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Realização e organização Biblioteca da Área de Engenharia e Arquitetura Comissão Julgadora: Gislaine Melo Marcelo Raimundo Silva Marcos Roberto Grassi Michele Lebre Marco Capa e Formatação: Rafael de Queiroz Souza – Bolsista BAE
Crônicas do V Concurso Literário das Engenharias – 2018. UNICAMP/Campinas, SP: Biblioteca da Área de Engenharias e Arquitetura, 2019. 83 p.
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1. Literatura.
2. Crônicas.
I. Título
Apresentação
É com satisfação que apresentamos nesta publicação as 7 crônicas inscritas no V Concurso Literário da Biblioteca da Área das Engenharias e Arquitetura – BAE de 2018. Esta iniciativa faz parte de um trabalho da Biblioteca da Área de Engenharia e Arquitetura, relacionada a ações para incentivo à cultura, leitura e a criação literária destinada aos alunos das Engenharias. Diante desta realidade, a Biblioteca cumpre seu papel de ser ambiente de incentivo ao conhecimento e cultura. E temos certeza que esta iniciativa, de trazer os alunos para o mundo da escrita, é um complemento importante para o seu aprendizado
e
sua
trajetória
acadêmica
além
de
dar
visibilidade aos muitos talentos que temos na universidade. Boa Leitura!
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Danielle T. Ferreira Bibliotecária e Diretora Técnica BAE
Sumário 1º Lugar – Casos de Família – Monique Filassi .................... 6 2º lugar - Quem me acode quando fico na mão – Paulo Eduardo dos Reis Cardoso ............................................... 10 3º lugar – Sob a sina de Atlas – Pedro Guilherme C. Contieri ................................................................................... 14 Relato de Um Momento Íntimo – Murilo Ursi Malek-Zadeh ... 20 Um dia em dúvida – Matheus Felipe de Faveri.................... 23 Onde – Victor Shi Liu ...................................................... 33
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Os Tampos – Verônica Gesteira Souza .............................. 39
1º Lugar – Casos de Família Monique Filassi
Público
e
Privado
eram
irmãos,
filhos
de
Dona
Sociedade, uma senhora mui particular, tão contraditória em suas ações que às vezes era chamada pelos seus vizinhos de bipolar. Alguns diziam que isso tudo começara logo após o nascimento prematuro do seu segundo filho, Privado. Talvez tivessem
razão,
talvez
os
rumores
fossem
mesmo
verdadeiros, uma vez que Dona Sociedade tivera depressão pós-parto. A pobre sofreu demais durante a gravidez de risco, ocasionada principalmente por sua idade avançada. Na época, a notícia da gravidez a surpreendeu, Dona Sociedade não esperava ter outro filho depois de anos, e ainda menos as complicações
que
viriam
depois
dessa notícia.
Daquele
momento em diante, sua vida nunca mais fora a mesma. Mas a vida de Dona Sociedade não foi a única a se alterar com a chegada de Privado a esse mundo, Público, o
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primogênito da família, também se surpreendeu com a notícia.
Na
época,
ele
era
apenas
um
adolescente,
acostumado desde que se conhecia por gente a ter toda a atenção da mãe voltada para si. De início a ideia de ter um irmão mais novo não o agradou tanto assim, ainda mais que
Público era muito apegado ao pai, Seu Estado, e não queria dividir seu herói com mais ninguém. Então, os meses se passaram e à medida que a barriga de Dona Sociedade crescia, aquela gravidez tomava cada vez mais espaço na vida da família. Público quando percebeu de fato que tudo aquilo era real, e ele seria o irmão mais velho de alguém, se entusiasmou com a ideia. Imaginou tudo o que poderia ensinar para o caçula, que não mais ficaria só, e teria alguém para compartilhar seus segredos, suas dificuldades, e o importante, nunca mais faria todo o serviço de casa sozinho, compartilharia também suas responsabilidades. Porém caro leitor, se me perguntarem qual foi o momento em que Dona Sociedade, mulher de temperamento forte, passou a ser chamada de doente por seus vizinhos, não digo que foi logo após a depressão pós-parto, mas após o que aconteceu anos mais tarde. Quando Privado ainda era apenas uma criança, seu pai, Seu Estado, apesar de amar muito a família, em meio a uma crise de meia idade a abandonou, dizendo que estava farto
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daquele relacionamento de anos, no qual sempre foi muito criticado pela esposa quanto à criação de seus filhos. A partir daquele momento, Dona Sociedade se tornou mãe solteira, situação típica de quem vive em nosso país. Mas apesar de ser comum, não foi fácil cuidar dos filhos sozinha, ficando
ainda mais difícil com o passar dos anos, conforme as diferenças sempre irreconciliáveis entre Público e Privado ficavam mais nítidas. A coisa toda entre os dois começou quando Privado foi para uma escola diferente da que Público frequentara, lá adotando como máxima o neologismo “meritocracia”. Como inspiração usava frases de Adam Smith, como: “O que vai gerar a riqueza das nações é o fato de cada indivíduo procurar o seu desenvolvimento e crescimento econômico pessoal”. E, na presença de seu professor, Doutor Capitalismo, tinha a figura do pai ausente. Já Público que estava em estudos mais avançados, vivia sob a influência dos trabalhos de Karl Marx, aprendendo com seu professor Senhor Comunismo que: “O povo que subjuga outro, forja suas próprias cadeias”. Apesar de terem o mesmo sangue correndo em suas veias, os dois irmãos eram muito diferentes, tanto em suas ideologias quanto fisicamente, e pessoas que conviviam ao redor da família custavam a acreditar que eles eram parentes. Essa situação causava muita tristeza à mãe. Mas, Dona Sociedade, mulher fervorosa como era, procurou resolver
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seus problemas familiares através da religião. Na época “se apegou” a Deus temendo que os filhos tivessem o mesmo fim bíblico que Caim e Abel.
