Revista Balaclava #4

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número 4 2019

MARCELO D2

distribuição gratuita


vieram ao Bras i l p el o selo

Allah-Las Aquaserge AVAN LAVA Barbagallo Beach Fossils Built to Spill Buffalo Moon Chad Valley Clearance Connan Mockasin Deerhunter DIIV Future Islands HALA Homeshake How To Dress Well Jerry Paper Jonathan Toubin Land of Talk Mac DeMarco Mac McCaughan Mashrou’ Leila Mercury Rev Mild High Club Noga Erez Nosaj Thing

of Montreal Pinback Primal Scream Real Estate RIDE Sebadoh Shabazz Palaces Slowdive Sun Kil Moon Swervedriver Thee Oh Sees The Shivas toe TOPS Tycho Un Planeta Vagabon Warpaint Washed Out WAVVES Widowspeak Wild Nothing Whitney Yonatan Gat Yuck



+ ATRAÇÕES EM BREVE




A cantora e compositora norte–americana conta como a maternidade transformou a sua maneira de enxergar o mundo, de viver e de ser artista.

Texto Bruno Brizzi Foto Ryan Pfluger 7


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Tormentos pessoais e decepções amorosas sempre estiveram no vocabulário musical de Sharon Van Etten. Em 2019, a norte-americana retorna com Remind me Tomorrow, seu quinto disco depois de uma pausa de cinco anos. Aparentemente, o hiato serviu para mudar o ângulo sob o qual a artista enxerga o mundo e sua relação com ele. Se antes era a dor que pautava suas composições, atualmente, com um olhar maduro e renovado, ela é capaz de rever o seu passado e reconhece que algumas bagunças podem até ser reconfortantes.

Como foi reunir as ideias para esse disco novo?

Qual é a história por trás da capa?

As músicas foram sendo construídas ao longo de dois anos e meio, pois não comecei a trabalhar nelas até sair da turnê de 2015. E, ainda assim, desenvolvi cada uma delas em intervalos das minhas novas prioridades – voltar a estudar, dar mais atenção para o meu relacionamento e simplesmente ficar mais tempo em casa. Fiquei em turnê durante muito tempo e não conseguia desenvolver outras partes da minha vida. E as coisas foram acontecendo nesse período: consegui um papel para atuar em uma série, fui fazer faculdade de psicologia e tive um filho. Assim, os momentos para escrever acabaram mais dispersos do que eu estava acostumada. Algumas das músicas que eram mais românticas - dirigidas ao meu parceiro - acabaram se transformando em faixas para o meu filho. Percebi que tinha 40 demos em uma pasta no final de 2017 – não tinha ideia até aquele momento. Foi então que parei a parte da escrita para dar o próximo passo.

Demorei um tempão para saber qual seria a foto... Na época, estava fazendo a trilha sonora para o filme Strange Weather, da Katherine Dieckmann que, inclusive, segurou na minha mão durante todo o processo.Ela tem uma vida incrível: é artista, mora em Nova York, tem dois filhos e conseguiu encontrar um equilíbrio! Quando fui para a estreia do filme em Toronto – lembro de todos os detalhes – descobri na viagem que estava grávida e decidi contar para a Katherine. Ela começou a chorar, eu comecei a chorar, mas não conseguia parar de pensar: como eu faria aquilo? Ela riu de mim, pegou o celular e me mostrou uma foto. Era uma imagem dos filhos dela no quarto deles quando crianças. Ela olhou para mim com um sorriso e disse que eu ia dar um jeito. Pedi para ela me enviar aquela foto, foi uma grande inspiração. Não tinha nada que ilustrasse melhor o meu medo do que aquela fotografia. Ao mesmo tempo, era confortável de se olhar. Duas crianças no meio da bagunça. Aquele caos de quarto de criança, mas elas completamente em paz, felizes, era isso que importava. Entendi ali que não poderia usar nada para a capa do disco que não fosse aquela imagem. 9

Sharon, minha irmã está grávida pela primeira vez – vou ser tio! Compartilhei com ela sua música Stay e ela amou. Começamos a ter essas conversas difíceis sobre colocar uma criança no mundo. Você começou a trabalhar essas músicas antes do seu filho nascer e terminou o disco sendo mãe. Você escreveu Comeback Kid e Seventeen de uma perspectiva atual que olha para o passado e se entende como uma adulta nesse processo. Como foi trabalhar essa bagagem? É muito difícil… Temos coisas demais passando pelos nossos olhos hoje em dia. Falando a verdade, não sentia uma conexão real com crianças. Claro que já tinha tido experiência de cuidar de algumas quando era mais nova, mas não costumava tê-las por perto até eu mesma ter uma. E tudo mudou, percebi que, na verdade, eles são você. Parece que muda o que você é, o que você quer da vida e sua visão parece se expandir. Muito doido, porque ao mesmo tempo que sinto que todas essas mudanças aconteceram, parece que as coisas estão apenas mais claras. Às vezes sinto uma nova sensação de entender o porque estou viva.


capa de remind me tomorrow

Minha música favorita do disco novo é Jupiter 4, da onde veio a inspiração para ela?

Nos momentos que está escrevendo as músicas, você já costuma pensar em ideias para os videoclipes?

O que música significa para você? Você sente que sua relação mudou com o passar dos anos?

Durante o período em que trabalhei para a Katherine, acabei tocando muito violão – repetições sem fim – para relaxar a cabeça. Em um desses momentos, procurei qualquer outro instrumento que estivesse no cômodo para me distrair. Certa vez, estava dividindo o espaço com o Michael Cera e ele tinha um Jupiter 4, que é um tipo de sintetizador e decidi experimentar. Não tinha ideia de como ele deveria soar, fiquei tocando por um tempo e gostei bastante dos sons que acabaram saindo dele. Coloquei algumas notas em repetição, adicionei um fundo para a música e a letra surgiu de forma inconsciente. Gosto bastante dessa música. Inicialmente, quando ela começou a ganhar forma, passei a achar que ela deveria ir para o mundo pop. Fiquei com a vontade de ver outra pessoa a interpretando e a compartilhei com a Donna Missal. Tive a oportunidade vê-la apresentando ao vivo essa nova versão e achei maravilhosa! Ela até colocou no próprio disco, o This Time.

Nem sempre isso acontece. Por exemplo, no novo disco, a música que tem mais informações visuais é a Seventeen. Escrevi pensando em lugares de Nova York em que eu costumava passar ou frequentar. Quando parei para pensar nesses espaços, percebi como todos eles mudam muito rápido com o passar do tempo. Mas, para você conseguir identificar essas mudanças, é necessário vivenciá-los. Então, quando contei para Maureen Towey (diretora) que queria fazer um clipe para essa música – antes mesmo de dividir minhas ideias – ela compartilhou comigo que teve os mesmos sentimentos por meio da letra.

Antes mesmo de ter uma carreira musical, estava passando por alguns momentos intensos e difíceis em minha vida – pegava meu violão, tocava e cantava para tentar me sentir um pouco melhor. Com o passar dos anos, esse sentimento foi mudando. Passei a sentir uma nova vontade: compartilhar com outras pessoas. A música deixou de ser algo pessoal e cheio de especificidades para tornar-se algo mais público e universal.

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Você ainda sente medo da exposição? Percebi que não tinha medo de me expor quando entendi que era algo da natureza do meu trabalho. De certa forma, olhar para as minhas músicas antigas ou qualquer outro projeto em que já trabalhei é como olhar para um álbum de fotos, ou um diário. Em alguns momentos, você fica desconfortável, mas acaba se reconhecendo naquilo. O que você está recebendo do passado também é você. São experiências que tive, escolhas que fiz e não posso negá-las. Não posso deixar poeira se juntar sobre elas. Gostaria de dar um grande abraço em mim mais nova.


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Texto Lucas Brêda

Foto Cabra


FORA DA SOMBRA


BK’ deixa “buraco negro” do existencialismo para se conectar com um Rio de Janeiro cinza, que se confunde com sua própria trajetória.

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Quando fui ao Rio de Janeiro para ver o show de lançamento de Gigantes, o segundo disco do BK, eu só queria ouvir uma música: Sigo na Sombra. Sempre a entendi como uma introdução geral, a carta de intenções de um dos rappers mais incensados dos últimos anos, das aliterações e rimas precisas até o sample de soul/jazz psicodélico (uma música de 1971 com voz de Jane Duboc, que apesar de não cantar uma palavra em português, é paraense). Basta uma orelhada em Sigo na Sombra para entender porque BK chama seu flow de Zidane. E quando ele rima que escreve com o melhor e o pior que vem da alma, está basicamente dizendo que tipo de MC pretende ser: aquele que aponta as hipocrisias do mundo, mas também fala das suas. Sigo na Sombra abre o Castelos & Ruínas – o primeiro disco do BK, já tratado como um clássico por muitos fãs de rap desde que saiu, em 2016 –, que usa do maniqueísmo do título para apresentar um personagem complexo, cujo sucesso e o amor estão atrelados a uma série de responsabilidades. BK não fala apenas de felicidade e tristeza, mas de tudo que vem entre as duas coisas. É o relacionamento intenso e turbulento de Amores, Vícios e Obsessões, a crise existencial de Caminhos e o entendimento final de que para realizar os próprios sonhos, era necessário ser o sujeito e não o prejudicado. Muito mais do que se apresentar como peso pesado no jogo do rap, Castelos & Ruínas era sobre se colocar no mundo, assumir o papel de herói e vilão – e, portanto, de principal responsável – da própria história. Para a minha tristeza, BK tirou provisoriamente Sigo na Sombra dos setlists. “Ou eu botava ela pra começar ou pra terminar o show. É uma coisa da energia da faixa. Tem uma parada que é assim… é um buraco negro. É um negócio que, depois dela, acabou o show, não consigo mais cantar”, ele me contou no fim de uma conversa de 40 minutos na produtora Na Moral, no Rio. Mas é justamente a ausência da minha música favorita que explica a atual fase do MC. BK deixou o “buraco negro” do existencialismo e, agora, apresenta uma perspectiva mais coletiva, a de ser negro no mundo contemporâneo. Mais plural, direto e político, Gigantes é o BK contando histórias, reunindo em personagens a vivência da Lapa. É a branca que acredita ter acabado com o preconceito por ter transado com um negro, a boemia, a zé polviagem, a promiscuidade. Julius, uma das mais fortes do disco, reúne Todo Mundo Odeia o Chris, um conhecido integrante da facção Comando Vermelho (o texto no Medium da Isabela Carolina Rosa, @babooshhhka no Twitter, é leitura obrigatória), funk proibidão, adlibs com sotaque carioca, sopros e um refrão catártico.


Na entrevista abaixo, BK’ explica porque o novo Dragon Ball Z não presta e reconhece a gentrificação da Lapa enquanto tenta evitar a gentrificação do próprio som.

