, dada a exigência e urgência de preparação de mão de obra qualificada para o trabalho, para a geração do lucro e da acumulação. Não se pode esquecer, ainda, de que a educação é um direito a ser exercido em sua plenitude, e não um bem a ser mercantilizado; e, cabe ao Estado garantir a efetivação desse direito. Além disso, é necessário uma educação que contribua para o protagonismo e emancipação humanos. Assim, pode-se dizer que o Programa Mulheres Mil desenvolvido no campus de Canindé proporcionou impactos positivos ao grupo de mulheres atendidas, que vai desde a capacitação profissional até a elevação da autoestima. Não se pode desconsiderar, entretanto, que são necessários maiores investimentos, humano e material, para o melhoramento do Programa, pois para manter a qualidade do serviço prestado, é imprescindível o compromisso institucional em buscar meios de desenvolver o Programa sem se afastar do objetivo de contribuir para a inclusão social de mulheres, processo que exige articulação com as demais políticas públicas de governo, as quais como indica Silva (2010):
6
REFERÊNCIAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] devem estar articuladas a políticas macroeconômicas que garantam um crescimento econômico sustentado; a geração de emprego; a elevação da renda proveniente do trabalho e, sobretudo, a redistribuição de renda ainda altamente concentrada no Brasil (SILVA, 2010, p. 156). É passível de reconhecimento ainda, a necessidade de um maior investimento do Governo Federal em políticas inclusivas para mulheres, bem como para os segmentos estigmatizados da sociedade, como jovens, negros e idosos. Faz-se necessário que políticas sociais públicas sejam implementadas urgentemente, a fim de que se minimizem as sequelas da questão social, tão evidentes na contemporaneidade.
De acordo com a experiência documentada referente BRASIL. Guia metodológico do sistema de acesso, à primeira turma do Programa Mulheres Mil no IFCE permanência e êxito. Brasília: MEC, 2012. campus de Canindé, observou-se que, de fato, as es. Termo de Acordos e Metas. Brasília: MEC, 2012. tudantes imprimem na educação a chance de encontrar subsídios para superação de situações adversas, tí- CRUZ, M. H. S. Trabalho e condições de vida de picas da sociedade em que se vive; onde a desigual- mulheres na realidade brasileira. In: Conhecimento Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 28-35, mar. 2014 34
IMPACTOS DO PROGRAMA MULHERES MIL NA VIDA DE DISCENTES DO IFCE CAMPUS CANINDÉ
feminista e relações de gênero no Norte e Nordeste brasileiro. São Luís: Redor, 2012. MINAYO, M. C. de S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 23. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. PACHECO, E. M. Os institutos federais: uma revolução na educação profissional e tecnológica. Natal: IFRN, 2010. 26 p. PEREIRA, P. A. P. Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. São Paulo: Cortez, 2007. SANTOS, J. S. Questão social: particularidades no Brasil. São Paulo: Cortez, 2012. SILVA, M. O. da Silva e. Pobreza, desigualdade e políticas públicas: caracterizando e problematizando a realidade brasileira. Revista Katálysis, scielo, v. 13, p. 155 – 163, 00 2010. ISSN 1414-4980. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& pid=S1414-49802010000200002&nrm=iso>.
Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 28-35, mar. 2014
35
RESPONSABILIDADE SOCIAL DENTRO DO IFCE: RESULTADOS INICIAIS DO PROJETO MULHERES DE FORTALEZA J ULIO C ESAR F ERREIRA L IMA1 S IMONE O LIVEIRA DE C ASTRO2 1
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) Campus de Fortaleza <juliocesar@ifce.edu.br> 2 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) <simone@ifce.edu.br>
Resumo. Ações de responsabilidade social são desenvolvidas nas mais variadas áreas do conhecimento e em diversos tipos de instituição em busca de uma engenharia social, pedagógica e didática útil à sociedade contemporânea. Nesse caminho, o Instituto Federal do Ceará (IFCE) administra o Projeto Mulheres de Fortaleza (PMF) como ferramenta agregadora de conhecimentos entre discentes, docentes e a comunidade, visando diminuição da exclusão econômica de mulheres em situação de vulnerabilidade, conscientização de seus direitos como cidadãs e aumento no nível de escolaridade. O objetivo do trabalho é o de examinar de que maneira o PMF influenciou no desenvolvimento da cidadania e na melhoria econômica das participantes das duas primeiras turmas. O presente artigo se caracteriza, pois, em um estudo de caso com abordagem de caráter quantitativo, utilizando-se de método indutivo, para se chegar a uma conclusão ampla sobre a eficácia da referida ação social. Participaram da pesquisa 31 sujeitos, correspondendo a exatamente 50% das participantes. A análise dos resultados demonstrou que, embora as discussões sobre cidadania tenham sido proveitosas, não ocorreu o regresso dessas ao ambiente de educação formal, tampouco elas foram incluídas no mercado de trabalho. Sendo assim, dois dos principais eixos do Projeto não obtiveram êxito com as turmas iniciais. Palavras-chaves: Ação Social. Educação. Cidadania. Gênero. Abstract. Social responsibility actions are developed in various fields of knowledge and at different types of institution seeking a social, pedagogical and didactic engineering which can be useful to contemporary society. Therefore, the Instituto Federal do Ceará (IFCE) administers the Mulheres de Fortaleza Project (MFP) as a tool for aggregating knowledge among students, teachers and the community, aiming the decrease of economic exclusion of women facing vulnerable situations, the awareness of their rights as citizens and the increase of their educational level. The objective of this paper is to examine how the MFP influenced the development of citizenship and economic improvement of the participants of the first two groups. This research has been conducted as a case study with a quantitative approach, using the inductive method, to reach a broad conclusion about the effectiveness of this social action. 31 subjects participated in it, accounting for exactly 50% of the participants. The results showed that although discussions about citizenship have been fruitful, they neither led the women back to the formal education environment, nor were they included into the labour market. Hence, two of the principal purposes of the project did not succeed with the initial classes. Keywords: Social action. Education. Citizenship. Gender. 1
INTRODUÇÃO
pessoas não apresentam formação educacional básica ou, às vezes, a educação escolar é suficiente apenas para incluí-las no grupo de analfabetos funcionais 1 . Dentre
Há no Brasil, como em vários outros países ainda não 1 Analfabeto funcional é a pessoa capaz de decodificar números, classificados como desenvolvidos, um grande número de pessoas em situação de baixa renda. Várias dessas letras, frases, sentenças e até mesmo textos curtos, porém sem desenConex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 36-46, mar. 2014 36
RESPONSABILIDADE SOCIAL DENTRO DO IFCE: RESULTADOS INICIAIS DO PROJETO MULHERES DE FORTALEZA
esses indivíduos, um grande número é de mulheres possuidoras de famílias e muitas vezes mantenedoras das mesmas. As causas que levam essas mulheres a se encontrar nessa situação são as mais variadas possíveis. Dentre as principais estão: • Abandono ou morte do cônjuge provedor financeiro da família; • Número elevado de filhos que a obriga a ter muito tempo de dedicação às tarefas do lar; • Falta de políticas públicas que envolvam um maior número de pessoas (principalmente mulheres) no mercado de trabalho e • Falta de certificação escolar que possibilite a inserção dessas mulheres nesse mercado. Uma pesquisa intitulada“A mulher brasileira nos espaços públicos e privados”2 constatou a crescente participação feminina como chefes de famílias. Segundo o estudo, mais de 75% dos domicílios brasileiros são providos por mulheres, se constituindo como as principais provedoras em uma entre cada três famílias. Em comunidades classificadas como carentes, normalmente há escassez de escolas de ensino básico (fundamental e médio), precariedade do ensino existente ou dificuldade por parte dos pais em matricular seus filhos e mantê-los na escola durante os anos compulsórios. Outros problemas existentes nesse tipo de comunidade são a deficiência de saneamento básico, de iluminação pública adequada, de áreas de lazer, de segurança pública, de residências com infraestrutura mínima de conforto e segurança; e seus moradores não se encontram inseridos no mercado de trabalho formal, muitas vezes pela falta de preparação profissional. Uma saída para diminuir esse tipo de desigualdade social é, de acordo com Menezes (2007): [...] a implantação de uma proposta social na área da cidadania e educação, e especificamente na questão do gênero no feminino, para facilitar e ampliar as idéias, propostas e conhecimentos, colocando as mulheres diante do terceiro milênio, como protagonistas. Romper com tais princípios a partir de novas leituras implica em mudanças concretas, objetivas e também subjetivas. O governo brasileiro admite que através da equidade e da promoção da cidadania se pode melhor alicerçar volver habilidade para solucionar operações matemáticas e interpretar textos. (nota do autor) 2 Pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2001.
uma democracia produtora de resultados mais sólidos. Dentre suas ações, é criado em 2006 o Projeto Mulheres Mil, inserido nas prioridades das políticas públicas do governo, valorizando e articulando temas atuais como a promoção de gênero, equidade e diversidade étnica, essenciais à formação de uma sociedade justa. Sobre a questão de gênero, Menezes (2007) afirma que: Pensar sobre a mulher, em relação à cidadania e sua representação social, no Brasil, é pertinente, tendo em vista a discrepância entre o que dizem as leis e teorias e a prática de vida do conjunto das mulheres brasileiras localizadas nas classes populares. Elas são mães, donas-de-casa, trabalhadoras e dinâmicas, mas pouco visíveis na sociedade da qual fazem parte, ainda em sua maioria excluídas da plena vivência como cidadãs participantes, atuantes e presentes no encaminhamento de suas ações no e para o mundo. Segundo o que consta no próprio documento de criação do Projeto Mulheres Mil: O propósito do projeto é contribuir com o desenvolvimento da competência da rede CEFET3 no nordeste e norte do Brasil visando desenvolver as ferramentas, técnicas e currículo para oferecer, em um período de quatro anos, a um mínimo de 1000 mulheres desfavorecidas os serviços de acesso, capacitação e relações com empregadores que lhes permitam entrar ou progredir no mercado de trabalho (BRASIL, 2006, p. 2)4 . O Projeto Mulheres Mil foi subdividido em subprojetos implantados em 13 estados brasileiros das regiões norte e nordeste e executados pelos Institutos Federais locais. No Ceará, o projeto integrante foi denominado Mulheres de Fortaleza (PMF), com alusão direta ao nome da capital do estado e à conotação do adjetivo “fortaleza” como sinônimo de vigor e solidez. O PMF objetiva, dentre outras ações, criar condições de melhoria para mulheres de uma área da cidade considerada carente, dando-lhes a oportunidade de construírem seus portfólios individuais (modelo de currículo incluindo conhecimento formal e informal). Visa também, ofertar cursos de capacitação na área de Turismo para promover uma melhoria na qualidade de 3 À época da elaboração do projeto, os Institutos Federais ainda são denominados de CEFETs 4 ACCC é a sigla para Association of Canadian Community Colleges.
Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 36-46, mar. 2014
37
RESPONSABILIDADE SOCIAL DENTRO DO IFCE: RESULTADOS INICIAIS DO PROJETO MULHERES DE FORTALEZA
vida das mesmas e da comunidade a que elas fazem parte; colocá-las no mercado de trabalho; fomentar a criação de cooperativas ou empreendimentos próprios; e encaminhá-las para a continuidade de seus estudos. Para isso, o ensino funcionará como ferramenta para agregar a essas mulheres em situação de risco, valores de consciência e uso de sua cidadania, buscando incluílas mais profundamente no meio social onde elas vivem. 2
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
como fator de integração desse indivíduo com a sociedade. A partir de então, educação é agente formador de cidadania. O conceito ligando educação à cidadania é declarado inclusive pela Lei federal no 7044/82 (apud CAVALCANTI, 1989) que afirma haver uma legislação de ensino que tem entre seus fins propostos para a educação, a formação para a cidadania. Coombs (1976) avaliava que as escolas não seriam capazes de dar uma contribuição adequada para os importantes programas educacionais, se não fossem organizadas em classes menos numerosas, em prédios e terrenos melhores e se não tivessem materiais de instrução de boa qualidade, entre outros fatores. Como ferramenta estimulante da melhoria da educação deve-se buscar atingir uma formação social e política do indivíduo e para isso procura-se lançar mão de uma educação para a cidadania, que não seja invasiva, nem imposta exclusivamente por lei. Também, faz-se necessária a consciência que essa cidadania, mesmo que pensada por especialistas, deve sempre ser adaptada a cada caso e época, através de discussões diretas com os educandos. Caso a escola queira realmente educar para a cidadania, ela deve manter seu ideal primeiro e básico da formação de indivíduos capazes de comandar suas vidas pessoais e com isso, participar da vida da comunidade. Nesse sentido de desenvolvimento de uma consciência cidadã, Perrenoud (2005) defende que é preciso trabalhar em pelo menos três registros. Em primeiro lugar, a educação precisa desenvolver o poder intelectual do aluno, para que ele saiba adaptar-se às situações ímpares da vida e possa objetivamente opinar e embasar seus pensamentos com argumentação lógica. Em um segundo momento, a educação deve permitir ao aluno dominar o rumo da sua própria vida pela inteligência, não pela violência. Para isso, poder-se-ia desenvolver uma postura reflexiva e incluir a ética na discussão, em vez da submissão cega à autoridade da ciência e do professor, utilizando-se assim de saberes racionais e do respeito à maneira de ser e à opinião do outro. Por último, a educação moderna e democrática deve estabelecer tempo, meios, competências e variados recursos didáticos em um trabalho mais intensivo e continuado sobre os valores, as representações e os conhecimentos que todo contrato social pressupõe, para que se atinja um fim educacional mais exitoso. Talvez por esse motivo, tenta-se aplicar junto aos alunos de cursos superiores do IFCE, a reflexão sobre responsabilidade social através de ações elaboradas e executadas por eles. De acordo com Ashley (2003, p. 56), responsabilidade social pode ser entendida como:
O enfoque destacado nesse artigo trata a educação dentro do funcionalismo, corrente sociológica defendida principalmente por Émile Durkheim, para quem a sociedade apresenta instituições com funções específicas. Quando essas funções não operam corretamente, levam ao desregramento da própria sociedade. Por isso, deve haver uma total integração dos indivíduos com o entorno social. De acordo com Durkheim (1975), a educação e todas as instituições representativas do processo educacional pertencem a uma rede de integração dos indivíduos com o entorno social, e por isso, sofrem influência do tempo e do meio. Além disso, proporcionam uma maior capacidade de autonomia do indivíduo, corroborando a ideia de que educação tem uma importância eminentemente social. Sendo assim, o lar, a escola e a comunidade devem trabalhar em perfeita harmonia para que as necessidades do educando sejam atendidas. A escola é somente o lado mais concreto do caráter institucional do ensino. Freire explica todo o caminho trabalhado na busca diária pela libertação de um maior número de indivíduos através da educação. Educação não apenas como sinônimo de transmissão de conhecimento, mas como ferramenta ativa que permite o indivíduo a participar da construção da estrada da sua própria vida. Segundo Freire (1997, p. 11), é preciso “pensar a prática enquanto a melhor maneira de aperfeiçoar a prática. Pensar a prática através do que se vai reconhecendo a teoria nela embutida.” O tipo de ação desenvolvida pelo PMF é defendido também por Perrenound (2005), uma vez que ele vislumbra uma educação enveredada por caminhos diversos e que desenvolve a intelectualidade dos educandos para uma melhor adaptação a situações inusitadas. Com isso, esse educando pode tomar decisões mais acertadas através de reflexão e ajudar no desenvolvimento da sociedade. Seguindo a mesma linha de pensamento, Cavalcanti (1989) lembra que o processo educacional não deve ser admitido como existente apenas dentro de um confinamento nos limites do indivíduo, mas deve ser visto O compromisso que uma organização deve Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 36-46, mar. 2014 38
RESPONSABILIDADE SOCIAL DENTRO DO IFCE: RESULTADOS INICIAIS DO PROJETO MULHERES DE FORTALEZA
ter para com a sociedade, expresso por meio de atos e atitudes que afetem positivamente, de modo amplo, ou a alguma comunidade, de modo específico, agindo proativamente e coerentemente no que tange a seu papel específico na sociedade e na prestação de contas para com ela.
