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Biblioteca da Área de Engenharia e Arquitetura Danielle Ferreira Thiago – Diretora Referência, Ações Pedagógicas e Circulação Maria Solange Pereira Ribeiro – Coordenadora do Concurso Comissão Julgadora: Cyntia Sonetti Valim de Oliveira - (Reitoria/Espaço da Escrita) Marcelo Raimundo Silva (Reitoria/Espaço da Escrita) Marcos Roberto Grassi (Coordenação/SBU) Capa e Formatação: Rafael de Queiroz Souza – Bolsista BAE
Crônicas do IV Concurso Literário das Engenharias – 2016. UNICAMP/Campinas, SP: Biblioteca da Área de Engenharias e Arquitetura, 2017. 83 p.
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1. Literatura.
2. Crônicas.
I. Título
Apresentação
É com satisfação que apresentamos nesta publicação as 16 crônicas inscritas no IV Concurso Literário da Biblioteca da Área das Engenharias e Arquitetura – BAE de 2016. Esta iniciativa faz parte de um trabalho da Área de Referência e Informação da Biblioteca, relacionada a ações para incentivo à cultura, leitura e a criação literária destinada aos alunos das Engenharias. Diante desta realidade, a Biblioteca cumpre seu papel de ser ambiente de incentivo ao conhecimento e cultura e temos certeza que esta iniciativa, de trazer nossos alunos para o mundo da escrita, é um complemento importante para o seu aprendizado e sua trajetória acadêmica além de dar visibilidade aos muitos talentos que temos no universo acadêmico. Boa Leitura!
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Danielle T. Ferreira Bibliotecária e Diretora Técnica BAE
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Sumário Apresentação.................................................................. 3 Sumário ......................................................................... 5 1º Lugar - A Secreta Vida de Victor ................................... 7 2º lugar - Labirintos ....................................................... 14 3º lugar – Manhã Paulistana ............................................ 24 A arquitetura do caos e a entropia dos sistemas................. 27 A Casa Que Não Cai ....................................................... 31 A vida de um suburbano ................................................. 37 A Vida, uma ordem a ser decifrada ................................... 40 Ana Luna ...................................................................... 45 Caóticas Reflexões sobre O Caos ...................................... 50 Casa noturna ................................................................. 54 Cidade Murada............................................................... 58 Dura Realidade Despercebida .......................................... 64 No princípio era o caos ................................................... 72
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O Último Truque ............................................................ 74 Prédio de Papel .............................................................. 80 Um caos dentro de mim .................................................. 83
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1º Lugar - A Secreta Vida de Victor Izana Nadir Ribeiro Vilela
Olá. Meu nome é Victor e eu vou morrer amanhã. Calma, você nem vai sentir a minha falta. Ninguém notará a minha ausência. Na verdade, ninguém liga para a minha presença. Meu nome é comum, banal e desinteressante, mas aquele “c” no meio já me deixa com cara de Victor Hugo. Meu sobrenome é Hugo, aliás, mas não sou francês e nem escrevi clássicos da literatura. Veja, a literatura francesa não me apetece muito, mas não quero falar sobre isso. Minha intelectualidade e pedância podem ficar para depois. Sou brasileiro, de idade avançada e com dores nas costas. É essa osteoporose indomável que está a ruir as minhas estruturas, mostrando o quão fraco nos tornamos com o passar do tempo. Moro no centro de uma capital, na rua mais movimentada da cidade. Sou invisível aos olhos dos apressados, sou ultrapassado aos olhos dos jovens, mas
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ninguém sabe o que eu sei. E eu sei muita coisa sobre vocês. Ou sobre aquele seu amigo que passa noites bebendo nas ruas do centro, mijando na calçada, quebrando garrafas para se sentir livre e subversivo. Eu vejo o que vocês não querem ver e está tudo registrado na minha frágil e senil memória.
Eu sei, você já fez o desenho mental do Victor corcunda, com dores nas costas, cabelo ralo e branco, dentadura flutuando no copo com água ao lado da cama, proprietário de um gato (provavelmente), solitário e taciturno, que assiste novela das oito tomando mingau, mas lamento dizer que você está enganado. Ainda há tempo de pensar um pouco mais sobre a minha identidade, fique tranquilo. Tenho duas perspectivas para lhe apresentar, a de fora e a de dentro, espero que você entenda o que isso quer dizer. Eu prefiro a de dentro, é mais caótica, mais intimista. Mas a de fora também é interessante, você vai ver. Além disso, eu vou morrer amanhã, não se esqueça. É final de ano e a rua está mais movimentada. Eu adoro quando o ano acaba! Há luzes e enfeites (bregas e de péssimo gosto) por toda parte. Nessa época, a palavra de ordem é comprar, gastar, manter o sistema econômico funcionando perfeitamente, e eu ainda não entendi porque todo mundo respeita essas ordens. Todo mundo embrulha para presente. Todo mundo mente naquele cartão bonito que deseja “boas festas”. Todo mundo coloca um sorriso no rosto
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e brinda o amanhã com sidra Cereser. E depois, no outro dia, a monotonia retorna e reivindica o seu espaço, e aí eu entro com a minha especialidade: esconder a bagunça que você é. São centenas de pessoas que passam pela minha porta, todos os dias. Mulheres, homens, crianças, idosos, até
máquinas estranhas com vontade própria. Todos querem apenas passar por mim o mais rápido possível. Posso ouvir o tilintar dos relógios cobrando eficiência, antecedência e hora marcada. Caminham com passos largos em direção ao destino que eu desconheço, não percebem os detalhes, os outros. Como os vários marginalizados que moram na calçada, implorando por comida e atenção, procurando no lixo a esperança
do
alimento,
os
resquícios
industrializados
grudados no fundo da embalagem. Também vejo carros, muitos carros, e ônibus desvairados carregando mais do que suportam. São carros batendo em carros, ônibus batendo em postes, pessoas sendo atropeladas. Todo mês é a mesma coisa. Como vocês aguentam isso todos os dias? Ah, deve ser por isso que vocês consomem aqueles produtos ilícitos nos cantos escuros. Eu não gosto do que vocês fazem nesses entornos. Eu não gosto. Mesmo. Todavia, o que mais me chama atenção são as desordens particulares que eu gerencio. São dez andares, dois apartamentos
por
andar.
Vinte
mundos
diferentes
e
peculiares. Eu poderia falar de todos esses mundos, mas acho
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que não vai dar tempo. Preciso reiterar que eu executo muito bem o meu trabalho, e após 80 anos eu escondi muito bem as noites em claro, o choro contido no canto da sala, o café frio requentado no fogão, o cigarro abafado pelo incenso indiano e a solidão que você insiste em acomodar, como aquela garota
do
quinto
andar,
do
apartamento
501.
Ela
chega
de
madrugada, desce do táxi com sacolas na mão. Pega a mala, cumprimenta quem quer que esteja na portaria, toma o elevador e vai para o quinto andar. Não paga aluguel, pois a residência é herança de família. É de boa aparência, formada em Direito pela federal, tem um bom emprego. Concursada, despreocupada e independente. Vai receber hoje, como sempre, amigos em sua casa. Dá para ouvir as risadas, a música ruim e intensa que ocupa os ouvidos dos vizinhos e os corredores. Ninguém toca Vivaldi por aqui, que pena. Os amigos partem no final do dia, agradecem o momento de descontração, postam fotos que registram as habilidades sociais valorizadas atualmente. Ela fecha a porta, não lava as louças sujas acumuladas na pia. Vai para o quarto e não consegue
dormir.
Se
levanta
para
tomar
os
remédios
receitados pela psiquiatra. Todo dia é esse ritual. Paliativos para curar a tristeza de ser apenas mais uma projeção de sucesso na sociedade. E o do apartamento 801? Ele deve o aluguel há 3 meses. Desempregado, pai de família. Dois filhos pequenos, um de 7 anos e o outro de 11. Duas pestes, se me
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permite a franqueza. A mãe tenta controlar e educar as duas crianças, mas como ela consegue se destacar com tanto youtuber mais interessante para seguir? (Percebeu como sou antenado?) Inclusive, boa parte dos moradores passam horas nesse site, vendo vídeos de outras pessoas fazendo receitas, viagens e coisas inúteis. A vida do outro ganhou mais espaço
nos meus mundos a zelar. E isso está só piorando com o tempo. Mas ele, bom, ele não sabe o que fazer. Começou a beber de madrugada, enquanto a mulher e as crianças dormiam. O que ninguém sabe, é que ele costuma sair durante a noite e o destino é o apartamento 702. Ninguém sabe disso, só eu sei. E as câmeras espalhadas pelo corredor, mas elas não funcionam direito. Ele faz questão de pegar as escadas, evita o elevador e sabe muito bem quais são os horários de menor movimento no prédio. Ontem, a do apartamento 101 tentou botar fogo nas paredes. Chegou em casa e não aguentou o rompimento de um relacionamento de 10 anos. Pegou o isqueiro da bolsa e o maço de cigarros, acendeu um e começou a chorar. A acústica daqui é muito boa, posso dizer. Dificilmente você vai ouvir ela chorando, mas o do 102 ouviu. E foi verificar o que estava acontecendo quando sentiu um cheiro de queimado e fumaça saindo pela porta. O fogo começou pelas cortinas, que rapidamente tomou conta do colchão. O do 101 acionou os bombeiros, a do 102, coitada, estava desmaiada no chão e foi para o hospital. Parecia bem, mas ainda não retornou. Eu aguentei bem a
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fúria do fogo, mas vocês precisam tomar mais cuidado com isso, com esses cigarros, com essas tristezas. Já parou para pensar no montante de informação que eu guardo de vocês? Da vida de vocês? Das conquistas, das alegrias, das mentiras contadas, das brigas, dos amores e dos dissabores? Nada passa por esse bloco de concreto. Poderia passar pelas
janelas, mas vocês têm cortinas. E alguém sabe algo de mim? Eu sou apenas um registro em cartório, um CEP digitado no google maps. E mesmo depois de tanto tempo protegendo as suas loucuras, o que eu recebo em troca? A demolição. Você ainda não entendeu quem eu sou? Pois bem, vou me apresentar uma vez mais. Olá. Meu nome é Victor, Victor Hugo. Tenho 80 anos e sou o prédio localizado na Rua 3, a rua mais importante do centro da cidade. Não fui reformado uma única vez, vi tempestades horríveis, crianças nascendo e pessoas morrendo. Escondi a loucura do apartamento 101, a tristeza do 501, a mentira do 801, a audácia do 702, aguentei por 80 anos o cheiro de feijão queimado do 402 e a bateria desregulada do 901. Não cedi uma única vez, aguentei incêndio,
vazamentos
e
curtos-circuitos.
Estou
sendo
demolido para justificar o progresso dessa sociedade maluca, e que se esconde nas entranhas da arquitetura urbana. Amanhã será o meu último dia por aqui e deixarei com tristeza esse mundo. Gostaria de ter tido mais respeito, mais cuidado, mais reformas, mais carinho. Gostaria de passar
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mais tempo sendo casa, sendo lar, sendo destino final, provedor de descanso e tranquilidade. Mas tudo bem. Como disse Sabino: no fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim. Eu aceito, é o meu fim. Na verdade, eu entendi que a minha função nesse mundo era apenas uma: guardar o caos de cada um.