C&R é um disco que fala bastante sobre você, de um ponto de vista pessoal. Em Gigantes, você trata mais de personagens, histórias externas. Foi algo deliberado? Algum personagem do disco existe na vida real? Total. Ainda mais Julius, é uma história que está acontecendo agora, nos cotidianos das comunidades do RJ, infelizmente. É algo que está sempre acontecendo. Em Exóticos, peguei histórias de pessoas próximas a mim. Aqueles diálogos existem, tudo que é falado aconteceu. São histórias de amigos e amigas que eu fui juntando. Julius não é uma pessoa específica, né? São personagens, mas que vivem histórias reais. Julius está acontecendo agora, Deus do Furdunço vai acontecer de noite. No C&R, falei bem de mim, da cabeça do Abebe Bikila, mas a galera entendeu o que acontece com elas, esses altos e baixos da vida. No Gigantes é parecido, é a maneira como as pessoas conseguem enxergar as histórias e a vivência ali. Teve um moleque no Twitter que me marcou e disse que ouvindo o disco andando pelo centro da cidade você entende muito mais as músicas, sacoé? Acho que é bem essa a ideia dos Gigantes.

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Quando entrevistei o Mano Brown, ele disse que gostava de escrever no meio da confusão, com movimento, barulho. Fazia letra na rua, observando. Escrevo de várias formas. Às vezes no metrô vem uma ideia, tô toda hora no celular grudado, toda hora escrevendo. Talvez daqui saia alguma ideia de alguma faixa. Sou um cara que gosta de estar na rua. Sempre que posso dar o meu rolé, vou. Gosto de ver pessoas, elas me inspiram. Lapa é o lugar que a gente amadureceu as histórias dos nossos raps. É onde a gente via esse choque dos personagens acontecendo. Agora nem tanto, a Lapa foi mudando e já não é mais aquela bagunça que era. Mas sempre foi desse rolé de ter o rap, o pagode e o samba assim na mesma rua. Era um lugar que eu ia e ainda vou sempre que posso. A rua me inspira muito. Você gosta da rua desde pequeno? Sou de Jacarepaguá, já morei na Praça Seca, Taquara, ali nos acessos da Cidade de Deus, mas fiquei 20 anos em Jacarepaguá. Agora moro pra cá, no Catete, e foi o que fez a mudança de eu fazer o rap. Encontrar pessoas que gostavam das mesmas coisas que eu, tinham o mesmo lifestyle. Em Jacarepaguá, na época, o rap não tinha tanto, nem no RJ tinha, imagine lá. Foi aí que eu mudei pra cá, pras áreas. Dez anos atrás, o que eu gostava de rap da gringa era o que passava no TVZ. Pedia pro amigo lá baixar, botava no DVD.


isso que “ Por eu falo que

não canto rap, eu canto vida, sacoé?

O Diomedes Chinaski também me disse que começou a consumir rap gringo comprando aqueles DVDs piratas com clipe. Ele falou tipo: o rap nacional me fez querer ser revolucionário, mas o rap gringo me fez querer ser rico. É isso. Maneira essa ideia dele. Foda.

fazia várias rodas de rima. Só que a gente fazia tudo ao contrário. Se for botar o Nectar com o que essa galera vinha fazendo... Chegamos mostrando outra cara do RJ. A sujeira mesmo, o cinza do RJ.

Sei que você é muito fã do Tupac. Sempre falo do Tupac porque foi o primeiro rapper gringo que eu falei mano, quero ser que nem esse cara. Aquele DVD dele, Resurrection. Na época, eu devia ter uns 17 anos. Já escrevia? Tinha umas paradas. Era Tupac, MV Bill, Racionais. A favela toda só ouvia Racionais de rap, então sempre tava lá os caras na maquininha botando Racionais de madrugada. Na época que eu escrevia, era outro peso, outra forma. Não tinha a maldade, a técnica. Aí voltei a escrever as paradas com uns 20 anos, tentei fazer uns dois grupos com uns moleques que estudaram comigo. Chamava Blasfêmia. Ainda criei outro, e depois veio o Nectar Gang. Você vai fazer 30 anos, mas é da mesma geração de Djonga, Diomedes, e eles têm 20 e poucos anos. Já é um momento depois de Emicida e Criolo. A gente chegou nesse espaço aí, que já tinha outras galeras. Aqui na cena do RJ, tinha ConeCrew, o Start Rap, o Oriente, época que a galera 17

Nos seus refrãos, adlibs e às vezes até no beatbox, você mostra muita influência de funk, é algo que te dá originalidade. Vou te falar: quase fui MC de funk. Lá em Jacarepaguá, a gente ficava rimando em funk. Mais um pouquinho eu virava MC de funk. Aí vim pra cá e comecei a ter mais contato com o rap. Era o proibidão, fita. Cidinho & Doca, MC Mascote, o falecido G3, o falecido Catra, proibidão mesmo, fiel, das antigas. MC Pé de Pano. Os proibidão mermo. Aqui no RJ, os caras não chamavam o proibidão de funk, chamavam os funks deles de rap. E o rap RJ tem muita referência desse rolê também. Tanto que na Julius, teve até uma menina que fez uma matéria comparando com a história do FB [do Comando Vermelho] e o funk do MC Smith, tá ligado? Mas tá fortão na hierarquia, tá faltando..., foi de onde eu peguei. Cachorro, se quer ganhar um dindin, traz um X9 pra mim, que é uma rima do Catra. São referências do funk mesmo, do RJ. Você também curte jazz pra caralho, né? Jazz pra caralho, Djavan pra caralho. Já fiz muitos flows em música do Djavan, isso é real. Você fala mano, isso aqui dá um flow, aí já pega ali, pá. Em geral, mano... Chico, Caetano, Gil, minha


mãe ouve muito MPB. O que eu ouvia do meu gosto de rua era funk, pagode, o que chegava pra gente assim de rua. E em casa minha mãe ouvia muita MPB, jazz, Milton. O rap é isso, a gente vai sampleando tudo. Um lance de resignificar a cultura. Sim. A gente pega muita referência e vai juntando tudo pra construir a nossa parada. É a vida mesmo, você vai conhecendo pessoas e vai moldando a personalidade por coisas que a gente vai passando, vivendo. Por isso que eu falo que não canto rap, eu canto vida, sacoé? Essa ideia de pegar as coisas que moldam sua personalidade. Música, estilo. Na hora de criar o som é isso. Uma galera do rap já trata o C&R como um clássico contemporâneo e, obviamente, a expectativa pro Gigantes tava lá em cima. Como isso te afeta? Cara, então, graças a deus o C&R é considerado por muitos como um clássico. Então, tem aquela primeira coisa: sendo um clássico, você não toca num clássico. Então, em nenhum momento eu penso em fazer um C&R 2. Se eu fizer um e não ficar tão bom, vou acabar estragando o primeiro. Tipo, se o filme é muito foda, vem o 2 e é uma merda, o 1 perde um pouco o significado. Então falei mano, esquece o C&R, vou tentar criar outros clássicos, com outras visões. A visão do C&R já não é a mesma do Gigantes. A obra tá ali, tentar mexer nela ou refazer é faltar com 18

respeito até com a obra. É igual esse Dragon Ball novo. O Freeza toda hora, mano, tá ligado? É isso, não consigo... É opinião, real mesmo. Aí pensei: sou assim, tenho que trazer isso pro meu trabalho também. Ou até eu me sentir preparado para fazer outro C&R. Gosto de tentar me reinventar. Se eu seguisse ali a linha do C&R, ia ser maneiro, ia agradar, mas não sei se ia mostrar uma evolução. É arriscado, a galera te vê de uma forma, você tenta mostrar outra. Tem gente que entende, gente que não entende. Rolou alguma resistência do teu público com o Gigantes? Óbvio. No próprio C&R já aconteceu isso. Eu vinha numa linha mais sujeirona, ruazona. Tinha galera que era muito fã de Nectar, e quando saiu o C&R ela deu uma.... Pô esperava mais o BK loucão da Lapa, esperava o BK mais.... No C&R eu tive um cuidado maior com a escrita, como eu queria passar. Com o Gigantes foi a mesma coisa, e eu demorei dois anos, justamente pra galera ver a transição, ver que tava acontecendo outra coisa, que tá puxando pra outro lugar. Gosto de fazer disco conceitual e tal. Se você gosta mesmo, tem que dar um tempo pra entender. É como o que aconteceu comigo no To Pimp a Butterfly, do Kendrick. Do Good Kid, M.A.A.D City, tem uma mudança muito brusca. Por mais que ele seja magnífico ali na estrutura, na escrita, no conceito, maravilhoso, demorei um pouco pra absorver. Mas era porque eu tava mais na vibe do Good Kid.


luta “ Minha nunca é de

dividir nada, a minha luta é de empoderar a minha rapaziada.

Sobre o embranquecimento do rap, como você vê isso atualmente? Acontece há anos. A galera fala que Ah, o rap tá embranquecendo agora. Ele já tá num processo de embranquecimento há anos. Se você for ver No Gigantes, especialmente na música com Baco os últimos artistas que bombaram no rap até e Luccas Carlos, tem uma celebração de pretos 2016, se tirar Emicida e Criolo, a cena era toda de ocupando novos espaços, o que é bastante verrappers brancos. Quem lotava casa no RJ eram dade. Ao mesmo tempo, elegemos um presidente grupos de MCs todos brancos. fascista. Como você sente esse paradoxo? É o que acontece aqui no RJ. A gente se estressa Você tá falando do ConeCrew? pra caralho e vai pra praia dar uma descansada. É, todos eles, toda a cena. Agora, estamos num Ainda mais pela realidade dos nossos. Sempre processo de mostrar outra cara do rap. O que tomamos muita porrada, a vida toda. Então, não tá acontecendo agora é que as grandes mídias dá pra ficar só celebrando porrada pra sempre. estão olhando pro rap. Estão aceitando de fato o Celebrando luto. Temos que pensar que a gente que é o rap. Geral lotava casa sem ter gravadora tem que se divertir. Apesar de tudo, amanhã vai grande assinando. Geral bota 2 ou 3 mil pessoas ser outro dia. sem ter nada assinado, então acho que agora tá tendo esse rolé. A gente tá indo pra MTV agora, Foi assim que você encarou a eleição? num sei quem vai pra Globo. E nisso você acaba Exato. Vejo as notícias e é isso: apesar de você... trazendo o público que consome, que é o público É isso, não tem o que fugir. Sei lá, Brasil é isso aí, branco que tem grana pra consumir muito. Isso é RJ é isso aí. Converso nas internas com alguns uma realidade. Então, a gente tem que ter, agora, amigos, tipo, cara, a gente já vê o RJ mais abanessa noção do discurso, do que tamo falando, donado e bem zoado há anos. É uma parada que, que é pra onde a gente direciona os nossos por mais que seja medonha, o carioca já não tem assuntos. É óbvio que todos os públicos são governador há não sei quantos anos. Não tem bem-vindos. Minha luta nunca é de dividir nada, prefeito há não sei quantos anos. No RJ, é mais a minha luta é de empoderar a minha rapaziauma continuação de nada. Por mais bizarro que da. Eles saberem o valor deles, estarem com seja, pra gente é OK. RJ sempre foi assim. autoestima alta. O que a gente tem que fazer é ver formas de fazer a nossa música chegar pra quem a gente quer de fato, sacoé? E fazer essas A gente tem que dar esse tempo pro disco. Mas, óbvio, se você gosta do artista. Se não gostar do BK, ninguém é obrigado a ouvir o disco dez vezes pra ver se gosta.