onando. A satisfação de funcionários possibilita uma fidelização à empresa e consequentemente um melhor desempenho na produção. Esses resultados podem ser intensificados, quando ações sociais estão diretamente voltadas para funcionários, alunos e/ou seus familiares. Lima (2005, p. 25) corrobora o pensamento de Tenório sobre o papel das instituições às questões de desenvolvimento econômico e ambiental quando diz que:
O despertar da responsabilidade social não apre[...] cresce a opinião em torno da idéia de que senta um histórico cronológico óbvio, porém, pode-se é necessária uma redefinição do papel da emdizer que junto com o filantropismo, diversos acontecipresa na sociedade, pois, mesmo estando simentos sociais passaram a ocorrer com mais frequêntuada na esfera econômica, as empresas são cia desde o começo do século XX. Acontecimentos tidas como agentes sociais que são partes incomo, êxodo rural, aceleração na urbanização de mitegrantes da sociedade; portanto, devem parlhares de cidades no mundo todo, formação de sinditicipar não apenas com a oferta de produtos catos de trabalhadores e greves podem ser apontados e serviços, mas com respostas efetivas aos como exemplos do início de uma mudança de consciênproblemas sociais e ambientais, muitas vezes cia frente à necessidade de se buscar uma maior igualocasionados por ela, e também, aos aspectos dade social. Essas ações apresentaram-se com mais antiéticos de suas atuações. força e organização nos anos 60, nos Estados Unidos, e popularizaram- se quando chegaram ao continente euEssas transformações em nível de consciência mosropeu na mesma década. tram que crescimento econômico deve estar alicerçado A visão filantrópica ou assistencialista, até então diem bases sólidas através de estratégias empresariais e fundida no âmbito de ações sociais, dá lugar a um novo de ensino competitivas, mas focadas em soluções sociparadigma, que encara a participação de empresas e de almente corretas, ambientalmente sustentáveis e econoinstituições de ensino como componentes ativos da ecomicamente viáveis. nomia, demandando recursos diversos para investimenVárias das ações de responsabilidade social exercitos e que assim devem responder positivamente, com das por empresas estão ligadas à educação. Conseguereciprocidade econômica e social. Para Souza (1996), se, com essa parceria, uma influência mais generalizada o fato inovador nas ações de responsabilidade social é no conjunto dos sistemas públicos de ensino. Souza a parceria com os governos, para propiciar uma melho(1996) aponta que o trabalho em conjunto dos setores ria na qualidade dos serviços públicos e políticas gopúblico e privado trouxe resultados significativos para vernamentais. Essa nova modalidade de trabalho social países latinoamericanos e assinalam um possível camidemonstra que o poder público é capaz de cuidar do nho para a efetividade nas ações de responsabilidade acesso aos serviços sociais, contudo apresenta dificulsocial das empresas. dades para melhorar a qualidade dos mesmos. Não querendo transferir a inerente responsabilidade Tenorio (2006, p. 129) vê a responsabilidade social social do Estado, programas educacionais ou assistencicomo um investimento em cidadania e vai um pouco ais que tragam um maior envolvimento do setor privado mais além da questão meramente social, quando diz que e do setor público com a sociedade civil, impulsionam a responsabilidade social busca “equilibrar as variáveis o desenvolvimento humano e social, ajudando na meeconômicas, sociais, éticas e ambientais em torno de lhoria da qualidade de vida da sociedade. É evidente um grande objetivo; a permanência da humanidade no a crescente tendência de participação empresarial em planeta.” Como se percebe, a tríade educação, cidadaquestões sociais no mundo todo. Assim, todos saem nia e responsabilidade social não pode ser dissociada ganhando, uma vez que as empresas investem em suas no conceito de mundo contemporâneo e por isso camiimagens; instituições de ensino trabalham o desenvolnha sempre em direção a melhoria dos indivíduos e do vimento do educando de forma global através de uma planeta. consciência cidadã; e o povo tem minimizadas algumas Instituições, especialmente empresas privadas, utilidas mazelas sociais. zam agora essas ações como um recurso para minorar a premissa empresarial de que “o desejo de lucro impera sobre os interesses da sociedade.” É o que afirma Lima 3 MATERIAS E MÉTODOS (2005, p. 22), embora não se possa negar que o exce- A pesquisa teve como principal objetivo demonstrar dente financeiro seja o que mantém as empresas funci- possíveis transformações provocadas pela aplicação dos Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 36-46, mar. 2014 39
RESPONSABILIDADE SOCIAL DENTRO DO IFCE: RESULTADOS INICIAIS DO PROJETO MULHERES DE FORTALEZA
cursos profissionalizantes de manipulação de alimentos A coleta foi planejada para ser realizada nas duas e governança no cotidiano das participantes do PMF. primeiras semanas do mês de fevereiro de 2011. TodaPara isso foi pesquisado o perfil familiar das participan- via, o prazo se estendeu e todo material foi preenchido tes, o nível de escolaridade, a empregabilidade antes e nos meses de fevereiro e março de 2011 na Casa do depois do Projeto e o envolvimento das mesmas com Saber, localizada na comunidade do Pirambu, em Forconceitos trabalhados e atividades desenvolvidas. taleza, entre às 14h00 e às 17h00. Os resultados advindos do questionário foram tabuUtilizou-se o método de abordagem indutivo, lados através do software aplicativo Statistical Package elaborando-se uma análise de resultados provenientes for the Social Sciences (SPSS) que possibilita além de de observações de um caso da realidade concreta. Nesse um estudo analítico, a transformação de dados em inmétodo, o processo indutivo caminha de fatos singulaformações importantes através do cruzamento de resulres em direção a uma conclusão ampla. Na presente tados. As figuras geradas a partir desses dados foram pesquisa, as constatações particulares e em conjunto produzidas no EXCEL. ocorridas com as participantes das duas primeiras turOs sujeitos fornecedores dos dados para a presente mas do PMF levaram à elaboração de generalizações análise se restringiram às participantes da primeira sobre o norte e eficácia da ação social. Contudo, esturma (2008-2009) e da segunda turma (2009-2010) do sas generalizações só permanecerão caso nada seja feito PMF que participaram das palestras, oficinas e cursos para mudar a realidade das próximas turmas e devede manipulação de alimentos e governança. No final rão sempre ser consideradas como verdades para as turda coleta de dados atingiu-se o índice de 50% de parmas pesquisadas apenas, ponderando-se também sobre ticipantes das duas turmas, sendo que 16 pertenciam à o momento do levantamento de dados. primeira turma e 15 participantes à segunda. A amostra Do ponto de vista dos objetivos, a pesquisa é explocaracteriza-se, portanto, por ser uma amostra acidenratória, por apresentar como finalidade uma maior famital, ou seja, composta pelas participantes que decidiram liarização com o problema estudado, aqui representado aparecer e colaborar com a pesquisa. pelos resultados iniciais obtidos com participantes do PMF. As pesquisas exploratórias são, juntamente com as descritivas, as que habitualmente realizam os pesqui- 4 RESULTADOS E DISCUSSÃO sadores sociais preocupados com a atuação prática, fato A faixa etária das entrevistadas apontou para um grupo que aparece nesse trabalho pela inquietação para a des- expressivo, que está em idade bastante produtiva para o coberta dos resultados de uma ampla ação de respon- mercado de trabalho (Figura 1). Os dois maiores grupos sabilidade social dentro do IFCE. Objetiva-se, então, o somados chegaram a 91%. Com isso, é demonstrado aprimoramento das atividades desenvolvidas no Projeto que a maioria das participantes está apta a se inserir no com o intuito de obter melhores resultados no futuro. mercado de trabalho formal, por ainda estar em idade A investigação possui uma abordagem de caráter pró-ativa, entre 18 e 40 anos, podendo ser absorvidas quantitativa, pois traduz alguns dados em números para facilmente por empresas ligadas ao ramo hoteleiro ou classificação e análise; e como um estudo de caso, apro- à cadeia de estabelecimentos de alimentação da cidade priado aqui porque permite apreender e retratar a visão de Fortaleza. Os outros 9% das participantes, que espessoal dos seus participantes, além de que é um estudo tão acima dos 40 anos de idade podem encontrar difiaprofundado sobre um ou poucos objetos para um am- culdade de inserção no tipo de empresa citada anteriplo e detalhado conhecimento de um fato isolado. ormente, mas nada as impede de participar, de forma Elaborou-se, então um questionário com 16 pergun- também ativa, de cooperativas criadas em sua comunitas como instrumento de coleta de dados que consistia dade como forma de inserção econômica e social. em um conjunto de questões pré-elaboradas, sistemáA segunda e a terceira perguntas estão relacionadas tica e sequencialmente, e dispostas em itens. O criado para demonstrar a posição da mulher como necessária para a presente pesquisa foi entregue às mulheres par- para manter ou auxiliar na renda familiar. O estado civil ticipantes do Projeto Mulheres Mil e respondido sem a e a quantidade de filhos são essenciais para que não seja participação/intermediação do pesquisador. O questio- negligenciada a real importância de inserção e permanário traz um pequeno cabeçalho explicativo sobre os nência dessas mulheres na economia formal, no intuito objetivos da pesquisa, a importância da colaboração e de suprir suas famílias com fatores básicos de sobreo resguardo do sigilo; como também perguntas de tipos vivência, como primeiro passo de uma vida digna. Só variados: dicotômicas (no 6 e 15), semiabertas (no 7, 12 esses fatores já exigiriam de qualquer ação social ime 14) e de múltipla escolha (no 1, 2, 3, 4, 5, 8, 9, 10, 11, plantada na comunidade do Pirambu, um compromisso 13 e 16). maior com a empregabilidade, fazendo com que houConex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 36-46, mar. 2014 40
RESPONSABILIDADE SOCIAL DENTRO DO IFCE: RESULTADOS INICIAIS DO PROJETO MULHERES DE FORTALEZA
Figura 1: Faixa etária. Fonte: do autor (2012). Figura 3: Quantidade de filhos. Fonte: do autor (2012).
vesse uma mudança palpável no cotidiano das famílias e, consequentemente, uma verdadeira mudança na qualidade de vida dos indivíduos. Enquanto 32% das entrevistadas se declararam solteiras (Figura 2). Essa porcentagem caiu para 23% ao responderem que não possuíam filhos, ou seja, 9% das mães não contavam formal ou permanentemente com a ajuda de um cônjuge, mas já possuíam dependentes diretos. Todas as casadas, ou mulheres com relação estável, representando 58% do total, declararam possuir pelo menos 1 filho. Aumentando o número de mulheres com filhos, que estão à frente de suas famílias ou são responsáveis diretas pela criação de sua prole, somouse a parcela de mulheres separadas ou divorciadas e que representavam 10% do total da amostra, todas com 1 ou mais filhos.
de tempo das mesmas de integrarem um projeto cujas atividades foram desenvolvidas 3 vezes por semana, no horário entre 13h30 e 17h30. Sendo esse horário considerado ainda comercial para a maioria das atividades profissionais, subentende-se que elas se encontravam sem um compromisso formal de trabalho. Tal problemática foi confirmada e agravada quando as entrevistadas declaram a renda familiar. A maioria, 78% das mulheres, afirmou que a renda familiar estava em até 1 salário mínimo e apenas 3% declarou que a renda somada dos membros da família era de mais de 3 salários mínimos. O PMF se apresentou, então, como uma saída para a situação financeira precária, jogando esperança para um futuro melhor de muitas famílias. Na verdade, essa (re)colocação no mercado formal de trabalho é um dos objetivos centrais do Projeto. Diferente do que se pensou inicialmente para a seleção das participantes do PMF, a porcentagem de mulheres com o ensino médio completo foi alta, chegando a 55% do total. Os 45% restantes estavam divididos entre os outros níveis de escolaridade, variando entre o ensino fundamental incompleto e o ensino médio incompleto. Ninguém declarou que não frequentou a escola, nem tampouco que iniciou ou terminou algum curso univerFigura 2: Estado civil. Fonte: do autor (2012). sitário. Como o PMF objetiva também o incentivo do retorno ao ensino formal e o aproveitamento dos conheO número de mulheres com prole superior a 2 fi- cimentos prévios, nenhuma candidata foi inicialmente lhos é de 29% das entrevistadas, número maior ainda excluída por possuir o que é considerado pela maioria, que o de mulheres sem filhos. Ao final, chega-se a um bom nível de escolaridade, representado pelo tér77% das entrevistadas apresentando prole (Figura 3), mino do ensino médio. tornando-as peça importante para a economia de suas A variedade dos níveis de escolaridade forneceu famílias. Essas famílias, com os dois cônjuges ou ape- boas oportunidades de se trabalhar com o reingresso das nas a pró-genitora, devem ser passíveis de uma preo- mulheres ao ambiente escolar regular, aumentando ascupação maior em relação à manutenção financeira dos sim o nível educacional de mais brasileiras. Os resulmembros, devido à situação de vulnerabilidade, que faz tados do PMF começaram a se delinear a partir desse parte de um grande número de moradores da comuni- ponto. Ao responderem sobre a orientação da importândade do Pirambu. cia do aumento do grau de escolaridade, como forma de A dificuldade financeira enfrentada pelas morado- maior facilitação de ingresso no mercado formal de traras do Pirambu foi corroborada com a disponibilidade balho, atingiu-se o número de 87% de participantes que Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 36-46, mar. 2014 41
RESPONSABILIDADE SOCIAL DENTRO DO IFCE: RESULTADOS INICIAIS DO PROJETO MULHERES DE FORTALEZA
se lembraram de tal fato. Faz, realmente, parte do cotidiano das atividades do PMF, o esclarecimento sobre o tema por parte de professores, palestrantes e equipe executora. Desta forma, a disseminação de uma consciência sobre o valor da educação formal para a melhoria da sociedade foi transmitida de forma objetiva para as participantes. Porém, a prática não foi parte subsequente da teoria. Ligada à pergunta anterior, a próxima indagação tentou descobrir se as participantes regressaram à escola depois do término das atividades do PMF. Infelizmente, apenas 16% respondem afirmativamente. Esse número representa precisamente 5 mulheres. É necessário dizer que 4 já cursavam o ensino médio; não foi na verdade um retorno, mas sim, uma continuação de seus estudos, uma vez que elas não haviam abandonado a escola. Uma participante, apenas, se interessou em fazer mais cursos profissionalizantes. Tem-se, então, 84% das participantes que não retomaram o caminho da educação formal. Para essa pergunta semiaberta surgiram explicações para a não retomada dos estudos formais como: a satisfação com o nível educacional já adquirido, a necessidade de cuidar de filhos ainda jovens, a simples falta de interesse e principalmente a necessidade de um emprego se sobrepondo a qualquer outro desejo. A exclusão econômica foi mais uma vez apontada como fator de preocupação e urgência na vida das mulheres, pois delas dependiam muitas vezes, outras pessoas como filhos e, às vezes, até mesmo, maridos ou companheiros. As oitava, nona e décima perguntas estão ligadas aos cursos oferecidos pelo PMF. A maioria de 91% das mulheres participou dos dois cursos, sendo que os 9% restante participaram de apenas um curso por motivos pessoais ou simplesmente por terem se inserido no Projeto após o início das atividades. A participação no curso de Manipulação de Alimentos apenas é de 6% e os outros 3% participaram somente do curso de Governança.
prévio nas áreas estudadas (Figura 4).
