revista
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W I N T E R
Balaclava Records é um selo, produtora e revista de São Paulo. ABC Love Ale Sater Alex Bleeker and the Freaks Aquaserge Bilhão Bonifrate Cabana Café Câmera Champu Cinnamon Tapes Clearance Crusader de Deus Do Amor Ducktails E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante
Allah-Las Aquaserge AVAN LAVA Barbagallo Beach Fossils Built to Spill Buffalo Moon Chad Valley Clearance Connan Mockasin Deerhunter DIIV Future Islands HALA Homeshake Jerry Paper Jonathan Toubin
Giovani Cidreira gorduratrans HALA Hierofante Púrpura Holger HOMESHAKE Juan Wauters Kill Moves Luziluzia Mac McCaughan Mahmed Mannequin Trees Marrakesh Me & The Plant Medialunas MENEIO Mild High Club Minks Moons Nuven Ombu PARATI Plucking Wings Quarto Negro Raça
Radiation City RØKR Séculos Apaixonados Sensible Soccers Shed Single Parents Splashh Supercordas Terno Rei The Shivas The Soundscapes TOPS Trails And Ways Tyburn Saints Un Planeta Ventre Walfredo em Busca da Simbiose Wedding Widowspeak Winter Yuck
Mac DeMarco Mac McCaughan Mashrou’ Leila Mercury Rev Mild High Club Noga Erez Nosaj Thing of Montreal Pinback Primal Scream Real Estate Sebadoh Shabazz Palaces Slowdive Sun Kil Moon Swervedriver Thee Oh Sees
The Shivas toe TOPS Tycho Un Planeta Warpaint Washed Out WAVVES Widowspeak Whitney Yonatan Gat Yuck
fazem parte do nosso casting.
vieram ao Brasil pelo selo.
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Warpaint Vendo os 10 anos que vocês estão juntas, há um segredo para uma banda resistir unida? AMIZADE é tudo. Vocês mudaram muito a dinâmica? Fica-
mos melhor em não pisar nos calos umas das outras, concordamos que menos é mais e nos damos espaço para cada uma se expressar individualmente – independente da banda. Sempre foi um processo colaborativo? Somos uma democracia desde o primeiro dia, mas nosso processo de escrita mudou um pouco. Costumávamos tocar todas juntas, escrever junto todas as músicas e percebemos que isso consumia muito tempo. Começamos a nos organizar em pares para escrever duas de cada vez, agora apenas uma escreve e condensamos nossas partes no estúdio. Você poderia contar um pouco sobre as músicas novas? As novas faixas são mais cinemáticas do que as do passado, esperamos entrar em um filme, parece muito legal. Qual a maior lição da estrada? Como o tempo sozinha é precioso e todas nós nos tornamos melhores musicistas por tocar todas as noites por anos. Além de que ficamos melhor em tocar entre nós. Há alguma pressão para lançar músicas novas? Na verdade não, a pressão vem de nós mesmas. Se algo externo tivesse uma grande influência no que a gente fez, nós não seríamos nós mesmas, além de perder a magia Warpaint. Todas as integrantes têm projetos solo ou outras bandas. Por que vocês sempre voltam? É a nave mãe, nós somos muito gratas por cada uma e por essa banda. Foi aqui que tudo começou e é super divertido voltar. Fazer música solo é um desafio muito diferente, na verdade, é um respiro de ar fresco ficar com as meninas. Quando vocês estão fazendo outro trabalho, costumam perguntar a opinião entre as integrantes? Sim, de vez em quando, mas acho que o lance de ter um projeto solo, pelo menos para nós, é sair da bolha Warpaint e ficar com os dois pés no chão, provando que você é capaz. Como Los Angeles faz parte da música da banda? Sinceramente, grande parte da nossa composição acontece fora da cidade, porque gostamos de fazer viagens curtas. Não acho que a paisagem é o que realmente impacta, mas em questão de distração, sim. A paz, o silêncio e o tempo para refletir por onde você esteve neste mundo e o que te inspirou neste ano. A casa pode parecer uma armadilha, é difícil concretizar coisas na cidade. A melhor e pior coisa da música pop? Funciona para ambos: está em todo e qualquer lugar, o que é uma benção e uma maldição. Texto Isabela Yu
Quatro bandas que gostamos muito estão com lançamentos engatilhados para o próximo ano. Em um dia chuvoso de agosto, conseguimos, surpreendentemente, juntar todos para uma sessão de fotos e um bate-papo no Say My Name Club. Compramos tecidos, improvisamos algumas luzes e a querida Diolinha registrou essa empreitada: Texto Heloisa Cleaver Foto Diolinha
Fico com medo de não dar tão certo. “Ela fechou com a Sony e nada aconteceu”.
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BRVNKS
Conta pra gente desse rolê da Sony! Um cara mandou uma mensagem no e-mail da
banda, falando que curtia o som e que estavam procurando gente nova para assinar com eles. Queriam um EP, mas o disco já estava quase pronto, as dez músicas A gente foi para o Rio, conversamos, eles falaram o que iam fazer pela gente… Como eles vão ajudar? Conseguir coisas para clipe, por exemplo. Vamos sair em tudo que eles tem – a divulgação é a força maior, grana no Facebook, dar uma força no Spotify, colocar as músicas em trilhas. E nesse seu primeiro disco, o que te dá mais medo? Fico com medo de não dar tão certo. “Ela fechou com a Sony e nada aconteceu”. Postamos a notícia há dois dias e já veio um monte de gente falar comigo – queriam me mandar coisa. Eu não recebo nada em casa, não é da minha realidade.
Que loucura! A gente viu um tweet seu falando que você nem queria lançar o EP e foi o Edimar que te obrigou. Qual é a sua relação com isso hoje em dia? Não
estava do jeito que a gente queria, mas achava que ninguém ia ouvir. Inclusive, não gosto do jeito que foi gravado, como o timbre da guitarra, sabe? Mas foi a primeira coisa que a gente fez. Escrevi as músicas com 17 anos, não tinha as ideias que tenho de lançar algo melhor. Aceitamos que precisa ser um pouco mais pop. Queria um negócio podre, meio tosco. E agora tenho noção de que as pessoas curtiram do jeito que é e que seria legal continuar fazendo desse jeito. Acho que mudaria alguns detalhes da gravação. Você acha que foi difícil achar uma banda, ainda mais por ser mina? Já conhecia os meninos, tirando o Gianesi que entrou agora. Trampei com o Ian, ele era do meu grupo de amigos e também conhecia o Edimar. Meu sonho é ter uma banda de minas, né? Mas é muito difícil, cara! Quando consigo achar uma amiga que fala que tá tocando baixo, já mando “nossa você não quer tocar”, e fica nessa vibe de “ah, não, estou aprendendo, não toco”. Então, é foda depositar essa responsabilidade em cima. Em questão de segurança de palco, você sente que tem uma diferença entre você e os caras? Acho que ia me sentir mais segura com outras meninas. Porque os shows são muito difíceis para mim, sempre me sinto meio bosta. Fico com vergonha, porque acho que não toco ou canto direito. Não tenho insegurança minha pessoal, pode me odiar o quanto quiser, mas não gosto das músicas antigas e o jeito como a gente tocava. É difícil ter tempo de ensaiar, de conseguir tocar redondinho. E eu não faço aula de canto, não sei esquentar minha voz. Então são várias coisas que não ligo de alguém achar uma bosta, mas ligo para quem gosta. E como é sua relação com a internet? Sempre fui do Twitter, nunca vou abandonar. Mas rola de gente falar que a minha banda é uma bosta – o que eu não ligo – mas fico puta de mandar mensagem diretamente para mim, querendo me fazer sentir mal ou me chatear. Se não respondo, mandam coisa até responder. Se respondo, eles falam muito pior. Se bloqueio, eles tiram print. Fico nesse impasse, o que é que eu faço? Lembro também de que vocês foram tocar em algum festival de rock e a galera começou a metralhar você. Ah, o Oxigênio! Mas era só cara velho do hardcore. Tipo “eu
quero Dead Fish!”. Tá bom, sabe? Muita banda foi anunciada, mas é a mesma coisa, falar que a banda é uma bosta e não entender que tem uma pessoa ali. Não olho para não ficar chateada. Mas você poderia, né. Fico puta, porque poderia ficar muito chateada e as pessoas continuam. Não muito, porque a banda também não é algo muito estranha ou diferente para tanta gente odiar. Mas as pessoas me odeiam muito, criam antipatia, sendo que nunca tratei ninguém mal. Fazer o que? Quanto mais gente conhecer, mais podem não gostar, assim como curtir. Um moleque me mandou “achei que só banda boa fechava com a Sony”. Tipo, você tá chateado? Tá bom, cara.
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O lance de mudar de produtor e estar aberto a tudo que eles propuseram foi uma ousadia, de certa forma.
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TERNO REI
Há quanto tempo vocês estão trampando nesse disco? Greg Vinha Há um ano, lançamos o último em novembro de 2016. Ele deu bastante trabalho, porque gravamos em Curitiba. Fizemos uma imersão no estúdio, entrar às 10h da manhã e saía depois da meia noite. Foi legal, porque todo mundo ficou junto em todos os processos, diferente do que rolava antes. Todos escutaram e participaram. Bruno Rodrigues Foi o primeiro disco com os produtores curitibanos, Gustavo Schirmer e Amadeus de Zoe. Ale Sater Eles nos ajudaram muito na composição, em como fechar as músicas, os arranjos e as estruturas. Qual é a parte de que vocês mais gostam em fazer um disco? Brunão Não é gravar, rs. Loobas (Luis Cardoso) Puts, acho que talvez seja a parte mais legal.Greg É, gosto de gravar. Mas acho que a parte mais legal é quando você tá indo no estúdio só para criar. Você chega lá e fica tendo ideia... Ale Na real, tudo é legal por causa do processo. Que nem começar uma música e ela vai crescendo – um disco é a mesma coisa. Em que vocês acham que mais ousaram nesse trabalho? Brunão Alguns instrumentos novos que a gente nunca usava… Tem piano, violão. Greg Talvez a sonoridade dele. Dá para perceber que está mais produzido do que os outros. Acho que o lance de mudar de produtor e estar aberto a tudo que eles propuseram foi uma ousadia, de certa forma. Algum aprendizado grande do último disco para esse? Greg Aprendizados técnicos, de estúdio e composição. Às vezes, você está no ensaio e acha que está quebrando tudo, mas chega na hora de gravar e é super fuén. E agora? Isso acontece forte. Teve música que entrou uma e saiu outra. Gravamos o grosso do nosso jeito e fomos produzindo uma por uma, arranjando… Elas começaram a tomar uma cara e outros lados que fomos abraçando. Quais foram as referências maiores nesse trabalho? Brunão Disco novo do Cass McCombs, Beach Fossils… Ale Land of Talk, ouvi muito. Greg Tem uma que está muito Oasis! Tem uma virada de bateria… Umas coisas Ariel Pink com bastante synth, também. Meio o novo do MGMT. Como rolou o clipe de Solidão de Volta? Fizemos sem tempo ou budget. Chamamos o Lucas da Bolovo e saímos no Centro. A gente tinha show da Trackers e fomos dar um rolê registrando tudo, fomos na 25 de Março, no Hirota, entramos meio Beastie Boys entre as gôndolas, tudo sem pedir. Foi bem legal, porque nunca aparecemos nos nossos clipes. Nada melhor do que o primeiro single depois de um tempão mostrar a gente.
A minha forma de compor ĂŠ pensando em imagem, vejo esse disco como um filme. Tenho uma histĂłria para todas as mĂşsicas.
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YMA
Levando em consideração o processo todo, o que te deixa mais ansiosa para lançar o primeiro disco? Conseguir dialogar da melhor forma com as pessoas. Estou
muito segura com o trabalho, porque acho que consegui me expressar nele de uma maneira muito boa a partir das minhas referências estéticas e sonoras. Meu medo é que ele não chegue nas pessoas de uma forma sólida. Sendo uma mulher que canta,
escreve e participa da cena, foi difícil encontrar um lugar dentro de tudo isso?
A banda aconteceu de forma bem orgânica. O baixista (Uiu) é meu melhor amigo desde o colégio e foi com quem comecei a pensar no trabalho autoral. A YMA existia conceitualmente, mas na prática só estudava as músicas que já existiam. Uma amiga apresentou o Dreg (guitarrista) para um show, acabamos tocando e sentindo uma conexão forte no palco. O restante da banda, o baterista e o tecladista, conheci no show do Mannequin Trees. Precisava de uma bateria para gravar uma live, porque é o que dá o impulso ao vivo. Compus as músicas – duas delas fiz o arranjo no garage band – mas todas as outras foram compostas em bandas. E a gente tem menos de um ano juntos, formamos em novembro de 2017, ainda é recente. Com tudo o que foi acontecendo, fizemos os arranjos junto das gravações, dá um medo de não conseguir sintetizar isso de uma forma bonita. Como é a sua relação com o trabalho visual? Fui fotógrafa durante e também gosto de trabalhar com vídeo. Já dirigi videoclipes e sempre tive uma pira com artes visuais e cinema. Era o que queria estudar na faculdade, mas ainda não consegui. Sou muito fã de alguns diretores, como o David Lynch – Twin Peaks é a minha série preferida e uma grande referência visual. Tem muito do vermelho, né? O próprio Black Lodge tem as cortinas vermelhas, achava tudo muito charmoso e queria trazer um pouco daquele universo meio misterioso e, ao mesmo tempo, fascinante – é um medo que você não sabe da onde vem, porque não mostra muito sangue, é uma coisa psicológica. Enfim, essa pira visual é disso mesmo, pelo amor às artes visuais e ao cinema e esse remix que a gente faz. A minha forma de compor é pensando em imagem, vejo esse disco como um filme. Tenho uma história para todas as músicas. Às vezes, claro, é a realidade que se mistura com a ficção, porque passo por uma situação que me inspira a compor e, naquilo, começo a viajar para além da realidade. Para construir o lugar imagético do disco e do show Par de Olhos, flertei com muitos clipes dos anos 80 de artistas como The Bangles, Bananarama, David Bowie e, principalmente, nos clipes da Kate Bush. Sinto uma identificação e me inspiro muito nas construções visuais e musicais dela. Também sou muito ligada ao cinema, dois diretores especificamente se fizeram muito presentes no processo conceitual e reflexivo para o disco: David Lynch e Ingmar Bergman. Ambos possuem uma linguagem visual repleta de simbologias, que sempre me levam a questionar e discutir os diversos significados e temas que os filme deles abordam. Bergman me faz viajar sobre a existência, alma, assuntos psicológicos e sociais. Já o Lynch me leva para realidades oníricas, é um surrealismo misterioso, uma viagem multidimensional. Trazer a sensação de estar sonhando assistindo a um filme, é como uma experiência mística!
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A dificuldade vem conforme vocĂŞ tem a consciĂŞncia da responsabilidade que cada coisa carrega.
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RAÇA
Faz um tempinho que vocês lançaram o Saboroso. Como foi o ciclo desse disco? Como foi o ciclo desse disco? Que mudanças rolaram? Elas impactaram o resultado do Saúde? Popoto Lançamos o Saboroso há dois anos. Tudo mudou bastante,
a banda, o som… Do Deu Branco para o Saboroso já tinha mudado, mas desde que lançamos, acabamos mudando bastante ao vivo. Logo que começamos a tocar o disco, o João (Pedro Viegas) entrou para tocar as teclas e passamos a ser em cinco pessoas. O Tamashiro que compôs o disco saiu da banda e o Santiago entrou. Isso mudou o som, as pessoas e quem fez o Saúde. Além de toda sabedoria dos últimos anos, agora mais duas pessoas estão envolvidas na composição. Como você acha que vai ser a recepção do público? Não sei se vai ser um disco ousado, mas com certeza mais esquisito. A gente teve um processo longo de composição, da primeira demo até o final muita coisa mudou – não sei até que ponto as ideias evoluíram ou se perderam. Começamos no computador, ensaiamos, gravamos, fizemos a pré, ensaiamos mais, gravamos, vamos ensaiar para tirar o disco... A gente tem públicos de diferentes épocas. Do Ninho, do Deu Branco, nossos trampos mais lo-fi, até o Saboroso. Acho que esse se assemelha muito mais aos antigos, com uma pitada de novidade, um lance mais moderno. Quanto tempo efetivamente vocês estão trabalhando no Saúde? O disco está sendo trabalhado há dois anos. Desde que comecei a compor... Comecei pelas demos e fui passando para os meninos. Depois disso, a gente fez uma recomposição das músicas, para gravar por parte. Para então ensaiar para o ao vivo com os instrumentos de verdade. Na brisa toda de ter banda, gravar, lançar, viajar, o que você considera a maior dificuldade? Gravar é a coisa mais tensa, com certeza. É muito estudo, muita pressão, muitas variáveis... Às vezes, você grava e fica ruim. É um processo longo e cansativo, tem hora que você não aguenta mais a música e precisa continuar tocando até entender por completo. Quase um trabalho psicológico que nunca tinha experienciado, porque para mim sempre foi uma parte sussa, mas agora estamos fazendo com mais responsabilidade e cuidado. Talvez tudo que exija responsabilidade seja mais tenso. A gente nunca viajou com essa seriedade, mas talvez as coisas mudem, estamos tentando ficar mais maduros em relação a tudo. Gravar, viajar e tocar pode ser muito legal, mas também pode ser muito responsa. Então, a dificuldade vem conforme você tem a consciência da responsabilidade que cada coisa carrega.
