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“ TUDO QUE FAZEMOS É MÚSICA.” JOHN CAGE

“ EVERYTHING WE DO IS MUSIC.”




ANTEVER, PREVER, PRESSAGIAR, PROFETIZAR, ADIVINHAR, IMAGINAR, ANTECIPAR, PREDIZER, PRENUNCIAR E FUTURAR. A PARTIR DO ANO DE 2015, AO COMPLETAR 10 ANOS, COMEÇAMOS UM MOVIMENTO SEM VOLTA DE ANTEVISÃO, AVENTURANDO-NOS EM SUSPIROS POÉTICOS QUE CRIEM NOVAS REALIDADES. ESTAMOS NO FUTURO. ESTAMOS EM 2025. FORESEE, PREDICT, PRESAGE, PROPHESY, GUESS, IMAGINE, ANTICIPATE, FORETELL, FORECAST, FUTURISE. FROM THE YEAR 2015, AS WE COMPLETE 10 YEARS, WE BEGIN A JOURNEY WITH NO RETURN, OF FORESIGHT, VENTURING INTO POETIC SIGHS THAT CREATE NEW REALITIES. WE ARE IN THE FUTURE. WE ARE IN 2025.


BARULHO NOISE BRUIT RUMORE BULLA SOROLL HUTSENE LAWAAI SABDAYA SHOR




Lanรงamento do LP Barulho | Launching of the LP Barulho >




O BARULHO DO MUNDO

Felipe Scovino

1. Troca de e-mails entre Batman Zavareze e Felipe Scovino em 14 dez. 2018.

2. SONTAG, Susan. “A estética do silêncio”. In: _________. A vontade radical: estilos. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 18. 10

O fato do Multiplicidade ter tido em 2017 o barulho como leitmotiv das experiências artísticas que ali aconteceram, é um sintoma extremamente pertinente para pensarmos como o contemporâneo se revela enquanto acontecimento. O barulho pode ser medido ou percebido não só como ininteligibilidade, inaudibilidade, dissonância, algo que afeta diretamente os nossos ouvidos, mas também como uma potência que se localiza em seu poder de negar. E nos dias de hoje, negar pode ser lido nas mais distintas esferas. Como apontou o curador Batman Zavareze, o barulho pode ser a histeria que bloqueia qualquer compreensão de diálogo ou ainda a difícil tarefa de tolerar o pensamento dissidente.1 Discutir o que é o barulho na pós-modernidade, portanto especialmente nas práticas virtuais de comunicação, é refletir também sobre práticas de diálogo que perigosamente, inconscientemente ou não, abolem a escuta. Rapidamente duas práticas me vêm à mente. A primeira é que quanto mais criamos ferramentas e práticas de comunicação, vide mídias sociais, gadgets, softwares e hardwares que globalmente nos une, mais a solidão nos abate. Vivemos em casulos preenchidos a sua volta por máquinas, áudios, imagens, downloads, uploads. Nesse sentido, o ritmo acelerado de troca de informações, esse barulho do mundo, nunca deixa de implicar seu oposto e depender de sua presença: “assim como não pode existir ‘em cima’ sem ‘embaixo’ ou ‘esquerda’ sem ‘direita’, é necessário reconhecer um meio circundante de som e linguagem para se admitir o silêncio”.2 Cage já nos avisava que não existe o silêncio, pois sempre há alguma coisa acontecendo que provoca o som. Portanto, a profusão de informações que recebemos em nossas estruturas de reclusão privadas reflete esse estado dialético de silêncio e som: estamos embebidos de um vácuo pleno, um vazio enriquecedor. As relações sociais se dão virtualmente. A nossa satisfação e comunicabilidade cada vez mais prescinde da carne. Outra prática é a radicalidade da histeria que ocorre especialmente nas mídias sociais. É um fenômeno que parte de uma afirmação ou ideia geralmente bastante hostil àquele alvo a que se destina e em alguns casos frágil enquanto elaboração conceitual, política, filosófica etc. Mas o fato é que geralmente causa um forte estrondo. Independente da qualidade dessa ideia, o que claro é subjetivo, o que nos interessa é o efeito de anular qualquer tentativa de argumentação que pense de forma discordante. Nesse sentido, mais uma vez, arte e política se encontram pois pensar, produzir e exibir o diferente, ou aquilo que a maioria entende como dessemelhante, é provocar uma nova sensibilização sobre o mundo. Por outro lado, e foi a grande força do Multiplicidade, o silêncio (e o barulho)


3. Idem, ibidem.

continua(m) a ser, de modo inelutável, uma forma de discurso (em muitos exemplos, de protesto) e um elemento em um diálogo. Barulho pode ser experimentar ou também o significado de resistir às práticas mundanas de silenciamento. Barulho pode ser um grito ou um zumbido incessante de diálogo – fala e escuta. Uma forma de vida e presença. Em “Ursonate” (1932), Schwitters constrói uma poesia sonora que se revolve em camadas de imagens verbais ainda não entendidas ou transformadas em palavras assim como e.e. cummings transformou ruídos como sussurros e balbuciações em palavras logicamente ordenadas, ou ainda como os neologismos e arcaísmos de James Joyce implicaram em outra possibilidade de leitura. A (des)construção da linguagem está diretamente associada ao contexto histórico e a percepção sempre mutável sobre a condição do sujeito e da sociedade. Nesses casos, a experiência da guerra, os estudos sobre psicanálise, a falência de nações e impérios. Os artistas, poetas e escritores citados até aqui não tiveram suas obras apresentadas nessa edição do Multiplicidade mas foram referências importantes para as experiências e experimentos produzidos na edição de 2017. Na abertura do Multiplicidade, a performance/palestra de Marcelo Brissac contextualizou os 4’33’’ de Cage para a contemporaneidade ao ter o tráfego do bairro do Catete, onde está situado o Oi Futuro, como parte integrante da sua obra/fala. Barulho e silêncio não como oposição mas diálogo, co-existência. Não existe o silêncio ou o espaço vazio. Na medida em que o olho humano está observando, sempre há algo a ser visto. Olhar para alguma coisa que está “vazia” ainda é olhar, ainda é ver algo – “quando nada, os fantasmas de suas próprias expectativas”.3 A arte do nosso tempo é ruidosa e reconhece o imperativo do silêncio. A forma como a Quasi-orquestra, na mesma noite, com sua formação incluindo músicos de orquestras que recebem financiamento público, performou “A despedida” de Hadyn não deixa de criar um forte vínculo de protesto em como o Estado (não) percebe a importância da cultura na construção da cidadania. Ao invés da saída silenciosa dos músicos ao longo da peça como originalmente foi concebida, os músicos se espalharam pelos espaços do Oi Futuro e executaram de forma inovadora a peça. Essa forma simultaneamente lírica e contundentemente forte acaba criando uma imagem de resiliência e persistência. Perfeita para se compreender o ano de 2017 no Brasil marcado pelo efeito do golpe, que havia acontecido cerca de um ano antes mas que deixou sequelas políticas, sociais e institucionais profundas. A orquestra de 20 motores conduzida por Gabriela Mureb em “Máquina – Parte I” emitindo gases tóxicos, 11