Figura 4: Experiência. Fonte: Do autor (2012).
As três perguntas se analisadas juntas, demonstram grande participação nas atividades principais do PMF e acerto na escolha das áreas profissionalizantes oferecidas, através da identificação das participantes com um ou ambos os cursos, ainda que não possuíssem experiência anterior nas áreas estudadas. Mesmo não mostrando o desempenho das mulheres nos referidos cursos, pressupõe-se que o objetivo de qualificação é atingido com a conclusão e certificação das participantes. Justificando o interesse das mulheres de participarem de um projeto social que objetiva, entre outras coisas, a inclusão no mercado de trabalho, a décima primeira pergunta descobre que 94% das entrevistadas estavam desempregadas quando se inseriram no PMF. Os outros 6% realizavam alguma atividade informal como modo de subsistência, ou seja, não possuíam direitos trabalhistas, por não estarem oficialmente inseridas no mercado. Todavia, é a figura a seguir que é preocupante para os objetivos do PMF.
Ocorre uma maior identificação das participantes com o curso de manipulação de alimentos. Segundo os questionários, 54% se identificaram mais com esse curso, 23% preferiram o curso de governança apenas, Figura 5: Trabalho atual. Fonte: do autor (2012). e o mesmo percentual, 23%, mantiveram identificação com ambos os cursos. O treinamento para manipuPassado já um ano do término das atividades com a lar alimentos agradou 77% das participantes por relacionar as atividades estudadas com aplicações práticas segunda turma e dois anos com a primeira, 52% das enpara o cotidiano familiar, onde as mulheres poderiam trevistadas ainda declararam estar desempregadas. Adifacilmente utilizar o aprendizado para uma melhor qua- cionando a esse percentual o número de mulheres que lidade de vida dentro de suas próprias residências. Es- estão trabalhando sem carteira assinada, chegou-se a ses dados não foram substancialmente influenciados por 68% do total. Atingiu-se 94%, quando foi somado tamexperiência anterior, pois ao responderem à décima per- bém o percentual de 26% de mulheres, que estavam gunta, a maioria de 84% se declarou sem conhecimento com alguma ocupação, mas em outra área que não as Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 36-46, mar. 2014 42
RESPONSABILIDADE SOCIAL DENTRO DO IFCE: RESULTADOS INICIAIS DO PROJETO MULHERES DE FORTALEZA
exploradas pelo Projeto. Trabalhou-se, então, com apenas 6% das egressas do PMF como resultado efetivo. Essa porcentagem final não é representativa para um dos eixos norteadores do Projeto que é o de inserir todas, ou a maioria das participantes, no mercado de trabalho formal como meio de transformação e melhoria social. Não se atingiu nem 50% de inclusão econômica através da inserção na rede hoteleira ou gastronômica local. Tampouco foram criadas cooperativas ou empreendimentos que absorvessem a mão de obra advinda do PMF. Inicia-se, pois, a necessidade de uma reflexão sobre o trabalho realizado e de atitudes a serem tomadas, que possibilitem a modificação dos resultados aqui apresentados para as próximas turmas. Como fatores ratificadores da necessidade de inserção econômica formal das mulheres da comunidade do Pirambu, encontram-se na Figura 6, suas expectativas no que diz respeito às possibilidades de aceitação de emprego. As entrevistadas se dividiram ao apontar áreas de trabalho de sua preferência ou outras perspectivas para suas vidas. Elas se colocaram, na maioria das vezes, aptas a se inserirem em variados ambientes de trabalho, pois o que estava em jogo, a priori, era a superação de dificuldades advindas da instabilidade econômica presente na família. De acordo com Moraes (1994, p. 495), “as mulheres brasileiras, discriminadas e oprimidas, como na maior parte das sociedades, constituem, entretanto, um dos segmentos que mais se destacam na luta pela universalização dos direitos sociais, civis e políticos.”
cação em um desses empreendimentos, enquanto 26% não pensam em trabalhar para terceiros, mas gerenciar seus próprios negócios. Esses desejos de inserção no mercado de trabalho podem ter partido, principalmente, de esclarecimentos sobre empreendedorismo, que ocorreram durante os dois semestres de atividades. Também como resultado do incentivo dado para a formação de seus próprios negócios, 6% das entrevistadas declararam-se interessadas em formar cooperativas solidárias, para que juntas pudessem trabalhar e dividir experiências, produção e resultados. Essas três respostas alcançaram juntas 65% do total e foram as mais positivas para os objetivos do PMF, pois pode ser notado claramente um desejo de mudança, a partir dos trabalhos realizados. Nota-se aqui um resultado positivo das discussões sobre cidadania como forma de exercer direitos e cumprir deveres sociais; obrigações que devem ser de livre acesso de todos, como também, servir a todos igualmente. Essa consciência corrobora o pensamento de Menezes (2007) ao afirmar que: [...] através do estudo da representação social da cidadania feminina, é possível estabelecer uma visão mais clara de como a mesma se organiza no universo do senso comum, lidando com a compreensão das próprias mulheres sobre as questões que as cercam, numa sociedade patriarcal, androcêntrica e neoliberal (MENEZES, 2007). Contra os dados positivos apresentados anteriormente, 26% das entrevistadas demonstraram desânimo com o aprendizado ao escolherem o item da pergunta 13 que indicava a pretensão de trabalhar em uma área que não estivesse ligada aos cursos oferecidos pelo PMF. A opção surgiu a partir da observação e avaliação, por elas mesmas, das atividades desenvolvidas durante os dois semestres. Algumas apenas não se identificaram com os cursos profissionalizantes, mas muitas mulheres sugeriram mais aulas práticas como algo para ser aprimorado nas turmas seguintes. Dois depoimentos ocorridos depois da entrega do questionário foram:
Figura 6: Interesse de trabalho. Fonte: do autor (2012).
Eu acho que deveria ter mais aulas práticas na parte da camareira e da cozinha. Fazendo Percebe-se o crédito posto no PMF, pela seriedade mais cama e limpando o quarto direitinho, a da instituição executora, dos parceiros e dos objetivos gente chegaria no (ao) hotel do estágio com expostos inicialmente para as participantes. O maior menos medo de errar. Rapidez na hora de faíndice de interesse é o de uma posição de trabalho em zer a cama foi impossível pra (para) mim. Na um hotel ou restaurante, talvez por estas serem as áreas cozinha, fizemos poucos pratos na (em) midos cursos oferecidos e as entrevistadas estarem ainda nha opinião. Se tivesse mais tempo pra (para) ansiosas para aplicar o que foi visto na teoria durante os a gente na cozinha, a gente podia fazer mais estudos. 33% delas ainda mantêm esperança de colopratos e até inventar alguma coisa. Poderia Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 36-46, mar. 2014 43
RESPONSABILIDADE SOCIAL DENTRO DO IFCE: RESULTADOS INICIAIS DO PROJETO MULHERES DE FORTALEZA
até ser nossa prova final: a invenção de um prato nosso. (J. L. de S. - Aluna 01) Se houvesse tido mais horas arrumando o quarto e na cozinha teria sido melhor. No quarto são muitos detalhes para se prestar atenção, além de que temos que fazer com certa rapidez. Se a gente pratica mais na escola, quando chegar no (ao) estágio vai se sair melhor, não é? Também se tivéssemos feitos mais pratos, seria melhor, pois teríamos mais experiência em coisas novas. Só faltou isso mesmo e aí tudo teria sido perfeito. Queria um emprego também, mas isso ainda vou conseguir, sei disso. (M. L. de B. B. - Aluna 02)
com as atividades dessa ação social. A décima quarta pergunta investigou o suporte tido pelas mulheres para a inserção e permanência no PMF. 94% das entrevistadas afirmaram ter recebido apoio para sua participação. O apoio veio principalmente de amigos e familiares, estando nesse grupo os maridos, filhos, pais e avós. Os 6% que declararam não haver recebido incentivo, apontaram os cônjuges como principal desestimulador. Esses dados apontam para a declaração de Menezes (2007) que “é importante ressaltar que as mulheres têm a noção de cidadania, mas admitem a necessidade de que ocorram mudanças de atitudes e comportamentos na sociedade, principalmente no universo masculino, para que essa cidadania seja efetivada no cotidiano.” Essa falta de suporte, todavia, não fez com que as entrevistadas desistissem de terminar as atividades. Essa atitude aponta para uma tomada de decisão única de cada participante e uma satisfação com as, até então, atividades propostas. Essa satisfação também é evidenciada por ocasião da resposta para a décima quinta pergunta. Esta indagou sobre a divulgação do Projeto Mulheres de Fortaleza por parte das participantes dentro da comunidade do Pirambu. Todas afirmaram ter comentado sobre as atividades e incentivado suas amigas a participar das próximas turmas, mostrando assim que a satisfação fazia parte de todas elas. Mais do que simples satisfação, há também a ligação que Moraes (1994, p. 513) observa entre mulheres e movimentos comunitários, pois para a autora, a supremacia feminina, “especialmente entre as populações mais pobres, tem sido um importante canal de conscientização de direitos de cidadania.”
As opiniões acima demonstram a preocupação com o ganho de mais segurança na hora de desempenhar as atividades no período de estágio. Essa segurança poderia conduzi-las a uma boa avaliação por parte do staff e, consequentemente, a um convite para compor o quadro das empresas. Elas estavam conscientes da importância dessas ações para uma maior chance de empregabilidade. Como um fator neutro, mas que mais uma vez demonstra a urgência de emprego para algumas mulheres, tem-se o índice de 6%, precisamente 2 das 31 participantes da pesquisa, que optaram por marcar a opção que não faz distinção de área onde elas podem ser alocadas profissionalmente. Uma das participantes chegou a afirmar que precisava trabalhar em qualquer área, mas gostaria que fosse de carteira assinada para ter seus direitos trabalhistas garantidos. Para outra, que tem exA última pergunta do questionário interrogou direperiência na confecção e venda de objetos artesanais, tamente o nível de satisfação com o PMF. Havia cinco ela acredita ser mais fácil e rápido um trabalho que já opções para escolha, que ia subindo o nível de satisenvolva a habilidade conseguida há algum tempo. fação gradativamente. As duas primeiras opções, relaEssas opiniões, declarações ou apelos, para alguns, cionadas a uma avaliação bastante negativa, não foram não podem e não devem ser ignorados pelos executoassinaladas por nenhuma das participantes. As resposres das atividades do PMF, pois é trabalhar com o fim tas ficaram divididas entre as 3 outras alternativas. 71% de expectativas de seu público-alvo. Quando as mulhedas entrevistadas afirmaram que as atividades desenvolres foram captadas para participação, lhes foi prometido vidas foram muito satisfatórias. Somando-se a esse peralém de qualificação profissional, uma ajuda especialicentual os 13% que se sentiram satisfeitas o suficiente zada para colocação no mercado de trabalho, incluindo com o que foi apresentado, chegou-se a 84% de aproa valorização de todo seu conhecimento prévio. Esse vação do Projeto. Sobraram, então, 16%, que apenas fato fez com que muitas das mulheres se interessassem gostaram razoavelmente do que lhes foi apresentado due permanecessem no PMF até o fim. A valorização e rante os dois semestres de atividades do projeto. seriedade da iniciativa devem ser mantidas para que os objetivos sejam alcançados e os resultados divulgados Essa avaliação, feita de maneira anônima e algum possam servir de estímulo para outras ações sociais. tempo depois do término das atividades, indicou um Para apoiar a expectativa positiva demonstrada pe- acerto no caminho escolhido para a elaboração e aplicalas participantes durante todo o processo, as 3 últimas ção do PMF. As participantes pesquisadas expressaram, perguntas avaliaram direta e indiretamente a satisfação de forma clara e objetiva, sua identificação e satisfação Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 36-46, mar. 2014 44
RESPONSABILIDADE SOCIAL DENTRO DO IFCE: RESULTADOS INICIAIS DO PROJETO MULHERES DE FORTALEZA
com vários aspectos da ação social. Todavia, também foram percebidas ansiedades sobre a eficácia do investimento feito por elas na questão do tempo dedicado às atividades teóricas e práticas propostas pelo PMF, além da expectativa sobre a inserção no mercado de trabalho formal, para cumprir um dos objetivos iniciais. 5
CONCLUSÕES
porque se deve buscar a equidade entre todos os indivíduos. Para 15% das entrevistadas, o PMF foi uma chance para uma melhoria na consciência dos direitos e deveres. Enquanto que outros 15% avaliaram o PMF como uma oportunidade de melhorar o nível intelectual. Infere-se, assim, que mesmo tendo a aquisição de um emprego formal como principal foco de inserção nesse projeto social, outros pontos estimulantes aparecem como essenciais para a formação do ser humano em questão. O trabalho desenvolvido pela equipe com a preocupação de proporcionar debates apresentando temas sobre os direitos dos cidadãos, atingiram em algum nível, uma porcentagem significativa de participantes. Delineia-se, pois, algum resultado positivo referente à representatividade do tema cidadania demonstrado pelas participantes após as atividades do PMF. Para que iniciativas desse tipo não fiquem apenas no âmbito da divulgação de uma tentativa política, sem efeito positivo para o público-alvo, decisões sérias e objetivas devem acontecer para reverter o quadro que aconteceu com as participantes das duas primeiras turmas analisadas. Só assim, haverá significado real na utilização de ações de responsabilidade social junto a instituições educacionais para o desenvolvimento dos cidadãos.