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tu tiver “ Quando lá dentro, mate todos eles.

pessoas poderem consumir. É uma galera que nem sempre tá consumindo, nem sempre tem condições de pagar – que seja – 20 reais num ingresso. É isso. No meu show, tinha um moleque que tava lá, eu tinha acabado de sair da passagem de som, ele tava do lado de fora dizendo BK, eu não tenho dinheiro, tá tudo esgotado. Eu falei: mano, entra aí, fica aí. Entra e não vai embora, fica aí dentro. É o que eu posso fazer por você agora. Tipo, por mim, eu só cantava na rua, mano. Não gosto de cantar em boate. Mas é entretenimento, é mercado, trabalho, a gente tem que entender isso. Pra fazer alguma coisa de graça, minha equipe tem que receber. E outra, é a parte da política: fazer o nosso público alvo também poder consumir. Aí já é outra coisa, a pessoa tem que ter um bom estudo, um bom trabalho… Pô dei mó voltão. É que tem que organizar direitinho as ideias. Falamos sobre racismo e esse é o público diretamente afetado pelo racismo. As pessoas que não tem trabalho, nem estudo e não tem a chance de consumir igual o privilegiado tem. Nossa militância é de espírito, é de alma. De querer ver os irmãos e as irmãs querendo vencer, conquistar, alcançar, abrir os espaços. Djonga, Baco, Froid, os moleques da Recayd… qualquer um. A galera agora consegue se olhar no olho entre si e falar IRMÃO, é isso, tá ligado? Uma vez eu tava falando pro Sain... uma mina me olhou nos olhos e falou assim É ISSO, e me deu abraço. E eu entendi. É tentar botar a autoestima lá no alto. E tem uma hora que a militância passa a ser física 20

também. Aí, pra fazer outras coisas, já depende de dinheiro. Vejo muito o Jay-Z nessa. Se tu botar 10 ou 15 anos atrás, a galera falava que ele era rapper modinha, pá, já foi. Mas ele é um cara que hoje tem estrutura pra poder fazer a militância física. Ele pode agora, porque você tem que ter grana pra fazer acontecer as coisas. Tipo os documentários que ele banca, etc. Isso aí, isso aí. Você conseguir ajudar. Fazemos a nossa militância e uma hora ela tem que ser física. Mas temos que ir nos preparando pra daqui num sei quantos anos. O Jay-Z tem 50 anos e agora consegue fazer esses projetos que dão resultado. Até a forma que ele se posiciona hoje, ele pode, porque ele não precisa mais. Antes, ele precisava desse esquema da indústria da música. O último disco dele fala bastante disso. Exato. Quando tu tiver lá dentro, mate todos eles. Essa é a parada.


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o retorno do DAUGHTERS Texto Fernando Dotta Foto Fabiano Benetton


A banda não estava no meu radar até You Won’t Get What You Want, álbum de 2018. Vindo de um passado com referências essencialmente grindcore e metal, a nova estética do grupo me impressionou ao expandir sua assinatura musical e artística: o resultado é curiosamente encantador e perturbador ao mesmo tempo. Desde a arte da capa até seu último acorde, o trabalho se esforça em chocar ao compor uma paisagem apocalíptica. No entanto, ele alterna entre momentos violentos e calmos de forma única e extremamente cativante. Aproveitando a vinda da banda para apresentação no Brasil – 12 de maio no Fabrique, em São Paulo –, conversei com o excêntrico vocalista Alexis Marshall, na casa de shows Warsaw em Nova Iorque, sobre sua carreira e o momento atual do grupo que acaba de voltar de um hiato de oito anos.


“ Impossível não sermos outras pessoas ou não pensarmos de uma maneira diferente criativamente do que há oito anos. Levando em consideração que vocês são uma banda de noise rock, há uma renovação no interesse dos festivais em escalarem atrações deste nicho?

Como é fazer um show em Nova York? Som caótico, cidade caótica...

Apenas uma banda de rock, talvez. Sou feliz não sabendo o que nós somos. Você tem que escutar para saber. Não fico ofendido com noise rock, mas não é para nós. O termo funciona para várias bandas boas, como Pissed Jeans. Muitas das que eu conheço, não existem mais.

São Paulo, aliás, é imensa. Sinto que muitas pessoas podem se conectar com esse tipo de som.

Costumava não gostar tocar aqui ou cidades Não tenho certeza do que é noise rock. As grandes – Chicago, Los Angeles. Sempre me pessoas têm dificuldade de encontrar um termo irritaram, mas passei a gostar nos últimos anos para nós, então nos chamam assim. de lugares como Greenpoint e Williamsburg. Tem muita gente aqui, há sempre algum público Qual nome você prefere? interessado ou algum show a ser feito.

Mas, para conseguir emplacar shows em festivais, às vezes é importante se encaixar em alguma classificação. Como vocês lidam com esse tipo de situação? Tocamos na Europa no ano passado em festivais de metal, mas ninguém sabe ao certo onde nos encaixotar depois do último disco. As pessoas ainda nos associam aos nossos primeiros trabalhos de dez anos atrás. Mas, estamos bem. Jamais reclamaria de qualquer pessoa que esteja afim de ouvir nosso som.

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É curioso porque vivo na Pensilvânia, em uma cidade pequena, mas que cabe muito bem na minha rotina. Existe uma grande comunidade artística por lá. Vivo ao lado de muitas pessoas criativas, com ideias se sobrepondo umas às outras. Todo mundo contribuindo e aprendendo. Depois de uma pausa que durou oito anos, vocês sentiram necessidade de se reinventar? Como descobriram que era a hora de voltar? Quando comecei a falar com Nick [guitarrista], a ideia era imediatamente voltar a tocar. Não existiu um processo para decidir se isso seria uma boa ideia ou se nós éramos capazes de tirar isso do papel. Sem obrigações, há anos não nos falávamos... No entanto, o disco se chama You Won’t Get What You Want [Você não vai conseguir o que quer] precisamente para avisar todo mundo sobre o que eles estão escutando. Tivemos um gap enorme, impossível não sermos outras pessoas, não pensarmos de uma maneira diferente criativamente do que há oito anos. Em teoria, esse é o tempo de lançar três


capa do álbum “you wont get what you want”

Você costuma ler reviews sobre a banda? discos e as pessoas veriam a nossa progressão em cada trabalho. Acho que fizemos bem em ir para outro lugar com nosso som. Não foi uma obrigação ou algo laborioso, foi fácil. O processo era simples: se a gente gostava da música, dedicávamos mais tempo a ela. Você produziu durante esse tempo? Escrevi, sim. O Nick, por sua vez, tinha outro projeto... Eu estive em uma banda punk. Mas, continuamos ativos, não paramos de criar. É difícil encontrar um meio termo quando as pessoas têm suas próprias rotinas: cada integrante, nesse novo momento, morava em diferentes lugares. Fizemos muita coisa por Dropbox e por longos e-mails. Havia algum receio sobre a recepção do novo disco, considerando todo esse tempo de ausência? A gente achava que seria da mesma forma que sempre foi, na verdade. Lançar o disco, fazer turnês, uma semana ali, duas aqui… Mas, a real é que quando as coisas começaram a ficar sérias, todos os shows esgotaram. Esperamos a poeira baixar, mas continuamos conseguindo shows tranquilamente. Se possível, vamos tocar até as pessoas cansarem!

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Quero dizer que não, mas leio sim. É menos sobre ego e mais sobre curiosidade. Gosto de ler reviews ruins e caixa de comentários. Muitas pessoas gostam de nós, isso é ótimo, mas algumas pessoas são tão ridículas que é engraçado. As pessoas podem gostar ou desgostar, mas isso não vai afetar o que vamos fazer. Sempre fomos uma banda de amigos, nunca estivemos em capas de revistas ou nas listas de top 10. Como será no Brasil? Me apresento para qualquer um, não tenho preferência de público. Temos fãs jovens, o que é ótimo. Pessoas de 40 anos não saem tanto de casa, não pulam do palco ou perdem a cabeça com tanta frequência. Espero inspirá-los a se tornarem músicos ou a se expressarem artisticamente. Quero interagir com as pessoas porque estou dando tudo de mim. Acho ótimo tocar para pessoas que estão presentes. Não há motivo para esperar algo, expectativas são inúteis. Vamos tocar e esperar que seja legal. Se não for, temos umas férias de graça no Brasil.


o mistério fascinante de BLACK MIDI

Não me lembro da última vez que uma banda me prendeu tanto a atenção como esses quatro rapazes do sul de Londres. Conheci o Black Midi assistindo a uma sessão deles para a rádio KEXP em novembro de 2018. Desde então, saber tudo sobre eles nessa fase inicial se tornou uma obsessão quase adolescente da minha parte. Com menos de 21 anos de idade – e nem dois anos em atividade –, a banda rapidamente se tornou uma das grandes apostas dos festivais mais disputados do mundo. O segredo por trás desse sucesso é que o quarteto achou a sua fórmula única em um rock matemático e cheio de referências

tortas, que impressionam pela riqueza nos detalhes. Ao mesmo tempo, ali se esconde também um apelo estranhamente pop que parece ser o próximo passo do que estamos acostumados a ouvir no indie e no alternativo atual. Tive a chance de entrevistá-los na primeira de suas duas datas de estreia (esgotadas) em Nova York. Vale dizer que eles quase não aceitam dar entrevistas a nenhum veículo e pouco se sabe sobre a banda – parte do charme e do hype está no mistério – mas tive a sorte de conversar com todos, que foram muito simpáticos e agradecidos pelo o que estão vivendo.

Texto Fernando Dotta Foto Fabiano Benetton


Suas turnês estão ficando maiores, com uma série de shows e festivais importantes na Europa e nos Estados Unidos, além de um forte buzz na imprensa e cada vez mais público interessado. Esse momento tem sido de total empolgação para vocês ou há algum medo das coisas estarem acontecendo rápidas demais? Geordie Não, isso tem sido nosso sonho. É realmente incrível, não temos do que reclamar. É a melhor coisa que poderia acontecer. É inesperado, mas muito bom, e isso vai nos proporcionar ir além para fazer a melhor música que conseguimos… E inspirar gerações futuras!

Vocês assinaram com a Rough Trade. Eles falaram com vocês depois de ver o show? Vocês acham importante estar em um selo? Cameron Sim, o pessoal da gravadora viu nosso show no Windmill (bar em Brixton, sul de Londres). Nos ajudam a gravar nossa música, nos dão dinheiro para financiar nossas coisas. Geordie Eles fornecem a infraestrutura para lançar um disco com alcance ao redor do mundo, te colocam em contato com pessoas que podem te ajudar e fazer coisas legais junto. As primeiras faixas que vocês lançaram bmbmbm e Speedway não estão nas plataformas, apenas no YouTube. Foi intencional? Como vocês conhecem bandas hoje em dia?

Morgan Acho que a situação que estamos vivendo é que fazemos tudo no nosso ritmo há um tempo e, quando começamos, nós só queríamos confirmar mais shows. Agora, nós estamos conseguindo fazer as coisas com mais calma mas, ao mesmo tempo, tudo tem acontecido mais rápido. Nós sabemos que somos sortudos em estar nessa posição.

Geordie Não, a gente não viu motivo em distribuir, quisemos priorizar o lance físico. Consumimos e conhecemos música em todos os lugares, Youtube, Spotify, Last fm. Matt Soulseek é foda!