4. Idem, p. 12.

cheiro de gasolina e a potência de um grito avassalador ressoou como um soco no estômago. Teatralmente dispostos os motores produziram um efeito singular: a arte montando um ataque catártico em ampla escala contra a linguagem. Essa ação de alguma forma incendiária e sabotadora também esteve presente na vinheta OBARULHOÉVISUAL/ OBAGULHOÉVISUAL, de Lenora de Barros e Raul Mourão, que alternava incessantemente as duas frases que dão título ao trabalho. Somos afetados pela arte de modo a criar uma faculdade da atenção. Como disse Karl Jaspers: “Já é muito ver alguma coisa claramente, pois nós não vemos nada claramente”. Como último ato desse texto, destaco a participação de 10 lideranças da etnia Kuikuro no Multiplicidade. Para além dos desdobramentos artísticos que esse encontro promoveu, eis um ato de resistência, perseverança, luta e possibilidade de troca. Em meio a falta de um trabalho mais organizado de demarcação das terras indígenas, assistência e reconhecimento dessas culturas, o ato de não silenciamento das diversas etnias, representadas pelos Kuikuro, mas pelo contrário, de afirmação, foi bastante simbólico para entender que essa edição do projeto foi ousadamente marcada também pela política e mais do que isso pelo diálogo horizontal (de atenção, fala e escuta). A arte não pode ser entendida como a consciência que expressa e que portanto implicitamente afirma a si própria. Como escreveu Sontag, “ela não é a consciência per se mas ao contrário seu antídoto, que deriva do âmago da própria consciência”.4 Barulho como forma de contaminação e disseminação de olhares e vozes menos relutantes em se comunicar. Felipe Scovino é professor na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É crítico de arte e curador, destacando-se publicações em revistas como Art Review, Artforum, Arte & Ensaios e Third Text, além da curadoria da mostra itinerante “Abraham Palatnik: a reinvenção da pintura” (2013-17), realizada em parceria com Pieter Tjabbes.

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THE NOISE OF THE WORLD

Felipe Scovino

The fact that the leitmotiv of Multiplicidade 2017 was noise is an extremely pertinent symptom for us to think of how the contemporary reveals itself as an event. Noise can be measured or perceived not only as unintelligibility, inaudibility, dissonance, something that directly affects our ears, but also as a potency that lies in a power to deny. And today denial can be observed in many different domains. As curator Batman Zavareze pointed out, noise can be a form of hysteria that hinders all understanding in a dialogue or also the difficult task of tolerating dissenting thought.1 Discussing what noise is in postmodernity, and especially in virtual communication practices, means to reflect also on practices of dialogue that dangerously, unconsciously or not, abolish active listening. Two practices immediately come to mind. The first is that the more we create communication tools and practices, like social media, gadgets, softwares and hardwares that unite us globally, the more lonely we feel. We live in cocoons surrounded by machines, sounds, images, downloads and uploads. In this sense, the increasing pace of information exchange, this noise of the world, “never ceases to imply its opposite and to depend on its presence: just as there can’t be ‘up’ without ‘down’ or ‘left’ without ‘right,’ so one must acknowledge a surrounding environment of sound or language in order to recognize silence.”2 Cage already warned us that there is no silence, since there is always something happening which creates sound. So the profusion of information that we receive in our private structures of seclusion reflects this dialectical state of silence and sound: we are steeped in a full vacuum, an enriching emptiness. Social relations take place virtually. Our satisfaction and communicability increasingly dispenses with the flesh. Another practice is the radicality of the hysteria taking place especially on social media. It is a phenomenon that starts with an assertion or idea generally quite hostile to its target and in some cases fragile as a conceptual, political and philosophical elaboration. But the fact is that it usually causes a loud bang. Regardless of the quality of this idea, which is of course subjective, what interests us is the effect of nullifying any argument that represents a differing way of thinking. In this sense, once again, art and politics meet, because thinking, produc-

ing and exhibiting the different or what most people understand as dissimilar, means leading to a new awareness about the world. On the other hand, and this was a great strength of Multiplicidade, silence (and noise) is still inescapably a form of discourse (in many instances, of protest) and an element in a dialogue. Noise can be experiencing or also the meaning of resisting the worldly practices of silencing. Noise can be a scream or an incessant buzz of dialogue – speaking and listening. A way of life and a presence. In “Ursonate” (1932), Schwitters creates a sound poem that revolves in layers of verbal images not yet understood or turned into words just like E. E. Cummings turned noises such as whispers and babblings into logically ordered words, or how James Joyce’s neologisms and archaisms implied a new way of reading. The (de)construction of language is directly linked to the historical context and the ever-changing perception of the condition of the subject and society. In these cases, the experience of war, psychoanalysis studies, the collapse of nations and empires. The artists, poets and writers cited so far did not have their works presented in this edition of Multiplicidade but were important references for the experiences and experiments created for the 2017 edition. In the opening of Multiplicidade, the performance/talk of Marcelo Brissac contextualised Cage’s 4’33’’ for contemporary art by having the traffic of the Catete neighbourhood, where Oi Futuro is located, as an integral part of his work/talk. Noise and silence not as opposition, but as dialogue and coexistence. There is no silence or empty space. As long as the human eye keeps observing, there is always something to be seen. “To look at something which is ‘empty’ is still to be looking, still to be seeing something—if only the ghosts of one’s own expectations.”3 The art of our time is noisy and recognises the imperative of silence. The way the Quasi-orchestra, which includes musicians from publicly funded orchestras, in that same night, played Haydn’s “Farewell” Symphony certainly creates a strong bond of protest against the ways in which the State values (or does not value) culture in the construction of citizenship. Instead of the musicians silently leaving during the piece, as the symphony was originally conceived, they scattered throughout the spaces of Oi Futuro and performed the piece in an innovative way. This simultaneously lyrical and strong way ends up creating an image of resilience and persistence. That is perfect for understanding the year 2017 in Brazil, which was marked by the effect of the coup, which had happen about a year before leaving deep political, social and institutional scars.