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Essa é uma pequena homenagem ao prédio mais caótico em que já morei. Agora, ele esconde outras entropias.
2º lugar - Labirintos Jonas Felipe Dias
Quando João finalmente se entrega ao desespero, o ódio profundo de si mesmo, sempre presente nas situações em
que
constatava
sua
inutilidade,
soma-se
ao
arrependimento de ter atendido seu despertador, às 8 da manhã daquele dia. Àquele momento, o timbre agudo e periódico marcara a mudança drástica no patamar de silêncio absoluto em que seu quarto se encontrava, além do início dessa história. Entendamos o arrependimento. Ele se dá através da sequência de considerações correntes na mente de João (por isso relatadas em primeira pessoa): “se não tivesse acordado tão cedo, não teria esbarrado com José e não teria aquele diálogo. Malditos diálogos! Um dia, um desses custará minha vida”. Mal sabia João a irônica acurácia dessa conclusão. Por completude, reproduzo o diálogo, ocorrido às 8h30, após João esbarrar em José, no corredor estreito entre
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os apartamentos, estrategicamente projetado para, vejam só, promover esse tipo de interação: Perdão, estava com pressa, Onde vai com pressa tão cedo, Aos Correios, entregar uma carta de dispensa militar, que, se não entregue ainda hoje, causará minha prisão pelo exército, Estou na mesma situação, terei que lá ir e posso entregar a sua se quiser. Por motivos
que logo ficarão claros, João responde, Não precisa, gosto de ir aos Correios, a caminhada é prazerosa, Sendo assim, faria o favor de postar minha carta, estou sem tempo e não vejo como isso poderia atrapalhar, Faria, Você sabe que os Correios são longe, certo, Sim, como disse, gosto muito de lá ir, Mas não se chega caminhando, Chegarei lá, e caminhadas farão parte do percurso, Aqui está minha carta, agradeço o favor e peço que a trate como sua, afinal estamos no mesmo barco, Pode deixar, adeus, Até. Pauso o texto, pois concedome o direito de fazer observações: primeira mentira, João não estava atrasado. Poderia, inclusive, como ele assumiu, ter acordado mais tarde; segunda mentira, não tinha carta nenhuma para entregar aos Correios. Contudo, antes de pressupor que João era exímio mentiroso, dotado de notável criatividade, vale ressaltar que era situação bem comum em tal época do ano, essa de cartas militares, neste país em que viviam; terceira mentira, João nunca havia ido aos Correios, detestava caminhadas e detestava burocracia. Fim da pausa. O diálogo infantil reflete a profunda fobia social que João experimenta desde a infância. Cada conversa que
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mantinha,
mais
escassas
com
os
anos,
a
ponto
de,
ultimamente, terem se resumido às formalidades, causava-lhe ataques intoleráveis de ansiedade, deixando-o sempre entre loucura e sanidade, de forma que, fugir de diálogos era sempre questão de sobrevivência. Não era sobre timidez,
antissocialidade ou a superioridade que sentia em relação aos outros
-
bem
embora
cada
uma
dessas
componentes
salpicava o denso espectro de disfunções psiquiátricas ou psicológicas que possuía. Era sobre dor. Sobre o peso torturante
em
seu
tórax,
manifestado
por
pulsos
descarregados, lenta e dolorosamente, por seu torso, até atingirem as pontas dos dedos, reverberarem e retornarem ao peito, promovendo fenômeno de ressonância e consequente aumento
de
potência
destrutiva,
cada
vez
alguém
se
aproximava de si para bater um lero, trocar uma uma idéia, puxar um papo, de tal sorte são as expressões nesse tempo de narração. Qualquer papo. Com principal destaque aos corriqueiros, ditos muitas vezes "de elevador", sobre o tempo; a chuva no jogo do Corinthians; a incompetência do árbitro do dito jogo; a incompetência, já que tocamos no assunto, dos políticos; a corrupção; a nova ordem mundial. Não é porque são conversas de elevador que não são complexas, culpe a internet. Tendo apontado a principal característica de João, recapitulando, sua aversão patológica à interação
verbal,
introduzo
sua
segunda
característica
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principal: total falta de senso de direção. Bem, não que João seja esse tipo de pessoa, se é que podemos separá-las por tipos, enfim, esse tipo que é definido por suas desabilidades, mas é que, como se verá, foram precisamente elas que tiveram crucial papel no desenrolar dos acontecimentos, ou,
ainda, no fritar dos ovos, de tal sorte são as expressões no meu tempo de narração. Sentindo-me em débito com João, mesmo após ter dito que
suas
desabilidades
não
são,
necessariamente,
definitórias, seguirei com a exposição do relato não sem antes fazer uma pequena defesa da personagem. As mentiras que contou, friamente enumeradas pela narração, não refletem mal-caratismo. Pelo contrário, são apenas mais uma das (patéticas, admitimos, eu e ele) maneiras que encontrou de se livrar de, bem, pessoas. Prossigamos. João saiu de casa e, lembrando-se que ouvira que a Agência dos Correios era na Cidade Burocrática, bairro afastado e planejado, pegou um ônibus para lá. Não tinha certeza disso, mas achou melhor não confirmar com ninguém, sob riscos inúmeros. Chegando ao bairro, João estava otimista. Veio criando expectativas sobre a facilidade de encontrar a Agência, afinal era um bairro planejado pelo governo e portanto haveria de ter placas orientando o cidadão. Iludiu-se. O bairro de fato era planejado, mas a
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tendência arquitetônica que regeu o plano diretor foi um misto de minimalismo, simbolismo e tráfico e influência na base de homenagens. Surrealista. Comecemos com o começo. Em nome do minimalismo, evitou-se placas o quanto pode; enxugou-se as palavras. Assim, logo na entrada, haviam duas e apenas duas: Agências e Serviços. Os Correios constituem
uma agência, ora, Agência dos Correios, mas também prestam serviços. A primeira dificuldade de João foi, portanto, decidir para qual lado ir. Decidiu-se por Agências e acertou. Contudo, as placas não possuíam setas. Em vez disso, estátuas
de
políticos
contemporâneos
apontando
para
localizações revelavam a questão sobre influências do projeto. Cada uma das estátuas, construídas com técnicas que eu, desconhecedor completo do modo de categorizar no campo das artes, não nomearia de qualquer outra forma que não Realismo, sob pena de faltar com a verdade, incorporava, no quesito
precisão, o elemento minimalista que regeu a
construção do bairro. Explico-me: as mãos dos políticos, projetadas para apontar os lugares nomeados nas placas, cumpriam seu papel apenas de forma simbólica e altamente subjetiva. É bem claro que a modelagem de estátuas não é ciência exata, assim como não o são as explicações dadas pelos arquitetos aos escultores a respeito da localização de cada prédio a que os membros superiores dessas estátuas deveriam apontar, mas o que tínhamos aqui era um extremo. Para o leitor confuso, basta dizer que João, após escolher a
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placa certa, tomou o caminho errado, influenciado por mãos tortuosas, parando no chamado Mirante Burocrático. Ponto alto localizado no meio do bairro, o Mirante tinha vista de 360 graus e seu nome fazia jus à sua função arquitetônica: mirar a burocracia. Descrever a vista do Mirante requer entender o simbolismo norteador da construção. Pensou-se à época: o
sistema de administração nacional é composto por infindáveis entidades, todas autônomas porém dependentes entre si, a grau maior ou menor, variando caso a caso, de forma que cada uma delas fiscaliza e necessita de outra para existir. Em resumo, quaisquer duas instâncias estão conectadas, de forma direta ou indireta, óbvia ou obscura, e tal deve ser representado neste bairro. Cada instância deve ser colocada num andar, todos abaixo do Mirante, representante direto do povo, de forma proporcional à sua data de criação. Uma viela de mão única será criada entre uma instância A e outra B se, e só se, A depende de B. Um túnel de acesso, também de mão única, será criado entre A e B se, e só se, A fiscaliza B. A iluminação em cada viela ou túnel será diretamente proporcional à obviedade da relação entre as instâncias ligadas pelo acesso. A curvatura do caminho será proporcional à diplomacia entre A e B. João observa a vista em pânico. Não que se conhecesse os princípios regentes dessa construção teria ficado mais calmo. Mas
a imagem
de
um
bairro enorme, escuro,
abarrotado de casas, cada uma numa altura diferente, ligadas
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por milhares de caminhos estreitos e tortuosos, fez-lhe concluir que, provavelmente, jamais chegaria a seu destino em tempo. Eram 11 horas e os correios fechavam às 4. 5 horas, tempo mais que suficiente para um cidadão mediano encontrar um endereço bem definido, seria tempo milagroso
para
alguém
como
João,
dentro
desse
caos
urbano
minuciosamente planejado para levar ao êxtase o menor dos entusiastas em organização humana, dêmos o devido crédito à nossa capacidade de criar desnecessárias complicações, não existe algo como trabalho desperdiçado se o resultado impressiona, nem que seja pelo ridículo. O desespero de João se dá pela constatação de que, não
conseguindo
chegar
aos
Correios,
não
conseguirá
entregar a carta de José. Duas serão as possibilidades: mentir e ter que confrontar sua ira quando as consequências de uma carta não entregue vierem à tona, incrível um pedaço de papel ter tanto poder sobre um homem, aceitemos a vida; ou dizer a verdade (sobre não entregar a carta, jamais admitirá que mentira no começo) e ter que lidar com o pranto e planos futuros de ação mútua que, com certeza, inconveniente que é, José proporia. Num esforço Hercúleo para se livrar das tensões que lhe abatem, João decide não desistir sem tentar, velho clichê. Sai do Mirante à busca de placas. “Órgãos com a letra C”. Segue a mão que aponta e, apesar de, desta vez, ter compreendido
corretamente
o
apontar,
perde-se
pelos
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caminhos. Chega aos órgãos com a letra A e pensa, “não devo estar longe”. Estava. Sobe uma viela, entra num túnel, escala algumas escadas. 1 hora se passa e chega novamente ao Mirante. Repete o processo, mas toma direitas em vez de esquerdas agora. Chega novamente ao Mirante quando é
notado por um trabalhador local que se aproxima e pergunta, Está
perdido,
Não,
não
estou.