O ápice do desentendimento dos irmãos foi na época das eleições à Presidência do país. Com opiniões tão divergentes a respeito dos seus candidatos, Público e Privado, começaram uma discussão acalorada sobre política, mas terminaram no assunto familiar que tanto os desolava: a ausência do pai. Um culpava o outro por tal ausência, mas ambos sentiam uma mágoa grande de Seu Estado, e não queriam revê-lo. Pensavam que não precisavam daquele sujeito para mais nada. Desde a grande discussão, os irmãos se tornaram ainda mais frios e distantes um com o outro. Até o momento em que Dona Sociedade, em meio a uma crise profunda de recessão, “ops”... quero dizer, depressão, resultante em grande parte de seu fanatismo exacerbado, os irmãos resolveram deixar as diferenças de lado e procurar a única pessoa em quem confiavam para ajudar a cuidar da mãe: Seu Estado, que era um homem laico. Pela primeira vez depois de tempos, público e Privado concordaram em algo, precisavam da intervenção do pai na
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família.
2º lugar - Quem me acode quando fico na mão Paulo Eduardo dos Reis Cardoso A internet aqui em casa caiu. Por ser obrigado a sair das redes sociais, resolvi ir até a janela de meu apartamento, coisa que confesso não fazer a um bom tempo. Ao observar as ruas ao redor de meu prédio, vejo uma massa enorme de pessoas, curiosamente separadas por suas camisetas, umas vermelhas e outras amarelas. Em uma das faixas vermelhas está escrito: “NÃO ÀS PRIVATIZAÇÕES”. Nisso lembro que preciso ligar para a empresa vir consertar a minha internet. O atendente, depois de confirmar e reconfirmar meus dados por várias vezes, me informa que o técnico virá na manhã do dia seguinte, mas, até lá, terei que ficar sem o serviço. Minha reação é de revolta. ― Onde já se viu, eu sou consumidor, tenho meus direitos! ― Como posso ficar sem minha preciosa internet? Pergunto a quem eu posso reclamar, e ele com uma paciência irritante, me diz que posso ligar na
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ouvidoria da empresa ou abrir uma reclamação na Anatel, mas que o prazo é esse mesmo. Nestas horas a gente se sente desprotegido... Pego
um
café
e
volto
à
janela,
pensando
em
alternativas para a empresa que vai me deixar sem internet
até amanhã. ― Oras! Se existem alternativas é claro que vou trocar de empresa! Para minha tristeza percebo que terei de esperar a volta da internet, para procurar as opções ofertadas pelas concorrentes. Terminando o café, observo lá embaixo escrito numa faixa amarela “ESTADO MÍNIMO”, e me vem à cabeça o que realmente a Anatel poderia fazer por mim. Lembro que meu irmão deixou um material sobre concursos, coisa a que eu nunca fui muito adepto. Procuro na estante e encontro uma apostila empoeirada com conceitos básicos de Direito e Estado. Ao abrir a apostila me dou conta que a Anatel não é uma empresa que vende internet, portando não posso contratá-la. Ela é uma agência reguladora, um órgão do estado com a atribuição de regular, controlar e fiscalizar atividades econômicas de interesse coletivo transferido para particulares. ― Ok, mas e o meu problema? Nessa divisão entre Estado e particular, público e privado, quem faz o que?
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Na apostila tem um capítulo sobre serviços públicos e privados, onde encontro exemplos de atividades típicas de Estado, que não podem ser delegadas a particulares, como: aprovar leis, manutenção da ordem interna, defesa do território, representação externa, provimento da justiça, tributação, regulação de setores econômicos, provimento
universal dos bens sociais fundamentais, e cobertura dos riscos sociais. Penso comigo que, realmente, não seria viável que particulares exercessem estas funções, ou que não é possível haver concorrência. ― Já pensou, podermos escolher a lei da empresa A e não a lei da empresa B? Cômico, não? Existem também os serviços públicos de interesse ou de utilidade pública sendo os que têm o desejo dos cidadãos e do Estado em sua universalização e continuidade, necessários ao funcionamento da sociedade, podendo ser executados pelo Estado diretamente ou serem outorgados à particulares. Saúde,
educação,
saneamento
básico,
previdência, energia,
transporte
telecomunicações,
coletivo, sistema
bancário, mineração, etc. ― Ah! Os serviços de interesse ou de utilidade pública são os que necessitam de regulação pelo Estado? Ou será que a sociedade consegue sem a intervenção do Estado filtrar quem executa melhor os serviços e com preços adequados?
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Será que se eu trocar a empresa de internet aqui de casa ela vai melhorar? Ou será que ela vai falir? Que interessante ter a opção de sermos atendidos pelo Estado ou por empresas. Em algum momento no passado o Estado provia a maior parte dos serviços e, então, decidiu-se que o particular seria mais eficiente no atendimento às
demandas
e
necessidades
do
cidadão.
Assim
a
responsabilidade por executar o serviço foi transferida às empresas, ficando o Estado com a responsabilidade de regular as empresas outorgadas. Será que tudo pode ser outorgado? Tudo pode ser privatizado? Ou é melhor que tudo volte ao Estado? Acho que essa é uma das grandes discordâncias do pessoal colorido que está nas ruas da cidade. Olho novamente lá para baixo e reparo
policiais
próximos
à
estação
do
monotrilho,
observando toda aquela multidão. ― Taí! A polícia é uma das atividades que não poderiam sair do Estado. Já pensou uma empresa de vigilância privada ser responsável por prender ou investigar crimes? Acho que não daria certo. Começa uma sequência barulhenta de gritos de ordem lá fora. Enfim, parece que ainda não se entenderam. Uns acreditando que o Estado tem competência e dinheiro para cuidar de todos, e outros acreditando que todos têm dinheiro
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e competência para cuidar de si. Num momento de silêncio escuto um bipe. É do modem: a internet voltou! ― Vou postar estas reflexões. Quem sabe alguém por aí concorda comigo.