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M Texto Michelle Kaloussieh Foto Ingrid Alves
INA
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As mulheres têm que se esforçar muito mais pra chegar onde os caras já estão.
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a noite de 30 de julho, caiu uma chuva que miaria qualquer rolê. Não foi o caso. Por volta das sete da noite, começou a movimentação ao lado do metrô São Bento, no centro de São Paulo. Mulheres foram chegando e se cumprimentando. O clima estava bom e muitas ali pareciam se conhecer há algum tempo. A Batalha da Dominação, que rola toda segunda-feira do lado de fora do metrô, estava para começar. Aquele é um espaço criado por mulheres para mulheres com uma paixão em comum: o rap, que é sabidamente um gênero dominado por homens. O encontro tem o intuito de criar um ambiente para as minas que gostam de rimar e compor. Além das batalhas, rolam pocket shows de várias artistas da cena. Naquele dia, a Gabz se apresentou. Ela é carioca, nascida e criada na favela do Irajá, tem 19 anos e lançou seu primeiro som – que já é um sucesso – em abril deste ano. Do Batuque Ao Bass tem 475 mil visualizações no Youtube e, na época do lançamento, artistas como Karol Conká compartilharam a produção. Gabz foi a vencedora de um concurso de poesia falada em 2017 e sua participação viralizou. A partir daí, segundo ela, tudo fluiu: “A criação de Batuque o Bass foi um processo muito orgânico. Já tinha o refrão e a minha intenção sempre foi fazer uma parada que tava na minha cabeça há muito tempo, que é essa questão das pessoas negras contarem sua história através da música. Do batuque ao bass, no caso”. Sobre o futuro, a carioca foi categórica: “Estou vivendo meu sonho, que sempre foi botar em prática o que penso e viver do que eu gosto, de acordo com minhas convicções. Não sei onde exatamente quero chegar, mas quero fazer da caminhada uma parada daora”.
Trombei muita mina chave naquela segunda feira e fiquei felizona de ver que além de muitas afim de rimar, aquele rolê tinha público e a grande maioria era mulheres e LGBT+. É muito gostoso ver pessoas que, normalmente, ficam na sombra tomando para si um espaço que sempre foi masculino – e machista. As xarás Ana Beatriz – Fissu e Bea – têm o duo DeAaZ e também colaram para São Bento naquela segunda. A Fissu é de Caçapava, no Vale do Paraíba, e a Bea Bpm nasceu na capital – as duas se conheceram na faculdade: “O jornalismo me ajuda muito no sentido de me comunicar melhor e a usar a música como instrumento para isso também”, conta Fissu. O nome da dupla, que sofreu algumas variações até ser definido, traz a ideia de versatilidade: “A gente literalmente começa no A e termina no Z, né? Mas também quisemos passar uma noção de diversidade, mesmo. Porque a gente quer abordar temas de A a Z nas nossas músicas”. Elas lançaram, em oito meses, seis singles com clipes e já estão com um disco inédito pronto para ser lançado. Outra mina zica que trombei na batalha é a Lourena, carioca de 18 anos e uma das apostas da nova tendência no rap nacional, que são os acústicos – ou orgânicos. O primeiro vídeo que a rapper jogou no mundo, Quando Você Voltar, já tem mais de 23 milhões de visualizações. O sucesso foi tanto que a Casa1, uma das produtoras de maior relevância no cena do rap nacional, entrou em contato para assinarem contrato. Gabz, Lourena e as meninas do DeAaZ são a ponta de um iceberg. As mulheres estão chegando junto no rap nacional, mas não só isso. Estamos, aos poucos, ocupando lugares que nos foram negados. Seja na música, na arte ou na cultura como um todo. Para Lourena, as mulheres têm que se esforçar muito mais para chegar onde os caras já estão.
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Como um “cavalo” uniu duas bandas
Texto Isabela Yu e Heloisa Cleaver Foto Guilherme Garofalo
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alvez você ainda não conheça, mas o Cavalo Estúdio, localizado no bairro do Campo Belo, na zona sul de São Paulo, tornou-se uma espécie de reduto de bandas e um palco para novas amizades. O estúdio foi fundado em 2015 e é carinhosamente tocado por Nicolas Csiky (Alaska), Gabriel Olivieri e Alyson Borges (ambos d’O Grande Babaca). Entre idas e vindas de integrantes, dois músicos se conheceram e permaneceram amigos. “Foi aqui que comecei a conhecer pessoas de São Paulo, antes era só da Bahia e de Sergipe”, lembra o compositor aracajuense Ícaro Reis, frontman e cabeça por detrás do projeto Mannequin Trees. Morador da capital paulista há apenas quatro anos, viu sua antiga banda, a Sarina, terminar para iniciar um novo ciclo com outros companheiros de shows. Atualmente, está trabalhando as faixas de daydream, primeiro disco como MT, ao lado dos músicos Raphael Ferreira, Uiu Lopes, Marco Trintinalha e Leon Sanchez. No caso de Lou Alves, foi encontrando Gabriel que o produtor e filmmaker montou com Kefren Buso e Leandro Anami, o que seria o Walfredo em Busca da Simbiose, seu projeto solo. Antes da nova persona, era técnico de som em um outro estúdio, sendo responsável por gravar um pessoal bacana da música nacional, como a extinta Banda Calypso. “O Cavalo tem representações infinitas para mim. Inclusive, até deixo um rabinho de cavalo para o Estúdio. É um templo essa parada”, divide Lou, que tem teorias entre o símbolo e seus possíveis significados. Mais fatos em comum: ambos costumam dividir integrantes (o Gabriel), são filhos do cruzamento do indie com brasilidades (em algum nível) e possuem EPs homônimos de estreia, lançados em 2017.
A Joelma me chamava de Fiuk!
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O que trouxe vocês até aqui? Lou Já toquei em vá-
rias bandas e trabalhava em um estúdio como técnico de gravação e produtor musical. Fiquei reconectado com o Gabriel quando saí de lá, estava em crise e fiz o EP em casa. Tudo muito rápido. A primeira vez que toquei como Walfredo foi em um show no Festivalo, festival do Cavalo. Ícaro Procurava um estúdio para gravar com a minha banda antiga. Já tinha as músicas do primeiro EP desde 2015, gravei em casa e precisava formar banda. Tenho 29 anos e trabalho com música desde os 19. Em Sergipe, tocava essas bagaceiras de sertanejo e forró – era gigueiro. Juntei dinheiro e me mudei. Lou A gente é conectadíssimo, então. Meu primeiro emprego na área foi gravar a Banda Calypso. A Joelma me chamava de Fiuk! Belo, Rick Renner, Alexandre Pires, Chitãozinho…
Como foi o processo de traduzir as música para o ao vivo? Ícaro Gravo tudo e a música vai surgindo
na hora – tenho o conceito mas não os arranjos. Deixo todo mundo livre para o show, algumas coisas precisam ter, mas vai da vontade de cada um. Acho importante ter a personalidade dos músicos, se não, vira só reprodução e não passa a energia que precisa ter. O CD é ideia minha, mas não me apego. Lou Basicamente, a mesma coisa. Guia, baixo, bateria, faço a produção em casa. É bem híbrido, como Homeshake. Às vezes, tem batera, às vezes tem 808. Como digo em uma música minha, o processo é abraçar o retrocesso. Quando você quer deixar tudo muito perfeito, não aguenta mais ouvir a música e o processo te estragou. Preciso me exorcizar dela, deixo guardada por três meses depois de gravar. Eu ouço e precisa rolar a simbiose.
O futuro de
ReflexĂľes sobre o passado e a busca por novos desejos. Texto Isabela Yu e Heloisa Cleaver Foto Naira Mattia
A
artista, apresentadora e compositora goiana Mel Gonçalves mora em São Paulo desde 2011. Mudou-se com a Banda Uó para residir na capital e descobrir independência. Dez anos do trio se passaram e os membros decidiram seguir caminhos diferentes – tudo numa boa, diferentemente do que é falado. Além dos shows e compromissos com os parceiros, Mel também se descobriu em outros aspectos: é apresentadora do programa Estação Plural (TV Brasil) há três anos, lançou os vídeos Cabelo e Medo, e promete novas músicas. Ela também trocou de casa algumas vezes, todas na região central. “Não consigo morar em outro lugar, aqui é a capital da cidade e um lugar por onde passam muitas pessoas”, explica, ressaltando a identificação com o bairro. Não parece, mas o período na banda durou tudo isso e, nesse tempo, felizmente, o cenário musical ganhou mais vozes militantes pela diversidade – a de verdade, e não a da publicidade. Pioneira “sem querer”, tornouse representante – e uma das grandes vozes – de muitas pessoas que são historicamente silenciadas. E olha que ela está só começando.
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Há quanto tempo você mora aqui?
Completo um ano em novembro, morava perto da Augusta, mas foi tão traumático que até esqueci o nome da rua. Gostava do apartamento, mas o espaço não tinha muito a ver comigo. Gosto do Centro por causa desses apartamentos antigos, são maiores e baratos. Tem também um movimento da rua de que eu gosto.
Como é seu processo criativo? Você só canta o que tem vontade de dizer?
Está sendo bem dinâmico, escrevo muito sobre mim mesma em forma de texto e poesia, então compartilho com meus compositores. Tem da MC Tha, Renato Pessoa, Leo Cavalcanti, Gabriel Valentina, todos amigos que dormem em casa e me conhecem muito bem. Isso é imprescindível, pois as letras são para mim. A gente compartilha tudo, meus textos viram música. No geral, meu processo é muito natural. Tudo que vai vir nele tem a ver com a minha vivência enquanto mulher trans negra, com meus desafetos, minha religião, as coisas que gosto de fazer, os amores que tenho e as escolhas que faço… Sobre mim, mas que acaba sendo um espelho para outras pessoas, é muito difícil se colocar para fora.
Você acabou de começar um projeto novo. Como foi terminar essa etapa da Banda Uó?
Vivi muita coisa bacana, terminamos de uma forma muito tranquila, tanto que o Matheus acabou de me mandar mensagem e o Davi dormiu aqui ontem – temos uma relação boa. Não existe briga, sentimos a necessidade de falar sobre nós, de deixar o personagem de lado para dizer do que realmente gostamos. Está sendo complicado, não vou mentir. Antes o serviço era dividido em três pessoas – responsabilidades, dinheiro e todas as funções. Agora, as coisas caminham com meu dedo – claro que tem uma equipe por trás – mas Você acha que por estar em um momento em que fala mais sobre você, a sua relação faço as coisas sozinha, então o sono é menor e o trabalho, maior. Essa coisa full time, para pensar com a música mudou? Amadureceu. Não mudou, continua sendo na gerência da sua própria carreira, escolher levada da forma mais leve possível, apesar de ser o que é legal, como as músicas vão ser, correr um trabalho. Não sou mais a Mel do início ou atrás de produtor, pensar em single… A banda do meio da Banda Uó, agora sou a Mel de fato, era muito democrática, os três davam opinião. uma mulher madura, que mora em São Paulo há Decidir o futuro sozinha é uma responsabilidade 8 anos, passou muito perrengue nessa cidade e muito grande, estou aprendendo a curtir e não aprendeu com as pessoas. Não tenho mais aquela tornar isso um big deal. Comecei com 19 anos e inocência boba ou a preocupação de agradar as tenho 27 hoje. Oficialmente, contamos a partir pessoas. Isso é algo que venho amadurecendo, do momento em que viemos para São Paulo, em vão gostar de você como você é. Se não for para 2011. Levou um tempinho para chegar até aqui. ser assim, não adianta fazer de outra forma, porque isso pode causar depressão – como eu tive –, ansiedade e uma frustração muito grande.
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E sobre o Cabelo e Medo, todo esse universo visual. Você já pensa nessas narrativas quando tem uma ideia?
Penso, porque isso é algo que está dentro de mim. Desde o início da Banda Uó, sempre fui uma pessoa que caminhou pela imagem, a construção da música através disso. Começo escrevendo e já imagino aquela situação, um cenário pronto com muitos detalhes. Pesquiso muita referência para trazer uma identidade nova, algo bonito para as pessoas. E o Cabelo foi a realização de um projeto que teve início há dois anos. Sentei com o Alexandre Mortagua, assistimos Saneamento Básico e tem um texto que a Camila Pitanga fala, que é exatamente o que eu falo no vídeo. A gente disse “vamos trazer esse texto que está na comédia para algo mais sério, de luta?”. É um vídeo que fala das coisas que a gente que tem cabelo crespo vive, sobre as pessoas que querem pôr a mão por curiosidade. Temos que aprender a ressignificar muita coisa para poder ter amor próprio e se sentir bem. Foi essa a intenção dele, uma experiência audiovisual que traduza amor próprio, basicamente. É uma forma de encantamento. As pessoas prestam muita atenção para palavras quando vinculadas à imagem, é uma ideia de trazer poesia para as pessoas.
O que mais te instiga na música pop, ou na música de pista? Qual vibe o seu trabalho vai ter?
Vai ter bastante música de pista. Existe uma curiosidade em relação ao ritmo que vou seguir. É engraçado porque ninguém teve essa dúvida em relação ao Matheus ou ao Davi, mas comigo ficam “o que ela vai trazer?”. Quero deixar isso de surpresa para as pessoas entenderem da forma delas. Tirar meu pézinho do pop não vou fazer, mas dessa vez vou falar de coisas que me importam.
A música pop está se tornando mais inclusiva?
A música brasileira sempre foi muito inclusiva, entre aspas, claro. Todos os estilos musicais são inclusivos, entre aspas. Sempre tivemos lésbicas, trans, negros cantando na música popular brasileira. No pop, estamos começando a alcançar uma diversidade, porque, mesmo dentro do mundo LGBT, ainda existe uma necessidade de recorte de raça e identidade de gênero. Tem um segmento ali que é muito majoritário, que é o G, que coordena tudo o que vemos. Não é uma reclamação, mas uma constatação. Acho que isso vem caminhando, mas o pop, pela sonoridade, fala como um agregador para a classe LGBTQI. Mas é achismo, porque não existe inclusão na música e nas artes se não existe na sociedade. As pessoas sentem vontade de dizer que a arte agrega ou abraça, mas ela faz isso para determinados tipos de pessoas, em recortes específicos. Para isso que lutamos, para conquistar esses espaços e demarcá-los, não só conquistas. Cadê as outras? Se tem uma, por que não vão ter outras? Quando vemos apenas uma pessoa trans é complicado. É preciso criar um vínculo, uma raíz em que as pessoas possam ser naturalizadas no estilo musical que elas escolheram.
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MEL GONÇALVES
Como que você avalia a experiência do Estação Plural, o que te motiva a continuar?
Pelo menos na nossa experiência, você acabou se tornando uma porta-voz desse movimento. O que as pessoas normalmente não sabem sobre esse processo?
Não sabem que é muito pesado. É uma coisa que, inclusive, estive conversando com a deputada Erica Malunguinho e ela me disse: seja você, dê suas opiniões. Porque se você é uma pessoa correta, que pensa em comunidade, não vai escorregar no quiabo em hora nenhuma. E não se preocupe, porque isso é algo que acaba preocupando muita gente. Pô, vou dar uma entrevista, tenho que ficar pensando o tempo inteiro no que estou falando. Na era da internet ainda, é aquela coisa do politicamente correto. Não gosto disso, o politicamente correto é um breque para as pessoas preconceituosas, gente otária e ridícula, porque para elas precisamos dar um limite. Mas dentro do nosso rolê, onde vivemos, só basta a gente ser a gente. Agora sou essa figura que as pessoas buscam, porque alcancei um lugar de visibilidade, um lugar onde não só pessoas LGBT, mas onde pessoas cis, hétero conseguiram me ver. Acho importante que esse lugar exista e que existam outras pessoas junto comigo para dividir essa “responsabilidade”. Não vamos voltar no tempo, onde só tinha uma mulher negra para representar todos os tipos de mulheres negras. Quero que existam várias mulheres trans para representar várias experiências da mulher trans. Porque são diferentes – experiências, famílias, transacionaram em outras épocas, trabalhando isso ou não. Tudo isso traz uma diferença ao rolê e acrescenta para acabarmos com o preconceito.
Gosto muito do Estação, tenho um carinho muito grande pelo programa, porque consegui colocar a minha voz. Viram quem era a Mel sem ser a Mel da Banda Uó. Consegui mostrar o meu ser pessoal, falar das coisas que me machucam, atravessam ou que atravessam toda a minha classe. Achei um espaço muito importante que a gente compartilha e discute. A gente não está ali para ser engraçado para ninguém. Falamos o que a gente realmente acredita, é um espaço muito importante. Vamos para a terceira temporada, gravamos logo após as eleições. Espero que sim, porque é TV pública, então tudo depende do governo que entrar. Mas, de qualquer forma, vamos ser resistência. O Estação é um programa muito importante, descobri minha voz falada.