The twenty-engine orchestra conducted by Gabriela Mureb in Máquina – Parte I emitting toxic fumes, the stench of gasoline and the power of an overwhelming scream, resounded like a punch in the stomach. Theatrically arranged, the engines produced a unique effect: art setting up a large-scale and cathartic attack against language. This somewhat incendiary and sabotaging character was also present in the vignette OBARULHOÉVISUAL/ OBAGULHOÉVISUAL, by Lenora de Barros and Raul Mourão, which incessantly alternated the two sentences from the entitles the work. Therefore, we are affected by art in order to develop our capacity of attention. As Karl Jaspers put it: “Seeing something clearly is already a lot, because we do not see anything clearly.” As the last act of this text, I would like to highlight the participation of ten Kuikuro leaders in the festival. In addition to the artistic repercussions that this meeting promoted, it was an act of resistance, perseverance, struggle and a possibility of exchange. There is clearly a lack of more organised actions toward the demarcation of indigenous territories, assistance, and recognition of indigenous cultures. But the act of non-silencing and affirmation of the different ethnic groups represented by the Kuikuro people was quite symbolic in understanding that this edition of the project was boldly marked also by politics and by horizontal dialogue (attention, speech and listening). Art cannot be understood as a consciousness that expresses something and therefore implicitly affirms itself. As Sontag wrote, “Art is not consciousness per se, but rather its antidote—evolved from within consciousness itself.”4 Noise as a form of contamination and dissemination of gazes and voices that are less reluctant to communicate. Felipe Scovino is a professor at the School of Fine Arts of the Federal University of Rio de Janeiro. He is an art critic and curator, with articles published in magazines and journals such as Art Review, Artforum, Arte & Ensaios and Third Text. He curated, together with Pieter Tjabbes, the touring exhibition Abraham Palatnik: the reinvention of painting (2013–17),

NOTES 1. Email exchange between Batman Zavareze and Felipe Scovino on Dec. 14, 2018. 2.SONTAG, Susan. “The Aesthetics of Silence”. In: Styles of Radical Will. New York: Picador, 2002, p. 19. 3. Ibid. 4. Idem, p. 10. 13


Capa do livro 4’33’’ Sounds Like Silence, editado por Dieter Daniels (ALE) e Inke Arns (ALE) (Leipzig, Spector Books, 2018) Cover of 4’33’’ sounds like silence, a book edited by Dieter Daniels (DE) and Inke Arns (DE) (Leipszig. Spector Books 2018).



John Cage (EUA) | Versão linguistica datilografada de 4’33’’ (Tacet). Provavelmente datada do final dos anos 1950. Versão facsimilar da página datilografada original | acervo do Getty Research Institute.


John Cage (EUA) | Typewritten linguistic version of 4’33’’ (tacet) Probably late 1950s. Facsimle version of the originial typescript page | Getty Research Institute Collection.


Marcelo Brissac (BRA-RJ) / 4’33’’




Quasi-Orquestra (BRA-RJ) / LIVE QUASI-ORQUESTRA >>>>>>















Coletivo Anônimo (BRA) / MANIFESTAÇÃO PACÍFICA >





Alex Augier (FRA) / NYBBLE >>






DMTR (BRA-SP) / TEMPESTADE MIDI – Processos Criativos >>





DMTR (BRA-SP) + Gabriela Marcondes (BRA-RJ) + Nico Espinoza (CHL) / TEMPESTADE MIDI – Instalação Performance



Marcello Marcello Magdaleno Magdaleno (BRA-RJ) (BRA-RJ) // MULTI_LAB_QPEE MULTI_LAB_QPEE



Vรณia (BRA-RJ) / MULTI_LAB_QPEE




Gabriela Mureb (BRA-RJ) / MĂ QUINA Parte I e II >>







Carlos Casas (ESP) / AVALANCHE LIVE CINEMA



Carlos Casas (ESP) + Neil Leonard (EUA) + Nikhil Uday Singh (IND) / AVALANCHE LIVE CINEMA


Carlos Casas (ESP) + Nikhil Uday Singh (IND) + Chelpa Ferro (BRA-RJ) / AVALANCHE LIVE CINEMA >






Lenora de Barros (BRA-SP) + Raul Mourão (BRA-RJ) / OBARULHOÉVISUAL/ OBAGULHOÉVISUAL


Coni (FRA) + Lenora de Barros (BRA-SP) + Raul Mourão (BRA-RJ) / OBARULHOÉVISUAL / OBAGULHOÉVISUAL




Paul Jebanasam (ING/SRI) + Tarik Barri (HOL) / CONTINUUM AV


Martin Messier (CAN) / FIELD >





Felipe Assis + Leonardo Franรงa + Rita Aquino (BRA-BA) / LOOPING: BAHIA OVERDUB >>>>>















< Ninos Du Brasil (ITA) / VIDA ETERNA + Carlos Casas (ESP) >






Vizinha Faladeira (BRA-RJ) >




Início do Parque Indígena do Xingu (MT) Beginning of the Xingu Indigenous Park (MT)



HUTSENE KUIKURO Batman Zavareze

Hutsene é barulho em karib, língua dos Kuikuro.