3º lugar – Sob a sina de Atlas Pedro Guilherme S. Contieri A neblina lá fora indica o fim da estação das chuvas e embaça o vidro que separa a sala da vida real. Dentro do cômodo, o senhor de meia idade se perde no monte de papeis que chegam por sua caixa de correio. Uma muralha de boletos e fiados, que enchem a mesa e a paciência do homem, parecendo mais velho e mais rabugento a cada nova carta. De forma nem um pouco amigável, fazia questão de ler e
rasga-las
sem
pudor,
sem
hesitar.
Mas
mesmo
exteriorizando sua raiva, ela não passava, e seu corpo vitimando a si, tentava blindá-lo da dura realidade que o tinha levado até aquele momento: sua vida financeira estava no buraco. A próxima carta, daquela interminável pilha, era um aviso do banco sobre a hipoteca de sua casa. O casebre do homem era o único bem que o credor aceitara quando precisou de um empréstimo para bancar o tratamento de
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saúde da filha. A criança, mesmo após todos os esforços médicos, se fora, mas a dor do pai era real a cada aviso que recebia em sua casa, a cada fria mensagem automática escrita por um computador em algum luxuoso escritório da organização financeira. As lágrimas escorriam, assim como a umidade do lado externo da janela. Enquanto o dia se
despedia do sol, o senhor se lembrava de suas dolorosas despedidas. Enxugou o rosto e deu um gole em seu chá frio, estendendo-se
para
alcançar
a
próxima
carta
que
o
aguardava. O brasão da prefeitura mostrava-se meio falhado no topo do papel e o texto, nada animador, indicava que tinha sido
selecionado
para
um
imperdível
programa
de
renegociação de impostos atrasados. Há anos que o homem não cumpria com suas obrigações civis, não havia repassado um centavo se quer para o governo e se sentia no direito de não prover o seu dinheiro para aqueles que não o ajudavam. A carta teve o mesmo destino das demais, o fazendo com que, sem a menor empolgação, voltasse à pilha de papel que o isolava do outro extremo da mesa. Nada de novo, nada de interessante, apenas as mesmas palavras vazias escritas com o intuito de provocar preocupação ou descontentamento. As ameaças realizadas nas entrelinhas, corroíam o orgulho e feriam o brio do homem em cada frase. No fatídico dia da morte de sua filha, o marido dele não
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aguentara o choque e perdera a razão de viver. O custo com os antidepressivos do parceiro drenava todo o dinheiro do homem,
cujos
cabelos
brancos
eram
responsáveis
por
sustentar sozinho a frágil família, mesmo nunca tendo um emprego fixo que garantisse a sustentação plena do casal. O peso de uma vida perdida ainda era latente sobre suas costas
e o medo da solidão completa o mantinha ereto para continuar seguindo em frente. Se levantou com dificuldade e adentrou a antessala que separava a porta da frente do interior da casa. Pegou seu sobretudo cinza surrado e rumou em direção à vastidão da noite. A neblina o impedia de ver claramente, mas o caminho parecia nítido como o dia. O ofuscamento não era fruto da falta de luz das ruas do bairro, mas dos seus olhos, que falhavam em enxergar o significado de tudo aquilo. Afinal, pensava o senhor, a quem pertencia sua felicidade, se ela se quer ainda existisse? Sua filha a levou com ela, como seu ursinho de pelúcia, para dentro de seu túmulo? Estaria sua alegria deitada no quarto do casal, agonizando sobre a própria existência? Os carros passavam e a escuridão aumentava. Cruzando
a
avenida,
entrou
em
uma
loja
de
conveniência e comprou uma caixa de leite e um maço de cigarros, acendendo um logo ao sair novamente em direção à noite. Sua vida não estava em suas mãos e era só uma questão de tempo até que fosse privado de tudo que teve o
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prazer de conquistar em seus longos anos de caminhada. À distância, uma sirene tocava em velocidade, e sua espinha tremia com o som que chegava aos seus ouvidos. Um ultimato e poderia perder seu bem mais precioso, a liberdade. Liberdade que o guiava naquela noite era a mesma que o guiou para fora da casa de seus pais, quando decidiu buscar
um amor proibido. Liberdade que o guiou ao orfanato e abraçou a menina recém-nascida, sozinha e desamparada, acalentando seu coração como nunca antes. Liberdade de ajoelhar sob a lápide e chorar o fim injusto de uma alma incrível. Liberdade que o mantinha de pé sob as luzes borradas de uma cidade deserta. Ao voltar à antessala, tudo estava como antes, mas nada mais parecia estar no lugar. Nada lá o pertencia, nem a mesa, nem o sofá nem o sobretudo que vestia. Estava nu em um mundo que o sufocava e o privava de sua própria existência,
como
se
estar
ali
significasse
um
delito
imperdoável. Apagou o resto do seu cigarro na carta mais próxima, sua demissão, recebida mais cedo naquele mesmo dia pelas mãos de seu supervisor. Com aquele desfecho, o fundo do poço parecia nunca chegar e, em queda livre em direção ao abismo, temia o que pudesse encontrar nas profundezas da existência. As lágrimas agora cessaram e o ódio voltava a latejar quando as últimas cartas eram remexidas e apresentavam
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duas propostas para um futuro melhor. O sorriso cativante criado por computação gráfica do candidato destoava da expressão
de
seriedade
do
seu
oponente,
ambos
representando um país que não existia, uma esperança que era latente, mas incubada e enterrada. Tanto o presente quanto a dita renovação não o representavam. O grisalho
senhor não acreditava no velho que se dizia renovado, nem o novo que representava mais do mesmo. Seu coração, cheio de emoções fervilhando queria acreditar, precisava acreditar, seria sua única chance de se agarrar as paredes e evitar a dolorosa aterrisagem, mas a chama já se apagara e palavras vazias jamais a reacenderia. Como um réu em um tribunal cercado por seu júri, as cartas se dispunham ao seu redor, o cercando e o sufocando. Cada vez mais se sentia despido e, como uma forma de se libertar, acendeu mais um cigarro e queimou suas cobranças uma a uma. A cada monte de cinzas que formava ao seu redor, sentia-se recuperando um membro, retomando a forma. A sensação de liberdade voltava gradativamente e o tornava dono de si. Afinal, quem ditava o que ele precisava ser ou como deveria agir? Nunca fora a sociedade, nunca os bancos nem os governos. Ou será que sempre fora e ele nunca conseguiu enxergar que não pertencia a si próprio? Sem arrumar a bagunça da mesa, o homem subiu as escadas e adentrou seu quarto, sentindo o mofo invadir suas
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narinas.