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As melhores partes podem vir de erros ou acidentes. Alguém erra ou muda algo e, se o resto gostar, então mudamos a música. cameron

Geordie (enquanto come um taco) Eu amo a América pelos tacos de peixe! Incrível. Os daqui são melhores do que os da Inglaterra? Geordie Ah, eles nem tem isso lá. Você consegue em alguns restaurantes, mas tacos não são comuns.

vezes, nós só ficamos tocando por horas, gravamos e escutamos juntos para achar coisas que gostamos e que funcionam como música – isso é como normalmente acontece. Geordie As faixas começam longas e vamos lapidando até encontrar um bom comprimento para aquele fragmento de música.

E comida brasileira? Cameron Sim, mas não como aqui.

Vocês tentaram evitar ter muitas músicas longas neste disco?

Geordie Você tem que ir na casa de alguém…

Geordie Não necessariamente, não somos contra músicas longas, é só um jeito de fazer músicas melhores.

Morgan Senão, não será autêntica.

Cameron Se o som parece certo para nós, pode soar bem em dois ou oito minutos.

Matt Há também umas churrascarias. De volta a entrevista…

As letras são a última coisa no processo?

Li que as músicas de vocês surgem de jams, ao mesmo tempo, em que as estruturas são bem acabadas e organizadas… Vocês tem um processo de composição?

Geordie Sim e fazemos isso individualmente. Matt Tem sido assim por enquanto, quem canta é quem escreve.

Matt Acontece de jeitos diferentes. Às vezes, alguém de nós traz um riff ou uma ideia e nós vamos tentando construir juntos no ensaio. Muitas 28


Há um tema quando vocês escrevem?

igreja, então tive muito contato com música gospel, depois vim a gostar de bandas como Funkadelic e Parliament.

Matt Coisas aleatórias. Geordie Para mim, gosto de escrever histórias, ficções. Cameron Nada grandioso, talvez coisas específicas, como uma notícia num jornal local. Sinto que Speedway soa um pouco diferente das outras. Vocês tentaram ter mais beats eletrônicos no disco? Geordie Sim, com certeza. Cameron Sim, mas não estamos forçando. Morgan Se há espaço para isso, então vamos nessa.

A música de vocês me intriga porque é técnica mas não de um jeito virtuoso, é quebrada e esquisita mas não inacessível. Parece que toda parte tem um lance especial e me lembra muitas bandas que eu amo, mas com um som único. Bandas que tocam juntas por anos não tem a mesma sinergia e conexão que vocês tem. Como é tentar capturar no estúdio toda essa energia? Morgan A gente vê o estúdio e o ao vivo como duas coisas completamente diferentes. Não vamos apenas entrar no estúdio, gravar como a gente toca ao vivo e é isso aí. Então fazemos vários overdubs e tentamos fazê-las separadas, como elas são de verdade.

Quando vocês estão em turnê, acabam tesO que vocês costumavam escutar quando tando ou adaptando essas músicas? eram crianças? Que tipo de música tocava na sua casa? Geordie Vários sons tem mudado a cada noite. Há um equilíbrio entre ter as Matt Todos os tipos. Um fato aleatório músicas certinhas mas não ensaiadas e engraçado é que meu pai costumava demais, para não prejudicar a tensão escutar Green Day. entre a gente. Morgan Hoje mesmo nós mudamos uma parte de uma das músicas durante a passagem de som.

Quantos anos ele tem? Matt 53. Morgan Jovem de alma!

Cameron As melhores partes podem vir de erros ou acidentes. Alguém erra ou muda algo e, se o resto gostar, então mudamos a música.

Cameron Costumava escutar os discos do Busted. Conhece eles? Curtia muito quando eu tinha uns 6 anos. Meu pai me deu discos de David Bowie e artistas O que esperar do futuro da banda? desse tipo. E também, Franz Ferdinand. Escutei muito em 2006! Eu colocava Geordie Estamos tentando alcançar esse primeiro disco deles pra tocar uma nova galáxia. Estamos tentando todas as noites antes de dormir. atravessar os oceanos e fazer sons que nunca ninguém escutou antes! Vamos Geordie Comecei a gostar de músimudar a história da música! ca quando tinha uns 8 anos, passei a escutar coisas como Led Zeppelin, Matt Amém, baby. Queens of the Stone Age…depois comecei a gostar de rock progressivo, como Morgan Não saber o que vem pela Genesis e Yes. frente é a parte excitante desse trabalho. Não temos ideia de como vamos Morgan Para mim, cresci tocando em soar daqui alguns anos. 29


Entre um T-Bone e uma picanha, Marcelo D2 mostra porque segue sendo O Mais Cascudo De Todos a.k.a. Sinistro a.k.a. SinĂ´nimo SubversĂŁo. Texto Juliana Ferreira Fotos Andreia e Nathalia Takeuchi Styling Maria Antonia Valladares Grooming Suy Abreu 30


É Spotify? Coloca aí: Little Simz, uma mina foda, vocês vão curtir.” Essa foi a primeira coisa que Marcelo Maldonado Peixoto fez depois de cumprimentar cada uma das nove mulheres da equipe que realizou as fotos e a entrevista da capa desta edição. Então se você puder, faça o mesmo: dá o play no último disco dela, GREY Area, e curta essa conversa do jeito que o D2 sugeriu.

E isso é evidente quando a gente se depara com seu mais novo projeto, Amar É Para Os Fortes. D2 continua por aqui, para o desespero dos fascistas. Quando perguntei sobre o que faz nos momentos de muita desesperança, me disse que gosta de sentar pra escrever. “Sempre sai alguma coisa que parece uma luz no fim do túnel”. A minha luz foi encontrar nele um mútuo reconhecimento do desespero frente à impossibilidade de mudar o mundo. Às vezes, a gente dá a sorte de poder mandar um churrascão e falar de amor com alguém tão inconformado quanto nós – e por um momentinho, as coisas se iluminam. Eu quero ouvir a rima de quem escolhe ser resistência cultural há 25 anos, todos os dias. Não basta se dizer resiliente, é preciso ser – e isso só se sabe depois que se é.

Se você imagina que sentar e trocar uma ideia com o Marcelo D2 é tipo sair escondido no churrasco da família pra fumar um bagulho com aquele tio mais velho que deu certo na vida, você acertou. Foi exatamente assim, churrasco incluso. A sessão de fotos se prolongou e a entrevista rolou durante o almoço em um restaurante/açougue de luxo na Oscar Freire. Depois de pedir os pratos, ele me conta que não está bebendo nada alcoólico – “Enfiei o pé na jaca no Carnaval e agora quero ficar limpo um pouco” – e manda descer dois chás gelados pra gente. Aos 51 anos, D2 está mais subversivo do que nunca. Não é todo rapper que têm a sorte de completar meio século de vida rimando. O próprio movimento hip hop, que vêm do início dos anos 70, ainda não assoprou as 50 velinhas. Ser um cinquentão no rap é um privilégio - além de terem visto todo o rolê nascer, suas carreiras nos dão a oportunidade de observar o efeito do tempo sobre o gênero e sobre seus protagonistas. O Marcelo de 2019 já entendeu que subversão é manter-se vivo e admite com orgulho que sua melhor armadura é o amor.

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Disco novo, projeto audiovisual inédito que você mesmo escreveu, dirigiu, ajudou a produzir: da onde veio isso tudo? Tenho ficado mais velho e a necessidade de criar tem ficado maior. Cada vez menos, só a música me basta. Sempre fui amante de cinema e a vontade de levar minha forma de expressão para esse lugar começou no Nada Pode Me Parar [2013]. Com essa coisa aí de câmera DSLR, de máquina foda, eu me juntei com a Gandja Monteiro - que é uma diretora que eu admiro pra caramba, que tem um super olhar - e a gente fez um clipe para cada música no Nada Pode Me Parar. Foi legal pra caramba. Eu já tinha a ideia de fazer um álbum audiovisual há muito tempo, desde a época do Planet; no A Invasão Do Sagaz Homem Fumaça [2000] a gente pensou em fazer isso, só que na época era filme, cara, 16mm, era quase impossível. (risos) Eu fiquei um pouco cansado depois do Nada Pode Me Parar. O disco foi super bem, depois teve turnê, viajamos muito e eu acabei cansando um pouquinho de música. Na verdade, eu achei que tinha esgotado o que eu tinha pra falar. Aí teve um episódio muito chato, que foi o assassinato de uma amiga minha em um assalto, e essa frase surgiu – “Amar é para os fortes” – na noite do velório. Na hora que eu ouvi isso parece que o disco todo, tudo o que eu tinha pra falar, já estava dentro de mim. Como você se preparou para esse projeto? Foi super interessante escrever roteiro, essas coisas. Sentei pra escrever e dei de cara com uma parede em branco. Aí fiquei um ano estudando. Tive umas aulas particulares e muitos encontros com roteiristas que eu admiro. Saí pra jantar com um cara em Los Angeles - uma parada super maneira. São profissionais que você paga o jantar e o cara te dá uma aula, fala o que você quiser e tem isso pra caramba em Los Angeles, sobre tudo. E isso foi importante pra mim, porque, além de criar, eu tava precisando de alguma coisa nova pra me mover. Sempre fui movido a paixão, sempre fui apaixonado por tudo que eu fiz e eu tava um pouco cansado. Eu tava frio.

Na verdade, eu achei que tinha esgotado o que eu tinha pra falar. 32

E como você saiu desse lugar? Eu escrevi o Amar É Para Os Fortes, o roteiro, e depois comecei a me envolver pra caramba na produção, na captação. Eu me juntei com a DABBA, que é uma agência de publicidade de um amigo meu e pedi pra ele me ajudar a produzir. Então, a gente escolheu um caminho que não foi o caminho das produtoras de cinema. Fui produzindo tudo, montando uma equipe maravilhosa em volta de mim. Captei a grana e depois fui dirigir. Passei um tempo com os atores e botei na cabeça deles que eles que iriam contar essa história, me ajudar a contar tudo isso. Foi um processo bonito pra caramba. E além de tudo, cara, teve esse caminho político que o Brasil tá tomando. A morte da Marielle [Franco] aconteceu num dia de filmagem. Estávamos em uma equipe em que quase 70% eram mulheres. Foi chocante. A gente tava filmando um tiroteio dentro da favela no dia da morte dela. Eu tentei cancelar mas não tinha como porque o orçamento era pequeno. Esse processo todo ajudou o disco a tomar forma também. Percebi que nessa altura da minha vida, eu tô num momento muito mais de fazer do que de acontecer. Eu coloquei na minha cabeça uma coisa bem clara: o sucesso desse disco era fazê-lo. Sem pressão, sem “Ah, tem que estar em todas as plataformas, todo mundo tem que ver”; quem quiser ver, vê. Tô achando que ele tem uma missão educativa, principalmente nesse momento. Acho que ele vai tocar as pessoas que ele tem que tocar. Lógico que quanto mais gente ouvir, melhor. Mas, eu tô bem ciente de que eu fiz um trabalho bonito. Teve uma ambição artística grande e isso me deixou bem satisfeito de ter escrito, feito, dirigido e participado de tudo isso. Era isso que eu queria pra mim. Quando eu ouvi o nome do disco, lembrei do “All You Need Is Love”, dos Beatles, que eu demorei alguns anos pra entender que não é sobre amor romântico. É sobre ter tesão na vida, sobre correr pelo certo, cuidar dos seus, abrir caminho pelo amor... Tem um amigo meu, chamado Bruno Levinson; foi ele quem escreveu uma biografia do Yuka e uma minha. Eu o conheço desde 1993 ou 1994, ele quem fazia o Festival Humaitá Pra Peixe e, desde sempre, me diz: “Cara, você tem que falar de amor”. Quando eu era mais novo, eu respondia: “Amor é o caralho, é pau no cu da polícia e bora xingar político”. E foi mais ou menos isso. Quando eu achei esse nome, entendi exatamente de qual amor ele tava falando pra mim. Porque, de certa maneira, eu sou um cara que cuida dos meus amigos, sou carinhoso, sou generoso.