O
servidor,
tamanha
experiência que tem, diz, Sim, está, mas não é vergonha, te levarei à sua localização, Correios, Vamos. Seguem por labirintos, o servidor indagando-lhe muito e rebatendo suas mentiras, sempre de forma irônica, presta-lhe um serviço e o rapaz assim lhe paga. A angústia toma conta, pior que estar perdido por uma mentira é ser guiado por quem as retruca sem rodeios, “esse caminho é infindável, andamos por 1 hora e não chego, hoje surto”. O servidor, munido de todo ódio que um rapaz como esse é capaz de infligir a alguém, percebe-lhe o ponto fraco e apresenta-o a outro funcionário, em meios do caminho, Este homem está perdido e quer ir aos Correios, não posso mais acompanhá-lo mas deixo-o em suas mãos. Outra pessoa, o inferno é aqui. Andam, conversam, luta. Agonia. A caminhada por infindáveis vales de sombra de morte, perdoai a citação, mas é culpa de Deus ter inserido tamanha capacidade de sofrimento em nossas almas, desolao. 3 horas e não fazem ideia do onde, nem ele nem o novo “guia”, que chamarei de servidor 2, este que, apesar de tão
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perdido quanto João, não compartilha das mesmas fobias, nota-se pela quantidade que fala: Viremos aqui, Estas cartas geram tantos problemas não, Opa, viremos ali, me enganei, Por que sua carta tem nome José se chama-se João, Essa esquerda devia subir e não descer, tantas placas acabam por confundir, Se não mentiu em relação ao seu nome, cadê sua
carta,
Subamos
preocupado,
aqui,
Mais
uma
estamos escada,
quase tudo
lá,
bem,
não, Eu
Está
estaria
preocupado em seu lugar, aqui não é lugar para mentir. Chegam, como não podia deixar de ser, ao Mirante, no que o primeiro servidor nota o absurdo da situação. Aproxima-se da dupla
e
prossegue
a
discutir,
com
João
por
não
ter
repreendido o servidor 2, e com o servidor 2 por ter feito tão mal trabalho. João não suporta. A dupla se agride e, numa tentativa desesperada de manter a união pelo serviço público, culpam João pelos acontecimentos. Xingam-lhe e cobram explicações. João corre. Sobe escadas, desce ruas, apaga castiçais para não ser notado pelos homens loucos. Esguia-se por becos, aparece em porões de repartições. Procura desesperadamente placas e vocifera contra os políticos que, a essa altura, já deixaram claro a sua incapacidade de direcionamento. Olha o relógio, 10 pras 4. Estamos no momento do início do relato, João se arrependendo. Estamos no Mirante. João desesperado. Não tem esperanças de entregar a carta. José questionará. Não sabe
como
será
seu
futuro.
Busca
qualquer
resposta.
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Passaram só 5 minutos desde o “Um dia, um desses custará minha vida”, quando João, à beira da loucura, avista os funcionários correndo em sua direção, raivosos. Atrás deles, um pequeno aglomerado de policiais burocráticos, sempre prontos a repudiar os que vêm até o bairro cheio de mentiras,
apenas para desmerecer o funcionalismo. João então avista uma forca colocada ao centro do mirante, representante máxima da revolução que criou esse país. Olha com amor aquele objeto. Agora entende a importância do simbolismo. Os funcionários gritam, não querem que ele escape impune. Não querem mão sujas. Mas é tarde demais quando alcançam
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o corpo, finalmente livre.
3º lugar – Manhã Paulistana João Mateus Boll Gallas
Ele acorda, toma café e sai de casa. Entra no carro, liga o rádio e escuta as notícias que são as mesmas de sempre: a inflação aumentou, o dólar não caiu e ainda vai chover.
Só então ele liga o carro.
Surge então o primeiro contato com a cidade numa manhã de quarta feira cinzenta: buzinas. Não que ele estivesse protegido do barulho na garagem, mas lá dentro o ruído era mais ameno. Ele é forçado a lidar com os outros carros. Não porque ele quer, mas porque a cidade é assim. A cidade é aleatória e barulhenta, não dá pra evitar.
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Aleatório, na verdade, é uma palavra que define não só a cidade como um todo, mas que também define as construções que a compõem.
Dificilmente você vai ver um
prédio igual ao outro. Um é um cubo, o outro é uma meia lua. Os mais ousados são em formato de triângulo. Tem até um
museu com a forma de uma caixa de sapato sobre quatro pilares que todo mundo acha o máximo. Mas para ele não faz diferença. Ele só sabe que em um prédio ele trabalha e no outro ele mora. Ele acabou de sair deste para ir até aquele. O problema mesmo está no trajeto. As ruas não foram feitas para estarem superlotadas, tampouco foi a cidade. Ainda sim as pessoas insistem. Na verdade a culpa não é inteiramente delas, é da cidade em si. A cidade cresceu muito mais rápido do que deveria e não passou por nenhum planejamento. A aleatoriedade aqui foi muito além do imaginado. Ele pode não saber disso, mas se a cidade tivesse sido bem planejada, ele poderia morar a menos de cinco quadras do trabalho. Não que ele não fosse fazer o curto trajeto de carro por pura preguiça. Mas ele poderia andar. Poderia, mas provavelmente não iria. Por mais que a cidade fosse bem planejada, ele ia ter que mudar seu estilo
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de vida. A arquitetura – leia-se planejamento - não teria que ser apenas da cidade, mas da vida dele também. E isso seria problemático. Ele não quer isso. Ele quer o conforto do seu carro. Ele quer se isolar das pessoas na sua armadura de
metal de uma tonelada. Ele quer mudança, mas não quer mudar.
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Ele é paulistano.
A arquitetura do caos e a entropia dos sistemas José Luis Dávila Sánchez
Se analisarmos as raízes gregas da palavra arquitetura, é possível compreender que ela permite definir os pilares de um todo. Arché significa "principal" e ékton "construção". Por outro lado, a palavra caos analisada nas mesmas condições significa "separar", e é fundamentalmente associada com a confusão e a desordem. Então, a compilação dessas palavras forma uma frase de certa complexidade: a arquitetura do caos. Ao nosso redor, tudo tem uma estrutura e uma lógica. E sim, o caos também tem uma estrutura. Pareceria que o caos não
precisa
de
uma
estrutura
definida
porque
denota
desordem, mas a arquitetura do caos pode ser mais complexa do que parece. A teoria do caos fundamentalmente diz que pequenas variações nas condições iniciais de um sistema podem gerar
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grandes variações no seu comportamento futuro. Isso permite visualizar a complexidade da arquitetura do caos. Todo sistema tem variáveis, então, existe a possibilidade de ter diferentes respostas do mesmo se levarmos em consideração que existem diferentes combinações de essas variáveis. Sendo assim, o caos tem uma estrutura de pilares fortes. A
entropia
de
um
sistema
pode
aumentar
com
relativa
facilidade, precisamente porque o caos tem uma estrutura bem definida. Se mudarmos aleatoriamente as variáveis de um sistema é altamente provável gerar desordem. Um sistema de baixa entropia precisa de maior controle e de fixar parâmetros ou estabelecer suas faixas ótimas para obter o comportamento desejado. O caos pode ser gerado com pequenos ou grandes estímulos, às vezes também por falta de algum estímulo. É por isso que fazer referencia das conhecidas Leis de Murphy resulta muito oportuno nesse instante. Segundo o engenheiro aeroespacial: "Se algo pode dar errado, dará". O que corrobora que a arquitetura do caos tem bases firmes. Murphy basicamente definiu que a probabilidade de um sistema com alta entropia é maior. Então, se pensarmos nas inúmeras possibilidades de resposta de um sistema vamos gerar uma estrutura de complexidade inimaginável. Existem infinitas combinações de variáveis de um sistema e como resultado infinitas respostas, das quais, grande parte serão caóticas. Isso abre a porta à ideia dos universos paralelos, o
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que mostra que falar de caos é falar de uma arquitetura ramificada, na que toda ação tem como resultado uma consequência. Resulta interessante pensar em que tudo é um sistema. Então, além de inumeráveis variáveis temos inumeráveis
sistemas. Sistemas de diferentes tipos e componentes. Uns vão ter comportamentos caóticos e outros não em diferentes espaços de tempo. Nesse momento, aparece uma variável muito importante: o tempo, a mesma que é fundamental e permite fazer mudanças na resposta de um sistema no futuro. Nós, como componentes de um sistema podemos ter certo controle para no futuro minimizar a entropia, sendo que a variável tempo sempre tem grandes limitações, basicamente físicas.
De
esta
forma,
existem
diferentes
universos,
realidades independentes e inúmeras possibilidades. Voltar no passado é um exemplo; cada ação passada está diretamente refletida no que somos hoje, e o que estamos fazendo nesse instante estará refletido no futuro. É impressionante pensar que cada ação do passado tem definido o que somos e o que é o mundo como um todo. Se fizermos pequenas mudanças tudo seria diferente. A entropia sempre estará presente, mas somos nós, seres com a capacidade e o privilegio de pensar que podemos minimizar o caos em diferentes âmbitos. O tempo, pelo menos até o momento, nos limita a projetar o futuro, então, nossa grande
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tarefa é procurar os pontos fracos da enovelada estrutura caótica para ter sistemas com maior estabilidade, o que pode ser aplicado de maneira geral. No entanto, também é oportuno finalizar ressaltando que muitas vezes a entropia é
necessária e inevitável, o que é associado de maneira
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específica as grandes mudanças.
A Casa Que Não Cai Victor Shih Liu
“Olha só como ele cresceu!” “Nossa, a comida está uma delícia! Aposto que foi Dona Maria quem fez.” “E esse Brasil que não vai pra frente?” Era, de fato, um típico almoço em família. Os raios áureos do meio-dia pincelavam a tela cerúlea que pairava sobre São Paulo, o que dava um toque praticamente artístico àquele encontro: tios do interior contavam novidades do trabalho, primos do Sul riam das aventuras na faculdade , avós que moravam a três quarteirões de casa nos davam lições de vida, e namoradas e namorados tensos para se pendurarem nos galhos desta grande árvore genealógica. Fotografava os risos e gargalhadas com cada piscar de
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olhos quando me deparo com meu avô dizendo às crianças que vai contar uma história. Ele era “o cara” das histórias; todos os netos e bisnetos tornaram-se fãs de seus contos na infância, ainda mais do “segrego da casa que não cai”, como ele dizia. Resolvo, assim, perguntar de canto sobre o que vai
falar. Algumas sílabas e eu já me encontrava amontoado no meio
de
meus
primos,
com
uma
guloseima
na
mão,
esperando o Nôno começar. Dessa vez, todavia, foi diferente. Ele disse para que todos subissem no elevador e fossem ao apartamento dele. Não pensei duas vezes: estoquei doces em todos os bolsos da calça e subi pelas escadas, assim não teria que disputar o elevador com meus primos, que já faziam aquela algazarra para ver quem chegava primeiro. Quando todos já estavam a postos em sua porta, meu avô nos convida para entrar. No apartamento, só ouvia-se o ranger do piso de madeira em meio aos passos tímidos e cautelosos de quem tentava entender aquele cenário: o sofá da sala deu lugar a inúmeros “poofs” que mais tarde nos serviriam como nuvens a viajar no tempo, os quadros antigos foram substituídos por fotos de diversos tamanhos e a cortina resplandecia com a de um teatro, impedindo que o Sol revelasse com detalhes o que havia por trás daquelas fotografias do vovô Carlos. Ao deitarmos, ele ilumina a primeira foto com uma lanterna e
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começa mais ou menos assim: “Há 52 anos, eu conheci o mundo: não visitei cada cantinho desta mansão que chamamos Terra, mas conheci muito mais do que poderia imaginar em conhecer. Combinei com três amigos, cada um em um canto do globo, para que nos encontrássemos e fôssemos conhecer as construções dos
mais diversos povos. Afinal, acabávamos de nos formar engenheiros. Ana era uma grande amiga: alta, loira dos olhos claros, personalidade forte, independente, às vezes, um pouco mandona e que mudou-se para a Europa, depois do colégio, para estudar. Oscar era um homem robusto, estatura mediana, moreno, de ótimo coração, mas muito tímido e morava na África do Sul pois seus pais haviam sido transferidos para lá. E
Sid, um grande colega de faculdade
que residia no Canadá: o menor do grupo em estatura, mas o maior quando tratava-se de bom-humor. Apesar da distância e de algumas discussões, eles se conheciam de festas e viagens que já havíamos feito juntos; nos dávamos muito bem porque não gostávamos de ser engessados por regras e tínhamos um apetite pelo imprevisível; “o que seria de Simba, Hércules e Mulan, se não quebrassem regras, não é mesmo?” Nos imaginávamos verdadeiros heróis. A primeira viagem foi para a China. Lá, corremos pela Grande Muralha, participamos de inúmeros rituais budistas,
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conhecemos os imensos campos de arroz, mas o mais interessante
foram
as
construções
das
cidades
mais
modernas. Alguns prédios de Hong Kong, na costa sul do continente, tinham um grande buraco no meio da estrutura dos arranha-céus e essas janelas eram chamadas de portais de dragões. Na cultura chinesa, existe a prática espiritual
milenar do Feng Shui: ela ressalta que áreas naturais e construções influenciam na energia do espaço, chamado de Qi. Dessa forma, há uma preocupação especial quanto ao modo de fluidez desta energia a fim de que ela possa impactar os corpos e mentes de maneira a potencializar saúde, sorte e prosperidade, por exemplo. A premissa que embasa esses portais trata-se de uma lenda em que dragões, seres
mitológicos
portadores
de
energia
poderosa,
transitavam entre seu lar, as grandes montanhas orientais, e as águas marinhas para se banhar. Como Hong Kong é banhado pelo Mar da China Meridional, tal região seria favorável ao próspero fluxo de energia, daí a preocupação com a arquitetura dos edifícios.” Sobre os “poofs”, viajamos por meio dessas histórias sem nem piscar os olhos. Lembro como ficamos boquiabertos com
os
diferentes
reflexos
culturais
na
construção
e
disposição dos elementos no espaço ao redor do mundo. É claro que essa foi a minha impressão; as crianças só ouviam atentamente às curiosidades ali compartilhadas para, depois,
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descerem e recitar aos pais o famoso “Você sabia?”. Depois que cada foto ganhou sua respectiva cor nas palavras de meu avô, não pude deixar refletir sobre o tema que havia revelado para mim ainda no salão de festas.