Do
lado
direito,
seu
companheiro
mergulhava
profundamente em seu sono de tarja preta. Se deitou com cautela e acalentou-se ao lado do seu amor. Bastou um toque para que a represa se rompesse e as lágrimas voltassem a fluir, pondo fim à frágil compostura que tentara construir desde que voltara de sua caminhada noturna. Novamente
parecia
estar
sozinho
entre
quatro
paredes,
porém
constantemente vigiado por um mundo que o condena, o controla. Abraçou calorosamente o homem ao seu lado e engoliu seus pensamentos, navegando de forma turbulenta em direção ao vazio do sono, onde apenas ele poderia adentrar. Talvez lá existisse amparo, talvez lá existisse compaixão.
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Talvez lá existisse esperança.
Relato de Um Momento Íntimo Murilo Urssi Malek-Zadeh Quando eu abro meu celular vejo: “Líder nacional é forçosamente expulso do armário”. De princípio, acreditei que essa era mais uma dessas fake news. Ora, brasileiro nenhum que se preze possuía confiança no republicanismo ou nas boas intenções acerca da coisa pública do senhor presidente. Mas, daí
a
duvidar
de
sua
heterossexualidade
era
demais.
Inclusive, seu grande apelo era justamente o de ser um pai de família tal qual toda mãe sonha para sua filha: polido, asseado, estudado e, claro, rico. Eu tinha que investigar isso — cliquei no link. A plataforma de notícias era confiável, ao menos era assim julgada pela maioria. O conteúdo, entretanto, cabeludo. “Senhor presidente é flagrado em sua última viagem para a Rússia sendo recebido de forma acalorada por um belo nativo. ” Disso seguiam as especulações possíveis sobre esse encontro, cuja única fonte de informação era uma foto.
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A foto havia sido tirada em formato de selfie por um casal russo em uma praça, e por acidente, o senhor presidente aparecia com o dito nativo. Serei sincero, mal dava para ver se era mesmo o nosso presidente. Mas a essa altura isso era o que menos importava. A vida privada do presidente
seria decidida pelo público da internet. Como bom cidadão, vou realizar minha função no tribunal do facebook. Foi
possível
observar
a
formação
de
facções:
a
primeira, mais agressiva, repudiava o comportamento do presidente; a segunda, indicava a bem-aventurança relativa à liberdade; a última, criticava justamente a notícia, que na opinião desse grupo, não deveria ter sido noticiada. Salvador Júnior, por exemplo, que acredito ter se esquecido de trocar a foto do mês das crianças dizia “Morte aos pederastas!”. Dona Vânia respondia a este comentário violento com doçura: “Meu filho, não perca a calma, somos todos filhos do mesmo Senhor Jesus Cristo. Deus fica muito triste quando falamos palavras feias”. O jovem Enzo me pareceu sensibilizado pela situação do presidente “Amigxs, como podemos criticar um ato de amor? Isso precisa ser celebrado!”. Sandoval achou uma afronta
“Tá
maluco?
Onde
já
se
viu
celebrar
essa
baitolagem!”.
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Ivair, de cabelos brancos, gordo, aparecia na foto com as duas mãos à mostra, uma carregava um copo de cerveja e a outra o polegar erguido, e escreveu em caixa alta: “ISSO É UM ABSURDO!!! NOSSO PAÍS ESTÁ PERDIDO! NA MINHA ÉPOCA HAVIA RESPEITO, EU MESMO EM MINHAS VIAGENS DE PESCARIA NO PANTANAL JÁ VI AMIGOS FAZENDO COISA
PIOR, MAS NA ÉPOCA TINHA RESPEITO E NÃO HAVIA FOFOCA!”. Clarice tentou ser engraçada “esse presidente é o Robin Hood às avessas, rouba dos pobres e dá para o rico kkkkkk”. Quando li essa péssima piada, eu até desisti de tentar entender o rumo daquela discussão descabida. Fechei meu
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celular, levantei, dei descarga e saí do banheiro.
Um dia em dúvida Matheus Felipe de Faveri Enjoado de uma noite de sono, me esforço para abrir os olhos e em seguida limpá-los. Levantar, mesmo que seja para me sentar na cama me parece um desafio, nem tanto pela tarefa, mas pela falta de ânimo, de vontade mesmo. Aquilo que nos move quando o sol ainda não raiou e nos aquece o coração para encarar o marasmo de mais um dia. Rotina. Cansativa, ainda que não por ser rotina, mas por ser essa rotina. Levantar e tomar um banho, se não fizer isso, meus olhos não serão capazes de permanecer nem parcialmente abertos pela maior parte do dia, que dirá então me concentrar em alguma coisa. A água tem que ser morna no começo, não seria capaz de suportar a água fria logo de cara, depois de sair do calor da cama. A noite mais uma vez foi quente e o calor do meu corpo acordou me ainda antes do despertador. Objeto que recebe sobre si todo meu ódio matutino. Apesar de tanto rancor para com esse fiel serviçal, espero que ele
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toque uma meia dúzia de vezes todos os dias até que eu consiga levantar, num transe de sono. Como disse, no começo a água tem que ser morna. Ao final, para despertar e também para meu próprio prazer, realizo uma pequena maldade para comigo mesmo. Desligo o
chuveiro elétrico e deixo a água fria cair no meu corpo quente. É bom, é muito bom. Me sinto vivo. Finalmente tenho força para mais um dia. Pão, manteiga, café preto. Esses são os itens essenciais. Outras coisas variam, dependendo do dia, da vontade, das sobras na geladeira. Só não abro mão do: pão, manteiga, café preto. Café amargo, forte, puro. Me faz sentir vivo, como a água gelada na pele, o café quente no estômago. Sinto meu corpo terminar de acordar, a cabeça já processa uma dezena de coisas, acelerada pela bomba de cafeína que forneci há pouco. Pego as minhas coisas, jogo dentro do carro e vou para mais uma aula. Só, no carro, meu carro. Símbolo único e máximo de liberdade para mim, é um objeto qualquer que me serve de transporte, mas ao mesmo tempo, foco de muitas emoções. Até aqui não o descrevi e acredito que para continuidade da narrativa é seja essencial que eu o faça.