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Hoje em dia, o que mais me deixa desesperançoso – já que a pergunta é essa – é o quanto as pessoas não tem o mínimo de noção de classe. O cara vota no patrão que vai defender os direitos dele, da empresa, do banco. E ainda briga!

Sua bio no Twitter é: “Pai de família, boêmio e o resto não interessa”.

Ontem a noite a gente tava falando sobre a entrevista e eu quis saber das outras pessoas o que elas gostariam de te pergunExato. (risos) E é isso, cara. Talvez, nessa posição que tar, até um amigo me questionar sobre o que eu tô agora, como artista, depois de passar tudo – ir eu gostaria de saber de você. E eu queria pra cadeia, lutar pela legalização da maconha, xingar saber, na real, é se vale a pena: vale a pena político, bater de frente com tudo isso -, eu quero fazer cultura? Vale a pena fazer jornalismo? demonstrar que tenho a força pra falar: a gente pode Vale a pena insistir? amar também. Ó, fiquei até arrepiado. Eu acho que vale a pena, sim. Você ainda tem esperança no Brasil? A gente tá aqui de passagem mas não tá a passeio, sabe? Pelo menos o nosso, a gente tem de fazer. A Você quer a resposta curta ou a longa? pior coisa que a gente poderia fazer é sentar e falar: “desisto”. Aí, eu acho que a vida não vale a pena. Eu Eu quero uma resposta honesta porque eu, vejo minha filha com 19 anos, vegana, feminista, vai ó… tá foda. em passeata. É lógico que eu fico amarradão, não vou falar: “isso aí não muda porra nenhuma”. A curta: não. (risos) Assim, é difícil a gente viver e Mas cara, sei lá… Hoje, quando eu tô muito deachar que não tem mais esperança. Mas, enquanto sesperançoso, quando eu tomo uma porrada dessas, sociedade, sinceramente… No Brasil, teria que ter eu gosto de escrever. Sempre sai alguma coisa que uma guinada muito grande, porque falta muita coisa parece que é uma luz no fim do túnel. para o brasileiro. Hoje em dia, o que mais me deixa É brabo, cara. Eu saí meio em cacos desse desesperançoso - já que a pergunta é essa - é o quan- final de ano por conta das eleições pra presidente. to as pessoas não tem o mínimo de noção de classe. Pareceu que nada valeu a pena. Tive uma conversa O cara vota no patrão que vai defender os direitos com o Thaíde dois dias antes das eleições. A gente já dele, da empresa, do banco. E ainda briga! Ainda sentia que o Bolsonaro ia ganhar, e, mesmo que não mais com essas coisas de redes sociais. As pessoas ganhasse, dava agonia só de pensar no tanto de gente brigam lá, defendem com unhas e dentes... Se eu te- que votaria nele. E aí, o Thaíde me ligou e falou: “Pô nho esperança no Brasil? Cara, na verdade eu tenho cara, quatro da manhã brigando no Twitter”. (risos) pouca esperança na humanidade, né. (risos) Aí não é “Não gasta sua sanidade com essa porra, deixa esses só o Brasil, o mundo inteiro tá indo para o buraco. caras pra lá ou, pelo menos, descansa e volta pra essa Mas, o ser humano é resiliente, cara. O ser batalha outro dia, outra hora. São quatro da manhã, humano consegue sobreviver… Só que então, a gente vai dormir”. A gente ficou conversando e acho que tem que chegar ao caos total, na escuridão total, pra ele falou umas 50 vezes que tava decepcionado. “Porfalar: “ó, não vai dar”. Por enquanto, eu só vejo trera, eu faço rap há 30 anos, lutei tanto, tive o sonho vas. É muito difícil, no mundo todo; o jeito que eles de fazer o mundo melhor e não adiantou nada?”. No tão arquitetando tudo para tornar as pessoas cada meu caso, são 25 anos e foi tudo em vão. Pra gente vez mais robôs, em botzinho manipulável... chegar em 2019 e botar um fascista no poder? Nem tem adjetivo para descrever o cara, um verme. Um cara que se aproveita do pior das pessoas, alimenta isso pra se dar bem... 35


A morte da Marielle [Franco] aconteceu num dia de filmagem. Estávamos em uma equipe em que quase 70% eram mulheres. Foi chocante.

...Que é o medo. As pessoas estão amedrontadas e com razão, infelizmente.

uma ilha cercada de merda. Não é possível que as pessoas escolham fazer o mal, não é possível que as pessoas sejam assim. Acho que a gente vai ter que ir Com razão, cara. Mas, é difícil a gente imaginar que pra rua e combater, cara, conversar! Conversar em precisa vir um líder salvar o Brasil. Isso aí me deixa casa, com a família. Essa eleição do Bolsonaro teve menos esperançoso ainda, porque na verdade o que isso pra caramba. Porque tinha até a tiazinha chata, a gente precisa é de uma porrada. Tomara que esse que você nunca viu na vida, tava espalhando fake governo do Bolsonaro dê uma porrada na população news no grupo da família no WhatsApp. A gente vai pra que todo mundo fale: “A gente precisa cuidar da precisar tomar a mesma posição que eles tomam, da educação”. Na história do mundo, para um país sair cara de pau, de ir a luta e falar: “ó, eles tão mentinde um lugar como esse - como saiu a Itália do fascis- do, tão mentindo, vamo tomar outro caminho”. Há a mo, a Espanha, a própria Alemanha com o nazismo possibilidade de um novo caminho. Então acho que – tem que investir tudo na educação. A educação é a gente tem que tomar essas rédeas. o caminho. A gente não vai sair do lugar enquanto Mas cara, é muito difícil. Tive conversando com tiver essa briga direita vs. esquerda; as pessoas tem o Freixo… Eu me aproximei do Marcelo Freixo pra que pensar da própria cabeça. E tem coisas tão sim- caramba porque ele era muito amigo do [Marcelo] ples, cara. Eu estava na Dinamarca, fui no show do Yuka. Também comecei a trabalhar com a AntôKraftwerk com amigo de lá e a gente chegou super nia Pellegrino, que é a companheira dele. Passei a cedo, umas duas horas antes. O estacionamento tava conviver na casa deles. Sempre observei de longe e super vazio, mas ele parou bem longe da porta. Aí, tal, mas conversando com ele - com toda a bancaeu perguntei porque ele não parou perto da entrada da lá do PSOL, uma porrada de mulheres negras, e ele me disse: “Vou deixar essas vagas pra quem várias Marielles [Franco] e Davids [Miranda] -, um tiver atrasado.” Eu quase chorei quando eu ouvi isso. dia ele perguntou: “Você não tem vontade de entrar No Brasil, isso nunca ia acontecer. Essa falta da ideia na política?”. Eu falei: “cara, Deus me livre.” Mas as de viver em conjunto, em comunidade, me deixa vezes dá vontade de falar: “preciso tomar conta dessa muito sem esperança. porra, preciso fazer isso na vida”, porque não é possível... O Gabeira tinha uma frase sobre o discurso E para além da resistência cultural? E aí eu musical ter mais poder do que o discurso político – não tô falando do escopo do seu trabalho, eu tô me apoiando em cima disso. (risos) Enfrentar de você como artista, mas da gente como com um discurso artístico forte em vez de sentar lá e cidadão: o que mais a gente pode fazer? É o me aventurar no meio deles. caso ir pra rua, sentar pra conversar com as pessoas? Falando do Gabeira, (risos) você acha que vai rolar a legalização [da maconha] em alCara, acho que sim. Teve uma coisa que eu aprengum momento ou a gente nem deveria estar di na minha vida que é que esses idiotas, os mais pensando nisso na atual conjuntura? idiotas mesmo, eles tem coragem de fazer coisa que a gente não tem. E, quanto mais eles vão tomando A gente tem que tá pensando porque isso faz parte esse poder, mais vão jogando as pessoas realmente do contexto total. Eu acho que não é “se” vai rolar, de bem, as boas, para o canto. E aí eu fico pensando: mas “quando” vai rolar. “cadê os outros?”. Não é possível que a gente seja 36


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Essa história do Rennan da Penha; associação ao tráfico, isso é a coisa mais ridícula do mundo. O cara tem que assinar como associado ao tráfico e não é nem quem vende, só faz o baile.

Então, quando? Por exemplo, pra mim esse quando é daqui 40 anos.

Você enxerga a força de reivindicação do Planet Hemp em algum artista atualmente?

Eu pensava isso há 20, 25 anos atrás. (risos) Agora não sei mais. Porque se tudo já tá na mão da milícia, de que forma isso seria feito no Brasil? O que precisa acontecer para que, de fato, haja benefícios e não simplesmente abra-se espaço para outras máfias, como é com a Big Pharma nos Estados Unidos? Eu morro de medo porque a legalização pode trazer as grandes empresas, e aí começa a massificar tudo, pasteurizar tudo. Mas, o principal motivo para legalizar é a violência. Essa guerra às drogas já foi provada que deu errado e é uma maneira de manipular, de controlar corpos nas favelas, cada vez mais. Nos três primeiros meses deste ano, no Rio de Janeiro, quase dobrou o número de mortes pela polícia. Isso é um absurdo, a gente precisa parar de matar gente, porra. O Estado tem que parar de matar gente. Parar de prender errado, sabe? Essa história do Rennan da Penha; associação ao tráfico, isso é a coisa mais ridícula do mundo. O cara tem que assinar como associado ao tráfico e não é nem quem vende, só faz o baile. É um leque de coisas absurdas, que eles alegam e que vão acontecendo. Eu espero que, lá no futuro, a gente olhe pra trás e ria. Espero estar vivo pra falar: “os caras prendiam a gente só porque falava ‘maconha’”. Acho que esse caminho é inevitável, principalmente tendo em visto o que os Estados Unidos tá fazendo. Eles tão optando pela legalidade e querendo ou não o “império” vai abrir seus leques e chegar aqui. (risos) E, quando isso começar a dar muita grana, os que são inimigos deles na Bolívia, as grandes plantações, vão acabar todos virando quintal e fazenda de maconha pra eles. Vai dar alguma merda, né? Mas, acho que, ainda sim, vai ser melhor do que o tipo de violência que a ilegalidade traz.