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Thiago Jesus + Myllena Araujo (BRA-RJ) / PELES




1. O apogeu demográfico do Xingu se deu entre os séculos XIII e XIV, período marcado pela presença de grandes aldeias, cercadas por fossos defensivos e conectadas por estradas. No século XVII, elas entraram em rápido declínio, posivelmente atingidas por epidemias. A constelação xinguana se refez nos séculos seguintes, graças à incorporação de novos povos, que enriqueceram sua tradição. Assim, do amálgama entre falantes de língua arawak, karib, tupi e trumai (língua isolada) formou-se um dos mais sofisticados sistemas sociais do continente. No final do século XIX, o alemão Karl Von den Steinen visitou o Alto Xingu duas vezes. Graças a ele, sabemos que no século XIX viviam mais de 3 mil índios em 31 aldeias, sete delas karib. Outras expedições científicas e militares penetraram a região. Em 1915, quando se intensifica a exploração das cabeceiras do Rio Xingu, – inclusive com a Comissão Rondon, relatos dão conta de um acelerado processo de população: um choque bacteriológico e virótico reduziu de 3 mil para 1840 a população em 1926 e para 700 indício nos anos 1940. A partir dos anos 1940, a história dos povos do Xingu se confunde com a história da criação do Parque Indígena. Em 1943, os irmãos Villas-Bôas chegam à região com a expedição Roncador-Xingu e observam que encontram os mesmo povos encontrados por Steinem no século XIX. [Fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/ Povo:Kuikuro ]

2. Desenvolvido e produzido pelo People’s Palace Projects (de Paul Heritage) e Queen Mary University of London em parceria com a aikax e com a neccult. Financiado pelo Arts and Humanities Research Council (ahrc) and the Global Challenges Research Fund. Participaram como convidados Festival Multiplicidade (de Batman Zavareze), Observatório de Favelas (de Jailson Silva), Spectaculu (de Gringo Cardia) e Agência de Redes para Juventude (de Marcus Faustini).

Chegar ao Xingu não é para principiantes. São 36 horas de viagem Brasil adentro, um longo trajeto a ser percorrido rumo à terra dos Kuikuro 1, povo karib ancestral com a maior população do Alto Xingu, no norte do estado do Mato Grosso. Com uma população de mais de 600 pessoas, os Kuikuro se distribuem em três aldeias, sendo a principal delas a Ipatse. A entrada na aldeia aconteceu em 26 de agosto de 2017, iniciando um intercâmbio cultural que se deu graças a um convite do cineasta Takumã Kuikuro, presidente da Associação Índigena Kuikuro do Alto Xingu (AIKAX). Tudo nasceu da ideia de criar uma residência artística para que os Kuikuro explorassem novas formas de trocas com o exterior, não mais baseadas em turismo, mas em receber artistas, colocando em prática novos modos de difundir sua sabedoria ancestral aliado a debates contemporâneos. O Xingu é ponto de encontro secular entre povos de origens e línguas diversas que hoje compartilham uma cultura comum. Durante a estadia, quatorze artistas/curadores/produtores, num eixo Brasil/Reino Unido, inauguraram esse processo. Importante frisar que a residência foi viabilizada graças a parcerias com instituições acadêmicas, organizações artísticas e centros de pesquisa 2. Os dias em Ipatse deram lugar a uma experiência única, um aprendizado profundo, intenso, de onde não se sai ileso. Para além dos clichês, é impossível sair incólume do contato com a natureza em estado bruto. Coabita-se com onças, tucanos, maritacas, antas, tatus, veados, piranhas, jacarés e outros animais, seres que existem e ocupam tanto quanto nós aquele lugar. A residência artística foi movida por uma troca cultural que vai além de trocas tradicionais de compra e venda. Foram múltiplos os olhares e as partilhas de afeto. Em contrapartida, um mês depois, vieram 10 artistas Kuikuro para o Festival Multiplicidade. O que se seguiu foi uma série de ações no Centro Cultural Oi Futuro. Aulas de karib com Yamalu Kuikuro, oficinas de pintura corporal tradicional, oficinas de canto e dança com Nega e Tuiuta Kuikuro. Exibição de filmes de Takumã Kuikuro, inúmeros bate-papos com nomes como Paul Heritage, Cacique Jacalo, Carlos Fausto, Mércio Pereira Gomes, Ilana Strozenberg, entre muitos outros. Além disso, apresentou-se uma palestra sobre “Técnicas de Digitalização de Patrimônios Culturais em Risco”, com Ferdinand Saumarez, da Factum Foundation. Entre Ipatse e Rio de Janeiro, ainda fizeram parte do processo de intercâmbio Conrad Murray, Ellen Rose, Evelyn Falcão, Marcia Farias, Murilo Gelain, Myllena Araujo, Kalawaka Kuikuro, Kuiaitsi Kuikuro, Marrayury Kuikuro, Sagigua Kuikuro, Kuikuro, Yacalu Kuikuro e, por fim, Clelio de Paula, artista residente, que apresentou no Multiplicidade Xingu Ensemble, uma obra de realidade virtual criada durante o laboratório criativo desenvolvido na aldeia. Foi dada a largada para novas relações entre estes dois mundos: a urbe e a aldeia. O fim dessa convivência não é bem um fim, mas um recomeço. Recomeço este marcado por uma visão de mundo menos etnocêntrica. Da sabedoria compartilhada, da troca intensa, ecoa o recado dos Kuikuro. Ouvir os povos indígenas, sua visão de mundo, sua cultura, é um privilégio e é imprescindível. O hutsene da mata, o barulho dos Kuikuro, agora ressoam em cada um tocado por esta vivência.

Gringo Cardia + Myllena Araujo (BRA-RJ) / LUZES 105


Clelio de Paula (BRA-RJ) / VR [OTOHONGO]

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Totem, de André Vallias, foi apresentado no Centro Cultural Oi Futuro Ipanema, no Rio de Janeiro em 2013 e posteriormente publicado pela editora Azougue (2017). Foi escrito a partir de 222 nomes de povos indígenas, manifestando que ser índio é se abrir à multiplicidade e à pluralidade. Para Eduardo Viveiros de Castro é um poema que “diz o que somos, quem somos, nossos nomes, os nomes de nossos “antepassados” míticos que nos distinguem no desconcerto das nações.”

Assista TOTEM, de André Vallias

André Vallias nasceu em São Paulo em 1963. É poeta e designer gráfico. Seus primeiros poemas visuais datam de 1985. Atualmente, edita a revista Errática [www.erratica.com.br], dedicada à divulgação de poesia sonora, visual e digital.

Marcia Farias (BRA-RJ) / CHRISTIANO MAYARU (BRA-MT)

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HUTSENE KUIKURO Batman Zavareze

Hutsene means “noise” in Karib language.