Em meio a tantos preconceitos, é cativante imaginar o fulgor dos hábitos de todos os povos convivendo sob a luz da paz e da justiça; a impressão de que vivemos como uma multidão regida pelo desarranjo é, na verdade, reflexo da fraqueza de nossos valores, de nossos interesses. Pontes, prédios, casas, monumentos e lares são nossos autorretratos. O caos foi incutido historicamente como uma condição ruim:
diante
da
desconhecida
origem
do
universo
sucumbimos à incerteza e criamos axiomas que amenizam esse medo que nos aflige. Hoje, o caos é visto como sinônimo de desordem, mas vale lembrar que a perspectiva de (des)ordem é muito subjetiva, pública: o que é ordenado para mim, pode não ser para um outro. E é por isso que a cultura de cada povo encaixa-se como peça-chave nesta discussão; trata-se de uma óptica local, relativa. A arquitetura, assim, como um símbolo da cultura de determinada nação, jamais poderia ser caótica. O que se faz presente nos tempos hodiernos é uma grande dinamicidade dos aspectos culturais, gerando a chamada cultura de massa.
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A
reificação
dos
construtivamente
com
valores tal
humanos,
cultura,
o
então, que
colide
descreve
a
contemporaneidade: um ambiente potencialmente conflituoso em decorrência da ânsia “por” e “de ser” aquilo que é melhor visto pela massa, o “modelo de sucesso”. As Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro evidenciam esse conflito: foram
colocadas placas e pôsters do evento ao longo da Linha Vermelha, que separa as favelas da principal rodovia de acesso ao Aeroporto Internacional. Ou seja, criamos um muro para
esconder
uma
deficiência
crítica
estadual
para
passarmos uma melhor impressão ao mundo. Parece que a sociedade do espetáculo de Guy DeBord se materializa nos dias de hoje, infelizmente. Doravante, resta-nos a cautela para agir a fim de restaurar o respeito e o pensamento altruísta na vida gregária, desmascarando a ideia de que estamos competindo a todo momento. E foi com essa frase que meu avô deu a última pincelada neste quadro de domingo: “Respeite a todos, acima de tudo; dito isso, não tenha medo do desconhecido, quebre regras, desafie o previsível, tenha um pouco de caos em si, aprenda a viver com as diferenças: são elas que nos fazem, nem melhor e nem pior, apenas diferentes. E esse é o
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segredo da casa que não cai.”
A vida de um suburbano André Filipe Ramos da Silva
Luiz,
um
jovem
do
subúrbio
carioca,
não
tinha
repercussão na cidade, no bairro, na favela, no morro, na viela...
Mas
tinha
algo
que
nos
importa.
Luiz, tinha 15 anos, nascido e criado no morro da Vila Cruzeiro, mais precisamente na Rua 19. Acordava cedo, descia o morro sempre sorridente, corria a escadaria da "A". Toda manhã, batia um café - como dizem aqui no Rio- na quitanda do Seu Jarbas. Descia um pouco mais o morro e finalmente chegava ao asfalto.
Chegando Shanghai,
lá
era
à avenida, ia a
diversão
em da
direção
molecada,
ao
Parque
tinha
um
escorregador em que se descia sentado em um lençol. Não importava a origem da criançada, pobre ou rica, todos
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criavam asas nesse brinquedo. Mas Luiz não ia ao Parque para se divertir, ia mesmo para pegar o ônibus, o ponto era em frente. Pegava todos os dias o 485, que o deixava em Copacabana. Lá ele chegava ao seu trabalho: O sinal do cruzamento da Rua dos Toneleiros com a Siqueira Campos. Fazia malabarismo das oito ao meio-dia, pois sua aula no
colégio estadual Monsenhor Felix começa às 15 horas. Luiz sabia que isso não era vida para ele. Almejava ser doutor, sair do morro e ir morar na Zona Sul, lá na orla da Praia da Onça. Ele era pobre, tinha uma mãe doméstica, que ganhava uns míseros R$ 1000,00, para sustentar Ela, o Luiz e a Irmã de Luiz, de apenas 5 anos. Seu pai morrera quando Luiz tinha a idade atual de sua irmã. Fora assassinado em frente ao bar da Dona
Sulco,
pois
devia
a
"boca"
havia
três
meses.
O menino Luiz, poderia ter toda facilidade de vida, bastava entrar para o crime organizado, seja por qualquer motivo: vingança, miséria, opressão... Não importava o crime sempre estaria de braços abertos para ele.
Porém, esse menino com rosto de jovem, a alma castigada pela vida, já se comportava como um adulto e não aceitava essa situação. Ele sabia que tudo o “que vem fácil, vai fácil". Acreditava que um dia, com os estudos, poderia mudar o mundo. Ele era grande, ele sonhava grande. Após a batalha pelo pão de cada dia, ele chegava em casa, tomava um banho breve e descia novamente a comunidade a
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pé, com os livros nas costas e o mesmo sorriso do amanhecer no rosto. Ia para a escola, estudava, e mesmo com todas as adversidades, só tirava 10.
Luiz, como todo bom carioca, tinha o batuque do tam-
tam e do repique pulsando o sangue em seu corpo. Toda sexta ia com sua mãe na rodinha de samba no bar da Dona Sulco. Não importava que seu pai morrera ali, ele não o tinha como espelho para si. Amava
mesmo sua "pãe", como ele
costumava chamar a sua mãezinha, que fazia o papel de pai e mãe ao mesmo tempo.
Esse era Luiz, um jovem que carregava a vida e os livros nas costas. Hoje, doutor, não mudou o Mundo ainda, mas nos mostrou que somos nós que fazemos a realidade e
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não ela que nos transforma.
A Vida, uma ordem a ser decifrada Pedro Guilherme Sanches Contieri
O caminho do trabalho até em casa era sempre o mesmo. Tomava um ônibus perto da escola onde lecionava, atravessando a cidade em meio ao trânsito metropolitano e descendo em um ponto a duzentos metros de onde morava, no Flamengo. O cansaço físico e mental da professora de literatura fazia Renata isolar-se na tela de seu celular durante todo
esse
percurso.
O
aparelho
proporcionava-lhe
as
experiências mais satisfatórias do seu dia, um estado de controle absoluto que não conseguia em sala de aula, mesmo seus esforços exaurindo toda sua energia. Em suas redes sociais, Renata escolhia o que curtir, o que ler, quem acompanhar. Não precisava engolir desaforo, não precisava aturar bagunça; tudo estava organizado à sua maneira. Gostaria do poder de ordenar o trânsito, isso sim. De
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fato, o trajeto estava mais conturbado naquele dia. Buzinas de carros, motos, caminhões; taxis atravessando por entre os carros, em alta velocidade; xingamentos soltos ao vento, direcionados a todos e a ninguém. A professora, no entanto, não conseguia deixar de notar a estranha tranquilidade nas pessoas ao seu redor, todos dentro das campânulas de seus
smartphones, ignorando propositalmente o mundo em que viviam. Existe ordem no caos, com certeza. A frase, com trinta e três caracteres, o número divino de Pitágoras, agradava a Renata do Twitter, que tratou de colocá-la publicamente aos seus seguidores. Quando estudante de Letras, era entusiasta da Bíblia e o tempo apenas reforçou sua paixão literária pela obra. No momento pensava no Gênesis, no qual o nome de Deus foi curiosamente repetido trinta e três vezes. A conexão inesperada fervilhou sua mente. Deus criou a luz e a separou das trevas. Mas a escuridão ainda reina nas pessoas. Pela janela do ônibus, a professora entendeu o motivo da confusão no trânsito, um acidente de moto obstruía uma das pistas. Ninguém, no entanto, parecia se importar com nada além do fato de que estariam perdendo tempo parados em seus veículos. A falta de compaixão e individualidade irritava a Renata do Facebook, que escreveu rapidamente um post de indignação, culpando os políticos, a polícia, os paramédicos e qualquer outro que estivesse no lugar e pudesse ser responsabilizado pelo transtorno. Ela, assim como os demais, apenas olhou de
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relance pela janela, e voltou ao celular. Ao seu redor, todos pareciam em outras realidades. A direita, um senhor de meia idade trocava mensagens com futuras parceiras no Tinder; a esquerda, um rapaz capturava criaturas que se materializavam no chão do coletivo, visíveis
apenas através da lente mágica do smartphone. Como se não bastasse a volatilidade do mundo real, os homens ainda criam seus próprios universos, da forma com que quisessem, para satisfazer seus desejos. Menos metafísicos, mais reais, mundos e mais mundos são projetados sobre o plano terreno, onde todos interagem, todos compartilham, mas só existem por que as pessoas de carne e osso acreditam em suas existências. Parada agora na Rua Frei Caneca, Renata do Instagram percebeu a oportunidade de um clique perfeito. Através da janela do ônibus destacava-se a arquitetura neomoderna ao fim da passarela do samba, o símbolo máximo da festa pagã mais famosa do país. Irônico. A praça da Apoteose carregava um significado que a professora de linguística conhecia muito bem, ascensão. Tornar-se Deus. Na cabeça de Renata ficou claro que Deus fez o homem realmente à sua semelhança. A internet e a sua suposta blindagem da realidade poderia ser considerada mística, principalmente a alguns anos. Renata era muitas dentro de sua bolha. Em cada website
ela
assumia
um
perfil
distinto,
seja
ele
fútil,
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politizado, indignado, confiante ou feliz. Era só uma questão do que publicar, do que curtir, do que compartilhar. Renata era dona da sua personalidade virtual, criava-se da forma que quisesse, de acordo com seu humor. No entanto, não era capaz de distinguir com clareza o que era real e o que era
inventado. Os universos se misturavam, as realidades se confundiam. O homem criou seu próprio universo dentro do vazio da sua vida terrena. Aquilo fez Renata congelar por alguns minutos, pensativa e profundamente triste. Sua ordem havia quebrado e mergulhava novamente na correnteza da realidade. Finalmente, ao chegar na margem do rio, levantou os olhos vermelhos e desceu do ônibus. Alguns minutos depois, estaria em casa. Como todas as noites, seu celular entrava na reserva de bateria. Suas energias estavam se esgotando. Tomou um banho, olhou-se no espelho do banheiro. A visão não a agradava. Deitou-se e enxergou-se na tela do celular, sentindo-se
consolada
com
a
imagem
que
agora
via.