Quantos habitam em
Conversamos com uma das chefes da quadrilha Mamba Negra, tambĂŠm conhecida como Angela CARNEOSSO ou linha de frente do Teto Preto. Texto Isabela Yu e Heloisa Cleaver Foto Naira Mattia
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uando chegamos no apartamento da artista e videomaker paulistana Laura Diaz, 29, que é dividido entre quatro pessoas, entendemos algo básico sobre a entrevistada: tudo relacionado a ela é de carne e osso, corpo e alma, como você preferir definir a questão da entrega total. Assim como seu pseudônimo Angela CARNEOSSO, uma de suas identidades na noite, a performer vai te falar a real, mesmo que você não compre suas ideias de primeira – garantimos que elas ficam na sua cabeça. Carol Schutzer (Cashu) também mora lá. A dupla é responsável pela f(r)esta, empresa e selo Mamba Negra, arrepiando na noite paulistana desde 2013. De backgrounds diferentes, audiovisual na ECA e arquitetura na Escola da Cidade, uniram-se para performar a entidade que agrega centenas de festeiros por edição – sem nunca deixar a política de lado. No fim de agosto, Laura estava no processo de finalização do primeiro disco do Teto Preto, outra vertente e resultado de suas investigações sobre si e sobre a sociedade. Pedra Preta tem nove músicas inéditas autorais, sai pelo selo MambaRec em novembro e já tem uma porção de apresentações engatilhadas – como nos festivais Coquetel Molotov (Recife), Meca e SIM São Paulo.
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Em que momento vocês descobriram que eram uma boa dupla para trampar e viver?
As duas estavam na faculdade, não nos conhecíamos pessoalmente, mas sabíamos uma da outra pelo rolê. Temos a mesma idade, nascemos no mesmo ano, somos Serpente no horóscopo chinês. Sou do começo do gêmeos e ela é do fim de touro – uma cobra de duas cabeças muito loucas. Na época, ela estava envolvida pelas arquiteturas da vida na Escola da Cidade, fazendo festas na rua e coisas mais progressistas. Eu estava na USP fazendo coisa errada – sendo presa, festa de gente pelada… Acabamos nos conhecendo, porque já tinha uma correlação dessa galera que fazia festa eletrônica no Centro, que tinha uma pegada meio brasileira, do pessoal da Vodoo, da Gente que Transa, uns artistas que foram se juntando. E a gente lá na ilha do Butantã, naquela várzea tentando ter alguma conexão com a realidade. É far away, mas é onde os sonhos podem acontecer. Fizemos um trio elétrico fugindo da polícia e várias festas independentes. Eu e Cashu fomos nos conhecendo especificamente pela Vodoo, porque estávamos produzindo. A gente ainda não tocava, nem eu e nem ela, mas já rolava a questão de curadoria. E de acreditar que o momento de São Paulo era um pouco menos hedonista do que parecia. Tivemos afinidade no jeito de trabalhar, somos duras na comunicação, dois tratorzinhos. Valorizamos os artistas que escolhemos, trabalhamos na questão financeira e como gerir experiências coletivas. A gente foi descobrindo e pensando nas coisas que nem sabíamos fazer, como planilha, planejamento financeiro e entender as questões políticas da cidade. Ver na real o que estava acontecendo, como isso é uma questão política, tivemos muitas afinidades complementares, porque temos backgrounds totalmente diferentes. Foi aqui na casa que ficamos mais próximas, ela era uma das co-habitantes (moram juntas há 4 anos). Achei esse apartamento e descobri que ele era do dono do Susi In Transe, uma balada underground, com festas darks, desde sadomasoquismo até dub, eletrônico.
A Mamba já teve várias caras, feita de diversas maneiras, você acha que ela continua em transformação pela questão do espaço?
Acho que sim. Essencialmente em conexão com o momento e a conjuntura política que estamos. O Doria dificultou, o Covas foi lá e facilitou, são questões de burocracia interna da prefeitura para eventos de rua. Ao mesmo tempo, o problema é: eles aumentaram em 300% o acordo em relação aos preços de expedir alvará, agora você precisa de um por festa, por mais que seja no mesmo lugar. Isso é uma falácia, porque o mesmo engenheiro não precisa tirar 80 vezes o mesmo laudo da planta do lugar. Uma coisa é falar que o público vai variar, mas a planta não vai mudar. Isso é um exemplo. Estamos discutindo sobre a segurança das pessoas, uma boa experiência para o público? Ou estamos falando – mais uma vez – de uma máfia, de propina, de politicagens que não nos interessam porque somos artistas. Somos atuadores, não fazemos politicagem. A Mamba em si é um aglomerado incrível de pessoas que faz valer a pena. Construímos vínculos de confiança e responsabilidade. Além de ser sobre espaço de celebração, também tem a questão do conteúdo próprio. Seja pela agência, os bookings, a MambaRec, nosso selo… E é uma puta vitória, existir até agora, aos trancos e barrancos. Sempre buscando condições, transformando e reinventando… Isso tem a ver com o amor pelas coisas.
Quais pedais você usa?
Não vou falar a marca, porque não estou ganhando dinheiro, mas vou falar as funções deles. Esses gringos precisam aprender muito com os artistas do Brasil. É muito sem condição como não conseguimos ter equipamento, manutenção é uó e a importação é ridícula. Então, esse é um transformador de voz com vários presets. Não gosto tanto dos presets em si, mas uso alguns efeitos específicos. O reverb também uso como placa de som para entrar a minha voz. Dele, mando para um outro pedal multi-efeito, que simula o analógico, mas é digital – ele tem seis
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LAURA DIAZ`
presets de efeito que você pode deixar acertado, delay, modulação, distorção, filtro e reverb. Ou seja, quem conhece sabe de qual estou falando. Enfim, gosto bastante mas ele já me deu um sustos. Esse outro é um clássico de guitarras e que vai virar raridade, que nem é meu na real. É um alterador de pitch com delay, uso muito, é demais. Tem esse também, um looper, uso pouco no Teto, mais na Angela. Tenho quatro canais autônomos de loop, também alteração do tempo, se ele não estiver subordinado de outro equipamento. É basicamente isso. No meu live set uso essa groove box, porque ela une as drum machines e sintetizadores em um equipamento só. Qual foi o caminho até o primeiro disco do Teto Preto?
Começou no ano passado com a mudança da formação da banda. O L_cio, que é nosso amigo e produtor há muito tempo – ele praticamente formou a banda comigo – foi uma das primeiras pessoas com quem eu falei sobre o projeto. Desde que começamos a Mamba, já queríamos que fosse uma “gravadora”. Viramos alguma coisa e conseguimos lançar. Além da Cashu representar muito bem nossa sonoridade como DJ, queria que a gente tivesse um projeto de live, um som autoral do aqui e agora, que retomasse a questão da canção – ou da pós-canção – um conteúdo em português na pista. O vocal é um dos tabus de algumas pessoas do techno. E isso já ficou muito cafona de ser dito, né? O Teto foi esse vazão para conseguir fazer um som eletrônico live mas que tivesse essa questão do orgânico, do nosso background e do brasileiro, de new wave, no wave, industrial, de tudo. Depois do clipe de Gasolina, concretizamos a parceria performática com o Loïc (Koutana), o quinto elemento da banda. Foi combustão instantânea, na hora nos conhecemos e apaixonamos. Começamos a desenvolver a performance, porque a Mamba também tem o perfil de ser uma f(r)esta de uma festa, um lugar de luta pela liberdade e sexualidade – um espaço para protagonizarmos os processos.
Como você vê a relação do universo eletrônico com o corpo da mulher? Você sente que é um ambiente que pode possuir uma visão um pouco conservadora?
Acho que as pessoas estão mal informadas, porque esse universo eletrônico conservador é o de Ibiza e dos clubes. O ambiente mais libertador, que também existiu como uma contracultura dentro dos clubes, é das gay, das sapatão, das preta, é da galera que está ligada nas mulheres. Um lugar essencialmente de libertação e de luta, essa dimensão é muito clara para nós. Conseguimos ser reconhecidas. É óbvio que o que a gente faz é cultural, seja nas ocupações, seja na rua. Esse é um papo cômodo, porque, para mim, o ambiente de bandas, do qual participei quando estava na ECA, era onde sentia que não havia espaço. Ambiente heteronormativo, machista e coloca as mulheres na única possibilidade de ser uma cantora, fofinha, bonita, bem afinada, comportada. Isso é a maior violência. Se quer falar sobre indie, vamos falar da Gaivota Naves, Ava, Maria Beraldo. Tem muitas mulheres fazendo, sim, de acordo com a personalidade de cada uma. E estão imprimindo opiniões quando chegam nos lugares, estão falando sobre privilégios, de abrir mão deles e de ocupar espaço para mais gente. Quem ainda não parou para olhar essa galera – que não tem um grupinho específico – vai ficar em um meio fazendo canção que já tenha ido. O eletrônico tem essa potência da máquina incansável. A violência não é incansável? O fascismo não é incansável? A gente também, nem dormimos, cara. Quando o Doria disse que acordava cedo para ir para a prefeitura para os vagabundos falarem qualquer coisa. Digo, olha aqui querido, a gente nem dorme. Vocês estão em maus lençóis.
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Você falou da Maria, onde você dirigiu o clipe de Tenso, do Cavala. Entre vídeo, performance, música, tem algo que você se identifica mais?
Luto e reivindico minha vida de artista. Minha formação desde a ECA foi um exercício de frustrações e de aprender que o mundo é muito maior, mas de lutar para aquela universidade ser pública, no mínimo. Além dessa parte mais política, sempre busquei, não pela vida da academia, sair desse fordismos – e o mercado não comporta pessoas com um só saber. Sempre tive que ser videomaker, trabalhei sete anos como montadora – que amo! Ao mesmo tempo, na ECA, escapei para o maracatú, fui atrás da Fanta Konate, que ensina danças da Guiné, participei do Teatro Oficina, fui atrás do Tadashi Endo – que é um cara legal do butoh, que está vivo e sempre vem ao Brasil. Fui para o Living Theatre quando eles estavam aqui. Sempre fui abrindo mão de ter uma formação plural, de ler e estudar, para fazer as coisas. Minha formação é outra, é do fazer. Sentir e ter sensibilidade. Quando chegou o momento de lançar Gasolina, esse clipe já existia na minha cabeça. Foi um sentimento de fazer com tesão. Ele custou 500 reais, que foi a gasolina do carro e o metrô meu e do Loïc para ir no ato.
Lembro de estar no colegial e a galera falar que viu o show dessa mulher, Angela Carneosso, e todo mundo em choque com a apresentação. Quando o corpo passou a ser algo fundamental na sua expressão?
A minha questão com a nudez sempre foi sobre integridade. Só vou me entregar se for de carne e osso, se for por inteiro. Pois bem. Visto que a premissa, quando se trata de uma mulher na música, nunca é de instrumentista, é de uma cantora. “Ah, o que você toca além disso?”. Ué, além do terror, toco minha voz, querida. Quando comecei a cantar e criei a Angela, que é uma referência à Mulheres de Todos, do Sganzerla, me
coloquei dessa maneira. É uma questão de exposição, não é um lugar confortável, é uma desconstrução da beleza, das musas, não me interessa ser uma estátua engessada. Teve essa dimensão, mas principalmente é isso: se a premissa é que somos objetos, a gente é um pedaço de carne, pois bem. A premissa está dada, qual é a próxima questão? A objetificação da mulher e do corpo é sempre permitida e legalizada, então, por que a nudez não é permitida? Não temos esse direito, então, quando você tem esse corpo autônomo, independente, livre, você é punido. Minha nudez não é sensual, estou lá cru, peladona, pá. A xoxota e o peito estão lá. Minhas espinhas na bunda, o cú, suvaco, está tudo lá. A recepção sempre foi boa, desde o começo de 2011. Sempre das minas, porque os caras nem conseguem falar nada. A presença das mulheres foi essencial, e a presença das manas trans que se aproximaram pelo eletrônica e pela Maamba. As manas trans e pretas que colaram com a gente, principalmente com a criação do Coletividade NÁMÍBIÀ, foi essencial para a gente enquanto pessoas e como festa. Usava a nudez na Angela, meu projeto solo, mas achava que não ia colocar no começo do Teto. A Alma Negrot, Elvira, Valentina, colocaram a questão da performance, seja das drags ou trans, do corpo e do feminino em evidência. Olhei para essa composição de demônias e pensei “agora é o momento do xoxotão”. Está faltando úteros em cima da mesa discutindo essas questões. A Linn, a Jup e a Badsista são super headliners. Mulheres muito inspiradores e ficamos apaixonadas umas pelas outras nesses últimos dois anos, proximidade com a Bandida, enfim, todo mundo – realmente um privilégio ter criado esses vínculos. E foi essencial para colocar meu corpo de volta em evidência. Mas onde mais sofri repressão foi na arte, no Masp. Fui convidada para tocar no aniversário de 70 anos do museu, estava com um figurino mais coberto e vieram falar que não poderia subir no palco uma hora antes do show. Pô, queima essa porra toda de acervo rococó, de mulher pelada e renascentista. Vou subir como eu quiser.. Cantamos Gasolina e cortaram. Enfim, é uma instituição privada por mais que seja o Museu de Arte de São Paulo. Arte é para poucos. A gente tenta lutar na contramão disso.
Dei uma carona para a
e a gente escutou algumas mĂşsicas , da Amy Winehouse. de Texto Isabela Yu Foto Naira Mattia
A
Rafaela Andrade, Badsista, tem 25 anos mas está no rolê há quase dez. Produtora musical, DJ e compositora, já trabalhou com alguns dos nomes mais interessantes da cena nacional: Lei Di Dai, Linn da Quebrada, Jaloo e se prepara para lançar o trabalho solo da performer Jup do Bairro. Além de alguns EPs e tracks soltas, todos estão disponíveis no Soundcloud da artista. Nascida em Itaquera, começou a cantar em barzinhos (algumas músicas de Winehouse faziam parte de seu repertório) quando estava no colégio para conseguir dinheiro e também teve uma banda emo, na qual costumava compor no violão. A música eletrônica veio depois, quando estava na faculdade e passou a frequentar o mundo dos sets. Chegamos para a entrevista no dia e no momento em que a Bad estava preparando um set exclusivo para a importante (e gringa) Fader. O hemisfério norte está com os dois olhos arregalados na movimentação brasileira. Só neste ano, a Linn fez três turnês europeias com shows lotados nas capitais. E esse movimento só está crescendo. A dupla Bad e Linn também é a responsável pela versão nova de Better, que faz parte do disco de remixes da Kelela, ao lado de nomes como Princess Nokia, Junglepussy e Kaytranada.
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Foi uma migração gradual?
Como estão os shows fora?
Às vezes, batia um desespero porque não dava para pegar um Uber e voltar para casa. Principalmente na França, um lugar que não curti muito, achei blasé. Nós, enquanto pessoas/turistas, recebemos olhares estranhos. Berlim foi legal, porque tem gente de muitos lugares do mundo e o pessoal vai na brisa do rolê. Fiquei in love por Londres, a tristeza é que é caro, mas é bem São Paulo. Vários rolês de eletrônico, jungle, reggae… Agora preciso terminar as coisas dos outros que tenho que fazer – tenho até uma trilha de uma série. Acho que preciso ir para outro lugar, me enfurnar em uma caverninha. Queria cantar de novo, porque larguei isso quando comecei a fazer música eletrônica. Passei anos fazendo voz e violão, quase cinco anos em barzinhos.
Passou a época do violão?
Hoje, achei uma pasta cheia de letras que escrevi, era muito novinha. Agora, nem sei mais se sei compor. Achava meio nada a ver tudo o que escrevia, mas gosto de fazer arranjo e de tudo que vai por trás. Estava muito imatura quando a Linn me chamou para fazer o Pajubá, mas foi uma experiência super válida. Estou mais ligeira e inteligente em visualizar melhor as coisas. Às vezes, o mais fácil é ir no keep it simple, porque dependendo de onde você quer chegar, isso pode ser um obstáculo. Ir para a Europa me trouxe um pouco de raiva do jeito em que as coisas são lá. Sempre morei em Itaquera e tive várias dificuldades aqui que já foram resolvidas lá. Mesmo quem é mais pobre tem uma vida mais fácil, tem tempo livre. Você pode receber bolsa para ser artista em Berlim. Comecei a tocar em barzinho, porque era um jeito de fazer grana sem ter que me curvar em empresa para chefe babaca e também estava na escola. Tocava de quinta a sábado para estudar durante a semana. Não ganhava nada, era tipo esmola. Comecei a tocar com 14 anos até o fim de 2015, quando as minhas coisas começaram a se veicular sozinhas.
Lembro que a galera do Ensino Médio ficava falando que ia fazer isso ou aquilo e pensava que não queria nada do que eles falavam. Quero trabalhar com música, então consegui uma bolsa do ProUni na Anhembi Morumbi para estudar Produção de Música Eletrônica, na Mooca. Foi onde aprendi que poderia fazer tudo no computador, sem precisar ir a um estúdio com cinco pessoas e ter que gravar tudo aquilo – essa foi a hora em que mergulhei mesmo. Sempre fui nerd de videogame, era a única menina que jogava Counter Strike na lan house com os moleques. Misturar tecnologia e música foi perfeito para mim. Ainda tem muita coisa para aprender, percebo conforme vão aparecendo os trabalhos, sabe? A falta de conhecimento técnico. Hoje em dia tenho condição de pagar um curso, mas antes era na base de tutorial, perguntando e indo atrás sozinha.
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BAD SISTA
Você tem uma dinâmica diferente quando está trampando no som de outra pessoa ou fazendo suas próprias coisas?