Sim, cara. Sabe o que foi o mais engraçado? Eu não sei se vocês perceberam isso, mas, até o começo das eleições, o rap tava muito babaca. Se você me perguntasse isso em outubro, eu ia te falar: “tá uma merda o rap, acabaram com o rap, só falta fazer luau”. Ah, já fizeram! (risos) E tava isso mesmo, virando musiquinha de condomínio, de violão, virou mainstream babaca. É uma coisa que no Brasil se faz muito com a música: o samba virou isso, o forró virou isso, música sertaneja virou isso, até o reggae virou universitário. Nem universitário o rap virou, foi direto pro condomínio, tá muito fanfarrão. Aí, das eleições pra cá, acho que os caras ficaram um pouco com vergonha de fazer esse tipo de rap com o jeito que o Brasil tá. E as vozes que já tinham força ficaram mais fortes ainda. Se gente pensar que talvez o trio mais forte do rap de hoje é Baco [Exu do Blues], BK e Rincon [Sapiência]: aí são três negros, jovens, com uma atitude forte. Tem outros também, lógico, mas esse trio me deixa muito esperançoso sobre esse rap novo. Tem gente fazendo. Fora o Criolo, o Emicida, né? Desses moleques mais novos, esses três, eu acho todos muito coerentes com os próprios discursos. A coisa mais legal deles, pra mim, é que são caras calmos, diferentes de mim, do [Mano] Brown, por exemplo. Eles tão calmos, tão defendendo a postura deles, e acho que a molecada tinha que se espelhar nesses caras. Pra mim, eles representam muito o que eu gostaria que o rap fosse agora. E tem as minas também! Tássia [Reis], Karolzinha [Conka]. A Tássia é uma mina que eu gosto pra caramba, o disco novo dela tá incrível, vocês tinham que pensar numa pauta com ela. Eu vou participar do disco novo, vou botar pra você ouvir…

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Sinergia braba Conheça a dupla criativa que mistura moda, música, business e vida real ao comandar o Say My Name Club, em São Paulo.

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e você já foi em alguma festa da Revista Balaclava, com certeza já conhece o espaço comandado por Aline Gïercis e Patty Dominguez. Nós já fotografamos pautas por lá – como as entrevistas com Jaloo e Aretha Sadick – e a casa é o nosso local preferido para eventos. Além de ser um lugar lindo e agradável para uma tarde entre amigos, o Say é o coworking das sócias, que ainda serve de ateliê e recebe eventuais residências artísticas. Elas planejam ações e ideias especiais para marcas como Converse e Nike, ao mesmo tempo que ajudam a impulsionar o mercado de cultura independente. “[O Say nasceu para] ser uma ponte facilitadora entre os criativos e o mercado. Ele nasce da nossa vontade de tornar o mercado mais justo e também de profissionalizar ainda mais a galera”, explica Aline sobre o projeto, que começou quando a dupla se conheceu em uma agência de comunicação de moda. Conectadas com as necessidades atuais, são multidisciplinares e grandes catalisadoras de encontros criativos. Conheça mais sobre a dupla:


Como a moda pode ser mais inclusiva? Aline: Não é só uma capa de revista ou uma frase em uma camiseta que vai mudar algo. Isso só acontecerá quando a tomada de decisão vier de lideranças inseridas em minorias ou, quem sabe, de pessoas que exerçam esses cargos e estejam, de fato, preocupados com essas mudanças. Com a estrutura social de cada lugar de fala e não só com as vendas e questões estéticas. No Say, sempre nos questionamos, por exemplo, se os discursos (acadêmicos ou socioculturais) estão chegando às ruas e como estão chegando. Por isso, buscamos ferramentas que nos levam aos lugares onde as estruturas são definidas e fazemos questionamentos dentro das instituições. “Plantamos” nossas dúvidas dentro de universidades e nas indústrias por meio de palestras. Assim como temos planos de lançar zines gratuitos sobre diversos temas e, assim, propagar os privilégios acadêmicos que tivemos para mais gente. Patty: Sempre gostei do pensamento acadêmico de moda, mas esse é um discurso excludente e que só mantém o grande público distante. É por isso, de certa forma, que as pessoas continuam acreditando que moda é apenas um conjunto de tendências. Além disso, sempre quis trazer um olhar multidisciplinar e repensar novas maneiras de entregar um produto de moda para o público. Como propor referências do cinema, artes visuais e arquitetura para os jobs.

Como vocês veem a participação feminina no meio em que atuam? Aline: Nossos projetos estão ligados a experiências na moda e na música e esses sempre foram cenários liderados por homens. Apesar de ser considerada pertencente a um suposto “universo feminino”, a moda e as principais decisões tomadas dentro dela sempre foram delegadas aos caras. Principalmente, quando se fala em streetwear, área em que estamos mais ligadas. Já na música, nunca se viu tantas mulheres liderando projetos autorais e encabeçando investidas fundamentais como agora. Hoje, é comum ver garotas correndo cheias de coisas para resolver - dentro de um backstage. É muito massa ver essa mudança. Obviamente, mesmo com a união entre as minas a fim de criar ambientes menos tóxicos e opressores, somos testadas a todo tempo.

Fotos Camila Siqueira @camilyla

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Onde está a cabeça de Orfeu? Thiago Pethit encontrou na tragédia grega um caminho para se reconectar consigo mesmo e com sua música.

Texto Mariana Marvão Fotos Rafael Barion


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omar café da manhã, ir ao mercado, limpar a casa, fazer amigos, ter um namorado. Todas essas, atividades comuns a quem não tem que lançar discos e fazer dezenas de shows. Nos últimos sete anos, esse foi o dia a dia de Thiago Pethit que, em prol de sua agitada carreira, abandonou a leveza da vida banal. Em 2016, saudoso da tranquilidade, ele decidiu apertar pause. “Eu pelo menos trabalho com as minhas experiências, meus afetos e minhas trocas. Então, poder viver dessa maneira me alimentou muito criativamente. Sinto que, como artista, pude evoluir, chegar mais perto daquilo que sonhei”, relembra. Para o bem ou para o mal, a poesia persegue o poeta e, no ano seguinte, começavam a brotar as canções que compõem seu quarto álbum Mal dos Trópicos (Queda e Ascensão de Orfeu da Consolação). Esse florescer veio depois de uma espécie de epifania. No livro que Thiago estava lendo na época, O Templo do britânico Stephen Spender, o autor reconta as férias que tirou em 1929 na Alemanha e detalha as experiências homossexuais que viveu ali. Além disso, ele também cita um fotógrafo que chamou atenção do Pethit. Trata-se de Herbert List, um alemão conhecido principalmente por seus cliques homoeróticos em preto e branco. Um deles, que levava um garoto com ramos de louro cobrindo os seus olhos, despertou no músico “um negócio que eu não sei explicar o que é, mas é típico de quando eu começo a ter ideias”. Daí, já dá para entender que são as agruras do tangenciamento entre o amor e o sexo que guiam a mais nova investida do cantor e compositor. “Falar com o coração é uma coisa

que exige tempo. Acho que esse disco é um pouco sobre isso, tentar falar desse lugar, do coração.” O mesmo estalo veio ao recuperar a história do lirista Orfeu, da mitologia grega. A tragédia deste filho do deus Apolo se resume em um musicista que perde sua amada Eurídice. Com sua morte, ele se vê sem nenhuma inspiração para tocar e falha ao tentar resgatá-la do mundo dos mortos. “O mito de Orfeu tem muitos finais. O que eu mais gosto a visão menos moralista da história - é uma em que as bacantes devoram Orfeu. Jogam a cabeça dele em um rio e Dionísio proíbe as festas até que se encontre a tal cabeça perdida. Quando a encontram, ele renasce por inteiro. Volta a ser tal qual era antes de perder Eurídice, cheio de sua potência. O disco caminha para esse lugar, das bacantes estraçalhando Orfeu”. Assim, as músicas do disco funcionam quase como uma peça de teatro. Existe uma linearidade entre as faixas que é a narração desse amálgama Thiago-Orfeu. “Não é como se eu tivesse elaborado tudo isso enquanto compunha o disco, mas existe, sim, um propósito nessa sequência. Se você ouvir tudo como singles, tudo bem. Mas, completo, ele dá mais informações e te guia por entre o que está sendo dito”, explica o artista. Thiago encontrou em Orfeu um oposto complementar: enquanto Orfeu agoniza a vida longe de sua arte, Thiago fez esse tempo render em experiências, em histórias para contar que, agora, encontram vazão em Mal dos Trópicos. “Quando você está lançando um disco a cada dois anos e fazendo show atrás de show, você vira quase um cavalo de corrida. E, quando se está nesse modus operandi a gente começa a perder o contato com os seus verdadeiros desejos.” A música para ele não é um hobbie, 47

é uma profissão. “É assim que eu pago as minhas contas. Esse tempo longe também foi importante para conseguir descobrir outras maneiras de me sustentar. O curioso é que nessa busca por encontrar algum respaldo no mundo real e ‘financeiro’, a poesia e a música se fortaleceram em mim. Foi como uma ‘redecisão’: experimentar a vida de verdade e não ficar me inundando de shows para pagar boletos.” Enquanto a inspiração não levava ao impulso criativo para as novas músicas, o artista experimentou com parceiros musicais. Assina os versos da música, Leite, presente no disco Boca (2016), do duo fervido NoPorn. Como trio, realizaram algumas edições da festa Meteoro, em inferninhos paulistanos e cariocas, com foco nas performances de improvisações ao vivo e na música eletrônica. Outra fonte de estímulo veio diretamente de Patti Smith. Pethit quebrou o hiato em shows pontuais, onde revisitou o repertório da artista americana – uma de suas maiores musas – ao lado das musicistas Larissa Conforto, Rita Oliva, Mônica Agena e Stéphanie Fernandes. No fim das contas, está em busca de conexões mais verdadeiras: consigo mesmo, com o trabalho, com a música e com os fãs. “É para isso que estou aqui. Quero trocar, aprender, olhar, observar, pensar, refletir, estudar, assimilar e transmitir. Quero criar realidades possíveis entre eu e o outro, o que está cada dia mais difícil e raro. A minha esperança é que, nesse mundo fast-food, tenham pessoas afim dessa troca.”


sobre um SMS cujo único conteúdo era a palavra BRUXISMO Texto Giovana Feix Arte Roberta Schioppa

Fevereiro de 2019

Julho de 2017

A forma como me tocava deixava evidente: ela sabia que eu estava nervosa. A forma como falava entregava tudo. Cada palavra era pronunciada do jeito mais lento que já ouvi — e  com o tom de voz que geralmente usamos pra falar com uma criança assustada. O fato de eu ter desmarcado em cima da hora nosso último encontro devia parecer uma denúncia a seus olhos. Ela enxergava minha fobia àquela situação — e à possibilidade de acabar descobrindo mais coisas doentes em mim. Fobia àquela cadeira e a todo o tempo que eu passaria deitada nela, desconfortável, com a boca escancarada, a baba acumulada no fundo da garganta e a língua ali, sem saber direito a que serve. A Dra. Sandra sabia que cancelei a última consulta após uma crise de ansiedade   e, por isso, queria me deixar o mais confortável possível. Depois de quase dois anos de depressão — e de uma higiene bucal consequentemente preguiçosa —, eu estava de fato com medo do que poderia descobrir ao visitá-la. “Não, cárie não”, ela disse com aquele tom de voz. “Mas seus dentes estão bem desgastados, viu. Você deve estar rangendo eles à noite — e não deve ser pouco!”.