1. The Xingu’s demographic climax occurred between the 13th and 14th centuries, a period marked by the existence of large villages, surrounded by defensive ditches and connected by roads. In the 17th century, they rapidly declined, possibly due to epidemics. The Xingu constellation was reformed in the following centuries, thanks to the incorporation of new peoples that enriched its traditions. Thus, the amalgamation of Arawak, Karib and Tupi languages, in addition to Trumai (an isolated language) formed one of the most sophisticated social systems on the continent. In the late 19th century, the German explorer Karl Von den Steinen visited the Upper Xingu region twice. Thanks to him, we know that in the 19th century more than 3.000 natives lived in 31 villages, seven of which were Karib. Other scientific and military expeditions penetrated the region. In 1915, when exploration of the headwaters of the Xingu River intensified, – including the Rondon commission, reports indicate an accelerated population decrease: new bacteria and viruses reduced the population from 3,000 to 1,840 in 1926, and to 700 in the early 1940s. From the 1940s, the history of the Xingu peoples merged with the history of the creation of the National Park. In 1943, the Villas-Bôas brothers arrived in the region with the Roncador-Xingu expedition and observed that they had found the same people met by Steinem in the 19th century. [Source: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kuikuro]

2. Developed and produced by People’s Palace Projects (Professor Paul Heritage) and Queen Mary University of London in collaboration with AIKAX and NECCULT, Funded by Arts and Humanities Research Council (AHRC) and the Global Challenges Research Fund. Guests: Festival Multiplicidade (Batman Zavareze), Observatorio de Favelas (Jailson Silva), Spectaculu (Gringo Cardia) and Agência de Redes para Juventude (Marcus Faustini).

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Getting to the Xingu in not for beginners. The trip takes 36 hours into the country, a long journey to the land of the Kuikuro1, descendants of the ancient Karib people and the largest population in the Upper Xingu region, in the north of the State of Mato Grosso. With a population of more than 600 people, the Kuikuro live in three villages, the main of which is Ipatse. The group’s arrival in the village was on August 26, 2017, starting a cultural exchange that took place at the invitation of filmmaker Takumã Kuikuro, president of AIKAX (Association of Indigenous Peoples of the Upper Xingu). It all came from the idea of creating an artistic residency so that the Kuikuro could explore new forms of exchange with the outside world, no longer based on tourism, but by receiving non-indigenous artists and putting in practice new ways of sharing their ancestral wisdom in combination with contemporary discussions. The Xingu is an ancient meeting point for the peoples of diverse origins and languages that today share a common culture. During our stay, fourteen artists/curators/producers from Brazil and the UK launched this exchange process. It is important to emphasise that the residency was made possible through partnerships with academic institutions, artistic organisations and arts research centers. The days at Ipatse were a unique experience, a deep, intense learning, from which one cannot escape unaffected. It is impossible to leave the contact with raw nature unchallenged. We lived near jaguars, toucans, maritacas, tapirs, armadillos, deer, piranhas, caymans and other animals, beings that exist and occupy that place as much as we do. The artistic residency was spurred by a cultural exchange on terms that went beyond economic relationships. There were multiple looks and affectionate sharing. In return, one month later, 10 Kuikuro artists joined Festival Multiplicidade. What followed was a series of activities at the Oi Futuro Cultural Centre. Karib language lessons with Yamalu Kuikuro, traditional body painting workshops, singing and dance workshops with Nega and Tuiuta Kuikuro. Screening of films by Takumã Kuikuro, numerous conversations with names such as Paul Heritage, Cacique Jacalo, Carlos Fausto, Mércio Pereira Gomes, Ilana Strozenberg, among many others. In addition, a workshop was held on Digitisation of Cultural Heritage at Risk, by Ferdinand Saumarez, photogrammetry specialist at Factum Foundation. Between Ipatse and Rio de Janeiro, the exchange also involved Conrad Murray, Ellen Rose, Evelyn Falcão, Marcia Farias, Murilo Gelain, Myllena Araujo, Kalawaka Kuikuro, Kuiaitsi Kuikuro, Marrayury Kuikuro, Sagigua Kuikuro, Kuikuro, Yacalu Kuikuro and, finally, Clelio de Paula, a resident artist who presented a virtual reality experience made during the creative laboratory in the village. It was the beginning of new relations between two different worlds: the city and the indigenous village. The end of this interaction is not really an end, but a new beginning. A new beginning marked by a less ethnocentric worldview. From shared wisdom and intense exchange, the message of the Kuikuro reverberates. Listening to the indigenous peoples, their worldview, their culture, is a privilege and is crucial. The forest’s hutsene, the noise of the Kuikuro, now resonates in everyone who was touched by this experience.


Watch TOTEM, by André Vallias Totem, by André Vallias, was presented at Oi Futuro Ipanema, Rio de Janeiro, in 2013 and later published by Azougue (2017). It was written based on 222 names of indigenous peoples, stating that being an indian is opening up to multiplicity and plurality. For Eduardo Viveiros de Castro it is a poem that “tells us what we are, who we are, our names, the names or our mythical ‘ancestors’ that distinguish us in the disconcert of nations.” André Vallias was born in São Paulo in 1963. He is a poet and graphic designer. His first visual poems date back to 1985. Currently, he publishes the Errática magazine [www.erratica.com.br], which promotes sound, visual and digital poetry.

Batman Zavareze (BRA-RJ) / AMUNERI KUIKURO (BRA-MT) 109


“ NO BRASIL, TODO MUNDO É ÍNDIO, EXCETO QUEM NÃO É” Eduardo Viveiros de Castro

Thiago Jesus + Myllena Araujo (BRA-RJ) / PELES

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O texto que segue é um trecho de entrevista dada por Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, à equipe 1 de Povos Indígenas no Brasil em 26/04/2006 sobre duas questões polêmicas: quem é índio? E o que define o pertencimento a uma comunidade indígena? O texto na íntegra foi publicado em Encontros – Eduardo Viveiros de Castro (org. Renato Sztutman), da editora Azougue (2007). A fala de Viveiros de Castro ilumina e conversa com estas páginas que mostram um pouco do que foi a residência artística no Xingu.