O estudo analítico dos resultados apresentados às perguntas do questionário realizado com 50% das participantes das duas primeiras turmas do Projeto Mulheres de Fortaleza não apresenta dados animadores. Excetuando-se um maior contato com o tema da cidadania e a satisfação individual, levando a um aumento da autoestima, pode-se dizer que não ocorreram mudanças significativas para a tríade - Governo, Projeto Mulheres de Fortaleza e público-alvo. Infelizmente, não houve um retorno significativo das participantes à esfera da educação formal, como forma de elevação do nível educacional. O que foi possível se atingir foi somente 16% das mulheres voltando ao ambiente escolar como forma continuada de aquisição formal de conhecimento. Mesmo sendo um eixo norteador do Projeto Mulheres de Fortaleza, a reinserção das participantes na educação formal não acontece a contento. De fato, o que realmente aconteceu foi que, REFERÊNCIAS mesmo declarando ter voltado a estudar, a maioria dessas participantes nada mais fez que continuar seus estu- ABRAMO. A mulher brasileira nos espaços públicos e privado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. dos, que nunca haviam sido interrompidos. Em nível profissional, muito pouco se realizou. O ASHLEY, P. A. Ética e responsabilidade social. São índice de mulheres desempregadas ainda é alto e se for Paulo: Saraiva, 2003. somado a esse índice a quantidade de empregadas sem direitos trabalhistas e em outras áreas, que não as dos BRASIL. Projeto de parceria da SETEC/MEC e cursos profissionalizantes, o resultado chega a mais de ACCC. [S.l.: s.n.], 2006. 90% das participantes. É esse ponto inclusive o mais citado pelas participantes como frustrante, pois a maioria CAVALCANTI, R. M. N. T. Conceito de cidadania: não conseguiu mudança econômica advinda da partici- sua evolução na educação brasileira a partir da pação no PMF. Mesmo após o término das atividades, república. Rio de Janeiro: SENAI, 1989. 15 - 52 p. não houve uma parcela significativa de mulheres inseCOOMBS, P. H. A crise mundial da educação. São ridas no mercado de trabalho formal. Com 1 ou 2 anos Paulo: Vozes, 1976. do término dos cursos profissionalizantes, mais da metade das participantes estão ainda desempregadas e ape- DURKHEIM Émile. Educação e Sociologia. São nas 6% conseguiram uma colocação em uma das áreas Paulo: Edições Melhoramentos, 1975. ofertadas pelo PMF. Não se pode dizer que elas nada possuíam sobre a FREIRE, P. Professora sim, tia não. São Paulo: Olho ideia conceitual de cidadania, pois a comunidade do Pi- dÁgua, 1997. rambu é alvo de diversos projetos sociais, mantidos ou LIMA, P. R. dos S. Responsabilidade social: a não com o incentivo dos governos municipal, estadual experiência do selo empresa cidadã na cidade de São ou federal. Todavia, as palestras e as orientações de pro- Paulo 1999. São Paulo: Educ, 2005. fessores e membros da equipe executora, sobre direitos e deveres do cidadão, trouxeram para algumas partici- MENEZES, W. N. de. Gênero, cidadania e pantes melhores esclarecimentos sobre onde, como e representações sociais. In: XIV Encontro Nacional da Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 36-46, mar. 2014 45
RESPONSABILIDADE SOCIAL DENTRO DO IFCE: RESULTADOS INICIAIS DO PROJETO MULHERES DE FORTALEZA
ABRAPSO, Diálogos em Psicologia Social. Rio de Janeiro: ABRAPSO, 2007. MORAES, M. L. Q. de. Cidadania no feminino. In: Estudos Feministas. Rio de Janeiro: CIEC/ ECO/ UFRJ, 1994. v. 2, n. 3. PERRENOUD, P. Escola e cidadania: o papel da escola na formação para a democracia. Porto Alegre: Artmed, 2005. SOUZA, P. R. Educação e responsabilidade social. São Paulo: Folha de São Paulo, 1996. Caderno Tendências e Debates. 19 jun. 1996. TENORIO, F. G. Responsabilidade social empresarial: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 36-46, mar. 2014
46
OLHARES SOBRE O ACORDO BILATERAL MULHERES MIL, BRASIL/CANADÁ E A METODOLOGIA IDENTIFICAÇÃO DE SABERES COMO POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL: PROFISSIONALIZAÇÃO, SABERES E MEMÓRIAS
OLHARES SOBRE O ACORDO BILATERAL MULHERES MIL, BRASIL/CANADÁ E A METODOLOGIA IDENTIFICAÇÃO DE SABERES COMO POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL: PROFISSIONALIZAÇÃO, SABERES E MEMÓRIAS NARA V IEIRA DE S OUZA 1 S ARAH V IRGINIA C ARVALHO R IBEIRO2 1
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe (IFS) <nvdss@yahoo.com.br> 2 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) Campus de Fortaleza <sarahvcr@ifce.edu.br> Resumo. Este artigo discute a relação entre profissionalização, práticas de memória e contextos sociais. Apresenta a metodologia intitulada Avaliação e Reconhecimento de Aprendizagem Prévia (ARAP), como embasamento de propostas de natureza social inclusiva. Trata-se de reflexões iniciais sobre o Projeto Internacional Mulheres Mil (Brasil/Canadá) ocorrido no período de 2007 a 2011. A finalidade do projeto Mulheres Mil é o desenvolvimento de ações educativas, a partir da Formação Integrada Continuada de mulheres adultas em treze Estados brasileiros. A oralidade é um dos métodos utilizados e considerado como fonte de memória para construção de instrumentos que permitam mais amplo entendimento da realidade e dos saberes prévios do grupo em torno do desenvolvimento das localidades envolvidas. O referencial teórico adotado é a abordagem (auto) biográfica francesa e pelo materialismo histórico dialético. Acredita-se que a metodologia ARAP possibilita a memória individual e coletiva, direciona para interpretação do contexto socioambiental. Os principais instrumentos de coleta de informações utilizados serão os portfólios, os mapas de vida e os questionários de acesso e permanência à localidade. A relevância desse estudo visa o reconhecimento da memória como dispositivo de formação sociocultural ampla, portanto, educativa, de modo a contribuir na identificação de hiatos de ações cotidianas de membros das comunidades envolvidas em relação ao desenvolvimento local sustentável. Palavras-chaves: Memória coletiva. Contextos sociais. Metodologia. Abstract. This paper discusses the relationship among professionalization, memory practices and social contexts. It presents the methodology entitled Previous Learning Assessment and Recognition (PLAR) as a basis for proposals of social inclusion nature. It deals with the early reflections about the Thousand Women (Mulheres Mil) International Project (Brazil/Canada) which took place between 2007 and 2011. The purpose of the Mulheres Mil project was the development of educational activities starting from the Continued Integrated Training of adult females in thirteen Brazilian states. Speaking is one of the methods used and it is considered as a source of memory for the construction of tools that allow a broader understanding of the reality and previous knowledge of the group regarding the development of the communities involved. The theoretical background adopted is the French (auto)biography through the dialectical historical materialism. It is believed that the PLAR approach enables individual and collective memory, directing to the interpretation of the social-environmental context. The main instruments for information collection will be the portfolios, life maps and community access and retention questionnaires. The relevance of this study aims the recognition of memory as a broad social-cultural training device, therefore, educative, so that it contributes to the identification of daily activities gaps of the communities members involved in relation to the local sustainable development. Keywords: Collective memory. Social contexts. Methodology. Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 47-55, mar. 2014
47
1
INTRODUÇÃO
dições de vida de suas famílias, de suas comunidades e contribuíssem para o crescimento econômico sustentável. Desde então, busca-se a concretização e a execução de políticas públicas ligadas à promoção da equidade, igualdade entre sexos, o combate à violência contra mulheres e o acesso à educação. No Brasil, tais questões tornaram-se pauta inadiável ante as políticas públicas de desenvolvimento e erradicação da pobreza. A educação profissional, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei no 9394/96), aparece definida como “integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à tecnologia, conduz ao permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva” (BRASIL, 2008). Além disso, fica estabelecido no Artigo 40 que a educação profissional deve ser desenvolvida em articulação com o ensino regular ou por diferentes estratégias de educação continuada, em instituições especializadas ou no ambiente de trabalho. Nesse cenário legal da educação brasileira, os Institutos Federais - IF’s representam as mais novas autarquias de regime especial de base educacional humanístico-técnico-científica, encontrando na territorialidade e no modelo pedagógico elementos singulares para sua definição identitária. Criados pela Lei no 11892/08, conforme Artigo 2o :
Em cumprimento aos acordos bilaterais de cooperação internacional entre Brasil e Canadá, o Programa Mulheres Mil educação, cidadania e desenvolvimento sustentável teve início em 2007, ainda como Projeto Mulheres Mil. O acordo bilateral internacional tinha de um lado o Brasil, através do governo brasileiro representado pela Agência Brasileira de Cooperaçao - ABC, e, pelo outro estava o Canadá que tinha como representante do governo canadense a Agência Canadense para Desenvolvimento Internacional - CIDA. Pela execução financeira e articulação entre os executores nos centros educacionais no Brasil havia o Conselho de Dirigentes dos Centros Federais de Educação Tecnológica - CONCEFET, atualmente Conselho de Dirigentes da Rede Federal - CONIF, e, pelo lado canadense a Associação das Faculdades Comunitárias Canadenses, Association of Canadian Community Colleges - ACCC. Ao percorrer a memória do Projeto Mulheres Mil, há o registro de: em março de 2005 houve a primeira reunião técnica, entre 5 (cinco) estados brasileiros, 3 (três) do Nordeste e 2 (dois) do norte do Brasil, e os órgãos responsáveis pelo acordo bilateral, com o propósito de repassar o Sistema de Acesso, Permanência e Êxito pela metodologia Avaliação e Reconhecimento de Aprendizagem Prévia - ARAP, além de proOs Institutos Federais de Educação, Ciência e por a execução de Projetos Pilotos com etapas diferenTecnologia - IFs são instituições de educação ciadas para cada Estado. Assim, entre outubro de 2005 superior, básica e profissional, pluricurriculae março de 2006 aproximadamente 50 (cinquenta) mures e multicampi, especializados na oferta de lheres foram envolvidas nos projetos pilotos com a exeeducação profissional e tecnológica nas difecução de etapas diferenciadas da referida metodologia rentes modalidades de ensino, com base na para cada um dos estados participantes. conjugação de conhecimentos técnicos e tecOra posto, em abril de 2007, a Rede Federal de Edunológicos com as suas práticas pedagógicas. cação Profissional e Tecnológica começou a implementar os subprojetos “Mulheres Mil” em 13(treze) campi No Canadá, pretende-se com o repasse da metododos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecno- logia ARAP, tanto desenvolver e divulgar metodologias logia - IFs, localizados nas regiões Norte e Nordeste, na sociais de intervenção que possibilitem o desenvolviépoca denominados Centros de Educação Profissional e mento sustentável como prática social concreta, quanto Tecnológica - CEFETs. O objetivo da ação era promo- lidar com o contingente de imigrantes oriundos de paíver o acesso à educação profissional de mulheres jovens ses em condições de baixo desenvolvimento. Assim, a e adultas, com faixa etária de 16 a 70 anos, em situação necessidade de inserção imediata de diferentes grupos de vulnerabilidade socioeconômica e/ou moradoras de sociais na cadeia produtiva e no contexto das políticas comunidades com baixos índices de desenvolvimento públicas do mercado acarretou uma ampla setorização humano. da política social em planejamento cada vez mais volAssim, durante o período de 2007 a 2011 foi imple- tado para desconcentração de renda e a promoção de mentado o projeto Mulheres Mil, em cooperação com investimentos sociais consolidados pela pesquisa, pela o governo canadense, visando à formação educacional, intervenção e pela dimensão sociotécnica da economia. profissional e cidadã de mulheres desfavorecidas das rePara os idealizadores do Programa a experiência giões Norte e Nordeste do Brasil, criando as pontes ne- também contribui para o alcance das Metas do Milêcessárias para que essas mulheres incrementassem seu nio, promulgada pela ONU em 2000 e aprovada por 191 potencial produtivo, promovessem a melhoria das con- países. Entre as metas estabelecidas estão a erradicação Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 47-55, mar. 2014 48
OLHARES SOBRE O ACORDO BILATERAL MULHERES MIL, BRASIL/CANADÁ E A METODOLOGIA IDENTIFICAÇÃO DE SABERES COMO POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL: PROFISSIONALIZAÇÃO, SABERES E MEMÓRIAS
da extrema pobreza e da fome, promoção da igualdade entre os sexos e autonomia das mulheres e garantia da sustentabilidade ambiental. O Sistema de Acesso e Permanência instaurado no desenvolvimento do Programa tem como ponto de partida os modelos de acesso dos Colleges canadenses, que garantem capacitação profissional para populações desfavorecidas, entre eles aborígenes e imigrantes. É nesse contexto de finalização do Acordo Bilateral Brasil-Canadá que os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia - IFS implantam o “Programa Mulheres Mil”, instituído pela Portaria no 1.015 de 21 de julho 2011, passando a ter status de Política Pública pelo Ministério da Educação e atualmente é executado em todos os IFs do Brasil. PORTARIA No 1.015, DE 21 DE JULHO DE 2011, que orientará a disseminação do programa no país. Art. 1o Instituir o Programa Nacional Mulheres Mil que visa à formação profissional e tecnológica articulada com elevação de escolaridade de mulheres em situação de vulnerabilidade social. Art. 2o O Programa Mulheres Mil constitui uma das ações do PLANO BRASIL SEM MISÉRIA e tem como principais diretrizes: I - Possibilitar o acesso à educação; II - Contribuir para a redução de desigualdades sociais e econômicas de mulheres; III - Promover a inclusão social; IV - Defender a igualdade de gênero; V - Combater a violência contra a mulher.
Diante dessa realidade, levanta-se a questão central desse estudo: comparar se os objetivos e impactos almejados na implantação do referido programa, desde o acordo internacional, são os mesmos após sua legitimidade como política pública educacional brasileira, considerar ainda se o aproveitamento de saberes dessas mulheres, oriundas do Mulheres Mil nessas localidades, interferiram no desenvolvimento regional. Para tanto, as categorias: memória, saberes, educação, gênero e trabalho para jovens e adultos, serão trabalhadas nesse estudo, com pressupostos do materialismo histórico dialético, sem deixar de levar em conta a análise ambiental. Algumas hipóteses são levantadas por esse estudo, como: → A forma de convívio socioambiental no cotidiano das comunidades envolvidas, localizadas nas áreas em estudo, foi alterada com a inserção e/ou aproveitamento dos saberes das mulheres - alunas do Programa Mulheres Mil; → As comunidades envolvidas alteram seus costumes e uso dos recursos naturais existentes no decorrer do Programa Mulheres Mil; → Os impactos ambientais e o desenvolvimento regional, são demonstrados na relação entre história oral e coletiva das áreas em estudo, porque melhor valorizam os saberes das mulheres. Assim, tendo em vista as situações expostas, orientam essa investigação as seguintes questões de pesquisa: • Quais as contribuições do Programa Mulheres Mil para a melhoria das condições socioambientais nas localidades em que as mulheres envolvidas residem?