O término do relacionamento abusivo em que estive por cerca de três anos completava alguns meses de aniversário na noite em que saí em meu primeiro date do Tinder. Eu estava surpreendentemente confiante — gata, vestindo a saia que mais favorece minha bunda e, bem, levemente alcoolizada. O moço do Tinder, por sua vez, estava flertante e levemente corado (não sei se pela bebida ou por estar, de fato, um tanto quanto flertante). Papo foi, papo veio. Flerte foi, Flerte veio. Eu conseguia praticamente sentir a cabeça dele se virar pra minha bunda, quando me levantava para ir ao banheiro. Tudo estava indo bem até que, de repente, vimos que o bar ia fechar. Lembro de olhar meu celular pra ver a hora — uma da manhã. O álcool tinha deixado o mundo meio nebuloso e cor-de-rosa, mas, nesse momento, levei um susto: na tela do meu Moto G5, um número grande demais de notificações — principalmente para aquele horário. Deixei o moço corado do Tinder confuso por um instante enquanto tentei, um pouco menos nebulosa e cor-de-rosa, entender a situação. Ah. É claro. Era ele.

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Três anos de agressão não tinham sido, aparentemente, suficientes. Desde nosso turbulento término, não tinham sido poucas as mensagens enviadas com o simples intuito de me fazer mal. Na noite do meu primeiro date do Tinder, não foi diferente. O susto que me tirou da nuvem cor-de-rosa era um conjunto de várias mensagens de texto, em que ele enumerava todos os defeitos que via em minha personalidade. Cada SMS, uma falha — como uma poesia horrível & escrita por um imbecil. Sensível demais, Chorona, TPM, Nervosinha, Irritada, Mal-educada, foram alguns dos insultos que li por primeiro. O último entre todos eles, no entanto, foi o que mais me marcou. A mensagem tinha uma única palavra: Bruxismo. Tive que rir — deixando o moço corado do Tinder ainda mais confuso. Como será possível, lembro de pensar na minha cabeça alcoolizada, que meu ex venha criticar em mim um problema que ele mesmo me causou?

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Março de 2019 Já são quase quatro da manhã, está quente demais e tudo que eu queria era dormir. Minha camisola está toda enrolada, de tanto eu virar de um lado para o outro, e minha bunda está de fora, gelada apesar do calor. É minha segunda noite usando a placa de bruxismo da Dra. Sandra — e, bom, vou admitir: ela é meio esquisita. Já são, sim, quase quatro da manhã, e — apesar de estar atualmente namorando um cara maravilhoso que conheci, mais adiante, também no Tinder — estou sozinha e insone na minha cama. Cenas dos últimos anos da minha vida meio que dançam e se misturam dentro da minha cabeça, e o escuro do quarto faz com que tudo pareça real, confuso e, pra ser bem sincera, horrível. Penso no quanto gostaria que bruxismo significasse alguma coisa maneira — algo a ver com bruxas, com o quanto elas são fodas e não têm de usar plásticos na boca para dormir em paz. Viro pro lado pra tomar uma água e vejo ele: meu Rivotril. Ainda com a placa de bruxismo-que-não-tem-a-ver-com-bruxas na boca, engulo um comprimido. Respiro fundo, fecho os olhos e penso que é isso. É isso que dá — pelo menos por enquanto. Pouco tempo depois, consigo enfim dormir.



ENTRO C O N A artista baiana Jadsa, que mora em São Paulo desde 2018, se prepara para lançar seu primeiro disco cheio, Olho de Vidro, pela Balaclava Records

MUNDO DO Texto e Foto Mariana Marvão

J

adsa Castro nasceu e foi criada em Salvador. Em meio a cidade do axé, seus primeiros projetos musicais foram bandas de hardcore. Foi aos 16 anos que deu início à sua primeira banda autoral, Bergamota, na qual era frontwoman. Já o projeto solo de Jadsa veio em 2015, com o lançamento do EP Godê, produzido por ela em parceria com o coletivo Tropical Selvagem. Multi-instrumentista e compositora, tem como uma de suas grandes referências a música brasileira do final dos anos 1960 e da década de 1970, além da vanguarda paulista. 51

Hoje, aos 24, faz shows em formato power trio com os músicos Caio Terra no baixo e Bianca Predieri na bateria. Jadsa é uma das promessas de 2019 com o lançamento de seu primeiro disco cheio, intitulado Olho de Vidro, que será lançado pela Balaclava Records. A cantora, baianamente dengosa, contou à revista sobre o início da carreira, a mudança para São Paulo e as histórias das novas músicas.


foto Isabela Yu

“ Acho que o disco vai se basear nesse rock quebrado, que conversa com o movimento do corpo e se expressa nas sĂ­labas.

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Quando você começou a tocar guitarra?

Três músicas totalmente diferentes uma das outras, em uma plataforma para misturar músicas.

Aos doze anos, quando tocava em bandinhas cover da Pitty, punk e hardcore. Minha primeira banda com música autoral foi a Bergamota, que serviu como um teste. Foi assim que comecei a tocar minhas composições, dar essa de “frente” woman.

Conta como está o desenvolvimento do álbum novo? Sempre brinco que a gente é tudo roqueiro. Acho que o disco vai se basear nesse rock quebrado, que conversa com o movimento do corpo e se expressa nas sílabas. A produção é do João Meireles, que também fez o Godê, e a produção artística é da Lia Cunha. Esperamos cinco anos para esse disco sair, já estou morrendo!

Como foi a transição do hardcore para as brasilidades? Que loucura, viu! Foi uma maluquice porque são universos diferentes. A galera do punk nasce e morre no mesmo lugar – bem raro você ver um punk que sai do seu “local”. Só fui entender a potência do som que o Itamar Assumpção, Jimi Hendrix e Janis Joplin faziam quando realmente parei para estudar. Quando você começa a pesquisar, parece que você também para de pensar quadrado. Por exemplo, Gilberto Gil faz um rock louco. Você começa a beber um pouco disso, quando entende que é rock, mas conversa com outras galeras.

Você tem um processo criativo estabelecido? Normalmente, começo com as melodias. Algumas coisas vêm primeiro, tento passar para o instrumento, às vezes com a linha de baixo. Sempre vem alguma melodia na cabeça, alguma frase… Alguma fruta que comi, alguma coisa que cheirei, não sei bem. Não consigo colocar na minha cabeça: “agora vou fazer uma música”. Moro em São Paulo agora, mas período de início do ano acontece muita festa em Salvador, todo mundo vai pra lá. O sol de lá é outra coisa, o ar também. Lá tem uma energia de renovação, o mar que traz e leva. Aqui não rola, tem que fazer uma yoga.

Você poderia apresentar a sua banda? Caio Terra é o baixista que toca comigo. Nos conhecemos no Teatro Vila Velha, em Salvador – fizemos uma peça junto. A única que Glauber Rocha escreveu, uma tragédia chamada Jango. A gente era co-diretores musicais, fizemos a música para a peça e era tudo ao vivo. A Bianca Predieri, baterista, conheci em São Paulo. Quando decidi morar aqui, no ano passado, fiquei observando ela… Teve um dia que virei e falei: “estou precisando de baterista, vamos testar?”. Ela arrasou no primeiro ensaio, colou demais.

O que espera para este ano? Fazer o que já estamos fazendo. Arte. Mexer com cultura – isso já é um rebuliço enorme na cabeça da galera. Não precisamos levantar braços, ou gritar, vamos fazer o que já sabemos fazer de melhor. Busco concretizar esse disco, que vem sendo construído ao longo desses anos depois do meu primeiro EP. O Godê, inclusive, era para ter nove músicas. Só cortamos para três por questões de tempo e dinheiro. Quero fazer shows, entrar nesse circuito de festivais e estar presente. A galera – e os artistas – pensam que São Paulo é como se fosse um TCC. Você vem pra cá para se botar em jogo. Você investe uma grana, faz seu trabalho e joga no mundo pra ver como é que é.

O seu primeiro EP, o Godê, lançado há quatro anos, tem uma pegada mais pro samba, pra MPB. Ainda se identifica com as músicas e com a batida? Quando paro para analisar, me identifico sim, porque são letras e ritmos que saíram de mim. O Godê foi realmente assim: vamos misturar para ver no que vai dar. 53


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SuperHaulis Confecções Por que o merch importa? O trio de amigos e músicos Novato Calmon, Thiago Barros e Viktor Murer pode te responder isto. “Como artistas trabalhando com música, fazer camisetas, adesivos e bags acabou se tornando uma possibilidade de viabilizar os nossos projetos. Queremos fornecer isso para outras bandas – realizar o processo de cabo a rabo, do tecido até o produto final”. – Viktor Murer.

Fotos Nicolau Spadoni

Peça seu orçamento em superhaulis@gmail.com



Falamos com Letrux sobre tornar-se poeta, o peso da palavra e o desavergonhamento em ter o amor como combustível para se aventurar pela trajetória da escrita. Texto Pedro João Foto Cabra Ilustração Renata Ver



Letrux e o vapor quente das gotas no asfalto “É difícil reler uma obra. Acho que é mais fácil fazer uma nova. Considerando que eu já sou uma pessoa meio nostálgica e com tendência a trabalhar com a memória, muito memorialista, tenho que me empurrar para frente. Sim, pode nascer uma música agora de uma sensação que eu tive quando era criança ou adolescente, mas estou nessa fase da vida em que olhar para frente é essencial. Já passei tempo demais olhando para trás. E tem coisas que me fazem corar de vergonha. Por exemplo, meu primeiro disco, de Letuce. Eu amo as composições, mas tenho pavor da minha voz. Pavor. Pareço uma menina fragilizada no canto da sala. Tenho um pouco de medo de ouvir. Apesar de amar as composições, porque eu estava muito pura ainda.

Letrux e a umidade que precede a garoa “Eu lembro até hoje de quando fui alfabetizada. Tia Denise, nunca vou esquecer. Lembro que ela fez o ‘A’ e o desenho de uma abelha e quando eu entendi aquilo, BUM na minha cabeça. A minha mãe também - além de ser pisciana e a pessoa mais sensível que eu conheço (de falar com as plantas, com os cristais, sozinha…) - era também professora e me deu muitos livros. Como meus outros dois irmãos não deram tanta pala para literatura, acho que ela deve ter ficado meio sentida. Aí veio a terceira filha que queria comprar um novo gibi da Turma da Mônica todo santo dia. Ela ficou encantada e me encheu de livros: de poesia, de romance, de tudo. Inclusive, recentemente, ela me segredou uma coisa louca. Disse que quando eu era muito pequena, enquanto ela, já cansada, cantava para mim e errava a letra, eu dizia: ‘não é assim a letra, tá errado’. Pensei que eu devia ser uma chata quando pequena, mas foi legal ver que a minha conexão com a palavra vem de muito cedo mesmo. Por mais que eu goste de melodia, eu sou mais letrista do que qualquer outra coisa até hoje. Achei linda essa memória.”

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Ao mesmo tempo, não acho que fiz uma grande obra para a qual não consiga nem olhar de novo. Por exemplo, a Clarice Lispector abandonava seus escritos depois de feitos, mas aí era outra coisa. Como que você relê A Paixão Segundo G.H.? Eu já li e reli várias vezes, esse livro é meu amigo e eu vou levar ele comigo para o resto da vida. Agora, se foi você que debruçou tanto tempo em cima disso, como é que consegue reler?”