TODO MUNDO É ÍNDIO, EXCETO QUEM NÃO É 1. Carlos Dias Jr, Fany Ricardo, Lívia Chede Almendary, Renato Sztutman, Rogério Duarte do Pateo e Uirá Felippe Garcia

Permitam-me incorrer em um exagero heurístico. Eu direi que no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. Acho que o problema é “provar” quem não é índio no Brasil. Resposta política à resposta (isto é, à pergunta) política que se oferece ao antropólogo. Comecemos por algum começo. Entendo que a questão de quem é ou quem não é índio, de saída, não é uma questão de “cultura”, isto é, uma questão respondível mediante a inspeção dos conteúdos culturais da vida de um coletivo. Não estou negando, obviamente, que haja um fundo cultural ameríndio muito vivo e muito real; um fundo, ou por outra, uma forma, uma estrutura ou conjunto de estruturas (para usarmos uma palavra fora de moda) conceituais que remontam à América pré-colombiana. O que eu estou dizendo é que a relação com esse fundo cultural não é uma relação necessária (embora possa ser suficiente – e olhe lá ) para se definir o que é índio. Porque uma vez que se recusa a pergunta, o fundo cultural não pode mais servir para definir pertenças e inclusões em classes identitárias. Esse fundo cultural é um elemento da história do país, do continente, das três Américas. Os coletivos humanos contemporâneos espalhados por nosso continente se orientam de modos variados em relação a esse fundo; nenhum desses modos é redutível ao modo emanativo, pois um coletivo humano não é jamais a encarnação de uma cultura; não porque seja mais que isso, mas porque é outra coisa. E assim eu inverto a questão. O problema é quem não é índio. (Essa afirmação se insere em uma teoria do minoritário que devo a outrem, e que não cabe expor aqui. Mas para bom entendedor, eis como posso afirmar que no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é). Darcy Ribeiro, aliás – não sei se ele diz exatamente isso, não sou bom leitor dele –, insistiu com eloquência sobre o fato de que o “povo brasileiro” é muito mais indígena do que se suspeita ou supõe. (Não estou com isso, desnecessário dizer, minimizando o aporte óbvio e gigantesco das populações africanas trazidas à força para cá). O homem livre da ordem escravocrata, para usar a linguagem da Maria Silvia Carvalho Franco, é um índio. O caipira é um índio, o caiçara é um índio, o caboclo é um índio, o camponês do interior do Nordeste é um índio. Índio em que sentido? Ele é um índio genético, para começar, apesar de isso não ter a menor importância.

Thiago Jesus + Myllena Araujo (BRA-RJ) / PELES 113


O GENÉTICO E O GENÉRICO Os pesquisadores da UFMG que fizeram um levantamento do aporte genético ameríndio na população nacional descobriram que ele é muito maior do que se imaginava. Coisa de 33%, creio. Afinal de contas, então, o fluxo gênico ameríndio continua a correr solto. Interessante, mas isso não tem a menor importância, exceto pelo que pode ajudar a esclarecer sobre a história “do Brasil”. Digo que os coletivos caiçaras, caboclos, camponeses e índios são índios (e não 33% índios) no sentido de que são o produto de uma história, uma história que é a história de um trabalho sistemático de destruição cultural, de sujeição política, de “exclusão social” (ou pior, de “inclusão social”), trabalho esse que é propriamente interminável. Não é possível fazer todos os brasileiros deixarem de ser índios completamente. Por mais bem sucedido que tenha sido ou esteja sendo o processo de desindianização levado a cabo pela catequização, pela missionarização, pela modernização, pela cidadanização, não dá para zerar a história e suprimir toda a memória, porque os coletivos humanos existem crucial e eminentemente no momento de sua reprodução, na passagem intergeracional daquele modo relacional que “é” o coletivo, e a menos que essas comunidades sejam fisicamente exterminadas, expatriadas, deportadas, é muito difícil destruí-las totalmente. E ainda quando o foram, quando foram reduzidas a seus componentes individuais, extraídos das relações que os constituíam, como aconteceu com os escravos africanos, esses componentes reinventam uma cultura e um modo de vida – um mundo relacional que, por constrangido que tenha sido pelas condições adversas onde vicejou, jamais deixou de ser uma expressão da vida humana exatamente como qualquer outra. Não há culturas inautênticas, pois não há culturas autênticas. Não há, aliás, índios autênticos. Índios, brancos, afrodescendentes, ou quem quer que seja – pois autêntico não é uma coisa que os humanos sejam. Ou talvez seja uma coisa que só os brancos podem ser (pior para eles). A autenticidade é uma autêntica invenção da metafísica ocidental, ou mesmo mais que isso – ela é seu fundamento, entenda-se, é o conceito mesmo de funda mento, conceito arquimetafísico. Só o fundamento é completamente autêntico; só o autêntico pode ser completamente fundamento. Pois o Autêntico é o avatar do Ser, uma das máscaras utilizada pelo Ser no exercício de suas funções monárquicas dentro da onto-teo-antropologia dos brancos. Que diabo teriam os índios a ver com isso? […] Eduardo Viveiros de Castro é professor titular do programa de pós-graduação em Antropologia Social no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou inúmeros livros e artigos, dentre eles A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. 114


Marcia Farias (BRA-RJ) / RITUAL DE ARRANHADURA COM IOMUN E SEU FILHO BRUNO KUIKURO (BRA-MT) SCRATCHING RITUAL WITH IOMUN AND HIS SON BRUNO KUIKURO (BRA-MT)

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“ IN BRAZIL, EVERYONE IS INDIAN, EXCEPT THOSE WHO ARE NOT” Eduardo Viveiros de Castro

The following text is an excerpt from an interview with anthropologist Eduardo Viveiros de Castro to the team1 of Povos Indígenas no Brasil on April 26, 2006, on two controversial issues: who are the Indians? How to define one’s belonging to an indigenous community? The full text was published in Encontros – Eduardo Viveiros de Castro (ed. Renato Sztutman), Azougue publishing house (2007). Viveiros de Castro’s words enlighten and dialogue with these pages that describe a little the artistic residency in the Xingu. [...]