Depende de como estamos fazendo. Gosto de sentar do lado da pessoa e fazer. Se canta, não é todo mundo que tenho uma química da hora. Já fiquei mais de três horas em estúdio para gravar uma música com uma MC. Já sabia mais daquilo do que ela, de tanto que regravamos. Sou um pouco chata, falo que não gosto e gravamos de novo. Tem pessoas como a Linn e a Jup que só vai. A diferença é que gosto do trabalho delas, então é mais fácil. Não é que vamos acertar na primeira, mas não vamos passar quatro horas em uma música. Às vezes, faço uma que parece que tem três dentro, tanto que vou desenvolvendo a ideia e cada parte dela vira uma coisa diferente. Quando fazia teatro, falavam “vamos inundar, para depois enxugar”. Estou mais certeira depois Quando você percebeu que tinha esse poder de começar a dar mais rolês eletrônicos e entenna pista? der a simplicidade. Hoje em dia, vou tirando e Hoje em dia, quando paro para pensar nas coisas, polindo, porque música de pista é meio paia de já escutava psy trance com 13 anos. Aquele Sumficar complicando. Você percebe que controla mer Electro Hits também, que é o mais mastigaa hipnose da pessoa. Dependendo do som que do que tem. Comecei a sair com 15 anos em um colocar, faz o pessoal sair da pista ou pular. rolê de Itaquera chamado Plasticine. Entrei na Se colocar algo muito treta, como dubstep do faculdade e passei a ganhar os vips que o pessoal Skrillex, acaba sendo muita coisa para entender. meio playboy me dava. Tive banda de rock, Acho que é uma música para escutar com ouvidepois fui para o barzinho. Teve uma época, em do técnico. No rolê é muita coisa para entender que fui em muitos Soundsystem, porque era de quanto tá doido. Uma mina DJ gringa publicou graça e democrático. Você via a brisa da galera no Twitter algo como “não adianta você querer nas músicas que os seletores tocavam. Dessa fazer um rolê da hora, se você não é rolezeira”. minha transição do sound comecei a escutar Você tem que sair para ver a galera tocar e entenmuito trap, em 2014, tanto que hoje em dia não der como a plateia se comporta, para saber como consigo mais ouvir. Estão tentando tirar leite de o pessoal vai reagir. Experimentei muito na Eupedra, daqui alguns anos a gente traz de novo ropa, porque ninguém entendia. Era engraçado reinventado, mas deixa morrer. Tem uma menitocar funk e ver a galera dançando durona. na chamada Nathy Peluso, acho ela bafo. Não tem uma mina no Brasil que chega a esse nível, até tem, mas digo nível de vídeo, de flow… Você escuta o álbum dela e tem várias coisas pensadas, você não está fazendo música para arranjar briga dentro da cena, você é para falar de você e do seu redor. Cansa que as meninas daqui ficam nesse papo de ficar falando ou atacando boy, supera, sabe? Vamos falar de nós mesmas. Porque você não está fazendo música para outras minas, está fazendo para atacar os caras. Sua gasolina vai ser sempre os boys? Se você os tira, o que sobra? A galera fica muito presa ao que aconteceu no rap por aqui dos anos 90, do Sabotage e já deu. Quem tem o poder e equipamento são eles, sabe? Então, continuam fazendo a mesma coisa
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Conta sobre o coletivo Bandida?
sempre. Várias minas me procuram falando que queriam fazer algo comigo, mas acho que elas tem medo, porque não vou fazer algo que os caras já fazem. Se for para fazer isso, deixa eles fazerem. Se for comigo, vamos fazer uma brisa tipo Kelela. Troquei ideia com ela no México e ela é muito minha vibe em relação à música e aos movimentos culturais, além de experimentar novos caminhos e texturas. Quando estava fazendo o Pajubá da Linn, falei que estava com medo de como as pessoas receberiam, porque não tem ninguém no Brasil fazendo isso. Sabe, tem aquelas bicha poc da The Week que vira e mexe ficam mandando “por isso que você não faz sucesso”. E a gente não faz a mesma coisa que a Gloria (Groove) faz, ou a Pabllo ou a Lia Clark. Falava que queria ditar o que aconteceria, de ser um disco que foi lançado no ano passado mas que se mantém atual daqui dez anos. A velocidade do Brasil é um pouco mais devagar, não sei o que acontece, parece que a galera tem medo da rejeição. Foi esse medo que sentimos. A gente queria nos agradar, que não fosse pop, um CD para quem quer escutar coisa nova. Para onde você acha que esse som vai?
Ele está tomando proporções maiores do que a gente pensava. É a terceira vez que a Linn está indo para fora neste ano. A galera não entende português, mas saca a vibe da música e das minas no palco. Para mim, o que tem mais de visionário acontecendo na música daqui é o funk. A música periférica é muito visionária. Os bailes não tem medo, eles querem ser diferentão, fazer o novo beat que todo mundo vai copiar.
Comecei a receber muitos convites e mensagens de pessoas do Brasil todo. Passei a viajar e meu cachê aumentou, isso em 2016. Não trabalho sozinha, a Badsista virou uma empresa por si só, nunca coloquei grana para divulgar. Conforme ganhei notoriedade, muitas minas foram chegando. Sempre fiquei a postos para tirar dúvidas, aprendi muita coisa sozinha, mas não acho que é necessário elas passarem por isso para aprenderem também. Muita gente pedia conselho – indicação, quem tocar, etc. Eu tocava e ganhava 500 conto em uma hora de set, outras meninas faziam o mesmo e tiravam 150. Você não tem que sair de casa por 150 porque é o seu trabalho, você não faz aquilo apenas aquela hora. Preparo meu set, o que você faz com 150 conto? Ainda mais as meninas da quebrada. A Bandida surgiu para outras meninas periféricas começarem a usufruir do que eu estava passando, porque não fazia sentido chegar lá e ficar sozinha. Ficaria triste se colocassem um boy, mas não outra mina, já abri mão de tocar para dar espaço para uma mina que precisava mais do que eu. E quero que tenha outras meninas como eu. O cachê tem que ajudar a comprar outras coisas, antes ficava mais estressada do que criativa, porque o computador travava muito. O corre agora é passar o conhecimento para frente. O babado é esse: democratizar o conhecimento. A questão não é me sentir mal porque vai ter mais competitividade, é legal ter uma mina que seja tão boa quanto eu, porque dá mais vontade de deixar o bagulho da hora e estudar mais. Agora estou na brisa de abrir o caminho para as minas na Europa, se não, a gente fica penando eternamente que só os boys tem a grana e vão ter tudo. As coisas são difíceis para a gente só por falta de grana,então vamos atrás de ganhar isso, dar um jeito de hackear os espaços. A gente não quer tirar a galera branca e rica do rolê delas para nunca mais tocarem. Queremos deixar mais equilibrado, seja na questão de gênero quanto de raça e classe. Porque é isso, às vezes um boy branco que toca mal para um caralho está no melhor horário da festa. E a mina que toca real acaba abrindo o rolê.
Essa é a hora que você entende o título, a Bad estava atrasada para um compromisso no Sesc Belezinho e ainda precisava chegar no Orfeu para uma oficina de mixagem em CDJ antes do fervo abrir – a gente foi tricotando e escutando um som.
“Não é um disco sobre mim, é construído por muitas ”
A imperdível estreia solo da musicista fala sobre identidade lésbica na era da intolerância. Texto Isabela Yu Foto Naira Mattia
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uave, mas potente. Canções com espaços vazios e até mesmo paralelos com a MPB. A instrumentista e compositora Maria Beraldo, que também faz parte dos grupos Bolerinho e Quartabê, escolheu o ano, infelizmente, certo para lançar seu primeiro disco solo, Cavala. Se vivemos na era da intolerância escancarada pela política, a resistência também é forte e ganhou endosso vigoroso com as 10 músicas da artista – que exploram os limites entre o pessoal e coletivo, na experiência de uma mulher que transborda as expectativas sociais. A vivência de Maria reverbera em tantas outras que se identificam com o seu trabalho. O álbum tem produção assinada pela musicista em conjunto de Tó Brandileone e saiu pelo selo Risco. A compositora também tem extenso currículo como clarinetista e colaboradora da música nacional, trabalhou no novo disco da Elza Soares e até mesmo na releitura da ópera-rock Clara Crocodilo, de Arrigo Barnabé. Foi o próprio músico irreverente que despertou o canto em sua vida: “Ele não só me colocou para tocar, como para cantar séries dodecafônicas”, relembra. Quando era criança, estudou na escola de música da mãe, em Florianópolis, dedicando-se ao clarinete, bateria, piano, cavaquinho, para completar posteriormente com o clarone, violão e guitarra. “Tudo o que está no meu disco é letra e música na mesma hora”, explica sobre a composição do trabalho, feita inteiramente na sala de seu apartamento recheado de referências musicais. Se para algumas pessoas Maria não deveria falar sobre sua vivência, seja nos shows ou nas redes sociais, não entendeu a urgência de seu desabafo. “Enquanto não ouço sua voz, não sei dizer se é um homem ou uma mulher”, fala na sutil Da Menor Importância. “Gatas sapatas, mães de bebê, tão sexy com seu sling”, brinca na bem humorada Gatas Sapatas. E não tem coisa que fragilize mais um reaça do que uma mulher se expressando e concretizando seus desejos. Imagine ainda com a qualidade de Cavala, um disco lançado em 2018 para servir de lição – de composição, intenção e realização – para a posterioridade, aposte nisso.
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Quando você chegou nessa casa?
Há três anos, mas é uma relação meio recente. Mudei para cá porque percebi que precisava ficar sozinha, o que tem a ver com o meu trabalho solo. Dividia a casa com 10 pessoas na Unicamp. Morei na mesma casa até os 17 anos, em Floripa. Depois de Campinas, vim para São Paulo e fiquei com a minha irmã. Comecei a sentir essa necessidade de entrar na concha e ter meu espaço. Componho na sala, é super silencioso.
Tem fase que você gosta mais de instrumentos específicos?
A bateria e o clarinete foram meus preferidos até os 17 anos. Escolhi o clarinete para estudar na faculdade. Mas, atualmente, o que tenho mais feito é compor, então fico no violão e na guitarra. Tem o cavaquinho também. Clarinete e clarone como instrumentista e violão e guitarra para compor. Comecei a estudar música antes da faculdade, como a flauta doce desde os seis anos. Minha mãe, que é saxofonista e flautista, abriu uma escola de música e pude estudar todos os instrumentos – me sinto muito privilegiada. Fiz musicalização, entrei no coral, fiz aula de piano, bateria… O hábito de estudar um instrumento sempre esteve na minha rotina. Comecei o clarinete aos 13. Minha mãe me preparou para o vestibular e a Unicamp foi muito importante. Tenho algumas pessoas que se destacam, uma delas é a Regina Machado, professora de canto e o Mario Campos, que é professor de arranjo. Eles foram os que mais me influenciaram e conduziram para o caminho que estou hoje, focam na escuta para o aprendizado da música. A faculdade foi um espaço para abrir minhas escutas. Minha mãe era jazzista e meu pai ouvia muita música brasileira – Chico, Caetano. Esse era meu universo. Fui para lá e passei a ouvir rock. Ainda sou meio ignorante, mas pensava “olha, música eletrônica, rock… existe isso”. Até meus 17 anos, ficava ouvindo Hermeto Pascoal – era viciada. Isso já fez a ponte com São Paulo, é duro você vir do nada, então já estava trabalhando antes de mudar. Vim quando o Arrigo Barnabé me chamou para fazer parte da banda dele, foi bem decisivo. Ele marcou minha vida, por ser um artista incrível, com propostas e discernimentos estéticos definitivos.
E como foi essa época?
Estava terminando minha dissertação de mestrado e me mudei para São Paulo. Primeiro fiz o trabalho das canções do Hermelino Neder com o Arrigo, depois ele me chamou para montar o Clara Crocodilo. A banda era eu, a Maria Portugal, a Joana Queiroz, a Ana Caetana Sebastião, o Paulo Braga, o Mario Manga e o Arrigo. Eu os estudei na faculdade. São a história da música e, ao mesmo tempo, o presente. E ele tem uma música muito particular, por trazer coisas da música erudita, da música dodecafônica, que é uma coisa muito complexa para os nossos ouvidos – uma sequência de notas em que você não pode repetir nenhuma. Ele não só me colocou para tocar, como para cantar essas séries dodecafônicas. Ir lá na frente e fazer coisas que foram construídas com a Suzana Sales, a Vânia Bastos, que são cantoras que admiro muito. Fui fazer aula de canto com a Regina Machado, que já tinha sido minha professora. No processo de desenvolver as coisas técnicas para conseguir dar conta do repertório, a Regina quis achar outras para eu cantar, mas não encontrava nada que fizesse sentido para mim. Ela entendeu e me deu cinco discos e disse para achar o que mais me movia. O primeiro deles era o Joia, do Caetano – parei nele, não escutei os outros quatro. Fiquei seis meses escutando e tirando todas as músicas, é um disco super minimalista. As estruturas são pequenas e concisas. Disso, fiz a primeira composição, que foi Da Menor Importância. Ela foi composta no universo do Joia. Descobri que é uma coisa que faz muito sentido, fui ficando com vontade de fazer mais, de montar um show, porque a música não acaba no compositor, ela começa na gente e tem que ir para algum lugar. Comecei a fazer o show e me deu a vontade do disco. Chamei o Tó Brandileone para produzir, mas acabou que fizemos juntos porque desenvolvemos uma maneira muito simbiótica de trabalhar. Fizemos o disco em um mês no estúdio, de forma minuciosa, partindo principalmente por uma busca timbrística.
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MARIA BERALDO
Você foi costurando as referências no disco?
Faz pouco tempo que pensei em fazer o disco. Não foi algo como “um dia quero ter um álbum solo”, nunca pensei isso. Foi no momento em que comecei a compor e a cantar. Descobri que cantar era querer dizer alguma coisa. Tem a relação com estudo, acho que fui criada assim. Minha mãe e meu pai sempre estavam estudando. Fui nesse caminho, comecei a escutar coisas com esse foco. Foi super difícil achar referências para esse disco, não tinha nada que quisesse soar. Comecei a encontrar coisas perto do rap, que tem esse vazio. As estruturas no meu disco tem um sentido de fractal: tanto na identidade visual, no figurino, nas letras, na composição e na produção. A mesma estrutura no fundo. São poucos elementos, a coisa do menos. Sou eu sozinha no palco. Estava ouvindo muita coisa nesse caminho do vazio, do rap, do grave com vazios, e esse vazio também é pesado. E que está na minha letra, na minha saída do armário em muitos sentidos, não só da sexualidade. Encontrar minha identidade. E esse processo, na maioria das vezes, é solitário. Ainda mais sendo mulher lésbica, é um desolê total. Não tinha nenhum exemplo de mulher lésbica na minha infância, que fosse assumida e tudo bem para ela. Quando fui me percebendo, se ninguém assumia, então era um ET. É muito solitário. Descobri que era apaixonada por umas amigas e elas por mim, mas a gente não viveu isso, porque era proibido e você acha que isso não pode acontecer. Descobrir quem eu era foi uma coisa muito solitária. Ao mesmo tempo, por mais que tive uma criação homofóbica, me deu condições de sair do armário e dar a volta por cima disso. Fui reprimida em uma criação que visava a liberdade. Essa densidade está nas estruturas. Encontrei um pouco disso no rap, tem um disco específico do Clipping que tem sons maravilhosos. Tem a coisa da música falada, a minha música não é assim, ela tem melodia. Tudo vai se misturando. Comecei estudando clarinete, então sou melodista. O rap é uma música política, sempre tem essa força. Pessoas que têm
coisas para dizer, que não são só flores. Comecei a conhecer também a música pop. O mais pop que conhecia no meu mundinho de música brasileira era Beatles. Um outro disco que foi muita referência é o Anti, da Rihanna. Só conseguia escutar esses dois. Quando buscava a sonoridade do meu disco, só conseguia escutar na sonoridade que eu queria – até meio obsessiva. Foi um processo de pesquisa. E tem toda a minha bagagem que está lá. Assim como os vazios, os graves e a agressividade. Acho engraçado, mas a Laura (Diaz), que vocês entrevistaram, me acha um doce. São agressividades diferentes, nos identificamos identifica muito, cada uma tem uma via. Nos conhecemos no primeiro show que fiz, é meio simbólico, mas a gente nunca tinha se falado.. Saí do show e ela falou “foda-se os Beatles, suas músicas são foda”. Ao mesmo tempo, temos o mesmo ímpeto por vias diferentes. Ela dirigiu meu clipe de Tenso, já fizemos uma apresentação em duo… Teve muitos momentos intensos com o lançamento, me expus muito. Contei minha vida inteira no Catarse, mas foi isso, ou eu faço ou não faço. O que me fez compor foi falar das coisas que precisava. Nesse período, pessoas começaram a falar “por que você fica falando tanto que você é lésbica?”. Isso é muito forte porque é uma luta política desgastante. A Laura é uma pessoa que eu ligo quando fico triste e que tem uma postura política que confio muito. E isso está na arte dela, se entregar de carne e osso. Me identifico muito. Como o nome Cavala surgiu?