Compartilhou uma frase bíblica em seu Snapchat e sorriu ao ver que tinha novos seguidores. Com as cortinas fechadas naquela noite clara, bloqueou a tela, pondo fim ao seu resto de luz e deixando a escuridão da noite guiá-la rumo à luz da manhã. Sob a lua, adormeceu pensando em si mesma, decidindo-se como renasceria no dia
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seguinte. -----Alguém, em um lugar distante abria seu Snapchat e passava pelo perfil não muito interessante de uma professora de português, sem entusiasmo algum. Curtiu uma frase
compartilhada por ela, não muito original. Apagou a tela do celular, sem ao menos refletir sobre o que tinha acabado de ler. Com trinta e três caracteres, a dor de Renata era obscura, invisível e perdida no caos: Seja feita a vossa vontade.
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Amém!
Ana Luna Carolina Maria Rojas Perea
- Desculpe, senhor. Sabe em que século foi construída essa mesquita? Perguntou uma moça de olhos azuis, com fluente espanhol de sotaque andaluz. Era a primeira vez que percebia algum uso no que aprendera na sua aula de história da Espanha. Sempre achou que tudo o que o professor Joaquín ensinava era uma perda de tempo. Preferia ficar rabiscando seu caderno ou mandando bilhetinhos com os colegas. Mas parado na frente da majestosa Mesquita de Córdoba sentiu-se arrependido de não ter aproveitado todas aquelas manhãs na aula de Joaquín. Chegara na cidade de Córdoba no dia anterior, após uma longa viagem de ônibus, que lhe gastou 5 horas do seu
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dia. Jamais tinha visto tantas oliveiras num lugar só, todas enfileiradas,
todas
organizadas,
maiores
do
que
ele
imaginava, cobrindo e enfeitando a paisagem de ambos os lados da estrada daquela cor verde azeitona.
Não esperava ser o alvo dessa questão, cuja resposta parecia simples, mas que ele desconhecia ou não recordava por haver desprezado tudo aquilo que o velho e bom Joaquín tentava lhe ensinar. Ele, apaixonado pela culinária e pela gastronomia Mediterrânea, achava que a Espanha era a terra do jamón ibérico, da paella e, claro, das azeitonas, motivo pelo qual atravessara o oceano atlântico dias atrás. - Senhor? Repetiu a moça, percebendo que Leonardo não reagiu ante sua pergunta. - Não sei, moça. Mas certamente é muito antiga. Respondeu Leonardo envergonhado e com um tom de decepção, com o espanhol ordinário que aprendera na escola e que não treinava há anos. Tinha chegado ali na sua caminhada até o charmoso restaurante que chamara sua atenção, no táxi caminho ao hotel, onde iria atrás da famosa rabada de touro de Córdoba.
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O dia estava quente e o sol do verão ainda não tinha se escondido. Curioso pela pergunta da moça, decidiu entrar e bisbilhotar a famosa mesquita. Escura e vazia, não era imune ao calor de fora, mas Leonardo sentia o ar, úmido e levemente mais frio, cobrindo sua pele. Incontáveis colunas
emparelhadas,
que
culminavam
em
arcos
listrados,
mostravam-se como obstáculos no desabitado chão. Eram muitos arcos, uns em cima de outros, arcos dentro de arcos, uns menores que outros. Era uma verdadeira desordem, mas agradável. Em que pensavam as pessoas que ergueram essa construção séculos atrás? - dizia Leonardo para si mesmo. O que o professor Joaquín teria a dizer sobre isso? - Quando a população muçulmana cresceu, a mesquita foi tomada por Abderramão I e ampliada ao longo dos anos. O guia do pequeno grupo de turistas dentro da mesquita explicava. Leonardo o escutava entre ecos. De repente se encontrou perdido nos seus pensamentos naquele monte de arcos, vislumbrando esse tal de Abderramão rodeado de servos e seu harém, como correspondia ao sultão. As pessoas refletem nas suas construções aquilo no que acreditam. Aqueles arcos bicolores deviam significar alguma coisa para todos os sultões da história da mesquita.
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A moça que lhe fizera a pergunta que o fez entrar no monumento encontrava-se no canto direito do grupo de turistas. Após perceber o olhar perdido de Leonardo, separouse do grupo e andou em sua direção. Ele a seguiu com o seu olhar e escutou muito bem quando ela disse:
- A mesquita começou a ser construída no ano 785. Setenta e quatro anos depois da invasão da Península por parte dos árabes. Leonardo sorriu para a moça e agradeceu o detalhe de ela ter se importado com o nível de cultura dele. Ela quis saber de onde ele era, pelo sotaque obviamente. Ao que ele respondeu que era do Brasil, precisamente do Rio de Janeiro. Ana Luna fez então uma cara de interesse no que Leonardo tinha para contar. Ela sugeriu que mesmo que não soubesse muito a respeito, poderia acompanhá-lo na visita pela mesquita, dizendo que seu curso de arquitetura em Granada começaria após as férias de verão e as aproveitou para vir até Córdoba conhecer esse grande monumento. A arquitetura nunca chamou a atenção de Leonardo, mas a companhia de Ana Luna, a futura arquiteta, dava sentido a todos os mistérios
da
mesquita.
Leonardo
sentiu-se
como
um
muçulmano do século VIII perambulando entre as colunas e ouvindo a história da mesquita. O sol escondeu-se quando o passeio acabou. Leonardo
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sentia-se uma pessoa diferente, mais culta, que quando atravessasse o oceano novamente, incluiria no seu roteiro outros elementos, além de comida. Ana Luna foi embora apressada para encontrar suas amigas. Leonardo retomou seu caminho até o restaurante, com a rabada de touro na sua mente, andando sozinho pela quente noite de Córdoba
deixando atrĂĄs essa obra de arte repleta de elementos
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arquitetĂ´nicos.
Caóticas Reflexões sobre O Caos Aline Ferreira Velho Muzio
Me deparei hoje refletindo sobre Caos. Às vezes parece que os temas que permeiam minha mente aparecem para suprir o dia. Novo dia, novo tema, nova viagem. Ontem era Liberdade
e
Escravidão
e
o
que
significa
Liberdade.
Anteontem, sobre o Tempo. Não que eu me considere muito intelectual, mas as perguntas apenas vem e são sussurradas durante o dia enquanto tento trabalhar, estudar. Como um plano de fundo, um véu que está sempre envolvendo o meu consciente. Aquela musiquinha de elevador sutil que soa e fica soando... e você não consegue sair do elevador. Bem, de volta para hoje: o que é Caos? O que pensamos quando ouvimos “caos” ou “caótico”? O que sentimos? Este temamental-de-hoje em particular começou quando no ponto de ônibus ouvi uma senhora idosa reclamando à amiga pois tinha sido assaltada e dizia: “O mundo está muito caótico! Como
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pode?”. A amiga, se limitou a concordar. Pois bem, o que é que a senhorinha quis dizer com Caos? O que entendemos por Caos? Será desordem? Talvez Caos pode estar relacionado ao imprevisível, ou ao inesperado, no sentido que ela usou. No dia a dia, posso até pensar que tem a ver com o indesejado.
Podemos dizer que favelas tem um fator caótico maior? E quanto às privadas entupidas? Melecas de nariz? Pois é, eu pelo menos definitivamente relacionaria estes exemplos à Desordem. E, será que a gente gosta de caos? Pensar num Caos absoluto me incomoda? Ou num planeta Terra que se tornou
100%
Caos...
Incomoda
um
pouco
bastante?
Sinceramente, creio que gostamos de Caos dentro de limites. Relaciono Caos à desordem, à bagunça, ao meu quarto em semanas de prova e até mesmo ao inacabado. Que tal numa fila em que racionalmente você sabe que é uma fila, deveria ser, mas não enxerga isso, enxerga um embrulhado de indivíduos. Aglomerações, multidões. Um parênteses é que é engraçado que minha própria desordem me agrada mais do que a do outro, é como um Caos conhecido e por isso menos indesejado. E lembrei da minha irmã soltando uma das frases que tanto gosta: “Poxa, hoje o dia está caótico”, para quando surgiu muito problema no seu dia. Esses dias meu amigo me disse que em alguns municípios da Holanda, país conhecido por sua cultura de
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planejamento, as árvores da cidade são planejadas para serem plantadas num exato local e a população pode ser contra esta decisão - e votar contra. Então, ele, que reside na Holanda, olha para uma árvore qualquer na rua e logo pensa no planejamento que esteve por trás daquela visão, sendo que além de árvores, isto se aplica à diversas estruturas por
menores e mais “insignificantes” que sejam. Cada metro quadrado público da cidade foi sujeito ao planejamento. Imagine que muitas vezes ele se sente como um robô, onde tudo à sua volta foi minuciosamente ordenado e pensado. E, de fato, ele diz que não se incomodaria com mais desordem e mais Caos, ele o deseja. Pense, meu caro leitor, em algumas situações, nossa alma chega a desejar pelo Caos. Existem limites para a Ordem, limites que faz com que nós humanos ficamos desconfortáveis com ela! Deve ser por que nós mesmos não somos assim. Agora pensando nos reflexos do Caos na nossa cultura atual. Há estudiosos que descrevem a física contemporânea como a física do Caos. Onde pequenas variações podem gerar efeitos
monstruosos
em
sistemas.
Diz-se
que
a
Física
contemporânea está amarrada à Teoria do Caos, onde a essência das coisas presentes no Universo são na realidade longe de simples e facilmente equacionadas, como pareciam nos
primórdios
da
Física.