No presente momento, o panorama do Programa Mulheres Mil, apresentado pelo lado brasileiro é a rápida independência ou autonomia como política pública • Quais os processos e indicadores centrais de avaeducacional brasileira, de apenas 2 (dois) anos e meio liação, internos e externos, que podem contribuir após sua institucionalização, porque desde agosto de para a construção de um instrumento de avaliação 2013, já faz parte do Programa Nacional de Educação para análise ambiental? Tecnológica - PRONATEC, com várias questões ainda em construção para receber uma metodologia pautada • Quais os impactos da autonomia e/ou inserção ao na inclusão de mulheres desde a etapa de acesso até o mundo do trabalho pelas mulheres do Programa acompanhamento ao mundo do trabalho. Mulheres Mil na região nordeste, no período deE, pelo lado do Canadá, desenvolve-se uma Pessignado por esta pesquisa, na vida e no contexto quisa de Avaliação de Impacto do Mulheres Milsocial local em que vivem, que representam um MMIA, gerenciada pelo Niagara College, iniciada em viés para o desenvolvimento regional? 2012 e em com previsão de finalização até março de 2014, objetiva identificar os impactos ocorridos com as Diante desses questionamentos, esta pesquisa premulheres envolvidas no programa, impactos na comuni- tende investigar o aproveitamento de saberes das mudade que a mulher é moradora e nos institutos federais. lheres na dinâmica ambiental das localidades da região Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 47-55, mar. 2014 49
OLHARES SOBRE O ACORDO BILATERAL MULHERES MIL, BRASIL/CANADÁ E A METODOLOGIA IDENTIFICAÇÃO DE SABERES COMO POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL: PROFISSIONALIZAÇÃO, SABERES E MEMÓRIAS
Nordeste do Brasil, beneficiados pelo acordo bilateral Brasil-Canadá no período entre 2007 a 2012 do Programa Mulheres Mil, numa perspectiva de analise regional. 2
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A presente pesquisa caracteriza-se como estudo de caso avaliativo, de caráter exploratório, qualitativo e quantitativo, num enfoque da formação humana, como uma nova visão de desenvolvimento, que instiga análises sobre a relação trabalho-educação como descreve Lacks (2004). Andre (2005, p. 17) aborda que “[...] o estudo de caso focaliza uma situação, um programa, um fenômeno particular. O caso em si tem importância, seja pelo que revela sobre o fenômeno, seja pelo que representa”. Andre (2005) ainda afirma que há outros autores que classificam os estudos de caso, que os reúne em quatro grandes grupos: etnográfico, avaliativo, educacional e ação. Como estudo de caso avaliativo, este projeto de pesquisa propõe-se a estudar em profundidade os impactos do Programa Mulheres Mil com o propósito de fornecer aos governos brasileiro e canadense, bem como gestores públicos informações que contribuam para o julgamento do mérito do referido Programa como política pública. E em seguida, para alcançar os objetivos que este estudo propõe, em uma base epistemológica do materialismo histórico dialético, pretende-se discutir as abordagens sobre o Estado (âmbito federativo) e as políticas de ensino para mulheres, com bases na educação profissionalizante para jovens e adultos e na formação com aproveitamento dos saberes. Inicialmente a pesquisa será realizada através de análise de fatos primários - análise documental (convênios, relatórios, projetos, reuniões técnicas, materiais de treinamento...). Serão considerados fatos secundários - questionários e entrevistas semiestruturadas com as mulheres que frequentaram cursos entre 2010 a 2014, em alguns dos IFs envolvidos. A análise dos dados será organizada através do Método do Quadro Lógico que se configura como uma ferramenta analítica de apresentação e gestão que envolve a análise do problema, análise dos stakeholders, o desenvolvimento da hierarquia dos objetivos e a seleção da estratégia de implementação. Auxilia na identificação de elementos estratégicos (inputs, outputs, purpose1 , goal2 ) e aos seus relacionamentos causais, bem 1 Purpose 2 Goal
= propósito = objetivo
como dos pressupostos externos (risco) que podem influenciar no sucesso ou não do Programa. Dessa forma, a categorização analítica dos principais aspectos decorrentes da coleta de dados contribui para o desenvolvimento do quadro referencial (FIGARI, 1996) baseado no mapeamento analítico da realidade investigada, para análise das categorias relativas ao Programa Mulheres Mil. Os indicadores serão considerados como “uma categoria intelectual para perceber a realidade” (BARBIER, 1985 apud FIGARI 1996, p. 112) sendo representativos da realidade a avaliar, agrupam categorias de informações que representam um interesse axiológico e ganham indiretamente significado em relação a um conjunto de fins, de valores. “Na prática, o elemento metodológico indispensável para a utilização destes indicadores reside então na ligação de representatividade da categoria em relação à realidade, ligação sempre muito difícil de justificar.” (FIGARI, 1996, p. 112). Os instrumentos serão validados através de grupos focais, objetivando validar as ferramentas e podendo levar a outras categorias. No desenvolvimento da pesquisa poderão emergir novas categorias que serão igualmente analisadas. 3 3.1
ESTADO DA ARTE INVESTIMENTOS SOCIAIS TRABALHO-EDUCAÇÃO
NA
RELAÇÃO
Num contexto em que o montante de recursos aplicados para formação profissional é notório, a participação deverá ser estabelecida prioritariamente à característica de investimento social. Em realidade, é preciso que os indicadores sociais sejam elevados à categoria de políticas públicas locais, agregando esforços na direção do desenvolvimento sustentável local integrado. Para isso, o gasto social consolidado deve ser uma garantia no âmbito das políticas públicas. Entende-se por gasto social a medida dos recursos públicos alocados aos programas sociais nos níveisgovernamentais federal, estadual e municipal. Para calcular e mensurar tais dados, a metodologia dos gastos sociais procura medir, exatamente, a quantidade de ações (projetos e programas) destinadas ao desenvolvimento humano. Nessa direção, o gasto social total no Brasil passou de 24,5 para 40,0 bilhões de dólares entre 1976 e 1986, refletindo uma forte expansão ao longo do período. Entre 2001 e 2004, as funções de saúde/saneamento e educação/cultura, a variação do gasto em termos foi, respectivamente, de 13% e 10%. Nota-se, porém, que a evolução do gasto social com educação básica tenha sido de apenas 6,1% no período observado (LAVINAS, 2007). Assim sendo, a expansão do gasto social está Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 47-55, mar. 2014 50
OLHARES SOBRE O ACORDO BILATERAL MULHERES MIL, BRASIL/CANADÁ E A METODOLOGIA IDENTIFICAÇÃO DE SABERES COMO POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL: PROFISSIONALIZAÇÃO, SABERES E MEMÓRIAS
fortemente correlacionada a três tipos básicos de política social: educação, saúde, assistência e previdência social, embora as composições relativas à magnitude destes variem de acordo com a esfera de interesse do Governo. Logo, a política de investimento social, os incentivos do gasto social, o desenvolvimento econômico produtivo e a erradicação da pobreza no Brasil, concentram-se no problema da qualificação profissional dos principais agentes da economia: os agentes produtores que tipificam as agências produtivas e seus arranjos de produção. Nestes termos, a empregabilidade, o desenvolvimento e a formação profissional qualificada tornaramse metas inadiáveis. Nas últimas três décadas, observou-se que a questão da qualificação profissional é fortemente associada à inserção de agentes produtores no mercado de trabalho. O mundo do trabalho torna-se o mundo da formação, da escolarização, da alfabetização tecnológica, do uso e da apropriação cada vez mais intensa das relações sociais mediadas pelas tecnologias da informação e da comunicação, instaurada pela sociedade em rede, sociedade da informação e pela sociedade do conhecimento (BESSA; NERY; TERCI, 2003; LOJKINE, 1995; TILLY, 2006; CASTELLS, 1999). Entretanto, a crise do mercado de trabalho advinda da intensificação da política econômica respaldada pela internacionalização financeira global empreende-se no surgimento de novos contextos jurídico-fiduciários. A soberania do mote “estamos numa sociedade do conhecimento” apontada por (DEDECCA, 1998), não é refratária do processo ininterrupto de valorização da formação profissional como estratégia de enfrentamento do desemprego. Essas práticas foram organizadas em grandes e importantes Fóruns Internacionais, estimuladas por países da União Européia (em especial pela Alemanha, Suécia, Inglaterra, Espanha, Itália, França e Holanda), conforme Dedecca (1998) e Grazier (1990 apud GENTILI, 2001). Associam-se a tais movimentos, agências reguladoras da economia mundial como a Organização Internacional do Trabalho e o Banco Mundial.
da baixa oferta de consolidada formação profissional, dentre outros elementos. Trata-se, pois, da ascensão de políticas de orientação neoliberal, subjugadora do capital humano (FERREIRA, 2000; FRIGOTTO, 2001). É importante destacar a importância da educação nesse cenário. Nas últimas cinco décadas a escolarização manteve-se como centralidade nas decisões econômicas nacionais. Desde os anos noventa essa centralidade amplia-se pela internacionalização crescente e pela perspectiva de valorização de diferentes modos de vida, culminando na absorção de força de trabalho, aglomeração de parcerias cooperadas ou associativismo de toda ordem. Por isso, a educação e a formação escolarizada destacam-se como sendo política pública. Os investimentos no setor produziram um crescimento relativamente inflacionário de modo a tornar o desenvolvimento tecnológico e científico atrelado aos serviços e bens oriundos de uma economia do conhecimento. Por conseguinte, o crescimento econômico deve integrar socialmente os indivíduos no âmbito das relações produtivas locais, sem dissociá-los da dimensão global da economia planetária (ANTUNES, 2011). Trata-se da insurgência do capitalismo avançado, neoliberal, no qual a educação passa a desempenhar novo papel: “aumentar as chances individuais de inserção no mercado de trabalho ou, em outros termos, a aumentar a empregabilidade dos indivíduos, num cenário em que o desemprego tecnológico parece que veio para ficar” (CASTELLS, 1999, p. 101). Por isso, a qualificação profissional deve estar associada ao desenvolvimento profissional mais amplo. Por outro lado, a especialização qualificada não reduz as possibilidades reais de inteira permanência de trabalhadores no mercado produtivo. Desse modo, qualificação não é garantia de empregabilidade. Nos estudos de Grazier (1990), pode-se encontrar indicações sobre essa relação: trabalhadores mais escolarizados não conseguem obter ocupações à altura de suas qualificações. Empiricamente, demonstra-se que a situação de desemprego afeta de forma mais intensa indivíduos que são oriundos de estrato social menos favorecido, apesar da elevada escolaridade (curso superior completo).
O fato é que a sociedade do conhecimento instaura lógicas produtivas ambíguas em relação às populações economicamente menos favorecidas. Trata-se de uma lógica bastante lúcida quanto aos seus focos e interesses de manobra e escalonamento produtivo em torno à Tais reflexões favorecem a análise segundo a qual ampliação da concentração de riquezas. Nesse sentido, a valorização da formação profissional enseja a indaa lógica da implantação de programas que visem o auxí- gação quanto ao impacto da qualificação na empregalio mútuo entre países distintos economicamente prevê bilidade do indivíduo. São condições que potencialidesde a qualificação da força de trabalho ao escrutínio zam a efervescência do debate e sinalizam a influência programático de estratégias de enfrentamento do de- da origem social nos estudos sobre a empregabilidade e semprego, do analfabetismo (tecnológico e letramento), acesso ao mundo do trabalho no Brasil e no mundo. Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 47-55, mar. 2014 51
OLHARES SOBRE O ACORDO BILATERAL MULHERES MIL, BRASIL/CANADÁ E A METODOLOGIA IDENTIFICAÇÃO DE SABERES COMO POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL: PROFISSIONALIZAÇÃO, SABERES E MEMÓRIAS
3.2
A MEMÓRIA, SABERES E ITINERÁRIO DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Os estudos desenvolvidos no campo da memória a respeito dos processos formativos em grupos profissionais têm despertado interesses diversos. Muitas vezes é a simples curiosidade de conhecer sobre determinadas personalidades socialmente consagradas pela sua carreira ou pelo seu desenvolvimento profissional; outras vezes pela necessidade visceral de falar-de-si, como uma espécie de reencontro com o imaginário pulsional, suas simbologias e traçados de vida. O fato é que tanto a vida pessoal, quanto a vida profissional se elaboram de modo indissociado. Nos diferentes espaços da formação, dentre eles, os espaços formais da universidade, encontram-se divergentes perspectivas (SANTOS, 2003). Ora essas perspectivas são associadas ao mercado de trabalho; ora aos processos de desenvolvimento científico e direcionados a uma economia do conhecimento. Raríssimas vezes, pode-se encontrar a busca de uma ampliação pessoal de vida, ensejando deleites intelectuais e busca de autonomia intelectual sem fins de empregabilidade, em torno da formação universitária (BERTAUX; TODD, 1994). Entretanto, é notório que a profissionalização em espaços acadêmicos estimula o crescimento profissional, associando-os ao cumprimento das expectativas pessoais, referendadas pela qualidade de vida modelar, capitalista e produtiva. A formação profissional em oferta em diferentes instituições de ensino se constitui na possibilidade de ampliação da oportunidade e do crescimento profissional das pessoas, pois, dentre todos os espaços de formação profissional, os institutos tecnológicos de educação e [...] a universidade deve(m) ser um centro de cultura, disponível para a educação do homem no seu todo; finalmente, porque a verdade a ser transmitida, a universidade ensina e mesmo o ensino das aptidões profissionais deve ser orientado para a formação integral (FERREIRA; SILVA, 2011).
rior). Até aí estava configurada a necessidade do mercado e das instituições em formar profissionais qualificados para lidar com novas tecnologias, linguagens, pessoas, produtos e processos, entre outros. Atendendo a essas novas demandas, os profissionais/sujeitos lançaram-se, via pós-graduação, curso de mestrado e/ou doutorado), em busca das mais diversas realizações: de ordem material por meio da qualificação no campo profissional, seja de natureza acadêmica pela aquisição de conhecimento, seja para realização pessoal/status social e reinserção no mercado de trabalho (PACHECO, 2010). Por isso mesmo, vale ressaltar, mais uma vez, que o processo da busca pela formação nem sempre é orientado pela academia, acontece inconscientemente a partir da história de vida de cada sujeito, é ela que orienta os caminhos e as escolhas que vai se tornando cada vez mais complexa por conta dos inúmeros elementos que são considerados nessa seleção, bem como pela consciência que vai se formando ao longo da vida. Para caracterizar a necessidade que move o sujeito na busca de sentido à sua formação - sabendo-se da não obrigatoriedade de formar-se em uma área e nela continuar os estudos na pós-graduação, é preciso destacar a ideia de formação como uma base de reflexões sobre a prática no sentido de que os sujeitos “[...] examinem suas teorias implícitas, seus esquemas de funcionamento, suas atitudes” (IMBERNON, 2004, p. 49). Lê-se: A vida é o lugar da educação e a história de vida é o terreno no qual se constrói a formação. Por isso, a prática da educação define o espaço de toda a reflexão teórica. O trabalho do investigador e dos participantes num grupo biográfico não é da mesma natureza, na medida em que ele possui mais instrumento de análise e uma maior experiência de investigação. Mas trata-se do mesmo objeto de trabalho. Dito de outro modo, o saber sobre a formação provém da própria reflexão daqueles que se formam. É possível especular sobre a formação e propor orientações teóricas ou fórmulas pedagógicas que não estão em relação com os contextos organizacionais ou pessoais. No entanto, a análise dos processos de formação, entendidos numa perspectiva de aprendizagem e de mudança, não se pode fazer sem uma referência explícita ao modo como um adulto viveu as situações concretas do seu próprio percurso educativo (SCHULTZ, 1987).