Ele vem da música, que tinha feito para uma menina que é minha amiga e fiquei uma vez na época. Ela estava criando um espetáculo que chama Égua. Quando voltei para casa, escrevi uma música mas não quis colocar égua, escrevi cavala. E ela era só a menina, mas passou a ser eu também. É uma palavra muito forte, porque tem uma transformação nela e tem infinitos sentidos. Tudo muito pouco planejado, mas tem essa coisa da questão de gênero nela e carregar
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a força do cavalo, que é atribuída aos homens Ao mesmo tempo, o cavalo é a força, que o leva mas, na verdade, é roubada das mulheres. Porque até a guerra, sendo a mulher que o espera em também temos todas essas coisas, só que a gente casa depois disso, ambos fazem parte dele. O que é criada de uma forma, então, a cavala devolve me leva a fazer o que estou fazendo, o que me fez essa força e agressividade. Nem sabia, mas o dizer algumas coisas parte da necessidade de falar cavalo é quem recebe as entidades do candomque está tudo errado. E continuar a luta dessas blé. O disco virou uma coisa, ao mesmo tempo, mulheres, inclusive da minha avó, que construiu virou uma persona. Uma via de comunicação uma possibilidade melhor, de que eu não preciminha com sei lá o quê. Sinto que também não sava me matar. Não sabia que nome dar para essa é só minha, porque foi um disco que nasceu do música, foi uma coisa muito espontânea. Não contato com as mulheres em minha vida. Tem quero dar lição de moral em ninguém, só que, música para alguém que tive um relacionamento para mim, é assim. Acontece que é diferente para amoroso, para minha sobrinha que vi nascer, nós, que vivemos em outro momentos e dizemos uma sobre a morte da minha avó, da minha mãe, outras coisas. Pensei que Maria é o meu nome e da minha família. Tem a saída do armário, meus faz sentido com o fato de estar contando a minha relacionamentos, identidade de gênero, sexualihistória. Todo mundo tem uma tia, uma avó dade e tudo isso. Não é um disco sobre mim, ele ou alguém na família que se chama Maria. Na é construído por muitas mulheres. Ele é indivimúsica, Maria sou eu e não sou eu. De novo, essa dual, mas um indivíduo que fala muito sobre seu coisa do indivíduo que é coletivo. Helena é para grupo. Não existo sozinha. Mesmo o fato de me a minha sobrinha, que vi nascer. Fui no parto da sentir sozinha, fala do grupo em que estou. Essa minha irmã para cuidar da Cecília, minha afilhalógica do fractal é uma das mais inteligentes que da, que é filha dela também. A transformação da já inventaram: cada parte fala do todo, sempre. minha irmã em mãe e minha transformação em Conversei com meus amigos ontem, falaram tia estão totalmente contidas no disco, todas as sobre a proporção de moléculas que compõem mulheres a minha volta fazem parte dele. o corpo humano é igual no universo. Então, assim, não existe coisa isolada. E a Cavala fala do Quando você se descobriu feminista? Minha saída do armário foi se ligando ao coletivo através do individual. feminismo e o que fez me descobrir feminista Alguns títulos de músicas são nomes, essas foi o fato de nós descobrirmos que somos todas pessoas existem? feministas, é uma coisa coletiva. Acho que as Maria é uma conversa com Para Todos, do mulheres estão se colocando mais, se comuniChico. Nessa música, ele fala da genealogia dele cando, denunciando coisas. Foi a partir desse e são só homens. Estava na casa dos meus pais no movimento, de uns cinco anos para cá, percebenverão, lavando louça e cantando essa música – eu do que é desse jeito que precisamos nos colocar. amo Chico. Pensei, cadê as mulheres? A mãe, Foi uma questão com o disco, de achar minha a irmã? Fiquei com vontade de contar a minha identidade e isso está ligado ao que preciso dizer. história através das mulheres da minha família. E, na verdade, é que preciso existir. Todas as Sinto que sou minha mãe, sou minha avó, que lutas de visibilidade é pelo fato de que a gente quase se matou quando eu estava na barriga da existe e as pessoas querem fingir que não. Não é minha mãe, um fato que descobri agora – comnada muito complexo. Já me perguntaram “por pus quando havia acabado de saber. Lógico que que essa luta é tão importante?”. Simplesmente sou feita da morte da minha avó, assim como ela porque quero existir sem correr os riscos de ser é feita da mãe dela… Estamos juntas construindo mulher, lésbica… esse caminho, porque precisamos. Durante a A luta pela reprehistória, muitas mulheres lutaram e foram exclusentatividade – e ídas, mortas, simplesmente por existir. Tem essa visibilidade – é coisa da cavala, que as mulheres sempre serviram fundamental. O os homens. Estava conversando com a Carol machismo, racisBianchi, atriz e diretora (do espetáculo Lobo), ela mo e homofobia falou que o homem sempre montou no cavalo, são covardias por quando digo que sou cavalo, também quero tentarem a anuladizer que nenhum homem vai montar em mim. ção da existência O cavalo e a mulher sempre serviram o homem. de alguém.
MARA VILHOSO Radicada hรก quase dez anos nos Estados Unidos, Samira Winter abandonou a fria Curitiba para se jogar no exterior.
Texto Isabela Yu Foto Angel Aura
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precio distorções e músicas tristes ou deprês, porque vivenciei muito essa vibe crescendo. Lá tem essa vibe meio dark”, explica Samira Winter, sobre o ambiente que viveu durante os anos de colégio, no Paraná. Filha de uma brasileira com um americano, mudou-se para Boston aos 18 anos, para fazer faculdade e nunca mais voltou – pelo menos para morar, pois costuma fazer tours nacionais quando vem passar o fim do ano na casa dos pais. Em especial, esse ano tem sido cheio de novidades para Samira, que lançou dois discos, fez a primeira turnê europeia e começou a se interessar mais profundamente por tarô e astrologia. Taurina, com ascendente em gêmeos e lua em peixes (há!), sente uma ligação forte com a natureza e cultiva um enorme interesse por realismo mágico. Claro, qualquer astróloga explicaria todas essas ligações na vida da nossa entrevistada, mas vamos deixar sua música falar mais alto. Em Estrela Mágica, seu début ao lado do músico Glenn Brigman, lança o projeto Winter & Triptides, com nove faixas em português – algo inédito, já que costuma misturar os idiomas em suas composições. “Estávamos em Los Angeles, mas sonhando com o Brasil”, explica. A sonoridade também é diferente do que seus ouvintes estavam acostumados, pois as faixas foram gravadas em fita e gestadas durante dois anos. O trabalho é distribuído pelo selo OAR (vinil e CD) e pela Burger Records (cassete). Já Ethereality, lançado em abril pela Balaclava, marca o segundo álbum regado a dream pop, shoegaze e indie. Como Winter já havia lançado Supreme Blue Dream, em 2015. Ambos trabalhos têm inegavelmente a cara da compositora. Fragmentos de seu universo psicodélico e nostálgico, em que a beleza pode aparecer entre névoas densas ou em um dia ensolarado – depende do seu humor. Samira admite que é volátil e sensível em relação às mudanças de estação, de paisagem e até temperatura. “Emocionalmente, não vou por muitos altos e baixos aqui (Los Angeles), porque o clima não deixa, o sol está sempre lindo”, divide. Se vivemos um período dark (em todos os sentidos), podemos respirar fundo e lembrar da quantidade de música boa que existe no mundo, capaz de desbaratinar qualquer derrota. Sem querer parecer redutiva, mas o trabalho da cantora tem esse elemento familiar, sejam as letras sobre sentimentos comuns, situações cotidianas ou lembranças de outros tempos.
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Qual é a diferença em lançar um projeto em português?
Sempre escrevo em português, mas separava da Winter. Estava escutando bastante sons como Erasmo e Gal, em uma vibe bem anos 60 e 70. Acabei gravando com o Glenn de um jeito tranquilo, escrevia as músicas e nos encontrávamos para gravar em um ou dois dias. Passava mais dois meses e surgia outra. Foi por diversão. Achamos que seria legal deixar com o nome das nossas bandas, porque sinto que as pessoas que já curtem a Winter vão gostar das músicas novas.
Há alguma preferência linguística?
Minha prioridade é a melodia. Começo por lá e vou estruturando com as progressões que curto. Geralmente, já tenho alguma coisa da letra, mas normalmente ela acontece por último. Considero que sou muito mais uma compositora do que cantora. Isso é complicado, no Brasil falam que sou “a cantora da Winter”, mas me vejo mais como compositora, guitarrista, artista, líder da banda. Isso é o que eu mais gosto de fazer: compor. Normalmente, volto bem inspirada das turnês, ou quando estou no Brasil e não tenho tanta responsabilidade.
Quando você descobriu que poderia fazer o que quisesse?
Escrevi a minha primeira música aos doze anos, na aula de música, mas já estudava piano desde os nove. Fiz também aulas de violão e guitarra por muito tempo. Tive uma banda cover aos 13… Sinto que sempre gostei de música, fazia aulas de dança, gostava de me apresentar e da sensação do palco. Saí de casa com 18 anos, em 2009. Cresci com minha mãe falando que me amava e que era para eu ficar. Não que ela fosse contra, mas tem o lance do acolhimento da cultura brasileira. Meu pai falava que teria que sair para a faculdade. Não tinha muitas opções.
As turnês vieram muito depois?
Sim, meu sonho era ter uma banda. Quando tinha festa de aniversário, meu pedido era sempre “quero ter uma banda”. Só que era difícil em Curitiba, ainda mais sendo menina. Difícil se encontrar, achar sua voz, que estilo você quer ter, sua identidade artística. Sair de casa me ajudou muito. Comecei a fazer tour quando me mudei para Los Angeles, em 2014, tinha 24 anos.
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Você acha que explora outras facetas quando não está compondo para a Winter?
Em questão de estética e linguagem, o que te instigou?
SAMIRA WINTER
Sinto que é uma coisa minha de querer classificar. Mas para quem está escutando, não importa essas diferenças. Acredito que o pessoal vai curtir Estrela Mágica, sempre falam para produzir mais coisas em português. Então, tive o insight de que a Winter sou eu, minha trajetória, minhas experiências e é a maneira como eu vejo o mundo. As fases, o jeito que me expresso, as coisas de que gosto… Não preciso me enquadrar em um estilo de música. Sou brasileira, mas gosto de música psicodélica e de cantar suave. Também não dá para pensar nas outras pessoas, em como agradá-las. Para mim, não tem graça, não poder explorar o diferente. Estrela Mágica fiz pensando no Brasil, inspirada por aí e pela música brasileira. Já Doce Violeta foi pensando nos Boogarins, estava também escutando bastante os discos da Gal e Lugar Comum do João Donato. Acho que português é uma língua mais poética, há muitas possibilidades. Curto músicas que lembram a natureza, tem esse lance de intuição… Sinto que a natureza brasileira é muito linda, sei que é clichê dizer isso, mas consigo me conectar com essa beleza. A minha trajetória na música é ver a beleza no mundo e também tentar criar a beleza. Isso não precisa ser necessariamente feliz, ela pode ser melancólica e sentimental. Curto muito essa estética do mundo – realismo mágico. Então, fui escrevendo músicas nessa onda. Minha mãe
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Minha prioridade é a melodia
cantava duas delas para mim quando eu era criança, em que acrescentei e mudei algumas coisas – Raio de Sol e Ele Dorme. Esse álbum é do coração, da natureza, algo nostálgico. Ser nostálgico por algo que você nunca viveu. Você lê bastante coisa?
Sinto que o inglês pode ser muito objetivo, em algumas horas.
Há dinâmicas diferentes para os shows?
Fui para Curitiba fazer a capa do Marrakesh para a revista e senti uma vibe meio de cidade vazia.
Comecei meu ano lendo duas autobiografias. Uma foi a da Rita Lee, foi muito inspirador. Vejo Os Mutantes e a carreira dela, e entendo agora. Ela é bem revolucionária, introduziu a bateria eletrônica. E a outra foi a da Amanda Palmer (The Art of Asking: How I Learned to Stop Worrying and Let People Help). Também comecei a entrar em uma pira de astrologia e de tarô. Sempre gostei de ocultismo, mas tem que estudar muito. Acredito nas coisas que a ciência moderna não explica. Mas só nesse ano que realmente comecei a ler sobre isso. Comprei um tarô e passei a ler as cartas para mim, algumas músicas recebem influência disso. Com certeza é bem mais estreito e é cultural mesmo. O português é o brasileiro, tem jeitinho, é amoroso e carinhoso. Há tantas palavras para se expressar amorosamente. No inglês, nem tanto, porque é mais frio e a cultura é mais direta. A palavra awkward, por exemplo, quer dizer que as pessoas não sabem agir socialmente em algumas situações. Acho que por um lado é mais fácil por aqui, porque tem muito lugar para tocar. Tem show todas as noites. No Brasil, as coisas só funcionam de fim de semana. Mas gosto de tocar aí, porque sinto que dá para trazer um impacto maior na vida das pessoas. Elas estão muito presentes, escutando de maneira aberta, receptivas para serem conectadas. Gosto dos dois, mas o pagamento no Brasil é muito estresse, tem muita enrolação. Sentia isolamento quando era adolescente. Estudava em um colégio americano, mas queria fazer parte dessa cena musical e eu não conhecia muita gente que fazia parte dela. Comecei a frequentar shows, mas as pessoas são um pouco mais fechadas. Os invernos são super frios, clima londrino – aquele cinza. Sinto que aprecio as distorções, músicas tristes e deprês porque vivenciei essa vibe em Curitiba, lá tem essa vibe meio dark. Emocionalmente, não vou por muitos altos e baixos aqui porque o clima nem deixa, o sol está sempre lindo. Aquele estilo triste, preciso ir para Curitiba para sentir.
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O evento aconteceu entre 20 e 22 de julho, no Union Park, em Chicago.
foto Pooneh Ghana
COMO FOI A EDIÇÃO 2018 DO PITCHFORK FESTIVAL
Texto Fernando Dotta
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á mais de dez anos no circuito de eventos de música, o Pitchfork Festival é conhecido como um dos melhores festivais tamanho “médio”. Entre os artistas do lineup desse ano, estão: Tame Impala, Blood Orange, Lauryn Hill e Chaka Khan. Quem gosta de música alternativa – ou nem tanto – sabe que o festival é referência em programação e curadoria, e descobrimos que a organização também é algo a se invejar. Entre hipsters e fashionistas, o público misturado variou entre os três dias, graças a escalação equilibrada entre apostas indie e nomes consagrados. Por exemplo, Lucy Dacus tocou no mesmo dia que Earl Sweatshirt, ou uma apresentação da Kelela seguida de Girlpool. Tudo para fazer o público feliz, o que realmente aconteceu. O Fernando Dotta, um dos sócios fundadores da Balaclava Records, esteve lá e escolheu cinco shows inesquecíveis que rolaram no festival:
foto Pooneh Ghana
Vi um trechinho da australiana no Primavera Sound em 2014, quando ela era só mais um novo nome interessante dessa incrível onda de compositoras que, felizmente, vem conquistando espaço nos lineups mundo afora. No Pitchfork, além de ser atração principal de um dos grandes palcos da primeira noite, Courtney fez um show impecável com um repertório baseado em seu mais recente Tell Me How You Really Feel, mas incluindo ótimos hits dos discos anteriores, como Depreston e Avant Gardener. Nessa turnê, a banda incluiu como quarta integrante a também talentosa Katie Harkin (tecladista, guitarrista e backing vocals), que também integrou a formação da Sleater-Kinney nesses shows de reunião e traz um ótimo equilíbrio e energia para a banda ao vivo. Courtney é cheia de carisma e já é considerada referência entre a nova cena de jovens compositoras.
Se Kurt Cobain estivesse vivo, essa seria com certeza uma das bandas favoritas dele. Na minha opinião, foi a grande revelação do festival. O quarteto de Chicago liderado pela vocalista e guitarrista Miranda Winters entrega um dos melhores shows da atualidade. Um noise rock intenso, que remete às linhas de vozes e guitarras tortas do The Breeders (com quem frequentemente fazem turnês conjuntas), Sonic Youth no lado artsy e os vocais de Kim Gordon. Destaque também para James Wetzel, que, com poucas peças de bateria e um jeito meio único de tocar com velocidade e precisão, mantém a energia do show sempre alta e dá a liga necessária para o rock torto e caótico que o grupo executa com total domínio. Pena que tocaram cedo no festival, mas foram muito aplaudidos por quem estava presente aguentando a chuva insistente. Não deixem de ouvir (em um volume alto) o disco Nothing Valley de 2017.
foto Alexa Viscious
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foto Alexa Viscious
Donos de um dos melhores discos de 2017, o delicado Capacity, foram uma das atrações que mais levaram público no menor palco do festival. Há um grande hype da imprensa norte-americana em torno da Big Thief, que é 100% justificado com o belíssimo show que apresentam. Adrienne Lenker é uma das grandes vozes e compositoras da atualidade. Ela traz uma performance poderosa ao vivo que emociona e inspira por sua forma de cantar e de interpretar suas letras emotivas. O folk alternativo do grupo tem uma força semelhante ao que Elliot Smith transmitia para seu público e espero que cresça na programação de festivais mundo afora.