Migrando
para
o
âmbito
arquitetônico, semelhantemente, as tendências apontam para direções mais caóticas. Linhas como o Desconstrutivismo
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valorizam a incerteza, instabilidade e desconstrução da forma e da função das estruturas e são nestes conceitos que as novas ideias se fundamentam. Nasce assim, edifícios que nem conseguimos interpretar, que não distinguimos a forma, não
se assemelha a uma casa ou um prédio como os que conhecemos. Nesta
hipermodernidade
que
vivemos
estamos
concluindo que as coisas que conhecemos são infinitamente complexas, cheias de paradoxos, nadando no mar do Caos? Vivemos em tempos caóticos. Nunca me propus a negar isto. E é díficil entender como tanta ordem e linearidade coexistem numa natureza que também abriga o Caos. A realidade é espantosa, fulminante e esmagadora. Preciso apresentasse
dizer, aqui
lamento soluções
se ou
você
queria
que
desenvolvimento
eu mais
elaborado dessas questões. Tenho certeza que se você procurar, vai encontrar vários livros sobre o assunto e boas discussões sobre suas indagações. Além do mais, sou a favor da aleatoriedade nos pensamentos, não que eu tenha muita escolha. Minha proposta desde o início era de caoticamente explorar o assunto, atendendo às minhas perguntas que são levantadas, só não lhe avisei muito bem talvez.
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E são dessas coisas que me pego pensando aqui na fila da padaria. E acabo de ver uma barata asquerosa andando e derrepente subindo em meus pés. “É o Caos!”.
Casa noturna Luana Domingues Fernandes
Marcos foi uma criança muito tímida que não conseguia mostrar seus sentimentos, mas que se preocupava muito com as pessoas. Se avistava algum mendigo, pedia ao seu pai para dar-lhe um travesseiro, comida e saco plástico para que a chuva não molhasse as suas poucas coisas. Caso esse morador de rua tivesse um cachorro, pedia ao pai para buscar caixotes na feira e, com alguns pregos e martelo, construía uma pequena casa para o animal. Em sua residência, acompanhava diversas vezes, com olhar atento, os projetos do pai engenheiro civil. Fazia questão de opinar e ajudar o pai no que fosse preciso. Até mesmo preparava café com leite quando via que o engenheiro já não conseguia somar dois com dois. Ele também cooperava muito com a sua mãe, uma dentista de 1,45m. Fazia questão
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de montar para ela banquinhos de madeira para que alcançasse as coisas em grande altura. Alguns anos se passaram. Marcos ainda era tímido, mas conquistava muitas pessoas por causa de seus planos audaciosos. Ele tinha diversos projetos em mente como: construir uma casa submersa em algum mar de água
cristalina e fazer uma casa de espelho em uma árvore. Além disso, sempre que visitava algum parente, já que não tinha muitos amigos, deixava um esboço do que seria a reforma ideal, visando sempre a claridade e aproveitamento do espaço. Em
meio
a
esse
frenesi
criativo,
Marcos
foi
interrompido por estudos para o vestibular. Arquitetura! Era este o curso que faria todos os seus projetos tornarem-se realidade.
Arquitetura!
Como
essa
palavra
soava
bem.
Arquitetura na universidade estadual de 300 km de distância de seu município, quadragésimo nono colocado. Arquitetura! Mudança.
Contas
para
pagar.
Responsabilidades.
Mercado que ficava longe. Uma porção de coisas novas, mas a melhor de todas eram as festas. Festa do chapéu, festa da máscara, festa a fantasia, festa do x, festa do y, festa do z e etc. Em meio a tanta curtição, Marcos descobriu que seus projetos para acomodar poucas pessoas não era o que lhe causava amor. O que mexia com ele era a integração de várias pessoas, espaços bem aproveitados para uma boa
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festa. Quanto mais o curso passava, mais Marcos entendia o valor
das
palavras:
coeficiente
de
rendimento,
nabo,
economizar, greve e, é claro, festa. Tudo podia estar ruindo, mas as festas salvavam. Mas não era somente pela bebedeira
que ele gostava de tais eventos, ele amava observar como era a organização e divisão do espaço para a acomodação das pessoas e como eram bonitas a construções em seu exterior. Ou seja, amava a arquitetura interna e externa do lugar. Chegado algum momento, Marcos conseguiu sair da faculdade. Pegou seus conhecimentos e foi trabalhar em um escritório de arquitetos. Não feliz com projetos individualistas que não causavam a integração de grande público foi trabalhar como arquiteto autônomo, porque, mesmo sendo arriscado, poderia dar maior salário do que o do escritório e, de certo modo, poderia topar ou não os projetos que lhe pedissem. E foi chegado o grande dia, recebeu em mãos a tarefa de projetar uma casa noturna. Exerceu sua profissão com o maior cuidado nos detalhes, pensou em cada cantinho, até na quantidade de sanitários no banheiro feminino e masculino para reduzir filas. Sentiu-se a melhor pessoa do mundo ao poder dar sua transpiração a um lugar de curtição e onde pessoas tentam relaxar de qualquer preocupação que lhes
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assombra. Marcos continuou trabalhando em projetos de casa noturna, após ganhar credibilidade em seu primeiro projeto bem sucedido. Mas mal sabia ele, que após alguns anos, em 2013, por irresponsabilidade e ganância de outros, seu
primeiro projeto suado e tão amado, pegaria fogo e diversas pessoas morreriam intoxicadas. O arquiteto parou e começou a ver toda a sua carreira, todos os seus sonhos, todas as festas insanas que já fora, todas as vigas que sustentaram pessoas bêbadas, todas as paredes que já serviram de mictório para os preguiçosos e chegou a conclusão de que ele fazia parte de um grupo
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responsável pela arquitetura do caos.
Cidade Murada Camila Botelho
História era a matéria favorita de Marina. “Ah! como devia ser fantástico viver na idade média! Com aqueles castelos, cavalos e roupas elegantes!” pensava ela. Ela adorava a ideia de todos morarem em uma cidade murada. “Atravessa-se o muro e voilá! Uma cidade segura! Sem medo, sem desconfiança, os povos inimigos não entravam na cidade!” E todos tinham a sua função, seja ela trabalhar na terra, na proteção de todos, ou rezavam e faziam que a comunidade estivesse em paz com o seu Deus. Tudo parecia tão bonito nos olhos de Marina. A pequena, era tímida e adorava ler, ela tinha em seu pequeno coração muitas dúvidas do que seria ao crescer, e de como seria o mundo quando ela tivesse maior. Marina acabava de se mudar com a sua família
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de uma casa para um apartamento. O motivo principal, mais segurança. Seu antigo bairro tinha sido alvo de assaltos nos últimos meses. E seus pais decidiram que era hora de mudar. Eles trocaram um casa com belo jardim e jabuticabeira por um apartamento de 70m2 sem vista.
O prédio para onde eles estavam se mudando se localiza em um daqueles bairros que as pessoas não andam nas ruas. Não tem padaria, loja, café, cinema, teatro, farmácia, nada. Só condomínio do lado de condomínio. Todos entram de carro e saem de carro. Andando a pé nesse bairro, só as domésticas ao entrar e sair do trabalho. “Esses bairros são os mais seguros da cidade” disse o corretor. Marina não concorda com ele. Ela se sentiu menos a vontade de caminhar no novo bairro, ela não viu nenhum morador
na volta que
deu. Só cumprimentou os seguranças que trabalhavam nas entradas de cada condomínio. Mas nos longos trechos entre as portarias, não havia ninguém, apenas desconforto. Nesse processo de mudança, o pai de Marina levou ela para uma loja de material de construção para comprar alguns equipamentos que faltavam no apartamento novo: câmera para colocar no hall, e tranca do apartamento com reconhecimento por biometria. Apesar de ser perto da antiga casa, eles ainda não conheciam muito bem o bairro, e foram de waze até a loja. Em um piscar de olhos, o céu claro ficou escuro, e começou a chover muito. A cidade parou em
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poucos minutos. O trânsito não fluiu mais. Eles pararam em uma grande avenida. O waze, esperto como é, traçou rapidamente uma nova rota. Vira pra lá, vira pra cá, sobe esse morro, vira pra lá, cruza esse cruzamento.... E a paisagem foi se
mudando: as ruas foram ficando mais estreitas, os lotes menores, as casas mais simples, até que se chegou a um local em que a maior parte das casas não tinham reboco, e por um outro em que as casas deixavam de ser alvenaria e se tornavam barracos. O pai, já começava a ficar preocupado e se arrependeu de ter saído da rota clássica. Todavia, ele continuou nessa direção, por não saber mais voltar. Através do vidro do carro, Marina via mulheres retirando a agua que invadia seus barracos. E via crianças não mais velhas do que ela, vestidas com apenas um shorts e um chinelo de dedo debaixo daquela chuva intensa e fria. Ela sentiu o frio que eles estavam passando. Seu
pai,
estava
desconfortável
por
estar
passando por ali. Ele temia que fosse assaltado de seu carro, ou coisa pior. Mas em momento algum se colocou no lugar daquelas pessoas. Só ficou incomodado por estar ali e acelerou para sair de lá o mais rápido possível. A chuva foi parando e o céu voltou a ficar claro. Chuvas de verão: rápidas e muito intensas. O pai, apressado
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para sair logo do bairro passou perto de mais de um bar e acabou assustando um dos bêbados que atirou uma garrafa de vidro contra o carro xingando o motorista. A garrafa acertou o pneu traseiro, que acabou murchando uns poucos quilômetros de distância dalí.
“-Que Merda!“ Exclamou o pai. “-O senhor precisa de ajuda?“ Disse um morador que terminava de tirar a água de dentro do seu barraco. E já se aproximou para poder ajuda-lo. O pai fez que Marina ficasse trancada dentro do carro enquanto eles trocavam o pneu. O pai da pequena não queria que ela saísse andando naquele lugar.
Ela assim,
continuava a observar aquelas pessoas pelo vidro do carro. As casas eram menores do que a que ela já havia morado, e ela reparou muitas crianças na porta de uma das casas, “Será que todas essas crianças moram nesta mesma casa?“. Ela viu que em um grupo de crianças que brincavam de passa anel mas a frente na rua. As crianças estavam com roupas simples, sujas de barro e cabelo despenteado, mas ela não ligou.” Puxa, como queria poder brincar com eles em vez de ir para a loja de material de construção!”. Então ela viu. Um menino subindo a rua lindo, mulato, de olhos esverdeados, cabelo ondulado, segurando
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em uma mão uma bola de futebol e na outra a mão de uma criança pequena que parecida ser sua irmã, ele era ainda mais bonito que Fabinho, o menino mais bonito de sua escola. Ele reparou o carro grande que estava parado na porta de sua casa, e olhou desconfiado.
-“Você que é o dono do nosso barraco?”, ele perguntou para um senhor que ajudava o pai de Marina, “Minha mãe ainda não conseguiu um emprego, mas assim que ela conseguir ela paga o senhor“. Disse ele. -“Diga a ela que se ela não pagar essa semana, eu vou ter que expulsar vocês, é a minha ultima chance“. Ele disse resmungando. O menino entrou na casa simples. E fechou a porta. Logo depois, o pai entrou no carro e falou “Finalmente! Muito obrigado pela sua ajuda”. “Graças a Deus vamos conseguir sair desse lugar vivos, minha filha”. E partiu. “Vivos?!
Mas
ninguém
me
incomodou“
Pensou
ela
silenciosamente. Chegando na loja, ele disse: ”Ainda bem que estamos bem, não quero nunca mais passar por lá. Aquela gente tem uma vida muito dura filha, mas podem ser perigosos. Tudo que estamos fazendo é pra te proteger. Nós te amamos muito
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minha linda.“ A
cidade
murada
segura
da
Idade
Média,
se
transformou, deixou de ser segura e virou condomínios fechados que transmitem essa falsa impressão de segurança. Moramos com pessoas iguais a gente, que vivem iguais a gente. E repudiamos tudo que não é igual. E assim,
alimentamos o nosso medo. Temos medo do que não conhecemos, do que não entendemos. A pequena Marina crescerá. Eu gostaria de poder dizer que ela se sentiria segura morando em uma casa no seu bairro antigo e que conheceria melhor aquelas crianças, teria amigos lá, e talvez namoraria
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aquele belo menino, mas isso não seria verdade.