Assim, atender aos fins das instituições formadoras: investigação (pesquisa), ensino e prestação de serviço (extensão), ou seja, no tripé: ensino, pesquisa e extensão tão importante na produção do sistema de ensino atrelado às políticas públicas de desenvolvimento (FERREIRA; SILVA, 2011). Para atender ao mercado de trabalho e a exigência de uma maior qualificação nas áreas conhecimento, novos cursos foram sendo criados, em diferentes modalidades de oferta (presencial, semipresencial e a distância) e em diferentes níveis da educação (básica ou supeAssim, a formação inicial, adquirida em diferenConex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 47-55, mar. 2014 52
OLHARES SOBRE O ACORDO BILATERAL MULHERES MIL, BRASIL/CANADÁ E A METODOLOGIA IDENTIFICAÇÃO DE SABERES COMO POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL: PROFISSIONALIZAÇÃO, SABERES E MEMÓRIAS
tes níveis de ensino, até então satisfatória profissionalmente, se vê ultrapassada face ao surgimento das novas tecnologias. O sujeito se vê compelido à reflexão para decidir sobre o que fazer diante dessa nova situação, buscar uma formação/qualificação/titulação ou permanecer como está. Entretanto, ao optar pela formação, essa ação possibilita a aquisição de conhecimentos teóricos, capacidades de processamentos e informações; análise e reflexão crítica; decisão racional; avaliações e tomadas de decisões para reordenar as ações no campo profissional. Ressaltar-se as contribuições de (HALBWACHS, 2006) na configuração de nossa análise sobre a relação entre profissionalização, memória e contextos sociais. Para Halbwachs (2006, p. 12) “é impossível conceber o problema da recordação e da localização das lembranças quando não se toma como ponto de referência os contextos sociais reais que servem de baliza a essa reconstrução que chamamos memória”. Por isso mesmo, destacar-se a relevância de se pensar tais relações através da Metodologia Reconhecimento de Aprendizado Prévio ou de Identificação de Saberes, identificada pelos registros elaborados no desenvolvimento do Programa Mulheres Mil. 3.3
PROFISSIONALIZAÇÃO NA EDUCAÇAO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL
Segundo Ferreira e Silva (2011), a Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil, como modalidade nos níveis fundamental e médio, é marcada pela descontinuidade e por tênues políticas públicas, insuficientes para dar conta da demanda potencial e do conhecimento do direito, nos termos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, Art. 37. Como modalidade, propõe-se a atender um público, caracteristicamente marcado pela população alvo de Programa Mulheres Mil, ao qual foi negado o direito à educação durante a infância e/ou adolescência seja pela oferta irregular de vagas, seja pelas inadequações do sistema de ensino, ou ainda, pelas condições socioeconômicas desfavoráveis de uma sociedade brutalmente desigual e excludente, como o é a sociedade brasileira. Assim, o trabalho pode ser concebido como um fenômeno imprescindível no processo de humanização, na garantia dos direitos sociais das mulheres para as quais se direciona o Programa Mulheres Mil. Os objetivos do Programa remetem ao que afirma Tilly (2005) sobre o trabalho:
processo de transformação recíproca e interrelacional que converte o trabalho social num elemento central do desenvolvimento da sociabilidade humana (TILLY, 2005) Nesse sentido, o movimento proposto pelo Programa Mulheres Mil, pode representar a instrumentalização de mulheres para que promovam a globalização contra-hegemônica, no contexto da globalização hegemônica, dominada pela lógica do capitalismo neoliberal mundial (SANTOS, 2003). Esse movimento contra-hegemônico, representado pela iniciativa de política pública local-global, busca recuperar a cidadania de mulheres contextualizadas nos grupos sociais sujeitos à descaracterização e à marginalização produzidos pela globalização hegemônica. [...] é a voracidade com que a globalização hegemônica tem devorado, não só as promessas de progresso, da liberdade, da igualdade, da não discriminação, e da racionalidade, como a própria ideia da luta por elas. Ou seja, a regulação social-hegemônica deixou de ser feita em nome de um projeto de futuro e com isso deslegitimou todos os projetos de futuro alternativos antes designados como projetos de emancipação social. A desordem automática dos mercados financeiros é a metáfora de uma forma de regulação social que não precisa da ideia de emancipação social para se sustentar e legitimar. Mas, paradoxalmente, é dentro desse vazio de regulação e de emancipação que estão surgindo em todo o mundo iniciativas, movimentos, organizações que lutam simultaneamente contra as formas de regulação que não regulam e contra as formas de emancipação que não emancipam (SANTOS, 2003). E é nesse espaço entre a regulação e a emancipação apontado por Santos (2003), que o Programa Mulheres Mil se ancora. Dessa forma, essa pesquisa propõe-se a avaliar o impacto desse Programa na vida das mulheres envolvidas e de sua comunidade. Para Rico e Genro (BRASIL, 2006, p. 467), a avaliação de programas institucionais e políticas sociais consistem em um:
procedimento estratégico que visa dar visibilidade às ações públicas efetivadas com o objetivo de democratização do Estado e da soci[...] ao mesmo tempo em que os indivíduos edade civil, de formas a compreender as potransformam a natureza exterior, alteram tamlíticas e o Estado em ação. Este processo de bém a sua própria natureza humana, num avaliação objetiva a melhoria das políticas e Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 47-55, mar. 2014 53
OLHARES SOBRE O ACORDO BILATERAL MULHERES MIL, BRASIL/CANADÁ E A METODOLOGIA IDENTIFICAÇÃO DE SABERES COMO POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL: PROFISSIONALIZAÇÃO, SABERES E MEMÓRIAS
da ação do Estado e pode sugerir modificações na formulação, implementação e nos resultados de ações. Para Figari (1996) a avaliação de um programa pode ser entendida como uma macroavaliação ou “um processo sistemático de recolha e de interpretação das observações com a finalidade de dar a conhecer o desenrolar e os efeitos de um projeto”. 4
CONSIDERAÇOES FINAIS
Esse estudo ainda está em andamento como pesquisa, através de projeto submetido ao Comitê de Ética pelo IFRS-Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, de forma mais completa e complexa quanto ao aprofundamento das questões a pesquisar. Portanto não se podem registrar os resultados ainda de pesquisa, mas é notória a importância do mesmo para a produção de conhecimento e produção científica em relação à política pública educacional, inseridas no Brasil por meio de acordos internacionais. Ora posto, notam-se outras contribuições já enunciadas pelas autoras como resultados deste trabalho, quanto à análise do impacto social do Programa Mulheres Mil, partindo de uma discussão teórica do materialismo histórico dialético, bem como a análise e produção de indicadores de avaliação institucional interna e externa com vista à contribuição à melhoria da qualidade de ensino. REFERÊNCIAS ABRAHAO, M. H. M. A Aventura (Auto) Biográfica: teoria e empiria. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. ANDRE, M. E. D. A. de. Estudo de caso em pesquisa e avaliação educacional. Brasília: Líber Livro Editora, 2005. ANTUNES, R. Trabalho. In: CATANNI, A. D.; HOLZMANN, L. (Ed.). Dicionário de Trabalho e Tecnologia. Porto Alegre: Zouk, 2011. BANCO MUNDIAL. Relatório Técnico. Relatório sobre o desenvolvimento mundial 1995: o trabalhador e o processo de integração mundial. Washington: World Bank, 1995.
BESSA, V. de C.; NERY, M. B.; TERCI, D. C. Sociedade do conhecimento. São Paulo em Perspectiva, v. 17, n. 3-4, p. 3 – 16, jul. - dez. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& pid=S0102-88392003000300002&lng=pt&nrm=iso& tlng=pt>. BRASIL. Enciclopédia de Pedagogia Universitária. Brasília: INEP/RIES, 2006. . Lei N. 11.892, Institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, dez. 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ _Ato2007-2010/2008/Lei/L11892.htm>. Acesso em: 11 ago. 2014. CASTELLS, M. A era da informação: economia, sociedade e cultura. In: A Sociedade em Rede. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 1. DEDECCA, C. Qualificação e formação profissional: algumas experiências européias. In: A visão empresarial e da universidade do Plano Nacional de Educação Profissional. São Paulo: Instituto Uniemp, 1998. v. 2. FERREIRA, F. Os determinantes da desigualdade de renda no Brasil: luta de classes ou heterogeneidade educacional? Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2000. FERREIRA, M. J. R.; SILVA, S. A. F. da. In: FREITAS, R.; ALEX, A. J.; SCHIMIDT, M.; PAIVA, M. A. V. (Ed.). Avaliação do ensino e da aprendizagem na Eja e no Proeja. Vitória: Editora do IFES, 2011. v. 1, p. 209 – 236. FIGARI, G. Avaliar: que refencial? Porto: Porto Editora, 1996. FRIGOTTO, G. Educação, crise do trabalho assalariado e do desenvolvimento: teorias em conflito. In: FRIGOTTO, G. (Ed.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século. Petrópolis: Vozes, 2001. GENTILI, P. Educar para o desemprego: a desintegração da promessa integradora. In: FRIGOTTO, G. (Ed.). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de século. Petrópolis: Vozes, 2001.
BERTAUX, D.; TODD, D. J. Desde elabordaje de lahistoria de vida hacialatransformación de lapráctica sociológica. In: Metodología de investigación GRAZIER, B. L’emploeabilitié: brève radiographie cualitativa. Buenos Aires: IICE: Instituto de d"un concept en mutation. [S.l.]: SociologieduTravail, Investigaciones en Ciencias de La Educación (IICE), 1994. 1990. Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 47-55, mar. 2014 54
OLHARES SOBRE O ACORDO BILATERAL MULHERES MIL, BRASIL/CANADÁ E A METODOLOGIA IDENTIFICAÇÃO DE SABERES COMO POLÍTICA PÚBLICA EDUCACIONAL: PROFISSIONALIZAÇÃO, SABERES E MEMÓRIAS
HALBWACHS, M. A. Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. IMBERNON, F. Formação Docente e Profissional: forma-se para a mudança e a incerteza. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2004. LACKS, S. Formação de professores: a Possibilidade da Prática como Articuladora do Conhecimento. Tese (Tese de doutorado) — Faculdade de Educação na Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004. LAVINAS, L. Gasto social no Brasil: programas de transferência de renda versus investimento social. Ciência & Saúde Coletiva, scielo, v. 12, p. 1463 – 1476, 12 2007. ISSN 1413-8123. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& pid=S1413-81232007000600009&nrm=iso>.
TILLY, C. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. . A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2005. . O acesso desigual ao conhecimento científico. Tempo Social, scielo, v. 18, p. 47 – 63, 11 2006. ISSN 0103-2070. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& pid=S0103-20702006000200003&nrm=iso>.
LOJKINE, J. A Revolução informacional. São Paulo: Cortez, 1995. MOCAMBIQUE. Manual do Aluno: Formação Básica em Monitoria e Avaliação. Maputo: Ministério da Mulher e da Acção Social, 2008. Acesso dia 22/07/2013. Disponível em: <http://www.cpc.unc.edu/measure/training/materials/ basic-me-concepts-portuguese/manual_aluno_ measure.pdf/view>. OIT; MTE. Políticas para conciliar os desafios de emprego e competitividade: Perspectivas para o futuro. Brasília: OIT/MTE, 1999. 472 p. ORTIZ, R. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. [S.l.]: Ed. Brasiliense, 1987. Brasília p. PACHECO, E. M. Os institutos federais: uma revolução na educação profissional e tecnológica. Natal: IFRN, 2010. 26 p. PINEAU, G. As histórias de vida em formação: gênese de uma corrente de pesquisa-ação-formação existencial. Educação e Pesquisa, scielo, v. 32, p. 329 – 343, 08 2006. ISSN 1517-9702. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& pid=S1517-97022006000200009&nrm=iso>. SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2003. SCHULTZ, T. O valor econômico da educação. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. . Investindo no povo. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 47-55, mar. 2014
55
A BUSCA DA CIDADANIA PELAS MULHERES E AS DESIGUALDADES DE GÊNERO M ARIA C LAUDIA PAES F EITOSA J UCÁ 1
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) Campus de Cedro <claudiafjuca1@hotmail.com>
Resumo. Este trabalho propõe-se a uma reflexão sobre as mulheres e sua trajetória em busca da cidadania na sociedade ocidental, mais especificamente no Brasil. Para tanto, apresenta um percurso histórico da sociedade contextualizando as conquistas e os desafios enfrentados pelas mulheres, numa realidade caracterizada pela exploração e pela desigualdade de classes. A história das mulheres reflete uma relação desigual, isolando os que podem e os que não podem, naturalizando vivências, preconceitos que ficam enraizados em nosso inconsciente, e traduzem-se em posturas e atitudes no nosso cotidiano. O desenvolvimento da história das mulheres foi registrado, em sua maioria, pelo olhar masculino, já que os homens eram transmissores tradicionais da cultura na sociedade. Este percurso convoca o leitor a refletir sobre o fato de que a história e a luta pela cidadania das mulheres não é a mesma história dos homens. Há pontos significativos que exercem impacto tanto na realidade feminina como na masculina. Entender melhor este contexto sugere um caminho que integre homens e mulheres em suas relações e que se comprometam na construção de uma sociedade mais igual. Palavras-chaves: Cidadania. História. Mulheres. Desigualdade. Abstract. This paper proposes a reflection on women and their trajectory in search for citizenship in Western society, more specifically in Brazil . In order to do so, it presents a historical course of society contextualizing the achievements and challenges faced by women in a reality characterized by exploitation and inequity of classes. Women’s history reflects an uneven relationship, isolating those who can and those who can not, naturalizing experiences, prejudices which are ingrained in our unconscious, and are translated into behaviors and attitudes in our daily lives. Women’s history development has been mostly recorded under men’s perspective, since men have been the traditional transmitters of culture in society. This route invites the reader to reflect on the fact that women’s history and struggle for citizenship is not the same as men’s. There are significant points that impact on female’s reality as well as on male’s. Better understanding this context suggests a way wich integrates men and women in their relationships and that commit them in the construction of a more equal society. Keywords: Citizenship. History. Women. Inequity. 1
INTRODUÇÃO
Valorizar a história feminina não significa desvalorizar a história masculina. Pelo contrario, esperamos, com esta reflexão, contribuir para a construção de um projeto partilhado no qual homens e mulheres tenham entre si uma relação de respeito e de igualdade, compartilhando os mesmos espaços e participando equitativamente das decisões. Como metodologia, adotamos um estudo de revisão bibliográfica tendo como esteio as ideias de diversos autores e pesquisadores que abordaram o assunto.
O objetivo deste ensaio é apresentar algumas considerações acerca do percurso histórico das mulheres na sociedade ocidental lançando um olhar crítico sobre sua participação nos espaços público e privado e tentando trazer à tona os mecanismos perpetuadores da exploração e da discriminação das mulheres, bem como as vozes que se levantaram contra esta forma de pensamento. Neste contexto emergem algumas questões tais como: Qual a importância de tornar pública a história das mulheres? que contributo pode trazer a participação As reflexões situam-se numa perspectiva crítica e efetiva das mulheres na sociedade? emancipadora, à luz das contribuições de muitos (as) Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 56-63, mar. 2014 56
A BUSCA DA CIDADANIA PELAS MULHERES E AS DESIGUALDADES DE GÊNERO
que acreditaram e acreditam na igualdade entre todos os seres como um direito, como uma forma de valorização da vida e do espaço social. 2
A HISTÓRIA DAS MULHERES: UMA HISTÓRIA DE AVANÇOS E RECUOS
A Sociedade Moderna é palco de muitas transformações. Com o advento da industrialização e a ocorrência de mudanças político-sociais a vida ocidental experimentou profundas alterações que foram refletidas na história das mulheres. Mecanismos culturais garantiram, durante muito tempo, o reforço das ideias de subordinação feminina e de inferioridade das mulheres dos quais nos fala Nash (2005) [...] entre estes mecanismos, as representações culturais da feminilidade desempenharam um papel fundamental. Estas tiveram um enorme impacto na condição social feminina, ao criarem um imaginário colectivo que transmitia crenças negativas em relação às mulheres, dificultando, deste modo, o pleno desenvolvimento do seu potencial e igualdade... (NASH, 2005, p. 31)
Em França, a maioria das mulheres que deseja exprimir-se sobre a Revolução fazem-no publicamente... a partir de 1789, em brochuras ou em petições, mulheres proclamam à face da sociedade revolucionária as suas esperanças, apresentam propostas de reformas, reivindicações (GODINEAU apud DUBY; PERROT, 1991, p. 31). Esta Revolução foi um momento de mutação decisiva na história das mulheres, pois foi o momento no qual aconteceu um questionar sem precedentes das relações entre os sexos. A problemática das mulheres inscrevia-se então no debate político da sociedade da época. Não obstante, esta inscrição não era por si só suficiente para fazer desaparecer as desigualdades Assim, durante o século XIX e grande parte do século XX em muitos países ocidentais, as mulheres viram-se postergadas e privadas de direitos civis e políticos. Eram consideradas como menores, incapazes de assumir responsabilidades cívicas e políticas (NASH, 2005, p. 30).