Um caso curioso de como uma banda se tornou tão grande de forma tão rápida. Para quem gosta de Bob Dylan, Bruce Springsteen e dad rock dos EUA, o show do TWOD é prato cheio pela perfeição na execução e a riqueza dos timbres. Os solos e riffs de guitarra de Adam Granduciel, líder do grupo e vocalista, deixam a todos na vontade de dirigir por horas na estrada em um dia ensolarado. Fecharam o Red Stage na noite de sexta-feira em grande estilo. Destaque pessoal para a camiseta do Slowdive no peito de Adam durante o show.
foto Pooneh Ghana
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PITCHFORK
Já tinha assistido no YouTube diversas sessões ao vivo da Julien Baker e ela nunca tinha realmente me cativado. Talvez por ser emocional em excesso ou por não ter uma banda junto que poderia dar mais energia aos sons. Uma apresentação no programa de Stephen Colbert da música Appointments me despertou a atenção e me levou ao show. Precisei ver ao vivo para entender o porquê ela se destaca entre tantas vozes femininas da nova geração. Baker acerta exatamente por ser excessivamente emocional ao sentir cada palavra que canta e grita. Ao criar sozinha loops de guitarras com várias camadas e um teclado que “faz cama” à melodia principal, as canções crescem inesperadamente e tornam o show especial pela forma com que ela consegue expor suas fragilidades com o público em um momento tão intimista. Em algumas músicas, Baker é acompanhada de uma violinista que torna a experiência ao vivo ainda mais intensa.
foto Kristina Pedersen
D OT TA D ESTACO U ALGU N S PO N TOS ALTOS E BAIXOS: ALTOS Cerveja oficial Goose Island por um preço acessível Distância entre os palcos excelente para quem não quer perder nenhum show Público respeitoso Sem filas nos banheiros (masculinos) Para quem é fã de merch de bandas, há uma incrível feirinha com vários expositores, entre eles selos e gravadoras indies, lojas de disco, pôsteres e acessórios Transporte fácil, com estações de metrô próximas ao Union Park Rica diversidade de gêneros, raças e estilos musicais ao longo dos 3 dias de festival As mulheres foram o grande destaque do Pitchfork Festival
BAIXOS Como o palco menor (mais afastado) recebia shows em horários simultâneos dos palcos principais, algumas vezes vazava som desses maiores e atrapalhava a experiência de quem estava nesse menor, prejudicando ainda mais os shows silenciosos Filas levemente demoradas nos caixas Tame Impala era claramente um headliner maior que o próprio festival, mas entregou o mesmo show que vem apresentando desde 2015, zero novidades Fleet Foxes não serve como headliner
"HĂ UM SENSO DE COMUNIDADE ENTRE AS ARTISTAS" MICHELLE ZAUNER
A diretora, compositora e cantora americana fez um dos nossos shows favoritos durante o Panorama Festival, que aconteceu no fim de julho, em Nova York. Texto Isabela Yu e Heloisa Cleaver
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e eu fosse você, não atravessaria, estão evacuando a ilha”, foi a primeira frase que escutamos quando tentamos cruzar a pé a ponte Robert F. Kennedy, que nos levaria até a Randall’s Island e, consequentemente, ao primeiro dia do Panorama Festival. O evento acontece desde 2016 na ilha anexa ao bairro de East Harlem, em Nova York. O desânimo bateu, porque chovia sem grandes tempestades, mas um palco desabou durante a apresentação de Isaiah Rashad no ano passado e a organização preferiu não correr o risco de novo. A gente tinha cinco dias em Manhattan para ver os shows, aproveitar um pouco da cidade e fazer entrevistas. O festival aconteceu entre 27 e 29 de julho, época de calor e algumas chuvas, mas nem isso barrou o público de meter os pés na lama, presente nos dois dias restantes.
Quem teve show cancelado por causa de chuva: Dua Lipa, War on Drugs, Migos, The Weeknd, Yaeji, Charlotte Gainsbourg e Father John Misty. Inclusive, encontramos Father John a noite e de óculos escuros no salão do Mission Chinese Food, talvez o restaurante de comida asiática mais escuro, barulhento e descolado da cidade. Não vamos ser injustas, toca Drake e a comida é ótima. Voltando ao festival, chegamos cedo para entrevistar a Michelle Zauner e aproveitar o dia ensolarado. Já posso adiantar: o segundo dia foi infinitamente melhor do que o terceiro, tanto por causa do line up quanto, do público. Como The Killers ousa ser headliner um dia depois do retorno de Janet Jackson? A irmã de Michael fez uma apresentação dançante e cheias de críticas sociais, com clipes de conversas entre supremacistas, embates da população negra com a polícia e relatos de violência doméstica.
Ainda sobre alguns aspectos bacanas, um dos pontos principais é que o lineup tinha muita mulher, mesmo. Além de Jackson e Zauner, presenciamos apresentações inesquecíveis de SZA, St. Vincent, Sigrid e Jay Som. O único boy desse dia foi o Gucci Mane, que esquentou o público com show cheio de convidados e de trap. Feliz de tocar em casa e com os pais na plateia, SZA desabafou sobre um término recente, cantou músicas antigas e também todas as suas favoritas de Crtl, disco début lançado em 2017. Imagina escutar Drew Barrymore no pôr do sol? Já St. Vincent veio diretamente do futuro para passar um recado para nós, pobres mortais, que não temos nossa própria marca de guitarra – cada música tem uma troca da peça de coleção limitada de 2 mil dólares – e ainda damos palco para homem. No show da artista, só há espaço para ela e para a multitalentosa Toko Yasuda – os dois músicos extras usam máscaras de pano e são contratados para acompanhar a dupla poderosa. Em questão de setlist, Annie Clarke se entrega da mesma forma para as faixas mais conhecidas e para aquelas nem tanto, com destaque para as músicas de MASSEDUCATION, seu último trabalho. Ela encerrou, claro, com New York.
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O terceiro dia foi uma leve decepção – o show do Odesza talvez ser o equivalente ao Alok gringo – com alguns pontos legais. The XX e David Byrne fazem apresentações repletas de hits e não me importaria de continuar a ver sempre. No caso dos ingleses, o trio estava encerrando o ciclo de dois anos de apresentações ininterruptas que fizeram para acompanhar o último disco, I See You. E dedicaram o grand finale à comunidade LGBT, em meio a outro pôr do sol com nuvens cor de rosa. Mount Kimbie e Helena Hauff são duas apostas dentro do espectro eletrônico – e de pista – da música, bem diferentes entre si, boas opções para ficar de olho. Inclusive a DJ alemã grava apenas com analógicos e já veio para o Brasil em fervo organizado pela Gop Tun.
Provavelmente, o The Killers faz o mesmo show desde Hot Fuss e fiquei surpresa que os festeiros americanos ainda são fãs da banda. O público do grupo de Las Vegas era muito diferentes da galera da Janet, a maior parte jovens de faculdade, que optam por looks neon e não tem medo da pele exposta – a educação também não é das melhores. Outros dois fatos inegáveis (pelo menos para a gente): muita vergonha alheia da pirotecnia da apresentação do Odesza, eletrônico farofa, assim como do folk hétero do Fleet Foxes. De resto, foi ótimo.
Um café com Japanese Breakfast Adoraria que fosse verdade, mas nós não tomamos um café ou fizemos uma entrevista tranquila com a frontwoman Michelle Zauner, compositora e fundadora do projeto nascido na Filadélfia. A gente tinha dez minutos com a artista, que apresentaria seus hits Road Head e Everybody Wants To Love You no palco ao lado do espaço para a imprensa, além de que estava mais de 30 graus na sombra. Antes do projeto solo, Zauner participou das bandas Post Post e Little Big League e está no circuito musical há mais de dez anos – começou a fazer shows aos 16. A artista voltou para a casa dos pais em 2013, para cuidar da mãe que havia sido diagnosticada com câncer. “Chorando perto dos produtos secos, me pergunto, ‘ainda sou coreana se não há mais ninguém na minha vida para ligar e perguntar qual é o tipo certo de alga que comprávamos em casa?’”, ela escreveu na crônica Crying in H Mart, seu primeiro texto publicado na New Yorker, sobre reconhecimento cultural e a falta que a mãe faz.
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PANORAMA
Desde então, lançou dois discos Psychopomp e Soft Sounds from Another Planet, dirigiu videoclipes – assista Boyish e The Bus Song, da Jay Som –, viajou o mundo (ainda sem previsões para a América Latina) e se prepara para o próximo trabalho. “Fico feliz de termos evitado a famosa decaída do segundo disco, acho incrível pensar que ele nos levou tão longe”, pondera sobre o período após o lançamento. Suas letras parecem cenas de filme, são envoltas de camadas suaves de sintetizadores e sempre acompanhadas das levadas rápidas da bateria de Craig Hendrix, que também é co produtor do disco. Tem gente que gosta de falar dre-
am pop ou até mesmo indie experimental, ambos funcionam mas sinto dificuldade em escolher apenas um. Fã de videogames (ela assina a trilha sonora do jogo Sable, sobre planetas aliens, com lançamento em 2019) e de Game of Thrones, encerrou seu set no festival com Machinist, em que gritou que a música se tratava sobre se apaixonar por um robô. O universo da artista é rico em referências musicais e visuais, assim como se debruça em inspirações cotidianas. “Gosto de absorver a vida ao meu redor. Costumo juntar ideias durante a turnê para desenvolver em casa, preciso de muita privacidade”, explica, sobre o processo de criação. “Estou tentando abandonar a guitarra, para escrever no baixo ou no teclado – buscar tons em vez de letras e melodias”. Visualmente, admira o trabalho dos diretores Wong Kar-Wai e Agnès Varda para criar as atmosferas etéreas de seus vídeos. “Estudei cinema na faculdade, mas me apaixonei por clipes durante esse projeto – nunca dirigi nada para minhas outras bandas. Todos os artistas que admiro se envolvem em todos os processos criativos, sinto que os clipes são uma extensão da narrativa das
músicas, mas isso sempre vem depois do álbum ficar pronto”, afirma. O segundo disco a impulsionou para tão longe que a artista virou garota propaganda de uma linha de maquiagens para adolescentes nos Estados Unidos, entrou na lista de bem vestidas das revistas de moda gringas – Kenzo para os looks de palco – e se apresentou em todos os grandes festivais americanos. Explica que seu sucesso não é único: “Vivemos um momento incrível, há uma grande comunidade de mulheres artistas, seja no backstage ou no palco, nos ajudamos o tempo todo”. Entre suas favoritas do momento, estão Jay Som, Yaeji e Empress Off.
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EA NUNCA LANÇA ME PARECEU PRIMEIRO DISCO TÃO
Fundação tem produção de Gabriel Arbex, foi gravado em duas etapas entre Araraquara e São Paulo e contou com o apoio da Converse.
Foto Larissa Zaidan
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A banda está na estrada há cinco anos e reflete sobre momento atual em troca de perguntas entre os integrantes:
Shows Rafael Jonke
Quando eu e Luden começamos o projeto que viria a ser a “E a terra..”, os nossos únicos intuitos eram – ainda que pareça óbvio, mas não é – fazer músicas e tocá-las. Começamos com shows no porão do finado Espaço Cultural Walden: apertado, com uma lâmpada pendurada no teto e as paredes suando. A primeira vez fora da cidade foi em Campinas, onde rachamos uma Lucas Theodoro van com os amigos que queriam colar. Nosso primeiro Ir até a Galeria do Rock e voltar de busão com um EP foi gravado com o dinheiro que ganhamos em um saco preto cheio de camisetas. Pegar duas horas de fila concurso de bandas realizado pelo Centro Cultural da nos Correios e fazer dois envios de CDs para pessoas Juventude. Já lidamos com incontáveis B.Os durante as que não conhecia de cidades que nunca tinha ido. Passar viagens, assim como muitas bandas. E todas essas coisas horas queimando discos no computador, carimbando reafirmaram a nossa vontade de continuar fazendo – e dobrando encartes. Essas são algumas coisas que e trabalhando – com música. Hoje em dia, depois de definem muito bem o começo da banda para mim. tocar em mais de cem shows, continuo sentindo as Tinha uma urgência muito grande de fazer as coisas e as mesmas coisas que rolavam no começo, existe ainda um fazer bem feito. Fazer um show, chorar, sangrar e ir para ou outro cagaço - nunca me acostumei de fato com o a banquinha vender camiseta depois de tudo isso. Acho público -, mas estar lá faz todo sentido. que esse conjunto de vontades e posturas fez com que as pessoas gostassem e se relacionassem com a gente.
Como trabalhamos
Mudança de integrantes Luden Viana
Sempre fui extremamente cético quando as bandas trocam de membros como trocam de roupas. Acho que, além da música, as bandas são retratos e extensões dessas pessoas. A saída do Marcelo, que se mudou para Londres, foi doída e surpreendente. Foi estranho entender que ele queria seguir um caminho e nós, outro, mas a vida é assim. Luccas foi nossa primeira opção para assumir o baixo e deu tudo certo. No primeiro show dele, bebemos Maria Mole (Dreher + Contini), o Theodoro subiu no bumbo, derrubou a bateria inteira, caiu em cima do novo baixista e rasgou a calça. Ele foi batizado esse dia.
Percepção da cena Luccas Vilella
A mudança, no que chamamos de cena, é perceptível e notória. Tive uma banda de pós-rock/instrumental entre 2006 e 2007, uma época difícil para as bandas iniciantes de todos os tipos - poucas casas e pouca interação entre os músicos, principalmente na música instrumental. O tempo foi passando e as pessoas foram percebendo que a cooperação é necessária para a construção de algo, mesmo que minimamente relevante. Nesse movimento, as bandas começaram a se conhecer, a se relacionar e a interagir. Muitos músicos viram a necessidade de algo a mais, então passaram a produzir shows, abrir casas e a montar selos… A condição ainda está longe de ser a ideal, mas sinto que uma base foi montada. Por exemplo, vá aos shows, pague ingresso (não seja um bosta, uma grande parcela da receita da banda vem dos shows), compre uma camiseta, CD, dê abrigo e condições para bandas que vão até a sua cidade… O clichê se repete: a consciência e a participação do público são tão importantes quanto o trabalho dos músicos.
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SE VOCÊS SOUBESSEM, Além de memes e imagens memoráveis, a Copa do Mundo 2018 deu exemplo de civilização: no jogo de poder das elites, países emergentes não jogam.
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inal da Copa do Mundo FIFA na Rússia. Na abertura da partida, o lateral alemão Phillip Lahm entra em campo acompanhado da modelo russa Natalia Vodianova, carregando em seus braços o troféu do campeonato. Em tese, a taça só pode ser carregada por chefes de Estado e capitães de times campeões, por isso Natalia não pode chegar mais perto do que o braço do lateral. Mas o que chama mais a atenção é a redoma onde está guardada a taça mais importante do futebol mundial: uma imponente mala da marca Louis Vuitton. Imediatamente me situo: assim como a vinheta de abertura da transmissão dos jogos na Rússia, em que um reluzente diamante emerge do estádio, tudo na Copa do Mundo FIFA Rússia 2018 é de elite. Afinal, FIFA é uma marca registrada, assim como a Louis Vuitton. Enquanto a bola rola, já não penso mais em futebol. Só vejo dinheiro em campo. A Louis Vuitton também tem uma Copa do Mundo. A marca está profundamente ligada à America’s Cup, a mais antiga competição de iatismo do planeta. A regata foi fundada em 1851 e seu troféu vem sendo reivindicado desde 1970 por inúmeros ricaços ao redor do mundo. Para organizar esta peleja, promovem uma competição de iatismo chamada Louis Vuitton Cup, em que o vencedor é classificado para disputar a Copa América.
Texto Lucas Panoni Ilustração Adriana Komura
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Segundo a Forbes, um sailing yacht pode custar pelo menos 400 milhões de dólares. Isso dá quase dez vezes o salário do Neymar, nossa maior aposta, cuja renda está estimada em 38 milhões de euros. Seguindo este raciocínio, para poder sonhar com o custo de um iate de competição da America’s Cup, o menino Ney teria que vender para o Gusttavo Lima uma frota inteira de seu iatezinho classe média de 15 milhões de reais. Isso pode explicar porque o hexa não veio: Neymar, como nós, é apenas um jovem empreendedor brasileiro nesta paupérrima realidade. Isso porque Neymar é tido como motivo de orgulho! Ele faz o que sabe fazer de melhor, vive do que sempre sonhou e é símbolo do sucesso de toda uma geração de brasileiros! E ainda por cima joga futebol, um esporte muito mais democrático do que o iatismo. Em tese, todo mundo pode jogar bola. E, já que o Deus Mercado nos diz todos os dias que todos nós temos as mesmas oportunidades, e a Mandala da Meritocracia nos motiva a perseverar
FICARIAM ENOJADOS continuamente rumo à riqueza e ao bem-estar, a Fada FIFA vende a ideia de que todos nós nascemos com uma bola nos pés. Acreditando nisso, Neymar é o símbolo brasileiro de uma gosmenta identidade social que fica impregnada em nossa mente nos mandando gastar dinheiro, e tudo o que podemos fazer é comprar Coca Cola e pedir Mc Delivery, pagando com o cartão de crédito do Itaú. É a flauta envolvente que mexe com a mente de quem está presente. Nada mais coerente do que a taça FIFA ser trazida em uma mala Louis Vuitton: Ricos fazendo riquices. Enquanto apostávamos no bolão da firma e oferecíamos cerveja para o Ronaldo na TV, os verdadeiros ricos continuavam sua manutenção do poder e da ordem engordando, usando drogas caras e fazendo a
economia girar. Casagrande, em um lapso de entendimento, alertou para uma “nova ordem do futebol”, mas ele estava errado. Esta ordem já está bem velha. Se a Copa do Mundo FIFA é um reflexo da hierarquia medíocre de uma sociedade podre, eu tenho para mim que se Lula estivesse livre pelo menos esse Hexa vinha, mas o 7x1 foi o presságio de um duro golpe que ainda não acabou e tudo mais já é teoria da conspiração. Ao fim do jogo, a vida real continua: os negros maravilhosos da França comemoram seu segundo título quebrando protocolos e passando a taça de mão em mão, enquanto cidadãos franceses celebram a vitória enfiando sua bandeira no cu (simbólica e literalmente). Eu sou fã dos franceses, porque por qualquer coisa eles vão lá e queimam carros.