Dura Realidade Despercebida Beatriz Araujo Vigiato
Eram quase 7 horas de uma sexta feira quando chamei um Uber, tranquei a porta da casa, peguei o elevador, atravessei o hall do prédio, cumprimentei o segurança, e fiquei esperando o porteiro abrir o portão externo. Pouco tempo depois, estava fora do prédio. Eu tinha que estar na Escola Santa Cruz antes das 9. Era a minha primeira vez fazendo trabalho voluntário, e não queria perder as instruções. Chegando na escola, encontrei com os organizadores do evento, eles me deram uma fita amarela, que significava em qual comunidade eu iria ficar durante o final de semana, eu não sabia muito bem o que iria acontecer nos próximos dias. Comunidade,
fui
descobrir,
que
é
como
os
organizadores se referiam a favela, o estabelecimento de
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pessoas em um terreno
invadido, de forma ilegal e
desgovernada. Acabei indo para uma comunidade em Osasco, relativamente pequena e nova,
880 barracos, os primeiros
barracos tem pouco mais de 10 anos, mas a maior parte dos moradores mora lá faz menos de 3 anos. A quantidade de barracos aumenta continuamente.
Me explicaram que a minha função seria de aplicar um questionário, para caracterizar a comunidade. A ideia da ONG seria de futuramente, formar uma equipe fixa, que iria com frequência a comunidade e tentaria ajuda-los. O questionário continha questões parecidas com as do IBGE, como quantas pessoas moram na casa? qual a renda familiar? Qual a distancia da sua casa para o seu posto de trabalho? E para o postinho de saúde mais próximo? E para a escola? E algumas questões menos obvias, como algum membro da família possui nome sujo? Algum membro da família teve diarreia nos últimos 3 meses? Na sua opinião quais os maiores problemas da comunidade? Até
ai,
nenhuma
novidade,
já
tinha
realizado
a
disciplina de Planejamento Urbano que apresentava que as origens
das
cidades
brasileiras
foram
extremamente
desiguais, exclusórias e sem planejamento. Por uma afinidade com a professora e com a matéria, anotei todas as aulas, e acabei terminando com uma das notas mais altas da sala. E assim, me considerava uma grande conhecedora do tema.
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Fui levada para a Comunidade, dormi em uma escola municipal. Eu mal imaginava o que iria ver, ou ouvir nos dois próximos dias. O dia começou cedo. Eram menos de 6 horas quando levantamos, fui lavar o rosto e escovar os dentes, e para a
minha surpresa: não tinha água na escola! Uma das minhas colegas vira para mim: “É assim na periferia, nos horários de menor vazão a agua não chega, só tem agua das 8-20hrs“. E me ofereceu um pouco de agua que ela havia trazido especialmente para ocasiões como essa. Comemos. Arrumei minha mochila: lanchinhos, um estojo, uma prancheta, boné e protetor solar e repelente. Saímos pouco depois. Era uma caminhada de quase uma hora da escola até a entrada da comunidade. A entrada difere da rua onde ela se localiza, o asfalto se transforma em terra, o alinhamento dos postes de luz e energia parecem que trilham um caminho que se distância das casas, o cheiro de esgoto começa a exalar mais forte: chegamos. Dividiram a equipe em diferentes setores, e nos deram um mapa dos barracos a serem visitados.
Meus primeiros
passos dentro da comunidade revelaram uma situação muito mais deteriorada do que eu poderia imaginar. Uma caçamba cheia de sujeira na entrada da comunidade virava piscina para os pequenos que brincavam de pular dentro dela de sua
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borda. Mais pra frente, caminhamos lado a lado de um córrego de aguas de coloração escura e cheiro forte de esgoto, com crianças fazendo castelinhos de área com essa mesma água. Tentei tampar o nariz, para evitar sentir o cheiro, mas depois conclui que não teria como respirar somente pela boca durante os dois próximos dias, e tentei me
acostumar. Tinham casas sendo construídas literalmente em cima
do
córrego,
do
estilo:
qualquer
pedaço
de
madeira/papelão serve para ser parede/cobertura tudo preso com
uns
pregos/martelo.
Existiam
cachorros,
muitos!
Andando livremente entre o córrego e o moço que construía seu
barraco,
eles
caminhavam
felizes
como
qualquer
cachorro, apesar da micoses presentes em seus pelos. Comecei as entrevistas. Fiz uma, depois outra e outra e outra... As casas era muito diferentes do padrão favela que passa na novela. Aqui, não tem essa de bloco de concreto, azulejo no piso nem nada disso. É tudo muito simples: madeira e papelão mesmo. As vezes uma única parede separa dois barracos. E de instalações, tudo gato: luz, gato. Telefone, gato. TV, gato. Água, gato. E por ai vai. O mapa da favela que me deram foi muito útil no começo, depois chegou um ponto que as casas não batiam mais. “Muda muito rápido, tem gente que constrói um barraco em um dia, viela se fecha e temos um labirinto“. Esse é o grande desafio de fazer reconhecimento dos barracos: muda-se a disposição das casas com uma velocidade absurda. As casas as vezes tinham
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apenas um único cômodo para famílias de 4, 6, 8, 11 pessoas! E ainda assim, tão receptivas... Fiquei impressionada com como aquelas pessoas abriram suas portas para mim. Me ofereceram o pouco que tinham, um espaço no sofá, um copo de água. E me respondiam com sinceridade sobre temas
delicados, temas que confesso não saber a resposta que meus familiares teriam para as mesmas perguntas: renda familiar, se tinham ou não dívidas com cartão de credito, nome sujo, problemas na justiça... A sinceridade para com temas tão pessoais me tocou. Foi difícil escutar suas preocupações: “ Ah, um estudo melhor para pequenos”, “medo do tráfico, mas não escreve nesse papel, moça, eles não podem saber que falei isso“, “medo de um incêndio aqui, que queime o meu barraco“, ”medo de uma chuva muito forte, aqui tem muita goteira”, “medo de não ter o que comer“. E Por vezes quis pular de alegria junto com os moradores ao escutar: “ a gente vai sair daqui, vamos alugar uma casinha“, e ver que para encontrar uma saída, é preciso vencer uma batalha invencível. Houve também o discurso apaixonado de uma mãe dedicada: “Eu morava em um apartamentinho, era legal lá, mas não ia conseguir pagar o apartamento e a escola pro meu filho como eu queria. Foi por isso que vim pra cá, morando aqui, sem aluguel, posso pagar a escola particular para ele“.
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Houve também aquele papo difícil de escutar, eu mulher, chorei por dentro ao me colocar no lugar daquelas pessoas: ”Aqui todo dia o meu vizinho bate na mulher dele, é todo dia”, “Vish, as vezes o barraco até cai de tão forte que ele bate nela“, “A mãe descobriu quando viu que a virilha da pequena (9 anos!) tinha marcas de uma mordida e sangrava,
ai os traficantes pegaram ele, eles acabaram com ele“, “Eu nem durmo de preocupação com meu filho, ele tem 13 anos, e faz corridas pra entregar a droga na cidade, e com a minha filha, que não consegue largar do marido que bebe todo o dinheiro deles“, “os traficantes distribuem bala no dia das crianças, enquanto escolhem os que eles querem“. Um casal de analfabetos que por limitações, não conseguiam entender as minhas perguntas foi também um momento grande reflexão, os dois viviam com apenas 85 reais do bolsa família, não tinham nem cama nem sofá, apenas um teto que pingava agua da chuva era o seu mais fino luxo. Eles não entendiam as minhas perguntas e no final, deixei muita coisa em branco no formulário. Faltou a opção entrevistado não conseguiu entender a pergunta, mesmo depois que reformulei varias vezes. Eles não entendiam, pouco falavam, com dificuldade, e pouco poderiam fazer. Foi ali que realmente entendi o significado do termo “underclass”, que não possui tradução, classe social inferior as classes trabalhadores
tradicionais,
que
é
formada
por
pessoas
completamente segregadas, sem a menor chance de ascensão
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social, desempregadas ou subempregadas e sem capacitação. A primeira vez que tinha visto esse termo foi em um livro do Bauman. Olhando para trás, acho engraçado como recorri a um texto em inglês e tão distante dessas pessoas para entender como elas vivem.
A descoberta que essas pessoas de fato existem foi, no mínimo, de partir o coração. Tem certas coisas que gente não aprende na sala de aula. Voltei para casa completamente introspectiva. Cansada, reflexiva e triste pela cruel realidade que eu passei a perceber, realidade que me faz me sentir incapaz de transformar. E pensar que assim como os 20 barracos que eu visitei, existem 40 milhões de brasileiros que vivem em condições semelhantes. Que imenso caos! Como atuar em um lugar cuja disposição dos barracos e número de moradores muda todas as semanas? Como melhorar problemas sociais, já tão arraigados na nossa sociedade? Cheguei em casa, ao entrar contei quantos dispositivos de segurança tem no meu prédio, 4 câmeras externas, guarida blindada, segurança 24 horas, tudo isso por medo. Medo de que? Do assalto, do estranho, do olho gordo, do pobre, do estrangeiro, do negro. Quem pode pagar mais para
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morar em um bairro melhor paga, e quem não pode vai para comunidades forçadas. A convivência apenas
com iguais é
um motivo do nosso medo. O pobre tem medo do rico também: medo do preconceito, medo de ser passado a perna, medo de propaganda enganosa, medo da prefeitura, medo do político, medo dos traficantes, medo de ser explorado. A
cidade inteira tem medo. Gera a nossa desconfiança. O convívio com a diversidade é a única forma de sanar nosso constante medo. Aquela noite, beijei e odiei o azulejo do meu banheiro
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ao tomar banho, e demorei para dormir.