Ao remontar ao século XVII, vê-se que alguns debates sobre a desigualdade adquiriram dimensões de reivindicação. É o caso de Paulain de la Barre, filósofo francês, seguidor de Descartes, quando sublinhava o fato de que a desigualdade social não era consequência da natureza e sim estava ligada a fatores culturais. No século XVIII vemos a ação de mulheres como Olympe de Gouges que lutou fortemente contra a crença na inferioridade das mulheres, deixando um importante legado que foi a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, que, por sua vez, constituía-se numa importante formulação política em defesa da cidadania feminina e que tornava evidente a insuficiência dos direitos políticos assegurados pela Revolução. Igualmente Mary Wollstonecraft, reconhecida como uma das vozes importantes do feminismo moderno, criticou duramente aqueles que consideravam “naturais” determinados papéis sociais impostos às mulheres, os quais reduziam-nas à função reprodutora. Esta autora defendeu a humanidade plena das mulheres e enalteceu uma educação que tornasse tais mulheres autônomas e 1 Neste trabalho respeitar-se-á a proposta de HENRIQUES, Ferque as valorizasse enquanto seres racionais. Travou penanda, em seu livro Igualdades e Diferenças-propostas Pedagógicas, sadas batalhas contra as teses misóginas de Rousseau. Porto, Porto Editora, 1994, p. 20, que distingue sexo e gênero como: Na primeira metade do século XX teve destaque a sexo é a característica biológica, é a referência à determinação biológica de cada indivíduo, que implica características cromossômicas, figura de Simone de Beauvoir quando suscitou o debate hormonais e morfológicas. Por gênero entende-se um conjunto de sobre a feminilidade como uma construção social e exanormas, diferenciadas para cada sexo, que são elaboradas pela sociminou a condição feminina. Segundo ela, o homem é edade e impostas aos indivíduos desde que nascem como modelo de identificação. o padrão, a norma, enquanto a mulher existe a partir do Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 56-63, mar. 2014 57 Neste contexto, referiremos o termo Gênero1 como um elemento organizador das relações sociais, sem esquecermos, todavia, a não existência de uma definição unívoca deste conceito, já que se trata de um termo que vai se reelaborando com o avanço dos estudos e investigações científicas. SCOTT (1991) define gênero como um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e como forma primeira de significar as relações de poder . A categoria gênero deve ser percebida para além de uma construção cultural, uma vez que a cultura não é natural. Deve ser vista não de forma isolada, mas interrelacionada, dentro de um contexto histórico-cultural que não é linear, nem homogêneo, e sim fruto das contradições e da luta de classes. As mulheres ao longo da história tiveram grandes embates para verem reconhecidos os seus direitos. Nesta perspectiva pode-se ver o papel importante que as mulheres tiveram na Revolução Francesa, no século XVIII.
A BUSCA DA CIDADANIA PELAS MULHERES E AS DESIGUALDADES DE GÊNERO
homem. O ser mulher é uma construção cultural. Sobre isto esclarece-nos o seguinte: O homem representa ao mesmo tempo o positivo e o neutro, a ponto de dizermos “os homens” para designar os seres humanos... A mulher aparece como o negativo, de modo que toda a determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade (BEAUVOIR, 1987, p. 12). Estas vozes, dentre muitas outras, levantaram-se num contexto onde imperava o silêncio, a exclusão, pois a história das mulheres é uma história de submissão, mas também de resistência. É uma história que recomeça a cada momento, no instante em que as mulheres decidem construí-la, escrevê-la com suas próprias mãos. Não obstante, muito do que já foi escrito sobre as mulheres retrata o pensamento dos homens, pois foi escrito por eles próprios. Como sublinha Henriques (1995, p. 20) É um lugar comum dizer-se que, ao longo dos tempos, as mulheres foram ditas, não se disseram a si mesmas. No entanto, não deixa de ser menos verdadeiro, pelo fato de ser quase uma banalidade. A fala, a argumentação, a retórica, são, pelos menos na sociedade ocidental, instrumentos de poder que têm sido tradicionalmente vedados às mulheres, confinando a legitimidade do falar feminino ao espaço privado (HENRIQUES, 1995, p. 28). Ou seja, aprendeu-se uma história escrita no masculino e que designava o que deveria ser a mulher e o seu comportamento, excluindo-as da participação política e social, vedando-lhes o pleno desenvolvimento do seu potencial. Havia uma desigualdade que assentava em leis e normas reguladoras da subalternidade feminina. Esclarece-nos ainda que: [...] as mulheres careciam de direitos políticos e civis. Sofriam restrições no que diz respeito ao acesso à propriedade, ao direito hereditário, à educação, ao desempenho profissional e ao trabalho assalariado. A presença das mulheres nos espaços públicos estava limitada, já que existia uma subjugação legal intransponível da mulher casada em relação ao seu marido (HENRIQUES, 1995, p. 28).
estava sempre associada à domesticidade e à sua natureza feminina. Sobre a participação das mulheres Diaz (2002, p. 25) argumenta: "[...] la mujer había quedado siempre fuera del discurso histórico, que su contribuicion. había sido conscientemente omitiday que la mujer occidental había estado siempre subordinada, legal e ideológicamente. al varón"2 . Arendt (2001) apresentava a esfera pública (polis) como a esfera da liberdade, enquanto que a esfera privada (oikia) era a da necessidade, segundo o sistema de democracia vigente na Grécia Antiga. No mundo da oikia realizavam-se as atividades de reprodução familiar, da manutenção da vida, da sobrevivência da espécie. Diz-nos Arendt (2001, p. 4) que “[a] polis diferenciavase da família pelo fato de só conhecer “iguais”, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade.” A igualdade era a própria essência da liberdade. As mulheres, assim como os escravos, não eram consideradas seres humanos, não eram livres, antes, porém eram propriedade de outros, e suas vidas eram dedicadas a funções corporais. Durante séculos elaborou-se um discurso de gênero que reforçava, no imaginário das pessoas, a ideia de fragilidade, subalternidade e incapacidade da mulher, em contraponto com a racionalidade, a força e a competitividade dos homens. Para ratificar tais estereótipos não faltaram “estudiosos” que, com suas teorias, tentaram convencer a todos/todas sobre a inferioridade das mulheres. A mulher abnegada, dócil, talentosa nos afazeres domésticos era o paradigma da mulher ideal. Sobre este tema, Pinto (2008, p. 12) explica que: “[...] o paradigma da domesticidade trouxe como corolário o principio da mulher inativa, ou seja, da mulher que não trabalha segundo o novo conceito de trabalho decorrente da economia de mercado.” Na história do Brasil conforme assinala Priore (1994) a mulher tem surgido de forma recorrente à luz de estereótipos. A imagem da mulher da elite branca como submissa material e sexualmente contrapõe-se à imagem da mulher pobre, negra relacionada à promiscuidade e a lascívia. Para ambas o espaço reservado era o espaço privado. Reflexos deste ponto de vista podem ser facilmente encontrados na sociedade atual. O trabalho doméstico ainda é discriminado e desvalorizado. O espaço privado é o espaço do silêncio, da solidão, enquanto que o espaço público é o lugar de confluência da palavra e do 2 “[...] As mulheres sempre foram deixadas fora do discurso histórico, que a sua contribuição havia sido conscientemente omitida e que a mulher ocidental havia estado sempre subordinada, legal e ideologicamente ao homem.”(Tradução livre feita pela autora)
Era uma situação de desigualdade e de exclusão. As mulheres eram consideradas inferiores e sua imagem Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 56-63, mar. 2014
58
A BUSCA DA CIDADANIA PELAS MULHERES E AS DESIGUALDADES DE GÊNERO
agir humano, onde seres humanos revelam sua singularidade, gerando opiniões. Com o processo de industrialização e a monetarização da economia, surge um novo modelo social de gênero, reforçando um discurso que naturalizava a diferenciação sexual. Como afirma também Pinto (2008): [...] o impacto da industrialização traduziuse menos numa radical mudança na relação das mulheres com o trabalho do que na redefinição das relações entre mulheres e homens, gerando um reforço da divisão sexual do trabalho. Esta reconceptualização da feminilidade e da masculinidade foi sustentada por representações simbólicas bem hierarquizadas e convergentes com um edifício ideológico-discursivo naturalizador da diferenciação sexual (PINTO, 2008, p. 14). A força deste discurso perdura até aos dias atuais, não faltando quem acredite e defenda com veemência que as mulheres devem estar restritas ao serviço doméstico e ao cuidado da família, sob pena delas prejudicarem a vida familiar, caso se encaminhem ao mundo do trabalho e à participação política. Não obstante, o Século XXI é um século em que as mulheres tomam a palavra e o controle de suas identidades, engajam-se em lutas contra a discriminação e o preconceito, tentam quebrar estereótipos e constroem múltiplas vias de realização. Entretanto ainda em muitos lugares, as mulheres carecem de direitos civis e políticos, sofrem diversas restrições no que se refere à educação, ao direito de propriedade, ao acesso ao trabalho assalariado, à participação política. A vida para algumas mulheres está vinculada à vida dos pais, com uma relação de submissão ao pai e, posteriormente, ao marido. Não têm vida em si próprias. Não têm poder decisório, nem direito a opinar em situações que, muitas vezes, envolve sua própria vida. Suas vidas restringem-se ao espaço privado. A vida é vista, por muitas mulheres, através do buraco da fechadura. O discurso da domesticidade legitima a opressão e a discriminação. Nash (2005) di-lo de forma categórica:
falta de atributos “masculinos”, como a racionalidade, a inteligência, a capacidade de juízo ou competitividade (NASH, 2005, p. 45). Através destes discursos criaram-se categorias de identidade ligadas ao que era considerado normal ou anormal na sociedade, mantendo-se as relações de poder. É certo que a vida das mulheres mudou. E nas últimas décadas mudou muito. Hoje há grandes conquistas nos campos sociais, político, econômico e epistemológico. Os direitos conquistados, a incorporação das mulheres nas universidades, a participação destas nas políticas sociais permitiram-lhes rever os conhecimentos adquiridos sobre sua história, questionar a veracidade destes e analisar a partir de que olhares foi construída tal história. Esta revisão permitiu um novo olhar sobre o passado e a elaboração de perguntas para as quais nem sempre tinham resposta imediata. Há uma necessidade de demonstrar que a mulher é sensível, irracional e incapaz, necessitando, pois, da tutela dos homens a quem é destinado o poder da razão. E este poder não pode ser partilhado, pois, ao que nos parece, ao ser partilhado deixa de ser poder. Também é assim no que se refere a características tidas como “femininas” como é o caso da sensibilidade. Certamente os homens perderam muito por não verem em si reconhecida tal característica. Muitos acham que demonstrar sua sensibilidade significa ser menos “homem”. Confunde-se a característica com a natureza. Na verdade, atualmente muitos homens e muitas mulheres reconhecem em si e nas outras pessoas tais características, o que os torna seres humanos mais completos. Não obstante, estes são os que atraem para si os olhares e as críticas ferrenhas de uma sociedade, que com a força do seu discurso exerce com mão de ferro o controle social. De acordo com Rago (2004, p. 34) [...] até recentemente, de modo geral, as mulheres não tinham direito à vida pública, o que significava a impossibilidade não apenas do acesso aos negócios, aos cargos públicos e de direção, à cultura e à educação, como também a do desfrute da sociabilidade dos bares, restaurantes, cafés e de determinados espaços de lazer ou prazer,pelo menos não nas mesmas condições que os homens.
O discurso da domesticidade legitimou, de forma inquestionável, a divisão de papéis de gênero e dos espaços de atuação de cada um, feita de acordo com as características do homem e da mulher. A exclusão feminina da esfera pública foi argumentada tendo como As mulheres eram restritas ao serviço domésbase as supostas aptidões naturais da mulher tico, que por sua vez, não era considerado trabalho. para a vida doméstica, tais como a afetiviConfigurava-se uma história de obscuridade, de silêndade, o sentimentalismo, a abnegação e a cio. Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 56-63, mar. 2014 59
A BUSCA DA CIDADANIA PELAS MULHERES E AS DESIGUALDADES DE GÊNERO
Nos Séculos XIX e XX houve muitas conquistas no campo dos direitos das mulheres. Há uma participação crescente das mulheres no mundo do trabalho, aumentam o número de desquites e de divórcios, há um maior acesso à educação formal, surge o Movimento Feminista. Sobre o feminismo Hirata et al. apud Soares (2004, p. 170) afirmam que O feminismo como movimento coletivo de lutas das mulheres se manifesta como tal na segunda metade do século XIX. Estas lutas repousam sobre o reconhecimento das mulheres como específica e sistematicamente oprimidas e sobre a afirmação de que as relações entre homens e mulheres não estão inscritas na natureza, e de que existe a possibilidade política da sua transformação. A reivindicação dos direitos das mulheres nasce da distancia entre a afirmação dos princípios universais da igualdade e a realidade da divisão desigual dos poderes entre homens e mulheres. Não há ainda um discurso político unívoco em torno do feminismo. Há diferentes perspectivas deste assunto. No entanto, de acordo com Ergas (1991, p. 591) A inclusão dos direitos das mulheres na lista de reivindicações de várias organizações políticas, tal como a atenção agora pelo menos formalmente dada à representação das mulheres, ou ainda a constituição de formas específicas de ação destinadas a promover os interesses das mulheres, fornecem sinais tangíveis do impacto do feminismo. A emancipação das mulheres não resulta apenas na conquista da igualdade. Ela significa também a luta pela eliminação da violência em todos os seus aspectos, pela abolição do trabalho precarizado, direito a ser ouvida e valorizada, pela ruptura com a subordinação. Por fim conforme afirma Priore (1994, p. 7): “A história das mulheres não é só delas, é também aquela da família, da criança, do trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, da sua sexualidade, da violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos.” 2.1
MULHERES BRASILEIRAS: A CONQUISTA DA CIDADANIA FEMININA
brasileiro nos anos 70 - como o impacto do feminismo internacional e mudanças efetivas na situação da mulher no país a partir dos anos 60, o feminismo militante no Brasil surge como consequência da resistência das mulheres à ditadura, depois da derrota da luta armada. Surge num período negro em que a América Latina estava sob a égide de implacáveis ditaduras, as quais calavam as vozes discordantes. Neste contexto as mulheres insurgem-se não somente contra os regimes autoritários, mas também transgridem as expectativas que enxergam a mulher em um lugar de submissão e silêncio. Como nos diz Sarti (2001, p. 39) O feminismo foi se expandindo dentro deste quadro geral de mobilizações diferenciadas. Conviveu com a diversidade, sem negar sua particularidade. Inicialmente, ser feminista tinha uma conotação pejorativa. Vivia-se sob fogo cruzado. Para a direita era um movimento imoral, portanto perigoso. Para a esquerda, reformismo burguês e para muitos homens e mulheres, independentemente de sua ideologia, feminismo tinha uma conotação anti-feminina. A imagem feminismo versus feminino repercutiu inclusive internamente ao movimento, dividindo seus grupos como denominações excludentes. A autodenominação feminista implicava, já nos anos 70, a convicção de que os problemas específicos da mulher (não se falava em gênero na época) não seriam resolvidos apenas pela mudança na estrutura social, mas exigiam tratamento próprio Ao olhar atentamente para a Constituição da República Federativa do Brasil do ano 1988, percebe-se que ela simboliza um grande avanço na consolidação dos direitos e garantias fundamentais do povo brasileiro3 . Para sua elaboração, houve uma significativa participação da sociedade através das emendas sugeridas. As mulheres participaram neste processo democrático com conquistas importantes, como por exemplo, a da igualdade entre homens e mulheres como um direito fundamental. Não obstante, há muito o que conquistar. 3 No seu artigo 3o afirma que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Disponível no site www.planalto.gov.br. Consultado em: 05/06/2007.