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Sem uma linha reta sequer, herdeiro de um desenho em parte caricatural, em parte genial. Nota-se, de imediato, duas coisas ao avistá-lo: em primeiro lugar, sua cor, fonte de grandes debates entre meus amigos e eu. Nunca gostei, na verdade. Me lembro de dizer no passado que jamais (sim, jamais, não há nada mais irônico que o tempo,
somado à falta de recursos financeiros) possuiria nada, em absoluto, dessa cor. Para o leitor mais desejoso de detalhes, a cor a que me refiro é um dourado fraco, alguns chamam de “champagne”, mas isso não é importante. O que importa é antes eu a detestava e agora sou capaz de suportar. O segundo ponto, notável ao longe, são suas rodas. Estas sim, obras minha, custaram grande parte de minhas raquíticas economias. Mas valeram à pena. Lindas, tamanho escolhido à dedo, depois de repetidas medições, mudaram completamente as proporções do meu carrinho, produzido no ano de 1970, apenas três anos mais novo do que meu pai. Que agora ostenta “sapatinhos” novos por onde anda, e isso para mim, faz toda diferença. De lata velha transformado em obra de arte. Meu carro velho é, nesse mundo, tudo que tenho. Tudo que é meu, que eu já comprei, está nele e não tenho nada além disso. Acredito que, por isso, só me sinto livre dentro dele. Me sinto livre pois posso ir para qualquer lugar. Me sinto feliz porque ele é meu, só meu. Não há nada mais que seja
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meu. Todo o resto, todas as coisas que existem no mundo, se uso, são emprestadas. Se não posso tocá-las é porque são de outro. Mas o carro não, ele é meu. Bem, quase de todo. Visto que todo ano tenho que continuar pagando taxas ao governo para poder continuar
usando o que deveria ser completamente meu. Dessa forma, pelo menos uma vez por ano sinto que o que é meu, não o é de todo. Uma pequena parte pertence à uma entidade maior, algo grande e abstrato, que come uma garfada do meu prato cada vez que me sento à mesa. Isso me fez pensar. Dirigindo meu passatempo favorito, penso como o mundo é estranho, como as pessoas fazem enormes confusões entre o que é delas, o que é dos outros, o que é de todo mundo. O que é de todo mundo? Quem é todo mundo? Será que existe mesmo algo que é de todo mundo? Se é de todo mundo, também não é, em parte, meu? Se é meu, por que em alguns casos eu posso usar e em outros não? Qual é o limite? É tão estranho pensar nessas coisas em meu breve momento de liberdade que, assim que ele passa, eu desço do meu carro velho e tranco sua porta, todas as coisas que questionei um segundo atrás já instantaneamente se organizam de novo do jeito que sempre foram.
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Esse
fenômeno,
mais
que
bizarro,
aconteceu
automaticamente pois minha cabeça já está tão acostumada a pensar de um jeito que nem pensa mais. Ao longo do tempo, ouvindo as conversas por onde passava, percebi que as pessoas querem tornar mais “de todo mundo” aquilo que não é delas e mais “delas” aquilo que é de todo mundo.
Mas
minhas
dúvidas
continuam
as
mesmas,
fico
dividido entre elas e minha conduta automática, quase robótica, que me é natural, depois de anos de aprendizado. Vejo pessoas discutindo pelo caminho, elas mostram que têm as mesmas dúvidas, algumas parecem ter mais certezas, outras menos. Outras mostram estar total e completamente perdidas, poderia tentar dizer que estão em cima do muro, mas acho que essa imagem não mostra suficientemente a confusão. Estando em cima de um muro uma pessoa, ou gato (animal que muito mais comumente se encontra em cima de muros), tem apenas três possibilidades: 1 - permanecer em cima do muro, podendo ainda ir para frente ou para trás, porém sem causar mudança drástica de paradigma; 2 - saltar do muro para um lado, o que pode demandar um tremendo esforço em compreender e se adequar a uma nova realidade que poderá estar daquele lado; ou 3 - o mesmo que dois, mas a realidade existente lá é diferente daquela do outro lado do muro. Essa expressão costuma ser empregada com o intuito de retratar um gato, ou pessoa, entre uma decisão, e cada
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lado separado pelo muro contendo uma realidade oposta ou antagônica ao outro. Dada esta explicação excessivamente longa, acredito que as dúvidas nos dias de hoje, entre o que é pessoal e o que é de posse geral são melhor representadas da seguinte
forma: tem-se um gato, ou pessoa, ou cachorro. Creio que neste caso não haja diferença do animal, importante é apenas o fato de o animal estar necessariamente em um estado excruciante
de
abalo
intelectual
causado
pela
dúvida.