1. Carlos Dias Jr, Fany Ricardo, Lívia Chede Almendary, Renato Sztutman, Rogério Duarte Do Pateo And Uirá Felippe Garcia 116

EVERYONE IS INDIAN, EXCEPT THOSE WHO ARE NOT Let me make a heuristic exaggeration. In Brazil, everyone is Indian, except those who are not. I think the problem is “proving” that someone is not Indian in Brazil. A political answer to the political answer (that is, to the political question) given to anthropologists. Let us begin somewhere. I understand that the question of who is or who is not Indian is not a question of “culture,” that is, a question answerable by inspecting the cultural elements of the life of a collective. Obviously, I am not denying that there exists a very lively and real Amerindian cultural background; a background, or a form, a structure or a set of structures (to use a word now out of fashion) concepts that date back to Pre-Columbian America. What I am saying is that the relationship with this cultural background is not necessary (although it can be sufficient – if at all) to define what is an Indian. Because once we reject the question, cultural background can no longer be used to define one’s belongings and inclusions in identity classes. This cultural background is an element of the history of Brazil, of the continent, of the three Americas. The contemporary human collectives throughout our continent shape their perceptions in different ways in relation to this background; none of these ways can be reduced to the emanative mode, because a human collective is never the embodiment of a culture; this is not because it is more than that, but because it is something else. So I am turning the question around. The problem is who is not Indian. (This assertion is part of a minority theory that I owe to another, and that I am not going to be explaine here. But to those who are wise, this is how I may affirm that in Brazil everyone is Indian, except those who are not). Darcy Ribeiro, by the way – I am not sure he says exactly that. I am not a good reader of his work –, eloquently insisted that the “Brazilian people” are much more indigenous than is normally suspected or supposed. (Needless to say, with that I am not minimising the obvious and gigantic contribution of the African populations brought here by force). The free men of the slavery period, to use Maria Silvia Carvalho Franco’s language, are Indians. The man of the countryside is Indian, the caiçara is Indian, the caboclo is Indian, the peasant of the Northeast is Indian. Indian in what sense? He is genetically an Indian, to begin with, but that is really unimportant.


Thiago Jesus (BRA-RJ) / RETRATOS [TSANA KUIKURO (BRA-MT)] 117


Marcia Farias (BRA-RJ) / KAITAMA KUIKURO (BRA-MT) 118


THE GENETIC AND THE GENERIC The researchers of the Federal University of Minas Gerais who did a survey of the Amerindian genetic ancestry of the Brazilian population found out that it is much larger than previously thought. About 33%, I believe. The Amerindian gene flow continues to run wild, after all. Interesting, but that does not matter, except if it could help clarify the history “of Brazil.” I affirm that the caiçaras, caboclos, peasants and Indians are all Indian (and not 33% Indian) in the sense that they are a product of history, a history of systematic cultural destruction, political subjection, “social exclusion” (or worse, “social inclusion”). It is impossible to stop all Brazilians from being Indians. However successful the process of de-Indianisation carried out by catechisation, missionarisation, modernisation and granting of citizenship rights, it is impossible to reset history and suppress all memory, because human collectives exist crucially and eminently at the moment of their reproduction, in the intergenerational passage of that relational mode that “is” the collective, and unless these communities are physically exterminated, expatriated or deported, it is very hard to completely destroy them. Even when they are reduced to their individual components, extracted from the relationships that constituted them – as happened with the African slaves – these components reinvent a culture and a way of life. A relational world that, however constrained by the adverse conditions in which it thrived, never ceased to be an expression of human life just like any other. No culture is inauthentic, because there are not authentic cultures. Moreover, there are no authentic Indians. Indians, whites, Afro-descendants, or whoever they may be – because being authentic does not apply to human beings. Or perhaps that is something only white people can be (too bad for them). Authenticity is an authentic invention of western metaphysics, or even more than that – its foundation, it should be understood, is the very concept of foundation, an archmetaphysical concept. Only the foundation is completely authentic; only the authentic can be a complete foundation. For the authentic is the avatar of the Being, one of the masks worn by the Being in the exercise of its monarchic functions within the onto-theo-anthropology of the whites. What the hell would the Indians have to do with it? […]

Thiago Jesus (BRA-RJ) / RETRATOS [TUGUHITSAGI BILLY KUIKURO, MAYUPI KUIKURO, NIKE KUIKURO (BRA-MT)]

Eduardo Viveiros de Castro is full professor of the postgraduate program in social anthropology at the National Museum of the Federal University of Rio de Janeiro. He published numerous books and articles, including The Inconstancy of the Wild Soul as well as other anthropological essays. 119


Takumã Kuikuro (BRA-MT) / RITUAIS E LINGUAGENS RITUALS AND LANGUAGES



Takumã Kuikuro (BRA-MT) / RITUAIS E LINGUAGENS RITUALS AND LANGUAGES


Marcia Farias (BRA-RJ) / INICIAÇÃO À CULTURA KUIKURO NO SISTEMA EDUCACIONAL DO XINGU INITIATION TO THE KUIKURO CULTURE IN THE XINGU EDUCATIONAL SYSTEM


Marcia Farias (BRA-RJ) / CASA XINGUANA DE CULTURA XINGUANA HOUSE OF CULTUREÂ


Batman Zavareze (BRA-RJ) / RITUAIS E LINGUAGENS RITUALS AND LANGUAGES


Marcia Farias (BRA-RJ) / ALDEIA IPATSE IPATSE VILLAGE



Ferdinand Saumarez (ING) / SCANNER 3D AÉREO 3D AERIAL SCAN


Clelio de Paula (BRA-RJ) / DOCUMENTAÇÃO DA SERIE XINGU ENSEMBLE DOCUMENTATION OF THE XINGU ENSEMBLE SERIES


TAKUMÃ + YAMALUI KUIKURO (BRA-MT) XINGU 2025


YAMALUI KUIKURO (BRA-MT) XINGU 2025


YAMALUI KUIKURO (BRA-MT) XINGU 2025



Clelio de Paula (BRA-RJ) XINGU ENSEMBLE VR



Clelio de Paula (BRA-RJ) XINGU ENSEMBLE VR


Elisa Mendes (BRA-MG) + Batman Zavareze (BRA-RJ) PAJÉ SAGIGUA KUIKURO (BRA-MT)


Elisa Mendes (BRA-MG) + Batman Zavareze (BRA-RJ) YAMALUI KUIKURO (BRA-MT)


Elisa Mendes (BRA-MG) + Batman Zavareze (BRA-RJ) KALAWAKA KUIKURO (BRA-MT)


Elisa Mendes (BRA-MG) + Batman Zavareze (BRA-RJ) CACIQUE JACALO KUIKURO (BRA-MT)



NINGUÉM

SOLTA A

NINGUÉM


MÃO DE O texto que segue foi extraído da peça PROJETO bRASIL. Esse texto nos ilumina, nos estimula. Desperta em nós um sentimento imaginário que nos move para criarmos uma plataforma artística plural, híbrida, inovadora e assim, sonhar nossas Utopias e Distopias.