Texto e fotos Isabela Yu
foto Fernando Banzi
Luiza Lian corta, recorta e costura para encerrar o ciclo de três discos.
A
s referências são vastas, a cantora e compositora Luiza Lian bebe em fontes tão distintas quanto animes, artes plásticas, Beyoncé e cultura popular. Visualmente, o show da artista é um caso à parte. Ela se apresenta ao lado do músico e produtor Charles Txier desde o segundo disco, Oyá Tempo, e manterá o formato para as apresentações de Azul Moderno – seu terceiro trabalho recém lançado. A gravação e mixagem é de Guilherme Jesus Toledo e o trabalho sai pelo selo parceiro Risco. Se o CD anterior bebia em um mundo muito particular – ela foi a primeira brasileira a lançar um álbum-visual – as novas faixas habitam um universo remixado e possuem uma gama maior de sons. Os processos de feitura de ambos foram entrelaçados e encerram um ciclo iniciado com o disco homônimo, lançado em 2015. O resultado processado é fruto das divagações musicais de Charles, com co produção de Tim Bernardes, mas as letras de Luiza brilham. “Escrevo geralmente na natureza, onde tiver silêncio, um espacinho e alguma angústia”, explica.
Ela também costuma rabiscar palavras e desenhos no Estúdio Canoa, espécie de segunda casa e espaço onde gravou todos os discos. “A gente pega muita referência do passado, mas a real é que quem te ensina são as pessoas com quem você cria junto”, comenta sobre a movimentação diversa de músicos que rola na casa. “Assim como as grandes revistas, os grandes estúdios também estão acabando. O que está funcionando são essas cenas, esses lugares e estúdios pequenininhos”. A antropofagia de inspirações e a execução meticulosa transforma seu trabalho em algo único, rico em camadas e cheio de intenções. Todas elas muito sutis, atuais e pertinentes em questões femininas, universais ou espirituais.”Ok, tenho um grande interesse na Billie Holiday, mas a partir do momento que estou na sala improvisando, eram eles que me davam os elementos para eu viajar. E eles, na mistura das coisas que são, criando uma parada que pode ter ou não a ver com a referência, mas é algo seu e não mais daquela fonte”.
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Ele começa antes e termina depois do Oyá, são entrelaçados. Estava no processo do disco, mas queria fazer uns EPs com outras ideias meio urgentes. Ele atravessou, mas tinha me programado para fazer o Azul Moderno – tinha uma viagem no fim do ano com o Tim e o Charles, e a gente foi. Fiz algumas músicas com uma amiga (a escritora Leda Cartum) e achava que elas formavam um conjunto interessante. No meio disso, o Oyá foi acontecendo, ele não foi muito planejado – fizemos então o site, a performance, o show, o álbum visual. Não tinha dinheiro nem para fazer um clipe, muito menos para fazer um filme completo. No final, fomos na viagem e gravamos tudo – a gente voltou uma semana antes de lançar o Oyá. Estava preparando o primeiro show dele enquanto gravava as vozes do Azul Moderno. Virei para o Charles e falei “tá lindo, tá massa, mas não é isso”. Achei que tinha chegado o momento dele destruir tudo o que construimos como base para um outro disco com outra pegada. Aquele trabalho e as bases que já existiam viraram samples e foram embaralhadas. Tem uma música que parece um arranjo de sopro, mas são as vozes que o Tim gravou como referência, no caso alguém realmente fizesse um sopro, mas o Charles não quis o instrumento, ele usou a voz dele e a processou. Ele tem uns sons muito malucos de algo que foi desconstruído. Penso que é um pouco da história de três álbuns juntos. O novo tem uma coisa mais cancioneira, menos conceitual, mas com muitas camadas sonoras e uma modernidade própria. Quando falo no moderno, não sei se é por causa da faculdade das artes visuais, mas não penso em uma coisa atual ou do futuro. Acho que o moderno é um pouco antigo já, do século passado, assim. Então, ele tem um olhar para essas músicas do passado recente, samba-rock. Como o novo CD surgiu?
É! Um moderno do século XX. Junto com isso, tem a coisa Um moderno da nossa geração, somos meio diluídos. Principalmente quem contemporâneo? viveu essa transição do século XX para o XXI, de várias coisas que foram desconstruídas, utopias que foram diluídas. Ao mesmo tempo, um novo surgindo e a gente é pré-histórico nessa novidade. Aquela coisa quente da era de peixes, para entrar na era de aquário, da tecnologia, do mental, da programação, de algo mais frio. Uma meditação sobre esses tempos, sobre as mulheres desse tempo. Uma ideia de mundo que carregamos mesmo sem saber. Uma noção de feminino... Essa mulher que esperava, sabe? Eu pelo menos. Você vai cantar as músicas brasileiras, acaba cantando muito isso. Então, de maneira geral, está no imaginário. Eles conversam entre si, mas acho que foram evoluindo. O primeiro é uma coisa que demora muito para ser feita, porque você não sabe fazer um disco. Antes, tinha gravado um com uma banda que demorou tanto para ser feito que a banda acabou no momento que a gente lançou. Daí, gravei meu primeiro disco de forma mais longa. Tinha minhas músicas, estava no movimento de “me desapeguei da banda”, agora vou fazer as que eles não quiseram, as que sempre quis fazer. Quero ser dona do meu trabalho, porque demora demais o processo de negociar o que precisa rolar. Primeiro teve um tempão ensaiando com essa banda que já tinha o Charles tocando bateria, o Tim, o Tomás, o Juliano e o Peixes. E a partir dissso de ir mostrando música, testando, ensaio, então veio primeiro disco. Foi mais democrático. Quando chegou o momento de começar a pensar no próximo trabalho, tinha uma ideia de que precisava ser uma coisa mais hierárquica, no sentido de ser “menos solto”. Fui aprendendo a tomar as rédeas da parada. Até no sentido de delegar, mesmo. Falar “ô, Você buscou olhares diferentes para cada?
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Charles, brisa aí”. Ele tem um processo solitário, não que eu fique em cima de tudo, mas de entender o que eu queria. O Oyá foi mais experimental e, por mais que eu não soubesse, eram coisas muito urgentes e verdadeiras para aquele momento, então acho que ele foi mais contemporâneo com meu momento. Libertação também, de ver sua ideia acontecer, mesmo quando tem gente falando que estava viajando, porque não tinha nada a ver com o primeiro. Era essa pira. Muito louco assumir que queria fazer algo visual. Sempre pensava: “Mas quando tem muita gente dando opinião…” Já é fácil você mesmo gongar suas ideias, quanto mais gente duvidando e questionando, fica mais difícil de decidir. Por mais que sejam seus parceiros, só você sabe o que vai acontecer. Quem está colocando a cara para bater é você. Tudo é muito complexo no Brasil, digo até as pessoas entenderam qual que é o valor de um trabalho artístico. Foi bom conseguir fazer a parada do jeito que achava que tinha ser. Agora com esse outro trabalho foi assim mesmo, a gente precisava construir um disco para o desconstruir, ele ser um remix de algo que nunca foi escutado. Ele tem um pegada na base da estrutura que é mais low-fi, os arranjos tem uma característica forte do samba-rock, no processo de desconstrução, isso aparece de outra forma. Gravamos com banda, mas vai ser tocado só eu e o Charles. Se for para ter mais gente na estrutura, investiria na parte visual. Escutei muito o gravado, mas o ao vivo ganha uma dimensão maior.
Referência é uma coisa que vamos adquirindo. Falando sobre experiência Não é exatamente quando você está criando, visual, o que você está sabe da onde vem especificamente. Digo que o curtindo atualmente? Lemonade foi uma puta referência no sentido de álbum visual. Não tanto na visualidade, mas a ideia de construção de narrativa. Tem o trabalho de uma artista que está sempre na minha cabeça que é a Mira Schendel. Trabalhei como assistente de curadoria por três anos na retrospectiva dela na Pinacoteca. Saí de lá e fui lançar o meu primeiro disco, não voltei mais a trabalhar com isso, mas considero um momento muito especial, mergulhar tão profundamente no trabalho de uma artista. Principalmente a Mira, que tinha mil referências filosóficas. Entrei no acervo deles e li cartas da Mira com o Flusser. Inclusive tem uma música para ela no disco, uma homenagem que a mistura com a Iemanjá, espero que a família dela goste. Ela falava muito sobre linguagem e fazia monotipias obsessivamente, no papel de arroz, escrevendo conceitos filosóficos ali – fez quase duas mil. Era um trabalho de poesia que vai se desconstruindo e desmantelando. Porque vai mudando e reescrevendo, como um fluxo de pensamento. Encanava com uma palavra e a repetia, até que em um momento aquilo virava o desenho da palavra e até que virava só uma linha. A Mira procurava o vazio da palavra, do zen, da potência. Não sei até que ponto se interessava filosoficamente pela espiritualidade, mas buscava esse vazio ativo. O trabalho dela ainda reverbera em mim. Tem um outro cara, que com certeza é uma inspiração forte para esse disco, que é Haruki Murakami, um escritor japonês que amo. Já li vários livros dele, meu favorito chama Kafka à beira-mar, que é o mais mainstream. Porque é isso, são essas imagens. A cultura japonesa sempre foi muito presente para mim, cresci com os animes e os mangás. É toda essa cultura meio doida que tem uma raiz mais mística, do oriente. Mas, ao mesmo tempo, ultra ocidentalizada, principalmente depois da 2ª Guerra Mundial. Desenhos animados também foram uma referência visual, como a Princesa Mononoke, do Estúdio Ghibli. O disco tem toda uma pegada visual na sonoridade dele, parece que você está dentro de um filme em muitas músicas.
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Minha mãe me apresentou bastante coisa, como Caetano e Chico. Fiquei muito fanática pelos Beatles e pela música gringa dos anos 60, crescendo com meus amigos. Depois fui entendendo que a música dos anos 60 daqui era muito mais incrível. Não mais, mas muito poeticamente, influenciada por Caetano. Sempre gostei muito de cantar blues e soul. Tanto que, quando era adolescente, um disco que me pegou muito foi o The Miseducation of Lauryn Hill – me ensinou a cantar. Já tinha uma paixão pelo blues raíz, até que fui estudar o jazz e pirei na Billie Holiday, pela ponte que ela fazia com os dois. Foi uma super escola, aprender a compor e brincar em cima de uma estrutura que já existe. Componho muito com a voz e na palma, até têm músicas que faço no piano e no violão, mas é pouco. Não sou uma pessoa enciclopédia, de ouvir trocentas coisas, mas fico obcecada por alguns discos. Daí, comecei a conversar com o Charles sobre o rap. Ele disse que quando começou a escutar, tudo mudou. Porque o rap, por conta dessa de se ampliar, você vai descobrindo muitos sons de lugares diferentes, coisas que você nem imaginava. Junto disso, tenho a influência do terreiro, onde cresci. Por ser um centro aberto, fiquei muito ligada a uma galera da cultura popular. A gente sempre gostou muito de ouvir, fazer festa, forró, tambor de criola, fazendo essa mistura com ayahuasca, que é muito interessante. Acho que era esse contraste de referências do Brasil, fui ouvir outras coisas aos 16. Hoje em dia escuto som atual, como Negro Leo e Ava Rocha, que são referências fortes. Mas primeiro teve essa coisa do blues, para entender onde isso fazia ponte com a Clementina de Jesus, com a cultura popular, a umbanda, o sol, o rap… Essa trança que vai se fazendo. Você cresceu escutando de tudo?
Acho que é também, mas Aliás, o Azul do título, não foi daí que ele surgiu. é sobre blues? Recentemente, descobri que Azul Moderno é uma expressão que usavam no Acre, no começo do século passado. Dessa galera mais cabocla, do Daime, que significa um azul pacífico – descobri isso depois. Porque tinha uma compositora Daimista (Maria Damião) que fala em ver Nossa Senhora com um manto azul moderno. Isso virou uma brincadeira com algumas amigas, porque usamos azul em alguns rituais. Ficava viajando nessa de “azul moderno”. Só depois que fui entender que era meio longe do moderno, que era o azul pacífico, do céu. Mas, na minha cabeça, fiquei imaginando a compositora tomando ayahuasca e tendo essas visões, do azul que é outra cor, e ter a imagem de uma figura celestial vestida dessa cor. Imaginei um azul muito tecnológico, um pouco celeste, mas que vibrava de muitas formas e achei interessante. Foi uma homenagem a ela que esse nome surgiu.
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Texto Bruno Brizzi Foto Gabriela Schmidt Styling Say My Name Club Beleza Suy Abreu
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Se desafiando em seu novo projeto colaborativo, Jaloo retorna ainda mais maduro e disposto a compartilhar suas emoções através de belas canções intimistas. Como está sendo trabalhar em equipe e se identificar com o resultado?
Qual é o sentimento de retornar com Say Goodbye e ter uma recepção positiva do público?
Estou em uma fase em que a confiança e a Essa música já foi assunto de terapia e teve meses questão do compartilhar vem sendo trabalhada. de atraso por causa de insegurança. Foi compliAdmito que era muito controlador e foi ótimo cado tirar de mim e soltar para o mundo. Só que ter feito daquela forma - só que não fez bem para no final é coisa da cabeça da gente, a recepção da minha cabeça. Valeu a pena por ter sido bem música foi a melhor até agora e não teve investivisto, mas muita coisa que foi trabalhada não é mento em divulgação. O público tornou o que reconhecida pelas pessoas. No final, foi um gasto ela é e fazê-la ao vivo é sempre uma coisa – fiquei de energia tão grande que não sei se quero passar bem preocupado de não me achar de novo. por isso tão cedo. Ainda tenho o poder para decidir quando não está legal, porque chamei pessoas De que você sente necessidade de apresentar no novo trabalho? muito fodas para trabalhar. É louco pensar que Sempre digo que tem dois projetos, o trabalho essa é a primeira vez que estou dividindo vocais: do disco e o projeto do show. Dois produtos de escuto a voz de alguém em cima de uma composiconsumo diferentes em questão de envolvimento ção que escrevemos juntos e parece certo. com o público. As coisas são pensadas para que A proposta do seu novo álbum, “ft”, é inteiro com você saia dos shows muito satisfeito e queira parcerias. O primeiro single foi com a Badsista e voltar, e quando isso acontecer, veja algo difeo segundo com a Mc Tha. Como você escolheu as rente. A música eletrônica soa próximo ao disco colaborações? mas ao mesmo tempo a gente quer soltar tudo o É possível que aconteça um disco duplo, tem que é possível, criamos essa massa sonora que é muita gente foda e quero fazer com todo mundo. muito mutável. Enquanto isso, vou lançando os singles para não É difícil para você transformar suas histórias e passar fome. Faço os shows e vou apresentando o novo material para o público. É um manual de sentimentos em canções? É o que vejo os artistas que eu admiro fazendo, o sobrevivência. Ainda mais agora que estou totalexercício do desapego e descarrego. Jogar no papel mente independente, ver as coisas acontecendo aquela coisa que está guardada e que te deixa sem o apoio de uma gravadora é muito legal. ansioso, um exercício de psicologia. Depois de Say Goodbye, falo para os fãs que agora o problema não é mais meu, é deles. E vou continuar fazendo isso, esse disco novo vai ser bem pessoal.
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No novo trabalho, existe uma aproximação com uma masculinidade queer, como está sendo o diálogo dentro desse espaço?
Quais são as suas principais considerações no processo criativo dos vídeos?
No primeiro disco, acabei cuidando de tudo Sou um ser humano e a natureza me torna nos vídeos, da direção, do roteiro, de tudo. Foi mutável, sempre em transição para algo. Fico muito trampo, que acabou sugando minhas feliz de estar trampando nessa nova persona, energias. E agora estou dividindo a direção gosto muito de ter liberdade artística, mas dos clipes. Ainda não aconteceu nada chato e parece que a sociedade está cada vez mais grutambém se acontecer nem vai ao ar, bola para dando nas coisas. O cantor e sua vida pessoal, frente, por enquanto está só felicidade. Feliciisso me entristece um pouco, parece que a dade porque as pessoas que trabalho são fodas liberdade criativa está sendo perdida. Sempre e não estou mais segurando todas as pontas. vi meu trampo como algo mágico: quero um trabalho que me tire da minha realidade chata Depois de todas essas mudanças e viagens pelo e me transporte para viajar. Espero que o meu Brasil, como é visitar o Pará? Mesmo eu tendo os traços que remetem a público entenda e respeite isso. O meu corpo região Norte do País, quando vou para lá, as ainda é o mesmo do primeiro disco, mas os pessoas acham que sou gringo. É assustador, signos foram trocados. Acho engraçado como porque a minha terra já não me enxerga como a sociedade me enxerga agora. Um cabelo foi de lá, então pareço um forasteiro em todo tirado, uma roupa foi colocada e agora ele é canto. O Pará já me abraçou, não sou famoso sexy. É uma loucura, porque é a mesma pessoa. como muitos artistas de lá, mas existe um público que vai sempre nos meus shows. É esquisito ir nos lugares que eu ia só para me
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divertir e perceber que as pessoas me reconhecem. Não sou muito fã de fama, claro que reconhecimento profissional é foda, mas fico bem chateado quando penso que minhas liberdades estão sendo polidas. Parece que a melhor coisa é não sair de casa. Só que sua vida fica triste se você estiver preso dentro do próprio mundo. Então, a gente tem que arriscar e colocar a cara no Sol. O que você deseja para o futuro da música no Brasil?