Portanto, há um animal em dúvida. Este está não no ponto mais alto de um muro, mas no cume de um bastão, tão estreito quanto for possível, porém ainda capaz de suportar o peso do animal e de sua dúvida. Cabe aqui ressaltar o esforço que o dito animal (caro leitor, neste ponto espero que já tenha escolhido um animal sua imagem mental, uma vez que desisti de realizar essa escolha por você) desprende em manter-se equilibrado para não cair em uma realidade que, em vez de separada de forma inequívoca por um muro, está envolta em uma confusão de opiniões e fatos misturados e que criam uma bagunça ainda maior, agravando o estado de confusão do pobre animal. É possível que minha tentativa exaustiva de desenhar uma imagem com palavras possa ter resultado mais em frustração que iluminação a quem quer que leia esse retrato da minha mente que, como avisado desde o início, demora-se
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para acordar, e depois passa horas duvidando da realidade que vive. Voltando ao que tenho domínio: meu carro velho. Acho importante falar dele, pois não é apenas minha única posse, mas destaca-se nele boa parte da minha personalidade,
reflexo da minha alma, aquilo que é meu mas não tem forma. Depois de descer dele e fechar sua porta, passar pelas pessoas discutindo, debater sozinho dentro do meu próprio crânio o que é que elas pensam, chegar a uma imagem cômica de um elefante equilibrado em um palito de dentes, finalmente passo por uma porta e tenho que me sentar. Aguardando o início da aula, olho para os lados. Agora, já longe do meu velho pedaço de metal, vejo que nada ali me pertence. Cadeiras, lousa, telas, uma verdadeira infinidade de telas por todos os lados, mas nenhuma delas me pertence, nem mesmo a que está no meu bolso. Sei que quem lê essas linhas deve achar estranho eu dizer que algo no meu bolso não é meu. Garanto que não roubei nada, ganhei de presente dos meus pais. Ele me serve para um mundo de coisas mas, no fundo, não é meu. Não me sinto triste, também não me sinto mal por não possuir as coisas ao meu redor. Me sinto abençoado por poder usá-las, mesmo não sendo minhas. Porém, muitas dessas coisas que vejo todo dia não são minhas nem de ninguém. O
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meu carro velho é velho, tem buracos no assoalho, mas é meu. E eu cuido dele, tão bem quanto posso. Cuido porque ele é meu. Se tantas coisas não são de ninguém, quem é que cuida delas? Porque, se não são de ninguém, ninguém irá querer cuidar delas. Talvez, por isso, muitas coisas que são de todo mundo não encontram ninguém que as guarde.
É até pior que simplesmente não cuidar, por não terem que consertar nada que quebram, as pessoas não se preocupam em não quebrar e, dessa forma, transformam tudo em pedaços. Partem e deixam em cacos os objetos, os lugares, as regras; às vezes, até outras pessoas enfim, tudo que for possível. Acabo de perceber que passei o dia divagando sobre tudo que não é meu. A maioria das coisas nem queria que fossem mesmo, não tenho tempo nem sou capaz de cuidar de tantas coisas. Por enquanto, me basta meu carro velho e uns tantos livros na estante de casa, que estão lá de passagem, cuido, mas não os possuo. Sobre a confusão das outras pessoas decido me decidir, para não perder outro dia meu pensando nos problemas dos outros. Chego à conclusão que todos querem ter todas as coisas sem cuidar de nada, é como se estivesse vivendo num mundo onde quase todos são crianças e eu também sou criança, um pouco mais velha, que percebeu que tem um brinquedo só seu. Vejo pessoas exigindo coisas que não são
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suas,
vejo
alguns
choramingando
porque
querem
os
brinquedos dos outros, vejo outros esperneando dizendo que o que é de todo mundo é só seu. A imagem dos bebês chorões se torna impossível de apagar.
Não digo que não existam adultos nesse mundo, eles, de fato, existem, mas são poucos. Alguns deles possuem muitas, muitas coisas. Alguns deles cuidam das suas próprias coisas, outros cuidam das coisas dos outros. Desses que cuidam do que não é deles, muitas vezes tratam essas mesmas coisas como se fossem suas, se conseguirem fazer isso por tempo suficiente, elas realmente se tornam, o que é um absurdo para uma criança como eu, que teve que montar seu brinquedo peça por peça. Entro no meu carro de novo, ligo seu motor e os barulhos familiares ressurgem. Por uns poucos segundos fico ouvindo o ranger das peças velhas, avaliando se não apareceu nenhum ruído novo. Uma vez constatada a estabilidade da montagem dos parafusos enferrujados, volto para casa dirigindo meu brinquedo, em paz e feliz, durante meu pequeno momento de liberdade. Sonho em um dia ser adulto, em conseguir cuidar de muitas coisas e ajudar muitas crianças a se tornarem adultos. Por hora, preciso chegar em casa, tomar banho e descansar,
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no marasmo da repetição dos dias, mal posso esperar pelo café preto da manhã seguinte e quando encosto minha cabeça no travesseiro, quase posso sentir seu cheiro. O despertador toca, a água fria me acorda, o café me deixa alerta. Hoje já não penso mais no que é meu e o que
não é. Entro no carro velho e o cheiro de óleo queimado me
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faz sentir em casa, não importa de quem for a casa.