Segundo Sarti (2001) embora uma confluência de fatores tenha contribuído para a eclosão do feminismo Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 56-63, mar. 2014
60
A BUSCA DA CIDADANIA PELAS MULHERES E AS DESIGUALDADES DE GÊNERO
Apesar de atualmente haver muitas mulheres no mercado de trabalho, ainda são poucas as que ocupam cargos de chefia. Também é ainda pequena a presença de mulheres nos postos de decisão do país, o que evidencia uma lacuna existente entre o que está assegurado na lei e o que é posto na prática. Há ainda um caminho a percorrer. Como afirma Piovesan (2006, p. 51): [...] constata-se a crescente democratização da vida pública, com uma participação cada vez mais ativa de mulheres nas mais diversas arenas sociais. Resta, contudo o desafio da democratização da esfera privada-cabendo ponderar que ela é imprescindível para a própria democratização do espaço público. Logicamente a situação das mulheres brasileiras muda de região para região, e até mesmo dentro de uma mesma região. As políticas sociais nem sempre são acessíveis para todas as mulheres e, algumas vezes, desconsidera-se as especificidades e particularidades que existem. Eis, a seguir, alguns dados que se referem às mulheres e que merecem um pouco da nossa atenção. Pena et al. (2005) afirma que Em geral, muito progrediu o Brasil ao longo das últimas décadas no tratamento das questões de gênero e na redução das diferenças socioeconômicas entre homens e mulheres. Três avanços importantes merecem ser mencionados: primeiro, o acesso e uso de contraceptivos aumentou enormemente, resultando em uma queda acentuada na taxa de fecundidade e no tamanho das famílias. Segundo, o nível educacional das mulheres aumentou a ponto de, na média, elas apresentarem agora mais escolaridade do que os homens. E, terceiro, embora os homens ainda predominem no mercado de trabalho, a participação das mulheres tem aumentado constantemente, ao mesmo tempo em que se observa a diminuição da diferença salarial entre os sexos (PENA et al., 2005).
qualificação e que oferecem poucas possibilidades de desenvolvimento, e os seus rendimentos refletem ainda uma desigualdade notória existente entre o trabalho masculino e o trabalho feminino. Para as mulheres da zona rural há ainda a falta de apoio e a desvalorização do trabalho doméstico, a pouca oferta de oportunidades de capacitação e de estudos, com pouca autonomia para o seu crescimento pessoal e social. Muitas veem na ida para as cidades uma oportunidade de estudar, trabalhar e se tornarem autônomas. Qualquer que seja o país, e mesmo que a separação tenha se reduzido muito durante as últimas décadas, a liberdade de acesso das mulheres a uma atividade remunerada é menor que a dos homens, e permanece ainda muito desigual, dependendo do país. Este acesso das mulheres à esfera pública depende de inúmeros fatores, dentre os quais queremos destacar a educação. Percebemos que a presença das mulheres nas Universidades foi ampliada e que, lentamente, elas passam a ocupar cargos de decisão. São conquistas que não podem ser ignoradas. A educação poderá impulsionar uma tomada de consciência das mulheres, configurando a sua autoestima, oportunizando o desenvolver do senso crítico e dando-lhes poder para buscarem alternativas de melhoria de vida, de superação das situações de desigualdade, de reivindicação dos seus direitos, fomentando sua participação ativa nos espaços públicos e de decisão. A conscientização pode contribuir para o desvelar das situações de injustiça e discriminação, e favorecer o acesso das mulheres ao espaço público, de forma que as suas ações e decisões possam ter influência positiva nos diversos setores da sociedade. Como diz Bonder (1994, p. 25) “Es un hecho ampliamente reconocido que la expansión del sistema de educación formal benefició particularmente a las mujeres y, complemetariamente, que el cambio más evidente en su condición social se expresa en su acceso masivo a la educación.4 ” São dados importantes que configuram uma promessa de melhoria e de avanço na sociedade. Não se pode esquecer que o analfabetismo não é casual. Ele caracteriza em sua maior parte as pessoas pobres, destituídas de poder, sendo uma clara manifestação da desigualdade social. No Brasil há quem afirme que a pobreza tem nome: é mulher, negra, nordestina. Corrobora com este pensamento Cohn (1995) quando diz que:
Entretanto, o fato de as mulheres terem aumentado a sua participação no mercado de trabalho não resulta em equidade no que se refere aos rendimentos auferidos por homens e mulheres. Em média as mulheres ocupadas ganham menos que os homens ocupados, o [...] para um brasileiro que nasça em uma faque demonstra uma clara desigualdade, sem esquecer4 "É um fato amplamente reconhecido que a expansão do sistema mos que os cargos de liderança nas empresas são, em de educação formal beneficiou particularmente às mulheres e complesua grande maioria, ocupados pelo sexo masculino. mentariamente,que a mudança mais evidente em sua condição social Efetivamente, as mulheres estão representadas nos se expressa em seu acesso massivo à educação."(tradução livre feita trabalhos menos bem remunerados, que requerem baixa pela autora do artigo) Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 56-63, mar. 2014 61
A BUSCA DA CIDADANIA PELAS MULHERES E AS DESIGUALDADES DE GÊNERO
mília chefiada por uma mulher, negra, com baixo nível de escolaridade, com grande número de crianças menores de dez anos, e que viva no Nordeste, a probabilidade de ser pobre é de 95%. Retirada a variável "residência no Nordeste"esta probabilidade cai para 87%, mas somente a variável “maior nível de escolaridade reduz essa probabilidade para 86%.”
quando feitas por homens e por mulheres. O protagonismo das mulheres, a sua atuação como sujeitos é visível na trajetória dos movimentos feministas e nas suas múltiplas lutas contra a subalternidade e para alcançar a igualdade e os direitos plenos da cidadania. 3
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Atualmente as pessoas enfrentam uma dinâmica comSilva (2005) também denuncia a situação desigual plexa de valores éticos, estéticos, econômicos, sociais, políticos. Alguns destes valores são compatíveis com das mulheres em relação à pobreza. Diz ela: a feminilidade, outros não. Cabe à mulher conciliar os valores em conflito, adotar estratégias de ação diferenPor via de regra, as mulheres são as maiores ciadas, inventar novas formas de viver e de reivindicar vítimas da pobreza extrema e relativa. São os seus direitos. Na realidade, muitas mudanças aconas mulheres que mais sofrem com a falta de teceram e muitas ainda estão por vir. Neste contexto de emprego remunerado, com as dificuldades de mudanças emergem as mulheres. Tornam-se visíveis. acesso aos cuidados primários de saúde e ao Tornar pública a história das mulheres significa dar ensino, com a falta de saneamento e escasa todos(as) a oportunidade de conhecer os tortuosos casez de comodidades domésticas. São as muminhos pelos quais muitas mulheres passaram até chelheres pobres que mais sujeitas estão a prágar à conquista da cidadania, mas também favorecer ticas atentatórias de direitos humanos fundapara que sejam desconstruídas as ideias preconceituosas mentais, com vidas mais precárias e de maior que estão arraigadas e contribuir com o desvelamento risco relativamente à prostituição e ao tráfico das relações sociais de gênero. humano. (SILVA, 2005, p. 123) É certo que não são somente as mulheres a única Ainda citando Silva (2005, p. 144), uma das razões parcela da população que sofre discriminações, ou que pelas quais se deve investir na luta pela igualdade de gê- tem a sua história esquecida em muitos aspectos. Tamnero é uma razão óbvia, "as mulheres constituem mais bém o são as crianças, os idosos, os negros, os índios, da metade da população mundial e vivem mais tempo. os imigrantes e muitos mais. A causa das mulheres não São pois, simultaneamente, o maior potencial de recur- pode, e não deve restringir-se a elas. Há que ser uma sos humanos, como também a parcela mais elevada de causa da sociedade que busca uma justiça social, que destinatários do desenvolvimento humano." necessita divulgar a história dos povos, principalmente A igualdade e as práticas de equidade de gênero no dos segmentos que foram por anos a fio segregados, e Brasil ainda não estão consolidadas. Em pleno século que tiveram seus episódios silenciados ocasionando um XXI vemos o problema da violência de gênero, a dis- vazio na história da humanidade. criminação sexista no mundo do trabalho e a marginaMuitos avanços tem ocorrido no desvelar da história lização das mulheres nos postos de tomada de decisão das mulheres, todavia, sabe-se que em alguns momenpolítica, militar e econômica, refletindo de certo modo tos, há uma tendência ao retrocesso. Conciliar a vida o contexto mundial, no qual as mulheres ainda são mi- doméstica com a vida profissional, vencer a violência, noria em cargos de poder. conquistar espaços de decisão e de poder tem sido um Possibilitar a participação efetiva das mulheres na desafio constante para as mulheres. Ainda há muito por política, na economia, na educação, nos espaços de to- lutar, muitos caminhos a percorrer, muitas conquistas a mada de decisões poderá trazer um contributo impor- fazer. Porém há uma força, uma energia, uma crença tante na resolução dos impasses que ora enfrentamos. que impulsiona este caminhar e que impede o regresso O papel ativo das mulheres brasileiras na sociedade terá aos fantasmas do passado. A crença numa sociedade consequências diretas na melhoria da qualidade de vida mais justa e igualitária. não somente delas próprias, mas também de toda a soO Brasil deste século não pode prescindir da preciedade. sença e da atuação de homens e mulheres comprometiMesmo com todas as conquistas obtidas pelas mu- dos(as), que respeitem a diversidade e a pluralidade de lheres brasileiras persistem ainda as dificuldades que opiniões e de posições e que arregacem as mangas na precisam ser vencidas. Precisamos combater de norte luta por uma sociedade e um Estado sério e compromea sul do país a visão sexista e discriminatória que di- tido que garanta a efetividade das políticas públicas em minui as mulheres atribuindo pesos diferentes às ações favor daquelas pessoas que delas necessitam. Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 56-63, mar. 2014 62
A BUSCA DA CIDADANIA PELAS MULHERES E AS DESIGUALDADES DE GÊNERO
A participação efetiva e qualificada das mulheres nos espaços públicos, associada à busca pela igualdade de direitos e de oportunidades não se restringe apenas ao esforço pela equiparação com os homens. São necessárias medidas que assegurem a igualdade de oportunidades na educação, no trabalho, na participação social, política e econômica. É fundamental integrar a política de igualdade de gênero em todas as políticas públicas. Há que estabelecer ações positivas que fortaleçam a participação das mulheres nos espaços públicos, assegurando-lhes o acesso a recursos econômicos, aos serviços de saúde, educação, ação social, o direito à posse da terra, dentre outros. Há que erradicar toda discriminação, toda forma de violência baseada em gênero, e assegurar às mulheres o pleno desenvolvimento em todas as esferas de sua vida, proporcionando-lhes o exercício de uma cidadania plena e o gozo dos direitos humanos em igualdade de condições com os homens. REFERÊNCIAS ARENDT, H. A Condição Humana. Lisboa: Relógio D’água Editores, 2001. BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo. Lisboa: Bertrand Editora, 1987. BONDER, G. Mujer y educación en américa latina:hacia la igualdad de oportunidades. Revista Iberoamericana de Educación-Gênero y Educación, p. 9 – 48, set./dez. 1994. Acesso em 30/04/2007. Disponível em: <http://www.rieoei.org/oeivirt/rie06a01.htm>. CASTRO, Z. O. de. Falar de Mulheres da Igualdade à Paridade. Lisboa: Livros Horizonte, 2003. COHN, A. Políticas sociais e pobreza no brasil. Revista Planejamento e Políticas Públicas, n. 12, p. 7, jun. dez. 1995. Acesso em 30/04/2007. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br>. DIAZ, C. V. La mujer em la historia y la historia de las mujeres. In: Mujer y Educación. Barcelona: Ed. Grão, 2002. DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente. Porto: Ed. Afrontamento, 1991.
HENRIQUES, F. Igualdades e Diferenças. Porto: Porto editora, 1995. MICHAUD, S. La mujer. In: El HombreRomántico. [S.l.]: Alianza Editorial, 1997. NASH, M. As Mulheres no Mundo: Histórias, desafios e movimentos. Vila Nova de Gaia: Editora Ausência, 2005. PENA, M. V. J.; CORREIA, M. C.; BRONKHORST, B. V.; OLIVEIRA, I. R. de. A Questão de Gênero no Brasil. Brasília: Banco Mundial, CEPIA, 2005. PINTO, T. Industrialização e domesticidade no século xix. a edificação de um novo modelo social de gênero. In: HENRIQUES, F. (Ed.). Gênero, Diversidade e Cidadania. Lisboa: Colibri, 2008. p. 155–168. PIOVESAN, F. Direitos civis, políticos: a conquista da cidadania feminina. In: O Progresso das Mulheres no Brasil. Brasília: UNIFEM, Ford Foundation, CEPIA, 2006. Acesso em: 05/06/2007. Disponível em: <http://www.mulheresnobrasil.org.br>. PRIORE, M. D. A mulher na história do Brasil: raízes históricas do machismo brasileiro. São Paulo: Contexto, 1994. RAGO, M. Ser mulher no século xxi. In: VENTURINI, G.; RECAMAN, M.; OLIVEIRA, S. A. (Ed.). Mulher Brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. SARTI, C. A. Feminismo e contexto: lições do caso brasileiro. Cadernos Pagu, scielo, p. 31 – 48, 00 2001. ISSN 0104-8333. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& pid=S0104-83332001000100003&nrm=iso>. SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. 1991. Acesso em 17/04/2014. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/ generodh/gen_categoria.html>. SILVA, M. Cidadania activa - desenvolvimento justo e sustentável. Braga: Comissão Nacional Justiça e Paz, 2005. . Globalização, pobreza e género. In: HENRIQUES, F. (Ed.). Gênero, Diversidade e Cidadania. Lisboa: Colibri, 2008. SOARES, V. O feminismo e o machismo na percepção das mulheres brasileiras. In: VENTURINI, G.; RECAMAN, M.; OLIVEIRA, S. (Ed.). A Mulher Brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004.
ERGAS, Y. O sujeito mulher. o feminismo dos anos 1960-1980. In: DUBY, G.; PERROT, M. (Ed.). História das Mulheres no Ocidente. Porto: Ed. Afrontamento, 1991. v. 4. Conex. Ci. e Tecnol. Fortaleza/CE, v. 8, n. 1, p. 56-63, mar. 2014
63