Letrux e as noites de trovoada “Tem uma frase, eu acho que é do Picasso, que diz mais ou menos assim: ‘que a inspiração me pegue trabalhando’. É claro que os lugares, as viagens, são inspiradoras, mas você não pode ficar nessas de ‘ai, vamos pra tal lugar para ver se rola’. A gente, é claro, tem que estar em movimento, mas também tem que ser voyeur, ter a mente aberta. Eu posso ir para Maricá – que é uma cidade de praia, aqui no Rio, que tem petróleo, sei lá o quê – e inventar uma poeLetrux e a chuva torrencial sia. Como eu também posso ir para o interior do cu do mundo e inventar uma história. Não é exatamente o lugar que me faz. “Meu sol é na casa 5, do amor. Esse assunto, para mim, é eterno. Desculpa, mundo. Pode ser o mais Claro, no ano passado, fui para Lisboa e foi uma batido, mas eu vou falar dele até a minha morte. Vou coisa muito onírica. Fiquei bastante nas praias de sempre falar do amor: da maneira mais cafona, ou da Portugal e isso mexe com a gente, ainda mais a gente mais romântica, ou da mais sexual, ou da mais louca, que é artista, que trabalha com criação, mas eu não ou da mais inventada, projetada, enfim. Vou falar. sou (e não posso ser) dependente disso. Porque, enquanto capricorniana, sei que a montanha é gigante Eu sou uma mulher feminista e reconheço que e se eu ficar esperando só benesses do céu, eu vou muitas coisas foram descortinadas nos últimos anos me ferrar. a respeito de paixão e de amor. Mas, deep down, lá no fundo do fundo mesmo, duas vezes, eu envergo conÉ preciso ter o pé no chão. Eu tenho que estar sideravelmente para o lado do romance. Tendo fácil escrevendo, preciso me propor a isso. Tenho meus a ser a pessoa que idealiza, que vislumbra… Quando caderninhos, eles são rajadas. Uma hora, desce um eu vejo dois velhinhos de mãos dadas da rua, isso raio e eu escrevo esse raio ali, mas o momento em mexe comigo. que eu sento e organizo é também muito importante. E nessa hora, me baixam mais coisas, e eu faço Eu tenho plena consciência da loucura que tudo conexões entre esses raios soltos.” isso é. Mas, tem um lugar dentro de mim onde isso é possível. Até porque, eu vivi uma história linda de amor e estou vivendo mais uma história linda de amor. E nesse caminho, várias dinâmicas já aconteceram: estar junto, não estar, etc. E é possível! E fico surpresa com isso toda vez. Eu não tenho medo do climão, mas acho que as pessoas tem medo dele, sim. Ou pensam que vai dar trabalho demais, de repente, melhor ter uma vida sozinho. O que também está ótimo, cada um, cada um. Mas, viver um amor até as últimas consequências é uma parada transformadora. Eu escolho enfrentar o climão do amor, sempre.”

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Das poderosas entrevistas que Clarice Lispector fez com personalidades notáveis, reunimos algumas de suas perguntas mais enigmáticas e as jogamos sobre Letrux. Qual é a coisa mais importante do mundo? Não é o amor, é a paz. Uma vez, eu vi um filme lindo que chama Luz Silenciosa. Nossa, o filme que eu mais chorei na minha vida. Um drama, um casal não pode ficar junto, aí a mulher termina com o cara com uma lágrima caindo do olho e ela não aguenta mais aquela loucura e diz: “a paz é maior que o amor”. Porque todo mundo fica “ai, o amor, o amor...”. Sim, o amor é tudo. Mas, a paz é maior que isso. Eu estava falando sobre ir até o fim com as consequências do amor, mas chega uma hora que ó... Paz! Então, vamos ficar em paz? Vamos não nos matar? Acho que é isso. A coisa mais importante do mundo é a paz. Que falta em todo mundo. Agora mais do que nunca. Sensibilidade. Não acreditar que o relógio dita a vida. Não ficar

Qual é a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo? “Ai, um compromisso”, “ai, um trabalho”, etc. Hoje eu senti que eu queria dar um mergulho, hoje eu senti que eu queria matar o trabalho. Óbvio que você tem que ser responsável, mas a sensibilidade tem que ser seu instinto, seu terceiro olho. Ela é tudo. E, claro que tudo tem que ter um equilíbrio. Você também não precisa sair por aí suspirando à toa. Eu sou muito assim, me afeto com tudo. Mas, fui ficando casca grossa. Fiz 37 anos, já estou cada vez mais rumando para um lugar que eu desejo estar de tranquilidade. Mas, a minha sensibilidade sempre me guiou para caminhos legais, curiosos, divertidos da vida.

O que é amor e o que você acha do amor? Ih, já falei tanto de amor, mas daí a definir é foda. Amor, pra mim, é uma coisa absolutamente desnecessária, mas que é deliciosamente desnecessária.

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Qual foi o fato mais importante da sua vida? Cara, o fato mais importante da minha vida foi minha prima ter morrido de meningite. Quando eu tinha 17, ela tinha 19, era minha melhor amiga e a gente era prima-irmã. Ali teve uma quebra de fluidez, de algum pensamento ingênuo que eu tinha da vida. Mas, teve essa quebra também - ela era muito foda, ela era feminista e não sabia - porque somos muitos primos homens. E ela era minha única prima mais velha. Então, só o Léo podia não-sei-o-quê. E ela falava: ‘não, então a gente pode também’. Ela tinha uma aura: me viu fazendo teatro, quando eu tinha 13 anos, no colégio, e disse: você vai fazer isso para o resto da sua vida. Não entendi o conceito, ‘resto da minha vida’, e pensei: ‘que louca, Marina’. Era uma pessoa fantástica e uma pessoa que já tinha feito tudo. Já tinha fumado maconha, já tinha cheirado cocaína, já tinha transado... Eu era virgem, nem bebia! Era fascinada pela figura dela. E ela morreu de uma forma muito estúpida. Acordou no dia do aniversário dela e morreu. De meningite. E a Clarice também morreu no dia do próprio aniversário. Então a vida se divide um pouco, entendeu? Acho que eu podia falar coisas mais assim: fiz shows, amei, meus sobrinhos nasceram... Mas, isso da Marina é muito marcante. Porque todo dia eu penso: se ela estivesse viva, quantos anos teria? Eu fico pensando o que teria acontecido se ela estivesse viva. Às vezes, as ausências são mais fortes do que sei lá... Até porque eu era muito nova. Então, foi assim. No ano do vestibular. Foi foda.

O que você sente antes de enfrentar o público? Segurança ou inquietação? Inquietação. Vontade de fazer cocô. Vontade de desistir. Eu sempre falo: ‘que besteira... Por que essas pessoas estão aqui? Por que gastaram dinheiro com isso?’ E tem gente que fala: ‘ah, vai passar’ ou ‘ao longo dos anos, você vai melhorar’. E eu vi que a Fernanda Montenegro fala que até hoje, ela tem 80 e poucos, quando vai se apresentar, sente um frio na barriga. E eu também quero sentir isso. Acho que o dia que eu não sentir talvez perca a graça. Desde show em inferninho até show em festival. É igual, eu fico nervosa, minha mão sua. E dor de barriga, sempre. É um sinal de que estou viva! Fiz cocô em todos os lugares que eu cantei. A maioria dos lugares eu faço um cocozinho antes para dar uma relaxada. É brabo. (risos)

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por Camila Tuon

Assistente de foto Guilherme de Martino Produção e styling Melanie Swidrak Beleza Amanda Pris




V

oltamos com mais uma edição. Pois é, amigos. Parece que tudo e nada mudou depois de outubro do ano passado. Só para saber, por um acaso, você se lembra da última vez em que se sentiu otimista? Assim como as publicações impressas, o otimismo também está escasso hoje em dia. As perguntas são muitas e sabemos que não conseguimos mudar tudo. Palavras da sábia Robyn em entrevista à NPR: “Música não muda o mundo – não acredito que este seja seu propósito. Mas acredito que ela proporciona uma pausa, onde as pessoas conseguem recarregar e mudarem a si mesmas. Acho isso lindo”. Nós também achamos, Robyn. Nessas páginas, você leu histórias de pessoas muito íntimas com o que exercem. A partir de trabalhos inspiradores, os artistas retratados se destacam na forma como escolheram se expressar. E não podemos deixar de falar da atenção e astúcia dos nossos amigos-colaboradores, que se identificaram com o projeto e nos ajudaram a tornar mais uma edição possível. Esta é uma revista que passou por várias mãos e só se tornou real depois de inúmeras conversas. Esperamos que vocês tenham sentido ao longo das matérias o quanto somos felizes com os novos encontros. Conhecer as pessoas que escutamos desde crianças ou aqueles artistas que são as nossas novas paixões. Promover encontros criativos entre jornalistas, fotógrafos, ilustradores, designers e uma porção de gente bem intencionada. Que tal um desafio? Vamos supor que este seja realmente um bom momento para repensarmos nossas vidas e como desejamos viver no futuro. Você já leu todas essas matérias, conheceu as histórias de pessoas incríveis e chegou até aqui. Tire cinco minutos para escutar uma música nova. Ou aquela do D2 que você sabe que sempre vai amar. Escrevemos de uma posição confortável, mas acreditamos que a pausa seja necessária para qualquer pessoa colocar a cabeça em ordem. Aquela vida que existe entre ficarmos desnorteadas com as enchentes e desabamentos, é a mesma que nos emociona quando as coisas dão certo. A revista é um espaço em desenvolvimento, onde podemos conversar livremente, admitir erros e desengessar pensamentos engessados. Afinal, sempre podemos imaginar outros tempos – e esperar o próximo semestre para uma chance de começar tudo de novo. Menos enganação e enrolação, seguimos em frente. Tudo de bom, Heloisa Cleaver e Isabela Yu


Abril de 2019

A Revista Balaclava é um projeto idealizado por Heloisa Cleaver e Isabela Yu Direção editorial Isabela Yu @isabelayu Produção executiva Heloisa Cleaver @helocleaver Direção de arte e design Ana David @ana__david @gomaoficina Edição e revisão Pedro João @pedrojcamargo Colaboradores Amanda Pris @amandapr.s Andreia Takeuchi @andreiatakeuchi Bruno Brizzi @brunobrizzi Camila Tuon @camilatuon Carolina Brandão @ca.bra Fabiano Benetton @fabenetton Fernando Dotta @dotta Giovana Feix @feixgiovs Guilherme de Martino @errodeparalaxe Juliana Ferreira @juliepad_ Lucas Brêda @lucsabreda Maria Antonia Valladares @___mariaantonia Mariana Marvão @marimarvão Melanie Swidrak @melswidrak Nathalia Takeuchi @nathaliatakeuchi Pedro João @pedrojcamargo Renata Ver @renataver Roberta Schioppa @robertaschioppa Suy Abreu @suabreup Agradecimentos Locomotiva Festival, O Notívago, Say My Name Club e Superhaulis Confecções. Balaclava Records é Fernando Dotta, Rafael Farah, Isabela Yu e Francine Ramos imprensa@balaclavarecords.com Fale e anuncie na revista em heloisa@balaclavarecords.com



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