Onde Victor Shi Liu 100%. Um pomo resplandece sobre meus olhos: acordo. O ofuscante espectro de luz toma dimensão e faz-se único na imensidão cerúlea que o rodeia. Desperto, já levantado, meus pés encontram-se envoltos em grãos levemente úmidos e aquecidos devido à noite fresca que há pouco ali reinava. “Hoje o dia promete!”. O azul se estende até o chão, tomando brilho e vivacidade, e seus vários tons oscilam sob a minha vista, movem-se interligados e conversam entre si, mas como se todos devessem ouvir. E ouvimos. A praia de Copacabana amanheceu linda mais uma vez. Enquanto o orvalho vira brisa, os primeiros praianos chegam para praticar suas atividades, para garantir seu lugarzinho à beira-mar ou apenas para aproveitar o máximo daquele espetáculo. Na verdade, eles são os segundos ali, porque Carlos já tentava me explicar, pela enésima vez, sobre como
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tinham tantas pedras no meio de seu caminho. Ainda bem que as pessoas logo o abordaram para mais um dia de fotos, porque eu exigiria muito de sua paciência. O tempo passa despercebido, os helicópteros que monitoram a baía já protagonizam o mosaico de cores
formando-se sobre a areia, e a orla é tomada pelas passeatas de bem-estar, saúde e diversão. 70%. No meio de tantas pessoas, reparo que existem algumas mais amigáveis: elas caminham ininterruptamente conversando com os demais banhistas, recolhendo ou apenas mostrando-lhes objetos. A indiferença com que são tratados e até a antipatia em certos casos, me faz lembrar, com dor, das esperanças do paraense mais querido que guardo em minha biblioteca. Flávio era seu nome. Me recordo de seu olhar confiante e palavreado simples, ouvindo sobre como era categorizado por sua modéstia e humildade. Acordava todos os dias às 5h25min, sabendo que precisaria daqueles “cinco minutinhos” para pegar o terceiro ônibus em direção ao centro. Eram 1h30min de viagem e 12h de serviço na padaria da Rua Quatro, com gentis 45 minutos de almoço. Depois, ainda dedicava tempo para sua cidade, “minha terrinha”, ele dizia. Caminhava pelas ruas mais movimentadas a fim de
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recolher
latinhas
e
outros
dejetos
que
poderiam
ser
reaproveitados. Ainda por aquelas veredas, muito raramente, tinha a oportunidade de contar sua história para ouvintes. Eram
poucos
choravam,
segundos
outros
nem
para tanto,
tantas mas
lágrimas: todos
muitos
estampavam
comoção em seus rostos. Seu pai se deixou levar pelos vícios
e se tornou invisível, uma sombra dentro dos poucos metros quadrados
que
os
abrigavam;
frustrado
pela
escola
e
convocado por responsabilidades que lhe eram injustas, Flávio perseverou frente à inépcia do governo e à ausência do senhor Sasso. O menino era incansável, um verdadeiro guerreiro. Hoje, ouvi notícias suas e.... que alegria! Encontrou uma mulher espetacular, tem sua própria casa e, acima de tudo, mantém seu esforço para ajudar outros injustiçados pelo descaso dos órgãos públicos. Escolas abandonadas, centros esportivos esquecidos, obras públicas inativas ou largadas e hospitais operando em condições gravíssimas assustam. O Estado parece ausentar-se de responsabilidades críticas, recorrendo às iniciativas privadas ou fazendo uso de medidas paliativas; que Ele venha à luz e tenha sua incompetência revelada para que novos ares possam aflorar, e não seja a sombra na vida de tantos Flávios. 50%.
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Minha breve reflexão política é interrompida quando noto que a praia observa um casal. Não reconheço nenhum deles, mas meu âmago diz que são famosos. Capto, como um espião, o que acontece nos arredores: alguns fãs aproveitam o momento para pedir uma foto e um autógrafo, outros só sussurram surpresos pela presença “extraoficial” e uns, ainda,
parecem relatar a cena com palavras e imagens. Seria ótimo se estes últimos se restringissem ao cenário ali mostrado ou apenas às suas opiniões, mas contar só para aquele(a) melhor amigo(a) não tem problema, né? Neste caso, esse melhor amigo perdeu identidade, mas abraçou todos os egos, num lugar onde a distância, como grandeza física, perde sentido e o anonimato “protege”, só existe um conhecido: o Público. Certamente, em alguns dias, os dois seriam pauta de alguma discussão online. Apesar dos aspectos da fama, imagino que, como qualquer cidadão, eles adorariam se pudessem viver sem julgamentos externos toda vez que pisassem na areia. Movo-me sobre a orla. É impressionante como as fronteiras físicas foram transpostas, hoje em dia. Ao longo das horas, foram incontáveis
compartilhamentos
de
fotos,
informações
e
localizações, o que é muito útil por um lado. Eu mesmo consegui conhecer mais das praias cariocas, com base no que estava com vontade de fazer. Só me preocupo com o lado em
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que não há respeito entre o que é e o que não é de meu direito. Ao adentrar na Web, tenho ciência de que está sendo monitorado. Mas como preservar minha liberdade em um lugar onde concordei com a susceptibilidade?
20%. O que acham? Gostaria de conversar, mas não levo muito jeito. Perceberam que trabalho é com a minha memória, não é mesmo? A tarde começa a cair e o que era ofuscante traz, agora, calmaria e moleza. Sigo firme em minhas reflexões: espero surpreender Carlos quando chegar ao Posto 6. Por que iria se querer tanto unir público e privado, alterar suas naturezas? Seria a ganância que fomenta alguns a assaltarem bens privados, e outros a venderem informações particulares no grande “mercado virtual”?
Ou então a má-
educação que nos molda a pré-julgarmos situações e até pessoas pela aparência, por exemplo? Já avisto Carlos, melhor me esclarecer. Ampliando os sujeitos, penso no relacionamento entre
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nações. A quantidade de informações na rede é inimaginável e, agora, envolve questões públicas. Não precisamos buscar muito em nossas memórias o fato de que houve guerras por conta da oferta e da procura nesse mercado. E os conflitos não foram unicamente derivados da dinâmica física das
trincheiras, por exemplo; o interesse dos que estavam ali envolvidos é quem foi o verdadeiro general em campo.
5% - Bateria Fraca. Aproveito a brecha da sessão de fotos e sento-me no mesmo banco de meu grande amigo. Me preparo para revelar minhas ideias, quando percebo que existem muitos como eu, ao meu redor. Na areia ou nas ruas, lá estão: com um detalhe aqui ou ali diferente, mas todos com os mesmos olhos que os meus. Se parecem com alguns que encontrei no meu trabalho. Estariam registrando minha conversa? Será que divulgariam as histórias que aqui compartilhamos? Vamos, ali em cima! Olhem, discretamente. Bem encostada no canto daquele teto. Esperem, tem outra ali fora. Talvez seja melhor conversarmos... a sós... onde?
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0%.