Desejo o que sinto que já está acontecendo. Antes, as pessoas gostavam de um ou dois artistas que lotavam shows, hoje em dia as pessoas gostam de muitos – e cada um tem o seu público. Dar oportunidades. Pegar uma melancia e dividi-la em vários pedacinhos. A melancia é o público!
Um cabelo foi tirado, uma roupa foi colocada e agora ele é sexy. É uma loucura, porque é a mesma pessoa.
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Ao se descrever, Aretha Sadick resgata a imagem de Oxumaré, entidade religiosa de matriz africana que transita entre os gêneros. O orixá que se permite ser homem ou mulher e não é nenhum dos dois em meio a transição. “Como a cobra que muda de pele, conforme o desejo e a necessidade”, explica.
Texto Gabriel Monteiro Foto Eduardo Urzedo Beleza Carlos Rosa (capa MGMT) Roupas Isaac Silva e Rober Dognani
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e Caxias, no Rio de Janeiro, a artista de 29 anos vive há três em São Paulo e, há pelo menos sete, transforma a própria história em roteiro com o seu corpo como plataforma de trabalho. Virou performer icônica de festas eletrônicas, musa de estilistas em eventos de moda, como a Casa de Criadores e, agora, avança com força total em uma paixão antiga: a música. Múltipla nos projetos, é orgulhosa de sua forma mutante. “Sou pessoa negra, transvestigenere – ou seja, transexual e de performatividade travesti. É complexo, não? Pois seja bem-vindo às humanidades fora da caixa”, convida quem a quiser conhecê-la.
Como nasce a sua relação com a música e o que ela significa para você? A
musicalidade está presente na minha voz, no meu jeito de falar, na minha postura e no meu corpo. Ela é parte da minha ancestralidade. Mas eu só fui atravessada realmente por essa musicalidade quando estive no teatro e aprendi de fato a falar e a entender o meu corpo. Entendi primeiro o meu corpo no mundo e depois vieram as noções sobre negritude, sexualidade e identidade de gênero. O teatro me fez entender, então, melhor tudo isso e me incentivou a expor minha voz e tudo o que ela compõe. Mesmo assim, só depois de sete anos de formada em Artes Cênicas, retornei à música, principalmente quando passei a integrar o coletivo NÁMÍBIÀ e comecei a cantar Grace Jones. Qual a parte mais prazerosa e difícil de interpretar Jones? Interpretá-la já é prazeroso por si, porque somos semelhantes e temos timbre grave. O mais difícil, claro, é fazer jus. Tenho me cobrado muito para ser, no palco, tão imprevisível quanto ela é, mas sem me abalar com comparações, porque a minha performance não é sobre isso [ser igual]. A minha performance é sobre homenagear uma entidade viva, pois valorizamos apenas os ídolos que já se foram e ídolo bom para mim é ídolo vivo. Seria um prazer cantar para ela ou com ela. Para além de Jones, quais são suas referências musicais? Gosto de sons antigos como os de Erykah Badu, Lauryn Hill, Della Reese e Alcione, mas tenho ouvido muita gente nova como Laura Mvula, Sevdaliza, Judith Hill, Xênia França, Letrux, Baco Exu do Blues, Kelela e ABRA. Por essa última, eu sou apaixonada. E como funciona a NÀMÌBIÀ? Eu já curtia música eletrônica comercial, mas só quem se beneficiava com ela era uma determinada classe de DJs. Eles se mantêm nos postos de reis dos festivais, movimentando muito dinheiro para a própria classe. Integrando a NÁMÍBIÀ, comecei a aprofundar meus conhecimentos, aprendendo mais sobre a disco music, o hip hop e o funk, além de ouvir produtoras e produtores negros. Hoje, a coletividade cuida dos meus trabalhos e também sou produzida pela Mariana Boaventura e Jess Pauline, do coletivo BANDIDA. Qual a potência da música eletrônica para você? Resgate é a palavra. Trata-se de mais um resgate, dentre muitos outros, que pessoas negras em diáspora fazem para se reencontrar. O trabalho que se iniciou com a produtora Euvira e o Léo Teófilo, da NÁMÍBIÀ, na música eletrônica de São Paulo, foi importantíssimo para a retomada das pessoas negras nessa cena, que foi elitizada ao longo dos anos. Esqueceu-se de Detroit, Chicago, Nova York, hip hop e todas as raízes que, juntas, fundaram a música eletrônica. O que mais você quer abordar na sua carreira musical? Nada muito diferente do que outras intérpretes também procuram abordar. Todas falam de amor, desafeto, desavença, alegria, raiva e dor. Enfim, os sentimentos humanos. A diferença é que estou apontando que esses sentimentos existem em mim e em todas as pessoas. Encaixotadas em temas rasos, só para entreter, raramente pudemos falar de nós mesmas, a partir de nossos pontos de vista. Como muitas de minhas ma-
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Sou pessoa negra, transvestigenere – ou seja, transexual e de performatividade travesti. É complexo, não? nas, eu quero falar de mim e de nós.Você pode contar um pouco sobre a sua nova música, Boneca Terrorista? Boneca Terrorista é uma resposta que queria dar à moda
há muito tempo, por ser um ambiente que raramente permite pessoas negras. Os homens negros, por exemplo, são majoritariamente objetificados e não existe espaço para os que expressam feminilidades. As mulheres negras então nem se fala. Esse é um questionamento que faço desde o início, quando me fizeram acreditar que ser um homem negro macho me bastaria. Modelos trans e travestis negras não podem estar nas passarelas? São todas prostitutas? Se são, por que são? Por que existem inúmeras campanhas de modelos brancas angelicais e não com modelos negras? Pessoas negras não podem ser angelicais? Felizmente, acredito que estamos mudando isso. Estive em revistas, editoriais, passarelas e performances de moda. A Boneca Terrorista é a hackeadora de sistemas estéticos de dominação. Você é, muitas vezes, vista como
uma musa. O que acha dessa ideia e de onde tira energia para manter a imagem de força? É bom e complicado, ao mesmo tempo. Existe esse histórico judaico-cristão
de que sempre há a necessidade de que alguém nos represente, fale por nós e assuma a responsabilidade caso algo dê errado. Eu sou budista, da linha Nichiren Daishonin, e acredito que precisamos ter mais referências e menos ídolos, menos seguidores e mais legados. E eu acho ótimo ser uma referência, contanto que possa passar o bastão para outras. Restabeleço minhas energias ficando comigo mesma ou com amigas próximas. Faço terapia, nado e tenho minha prática religiosa que me fazem muito bem. Além de que me permito ser frágil, às vezes. E qual parte da Aretha as pessoas desconhecem? Apaixono fácil e desapaixono, também. Eu como banana com aveia todas as manhãs e amo dormir e nadar, exatamente nessa ordem. Acredito que língua e mamilos são os melhores amigos e sou uma ariana que tem coração. Ariana com coração, inclusive, vai ser o nome do meu livro. [Risos] Onde você deseja estar daqui dez anos?Provavelmente não mais em São Paulo. Com certeza, estarei em algum outro lugar do mundo me renovando como Oxumaré, sendo algo que ainda não fui e sempre quis ser. Espero continuar trabalhando em algo que me faça feliz e faça feliz muita gente também. Quero continuar falando para as pessoas que para se ter felicidade é preciso ter coragem. Desejo estabilidade financeira para cuidar de mim nos dias em que estiver cansada e estar ao lado de alguém com quem compartilharei afeto e massageará meus pés depois de minhas apresentações. É isso e sadickisses!
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5–9 DE DEZEMBRO
PALESTRAS + DEBATES + WORKSHOPS + ATIVIDADES DE NEGÓCIOS +NETWORKING + INOVAÇÃO NO CENTRO CULTURAL SÃO PAULO SHOWS + SHOWCASES + FESTAS ESPALHADAS POR SÃO PAULO CONVIDADOS NACIONAIS E INTERNACIONAIS
MAIS INFORMAÇÕES SIMSAOPAULO.COM
UM EVENTO PARA QUEM AMA MÚSICA
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Como foi a turnê do com o Turnover A tour brasileira dos americanos aconteceu em dezembro de 2017. Escute o single Fade Someday, último lançamento dos mineiros.
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is que em meio ao caos que fervilhava na vida de cada integrante da banda, um convite surge para refrescar nossos corpos e almas: três shows com os estadunidenses do Turnover. Rio de Janeiro, Sampa e Curitiba, nesta ordem. Obviamente, aceitamos a missão e quando menos esperávamos, já sentíamos a areia de Copacabana em nossos calções de banho. Logo de cara topamos com eles, perto do famigerado Posto 9. A princípio, ficamos meio retraídos, com receio de colocar em prática nosso inglês macarrônico, absorvido a partir de filmes da Sessão da Tarde, hits radiofônicos aleatórios e jogos de RPG obscuros. Mas nada como um baseadinho pra unir o joio ao trigo, não é verdade? Quando saquei uma dose de maconha prensada, enrolada numa seda amassada guar-
dada nos confins de minha carteira, os sorrisos se abriram. Daí em diante, as coisas fluíram bem. Conversas sobre o Brasil, os Estados Unidos, e tudo o que nos unia e nos separava, surgiam naturalmente. O show aconteceu no Teatro Odisséia, na região da Lapa, tradicional ponto turístico e recanto boêmio da capital carioca. Casa relativamente cheia, som bom, pessoal muito receptivo. A nova formação da banda estava estreando, portanto, foi um grande acontecimento pra todos nós - Adolfo e Yago, guitarrista e baterista respectivamente, sempre foram envolvidos, seja tocando em outras formações ou gravando nossas músicas (ambos apertaram o rec e compuseram em nosso EP de estreia, o “No Rewind”). Tê-los finalmente a bordo era algo grandioso. Texto Estevão Maldonado
Madrugada no RJ, mais maconha, cachaça, rango de rua (compramos um yakissoba transbordando molho e macarrão pela bagatela de DEZ REAIS), e um sambinha maroto que se repetia esquina após esquina. Voltamos meio perdidos pro hotel, cochilamos (depois de mais uma sessão do descarrego no pobre banheiro), e minutos depois, levantávamos para seguir rumo a Terra da Garoa. Rumamos meio grogues, porém ansiosos pelo próximo show. Nesse, não tocamos com o Turnover. Aconteceu no Breve, num evento que reuniu bandas bem distintas, incluindo um projeto explosivo de três canadenses barulhentos chamado Werewolves. O baterista, muito honesto, escreveu na barriga: “ONDE ESTÁ O PÓ?”. Espero que ele tenha encontrado. Depois
foto Ursula Jauar
foto Murilo Amâncio
foto Vitor Jabour
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da bagaceira sonora mencionada, foi nossa vez de fazer algum barulho. Energia intimista, luzes baixas e guitarras altas. Sobrevivemos! Descansamos lindamente na casa de um grande amigo da banda e depois de um rango reforçado, partimos pro terceiro show do rolê. Local: Fabrique Club, Barra Funda. Chegamos num sol de doer, já com pessoas aguardando na fila horas antes da abertura da casa. Tudo correu bem. Na sequência, com pouco dinheiro e fascinados com o número de boates que se condensava naquele quarteirão, passamos boa parte da noite degustando bebidas típicas do nosso país e nos comunicando com nossos companheiros ianques por ali mesmo. Nossos garotos Austin e Casey (guitarra/voz e bateria), em especial, apreciam uma imersão maior no rolê. Se entregaram pra
catuaba, pra cachacinha, pra ganja ruim, e até chegaram a apreciar a poderosíssima “catuçaí” (híbrido bizarro de catuaba com essência de açaí). Nesse meio tempo, falamos de tudo um pouco: “helicoca” em Minas Gerais, Adam Sandler, Netflix, impeachment, skate na Malhação, Larry David e LSD. Dali mesmo partiríamos à última cidade da tour: Curitiba. O show aconteceria no John Bull Music Hall, casa com um formato interessante que abrigava um bowl de skate nos fundos, juntamente com centenas de imagens de ícones do rock (pelo menos 15 quadros do Jimi Hendrix). A casa estava relativamente cheia. Foi nosso melhor show em minha opinião, mas infelizmente, não conseguimos levá-lo ao fim - a caixa de bateria acabou estourando antes das duas últimas
músicas. Yago, envolvido pelo calor da apresentação, conclui o estrago e nos proporciona um momento catártico à lá Nirvana no Hollywood Rock (ao menos na minha cabeça). Passamos algumas horas pela casa de show, até que partimos para um pós num restaurante/espaço cultural de conhecidos nossos. Ali, proporcionamos aos americanos mais um pequeno mergulho em nossa vasta cultura: de Racionais a Novos Baianos no som, além, é claro, de conversas pitorescas sobre nossas queridas pátrias. Já em estado de frenesi nos despedimos de todos, e aquela sensação implacável de dever cumprido se alastrava. Mais uma vez, entendemos porque continuamos a investir tanto nesse maldito hobbie.
carta das editoras
Decidimos escrever algumas palavrinhas no aniversário de um ano da revista. Completamos três edições satisfeitas com o processo das matérias, os encontros com cada um que faz parte disso e todo mundo que leu o que a gente tem para falar. Inclusive, obrigada por chegar até aqui, sabemos que precisamos concorrer sua atenção com tantas coisas diferentes e o momento não é dos melhores. Assim como ter uma banda, produzir shows ou ter um selo – lançar uma revista não é essencial e vai contra o que a sociedade realmente precisa ou estima no momento. As vezes é difícil até pensar em pessoas, quando sabemos que nossas necessidades são pautadas pelo desejo da publicidade e do Mercado. Realizar e financiar algo tangível, que não é mais visto como relevante, não é fácil. Mas continuamos nessa teimosia e temos convicção que eternizar esse material é importante, e ouvir o que os outros têm a dizer é necessário, sim. Principalmente nessa loucura da pós-verdade. Escrevemos essa carta entre o primeiro e segundo turno da disputa mais óbvia (para nós) e incomum da nossa jovem república. Nós não sabemos o que vai acontecer. Em um momento acreditamos que a virada é possível, depois somos totalmente derrotadas com notícias sobre ataques de ódio (veículos reportaram mais de 50 em apenas dois dias após as votações). Se o caminho é claro de ele não, sofremos, principalmente no Sudeste – que deu a maior parte dos votos para um protótipo de neonazista, midiático, branco e violento –, pela indiferença. Se você não é gay então a pessoa que é atacada por isso merece sofrer por existir? Ao longo do caminho de produzir as entrevistas e fotos (incríveis, pelo menos para nós) que você acompanhou nestas
páginas, entendemos que este projeto significa coisas muito diferentes para nós – Yu e Helo – assim como para quem a lê e para as pessoas que toparam participar dela. Percebemos que criamos um espaço de diálogo, de curiosidade e de respeito às diferentes formas de se produzir arte. Música é comunicação e pode significar resistência a tudo aquilo que não concordamos, que não nos representa e de que desprezamos em nossas realidades. TODOS OS CAMINHOS indicam respeito, igualdade e democracia – é só você querer isso o tanto quanto é cego pela “justiça”. Se 2018 também foi o ano em que diversas revistas foram extintas, isso aqui também resiste. E vamos continuar falando e propagando uma alternativa aos caos cultural e ao vórtex de informações erradas. Nós não conseguimos garantir que a nossa revista vai continuar com o mesmo formato, se vamos conseguir mantê-la em um cenário de repressão ou que matérias precisam ser feitas no futuro distópico que parece que estamos trilhando. Se tudo der certo e contornarmos esse cenário, o trabalho vai ser dobrado para nunca mais chegarmos tão perto do precipício. Também não achamos que fazer revistas sobre música vai resolver o problema dos milhões de brasileiros marginalizados e desempregados. Mas, vamos conversar sobre isso? O que cada pessoa pode passar para frente? Que tipo de música você vai querer escutar depois disso tudo? Claro, as artes e a música podem ser alternativas e escapes da realidade desigual e violenta, mas voltamos ao problema da indiferença: se não te atinge, seu irmão não merece sua preocupação?
T e i m o s i a
Muita sorte pela frente, desejamos o melhor para todo mundo. Isabela Yu e Heloisa Cleaver
NOVEMBRO DE 2018
A Revista Balaclava é um projeto idealizado por Heloisa Cleaver e Isabela Yu Design e direção de arte Ana David @ana__david – @gomaoficina Design e ilustração Adriana Komura @adrianakomura Direção editorial Isabela Yu @isabelayu Produção executiva Heloisa Cleaver @helocleaver Produção Déborah Moreno @deborahmrd e Bruno Brizzi @brunobrizzi Revisão Paula Calçade @paulacalcade Colaboraram nesta edição Angel Aura @angel_aura_ Carlos Rosa @carlosrosa Diolinha @diolinha Eduardo Urzedo @urzedoeduardo Fernando Dotta @dotta Gabriel Monteiro @gabrielhmonteiro Gabriela Schmdt @gabriela_schmdt Guilherme Garofalo @guilhermegaro Ingrid Alves @ingridalvespro Lucas Panoni @panonilucas Naira Mattia @nrmtt Nicholas Germano @nichgpp Suy Abreu @suabreup Agradecimentos Bolovo, Brechó Replay, Brechó Tylera Foda, Converse, Estileras, Inserto, Isaac Silva, Rober Dognani, Sanka, Say My Name Club, SIM São Paulo e Surreal São Paulo. Balaclava Records é Fernando Dotta @dotta Rafael Farah @rafael_Farah Heloisa Cleaver @helocleaver Francine Ramos – imprensa@balaclavarecords.com Fale com a revista em heloisa@balaclavarecords.com