No princípio era o caos Tania Ribeiro Soares
Não tinha a menor ideia de como iria fazer o exercício solicitado na disciplina de projeto: “Defina cidade”. Tarefa aparentemente
boba,
para
ela
parecia
uma
daquelas
armadilhas colocadas pelos professores para desmontar tudo o que
os estudantes acreditavam. Já tinha entendido que
bons projetos estão integrados com o entorno e integram o desenho da cidade, mas por que a definição era tão importante ainda era algo a esclarecer. Por mais criativa, inusitada, inovadora e original que tentasse ser, na resposta sempre surgiam as palavras “complexa” e “dinâmica”, ou suas derivadas. “O que mais pode ser definido como complexo e dinâmico?”,
pensou
olhando
a
vista
para
a
rodovia
congestionada ao longe. O caos. Tinha lido naquela mesma semana que o caos não era exatamente uma grande bagunça desenfreada, como seu quarto em semana de entrega, com
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desenhos e material de maquete tomando a cama, o chão, a entrada. Do texto do blog pop, entendeu que caos não é algo necessariamente
ruim,
tampouco
a
ordem
é
impreterivelmente boa. De acordo com a tal teoria, uma pequena mudança no início de um evento pode causar imensas
transformações
totalmente
desconhecidas
e
imprevisíveis no futuro. E essa imprevisibilidade é o caos. “É isso!”. Pegou o primeiro rascunho para anotar as ideias que vinham mais rápido do que a mão dava conta: a Arquitetura poderia ser tanto vetor da ordem, com seu destino previsível, controlável, como do caos, abrindo possibilidades imensas que nem a própria imaginação do arquiteto poderia conceber. “Exemplos, preciso de exemplos”, balbuciava batucando o lápis da mesa. Logo veio o condomínio fechado que, até a sua entrada na faculdade, era seu porto seguro, com as casas, os vizinhos, as ruas, tudo parecido. A mais perfeita ordem, na concepção de alguns, mas vetor de problemas urbanos imensos, como aprendera nas aulas. “Assim mostro que ordem pode não ser bom, mas como provo que o caos pode não ser ruim?”. Mais uma batucada rápida de lápis. “Claro, a marquise do Ibirapuera em São Paulo”. Tinha lido que a ideia original de Niemeyer era só unir edifícios. Algo na história do lugar fez com que virasse ponto de encontro, pista de patins e skate. Inesperado. “Arquitetar é lidar com a possibilidade do
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caos”. E viu que isso era bom.
O Último Truque Ana Carolina Bernardes
-Ai, ai! – chacoalhando os dedos. Já são dez e meia da manhã e Otávio mal terminou de abrir os olhos, só acorda ao sentir o café que transborda da caneca queimar seus dedos. Tornou-se seu costume sentar-se no sofá pela manhã nos domingos olhando janela afora. Seus pensamentos vagam pelo céu muito azul, de nuvens esparsas, acompanhando os pássaros que planam nas correntes quentes de ar. Lento e imprevisível. No
jornal,
em
meio
a
linhas
e
linhas
de
acontecimentos já tão esmiuçados, discussões políticas em tedioso
impasse
e
informações
irritantemente
desinteressantes, um anúncio parece brilhar cores dançantes apesar do preto e branco. Um espetáculo de mágica na cidade. É como ter treze anos de novo na primeira ida a um
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circo. Os mágicos, malabaristas, truques com fogo, facas e o palhaço tão fascinante. Suas roupas coloridas e as bolinhas brilhantes orbitando o sorriso largo e hipnotizante. Sempre achou as sobrancelhas engraçadas, pareciam dizer o que o sorriso não dizia. Tudo desaparece e dá quase para sentir o cheiro de pipoca.
Parece uma boa ideia ir, tem uma apresentação às duas da tarde. Dá tempo de almoçar no restaurante japonês do centro, seu favorito, não que a variedade vá muito além de peixe. Talvez a atmosfera leve de descontração o livre da rotina concreta, mesmo que não muito. *** Já na fila, dá para sentir o cheiro de pipoca de verdade, as crianças se agitam e os pais jovens sofrem para contê-los. Pode se ver nos pequenos e lembra com aperto no coração da sua mãe. Ela sempre o levava nos circos e shows de mágica com seu sorriso cheio de amor. Tinha amor em tudo que fazia, mesmo que não a compreendesse por vezes. Como seria bom se ela estivesse ali, com seu humor contagiante e a animação tão juvenil, era assim desde que se lembrava por gente. -Moço¿ Oi¿ -Ah sim, sim, desculpa, duas, por favor, desculpa.
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-100 reais. Nossa, muito caro, não era assim antes, mas... Dois¿ Por que eu estou com do... – com a mão na testa calculando os cafés da banquinha e os doces da feira que tinha acabado de perder.
Pouco tempo depois, o teatro escurece e um foco de luz ilumina o centro do palco, então aparece o mágico. Ele é o conjunto completo: magro, alto, com bigodes muito pretos
e
truques
levemente
decepcionantes. Coelho
na
cartola, pombas, a carta que alguém escolheu de baixo do assento de outra pessoa. Tudo tão fácil de explicar, é só plantar uns figurantes aqui, umas cartas ali. -Mas já¿ - As luzes acendem e ele olha discretamente para os lados para ter certeza de que ninguém tinha visto como ele dormia durante o espetáculo esparramado na cadeira. Porém apesar da sua pequena animação ao pensar que já era o fim, o show para apenas para um intervalo. A sede é menor do que a preguiça e a pausa deve ser curta demais para a fila da lanchonete do lado de fora, melhor esperar. Então, devagar, no fundo do palco entra um palhaço carregando uma maleta. Otávio até senta mais ereto para acompanhar seus movimentos. O palhaço coloca a maleta no chão e tira dela um baralho. Ele parece oferecer para alguém
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das
primeiras
fileiras
que escolha uma carta, volta a
embaralhar e tenta adivinhar a carta, sem sucesso nas primeiras vezes, até que tira a tal carta da manga. Mas ao tirar, centenas de cartas começam a sair descontroladamente das mangas em todas as direções do palco e da plateia. Otávio ri e olha para as outras poucas pessoas nas cadeiras,
mas ninguém parece dar muita atenção, o que o faz se sentir um tanto idiota. A performance continua igualmente surpreendente. Ele tira uma vassoura da maleta para varrer as cartas do chão, mas ela sai voando e o palhaço, aparentemente desesperado, vai junto agarrado nela e voa pelo teatro. É inacreditável, realmente não dá para ver nenhuma cordinha segurando a vassoura no ar e ele dá até piruetas. As mágicas são tão mais impressionantes das do mágico da apresentação principal, não dá para acreditar que ele esteja trabalhando apenas como um entretenimento durante o intervalo. E cada truque parece ser por acaso, tão caótico e ao mesmo tempo bem arquitetado, é, não só engraçado, como bonito. E, então, o palhaço tira da maleta bolinhas e começa a jogar para o alto, mas não consegue fazer malabarismos, porque as bolas começam a fugir de suas mãos como se fossem passarinhos. Elas rodopiam e por fim chovem todas ao mesmo tempo dentro do chapéu do palhaço, que o coloca na cabeça e termina seu show com este mesmo movimento que
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se torna um cumprimento. As luzes se apagam e ele desaparece. O mágico retorna ao palco, novamente sem muito de novo a apresentar e traz com ele apenas sono. Quando a
apresentação termina, Otávio já é um dos primeiros a sair, ainda se divertindo ao lembrar das piruetas do palhaço. Sua mãe teria gostado tanto de ver, deveria ter convidado o irmão para ir junto, já há um bom tempo que não se encontram. Pelo menos a pipoca que comprou na saída estava boa. Não devia ter deixado o carro tão longe. Mas como que ele conseguia fazer aquilo¿ E a produção deve ter sido tão complicada... A parte das bolinhas realmente não dava nem para pensar numa maneira de... -Cuidado! -Meu Deus! Você está bem¿ - Ele não foi atropelado¿ Deitado na calçada com o coração disparado e suando por todos os poros possíveis Otávio olha para os lados tentando entender o que aconteceu. Ofegante, vê uma caminhonete que se afasta em alta velocidade e, nela, o palhaço
sentado
na
borda
da
caçamba.
Ele
sorri,
o
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cumprimenta com seu chapéu e some no ar. A cena se passa muda em sua cabeça e, aos poucos, começa a notar os gritos e comoção das pessoas à sua volta. Muitos se aproximam e perguntam se ele está bem e como aquilo aconteceu. Mas ele só balbucia e uma senhora
muito idosa fica repetindo que ele voou por cima da caminhonete. Ele insiste estar bem, pega as chaves do carro
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do chĂŁo e se afasta com um pequeno sorriso no rosto.
Prédio de Papel Alessandra Ingrid da Silva
Tinha essa escola antiga na minha rua. Tinha essa escola antiga e um restaurante de quilo que já foi o estacionamento da escola antiga na minha rua. Esse tipo de restaurante atrai um público curioso quando se localiza no centro histórico da cidade. Lugarzinho com um bocado de variação de uso, como era o caso da minha rua. O dono de lá era o seu Niquimba. Já tinha tido todo tipo de comércio, no mesmo lugar. A fachada mudava mas ele não enganava ninguém: era o mesmo puxadinho do lado da escola antiga. De vez em quando eu passava lá e dava um alô quase gritado da calçada. Seu Niquimba era gente boa. - Ô seu Niquimba! E esse pastel ai hein? E aproveitava a promoção do pastel e suco, por cinco
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reais, pro lanche da escola. - Ô seu Niquimba! Esse oxford tá bonito! E comprava um sapato novo, porque oxford marrom era a nova moda na faculdade.
- Ô seu Niquimba! Que mogno bonito, madeira da boa mesmo! Só que eu sempre deixava a cama lá. A gente cresce e fica mão de vaca. Quando ele fez da loja um restaurante de quilo eu apenas cozinhava em casa, pra economizar. A crise. O puxadinho do seu Niquimba parecia um prédio de papel. Ele dobrava, desdobrava, puxava e levantava, colocava abaixo e recoloria. Tudo pra se adaptar, mas nunca pra acompanhar o centro histórico. Um dia um anúncio de um edifício residencial chegou na minha casa. Meu apartamento também ia virar de papel e se modificar todo até encarecer o suficiente. Me mudei. Pouco soube do seu Niquimba. Semana passada eu topei por aqueles lados da cidade novamente e tava tudo esquisito. Foi a rodoviária, disseram. Outros vários prédios de papel surgiram, e eles pareciam
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deixar suas fiações pra trás a cada mudança, como uma cobra que abandona a casca quando troca de pele. Andei até o lugar que
costumava
enquadrar
meu
sobrado.
Um
edifício
especulativo e detestável sorriu amarelo pra mim. Mas o pior foi o destino do puxadinho do seu Niquimba. Parou no tempo e mudou tanto que a gente nem podia mais dizer que tempo
era esse. Vazio urbano, disseram. NĂŁo se dobrou e nem
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recoloriu mais. Faltou celulose.
Um caos dentro de mim Valter Nunes dos Santos
Existe um caos dentro de mim, um caos sem caô, projetado, dimensionado e arquitetado. O dia a dia, a rotina, o abrir dos olhos pela manhã já acordando imerso em uma piscina de desafios, de pressão, de “Você tem que ser melhor do que isso” só alimenta essa bagunça de sentimentos e faz muitas vezes
esquecer e
apreciar o que realmente é
primordial. Na TV, no rádio, nos noticiários, nas conversas, nas redes sociais, nas regras da Universidade, nas regras da vida, nas leis, sempre imprimindo a mesmice, como se dentro de cada um existisse esses caos, e todos quisessem gritar o mais alto possível pedindo ajuda, querendo gritar “Existe algo errado aqui!”. O meu caos grita a todo o momento, grita através de um sorriso, de um abraço, de um olhar, de um suspiro de felicidade ou infelicidade. O meu caos talvez não seja só meu, talvez seja de todos, talvez eu compartilhe isso
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com todos, todos os dias, e talvez todos os dias, todos compartilhem isso comigo. Todos devem nascer assim, o que faz diferença no dia a dia é como gerenciar esse caos. O meu caos deixa de ser caótico quando encontro pessoas que me alegram, que me fazem bem, que me fazem olhar aquilo que outrora não parecia tão importante. Quando isso acontece,
até parece que o caos é somente algo do imaginário, algo escrito nas letras de uma crônica, até a hora que tenho que
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abrir os olhos pela manhã.
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