Os Tampos Verônica Gesteira Souza
“Pega bastante papel higiênico e forre o tampo até onde der” foi isso, ou algo parecido que minha mãe disse quando me meti a começar na vida escolar. O que implicava não só conviver com crianças diferentes e seus respectivos níveis de maldade, mas também usar um banheiro que não fosse o imaculado banheiro do nosso apartamento. Um detalhe é que sempre estudei em escola particular, então nenhum espaço poderia ser chamado de público obviamente, mas talvez, o fato de mais pessoas terem acesso ao banheiro tenha sido suficiente para minha mãe não querer nenhum tipo de contato indireto entre mim e as outras crianças usuárias do banheiro. Mas desesperada mesmo minha mãe ficava quando tínhamos que usar o banheiro de algum posto de gasolina ou de rodoviária (estes sim,
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claramente públicos). Cresci, e cheguei ao Fundamental 1. Em seguida chegou o Fundamental 2, período em que fiquei muito amiga de uma menina da minha sala, a Luara. A única coisa da qual ela gostava mais do que de falar, era de falar especificamente da vida dela. Era o tipo que beirava ao inconveniente. Eu com
algo a dizer entalado na garganta e ela lá, desembestada a falar sobre algum amigo-do-primo-do-tio que tinha feito alguma coisa. Eu dava ouvidos. Algumas vezes eu realmente me interessava, em outras, só me fingia de interessada por educação. Com o tempo, me coloquei na devida posição de amiga ouvinte e a nossa amizade fluía muito bem desse jeito. Final do ano chegou, todos fazendo as contas do quanto faltava para escapar da recuperação e a Luara não fazia diferente. Ela tinha grandes chances de ficar de recuperação em 4 matérias, o que aumentava as chances para ela não conseguir mais do que 5 em pelo menos uma das provas de recuperação e consequentemente passar a ser tachada com o que talvez seja o rótulo mais vergonhoso para um estudante de colégio: o de repetente. Ela chorou algumas vezes enquanto desabafava comigo, com medo porque seus pais prometeram que iam colocá-la numa escola pública caso ela repetisse de ano e ela obviamente não queria isso. Os pais dela cumpriram a promessa. Ela repetiu o oitavo ano e foi para uma escola pública, junto com alguns
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dos outros ex-alunos do nosso colégio, cujos pais se recusavam a pagar boleto para filhos que repetissem de ano. Foi triste essa mudança de escola. Eu já tinha visto isso acontecer com outros alunos e sabia que ir para a escola pública do bairro era como se a pessoa tivesse morrido. Infelizmente, nunca mais falei com a Luara.
A palavra pública no Brasil é mística. No meu colégio particular falavam da escola pública com o mesmo tom com que eu tratava banheiros públicos: com certo asco. Um tempo depois, completei 15 anos. Além de toda a pompa da festinha de debutante, com 15 anos também tomamos vacina. Fui me informar com os meus pais como deveríamos proceder, afinal eu não queria ser uma pessoa não-vacinada. Meu pai falou um simples: “te levo no posto amanhã”. Fiquei confusa. Eu sabia que o posto de saúde era público, sabia também que eu tinha plano de saúde e que pessoas com plano de saúde não deviam se sujeitar a ir em postos ou hospitais públicos. Papai me levou até o postinho do
bairro como
prometido. Lembro não sentir medo da vacina, nunca tive medo de agulhas. Estava mesmo era com medo do posto de saúde. Pela percepção que eu tinha naquela época formada pelas reportagens de televisão, eu esperava leitos nos corredores e atendimento ruim, não podia ser diferente. Fiquei intrigada quando esperei sentada, confortavelmente,
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chamarem o meu nome. Para a minha surpresa, levei uns 15 minutos no total para sair do posto, com vacina tomada. Estranhei nunca ter ouvido falar bem do posto, ele realmente era muito decente, e o atendimento era ótimo.
Por mais que um serviço público funcionasse, como era o caso do posto de vacina, jamais iriam elogiá-lo. A origem da satisfação está em criticar. Para quem tem acesso ao privado, o público se torna distante, indesejável não importa o quê. Nós, brasileiros, fazemos de tudo para fugir do que é acessível, do que é de todos, afinal a exclusividade parece ter um certo charme aos nossos ouvidos, não é? Se valorizamos algo público, com certeza é algo com ar de exclusivo. Criticamos a escola pública, mas sabemos o valor de uma boa universidade pública e o que a seletividade delas agrega ou então a estabilidade que um concurso público pode trazer à carreira. Símbolo de status mesmo é fazer parte de um clube de lazer, com mensalidade cara de preferência. Ter filhos em escolas particulares também é fundamental no distanciamento do acessível. Quanto mais cara a mensalidade, melhor. Idas em
parques
públicos
são
permitidas,
mas
devem
vir
acompanhadas de alguma reclamação sobre a infraestrutura do parque. Chegamos num ponto que podemos ostentar a
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nossa ida em hospitais de ponta. Diferente seria se as críticas aos serviços públicos fossem de fato extraídas de uma análise crítica, embasada e principalmente preocupada com a melhora. A verdade é que a reclamação tem fim em si mesma. No geral, não se quer uma
melhora na qualidade dos serviços públicos, o ponto está em escapar deles como “Neo” escapa dos tiros no filme Matrix. Tratamos o privado como concorrente do público, em hipótese alguma como subordinado ou como parceiro. Tampouco temos fé que poderemos usufruir de serviços estatais de qualidade um dia, mesmo que apenas os serviços básicos. Enquanto continuarmos a fingir preocupação com a qualidade dos serviços estatais para na verdade alimentarmos a
necessidade
inerente
de
reclamar,
vamos
ver
uma
sociedade cada vez mais setorizada, onde os direitos sociais continuarão a ser vistos como algo a ser superado por aqueles que ascenderam socialmente. Permanecemos forrando os tampos em vez de procurarmos saber o porquê de o banheiro
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estar sujo.