PROJETO bRASIL Texto final

Marcio Abreu Dramaturgia de

Giovana Soar, Marcio Abreu, Nadja Naira e Rodrigo Bolzan

Esta peça é uma composição dramatúrgica articulada em 16 discursos verbais e não verbais, de natureza performativa. Algumas referências: o discurso 2 foi criado a partir de improvisações do ator Rodrigo Bolzan em sala de ensaio; o discurso 4 é uma adaptação de uma sequência de discursos públicos reais, proferidos pela ex-Ministra da Justiça da França, Christiane Taubira; os discursos 7 e 15 são textos originais escritos por Marcio Abreu durante o processo de criação da peça; os discursos 6 e 12 foram escritos coletivamente, num critério de composição com palavras no espaço, e transformados em música por Felipe Storino; o discurso 10 é uma adaptação de um discurso público real proferido na ONU por Pepe Mujica, ex-Presidente do Uruguai. O texto e a dramaturgia desta peça foram criados em simultaneidade com a criação do acontecimento teatral. Esta é uma estrutura aberta.

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preto sobre preto

espaço que sugere movimento

parede curva, sobrepalco circular, sentido espiral

fim de festa

[...]

DISCURSO 10 Durante sua fala 1 mulher vai trazendo mais microfones. 1 homem diante de muitos microfones. sua fala é legendada. ele diz partes de 1 discurso proferido por Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, em conferência na ONU. Na parte final de sua fala ele deixa os microfones, passa a falar em português, aproxima-se do público, começa a ler as legendas em português, depois para de ler e, junto com o público, lê em silêncio as legendas do texto até o final. — Amigos, sou do sul, venho do sul. Na esquina do Atlântico com do rio da Prata, meu país é uma planície suave, temperada, uma história de portos, couro, charque, lã e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, na virada do século XX, passou a estar na vanguarda social, política e educacional. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo com nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz – porque uma vez fui um rapaz – que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, perseguindo o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes em que grito com nostalgia: “Quem dera tivesse eu a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia!” No entanto, não olho para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Ao contrário, não vivo para fazer cobranças ou para reverberar memórias. Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida. Mas sou do sul e venho do sul a esta Assembleia. Carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas depressões da América Latina pátria de todos que está se formando. Carrego o dever de lutar por uma pátria para todos. E carrego o dever de lutar por tolerância. A tolerância é necessária para com aqueles que são diferentes, e com quem discordamos e discrepamos. Não é preciso tolerância com aqueles com quem concordamos. A tolerância é fundamental para que convivamos em paz, entendendo que, no mundo, somos diferentes.

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O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse anti-valor, esse que sustenta que apenas somos felizes se enriquecermos, seja como for. Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até financia em parcelas e cartões a nossa aparência de felicidade. Prometemos uma vida de esbanjamento e desperdício, e, no fundo, essa é uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade do futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais. E pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem: o amor, a amizade, a aventura, a solidariedade e a família. Destruímos as florestas e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos. Somos felizes longe da essência humana? Devemos nos fazer esta pergunta. A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode mais do que se perpetuar, e, como tal, delegou o poder, e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. A descontrolada marcha da história humana, comprando e vendendo tudo e inovando para poder negociar de alguma forma o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, mães, avós e tios, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio. O homenzinho médio de nossas grandes cidades perambula entre os bancos e o tédio diário dos escritórios, às vezes em ambientes climatizados artificialmente. Sempre sonha com as férias e com a liberdade, sonha em pagar as contas, até que, um dia, o coração pára, e adeus. Sempre haverá outro soldado abocanhado pelas presas do mercado e assegurando a acumulação. A crise é a impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não escapa nem escapará do sentimento de nação. Sentimento que já está quase que incrustado em nosso DNA. Hoje é tempo de começar a lutar por um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem outro guia que não seja o interesse privado, de muitos poucos, e cada Estado Nacional almeja sua própria estabilidade continuísta, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde visão, é o todo. Mais claramente, cremos que o mundo exige a gritos regras globais que respeitem os avanços da ciência, que abunda. Mas não é a ciência que governa o mundo. Nem os grandes Estados nacionais, nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveriam governar o mundo dos humanos. Sim, a alta política entrelaçada com a sabedoria científica, essa é a fonte.

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Nossa época é portentosamente revolucionária como a história da humanidade jamais viu. Mas ela não tem uma direção consciente. A cobiça, tão negativa e tão propulsora da história, essa que impulsionou o progresso material técnico e científico, que fez de nossa época e nosso tempo o que eles são hoje e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente, essa mesma ferramenta, a cobiça que nos impulsionou a domesticar a ciência e transformá-la em tecnologia nos empurra em direção a um abismo nebuloso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história, e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e para continuar nos transformando. A cobiça individual triunfou grandemente sobre a cobiça superior da nossa espécie. Mas o que é o “todo”, essa palavra simples que utilizamos? Para nós, é a vida global do sistema terrestre, incluindo a vida humana, com todos os frágeis equilíbrios que nos possibilitam perpetuar a nós mesmos. Por outro lado, mais simples, menos discutível e mais evidente. No nosso Ocidente, particularmente, porque daqui viemos, embora tenhamos vindo do sul, as repúblicas que nasceram para afirmar que os homens são iguais, que ninguém é mais do que ninguém, que os governos deveriam representar o bem comum, a justiça e a igualdade. Muitas vezes, as repúblicas se deformam e caem no esquecimento das pessoas que andam pelas ruas, o povo comum. Esse homem da rua deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os governos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida. A verdade é que cultivamos arcaísmos feudais, cortesanias consentidas, fazemos diferenciações hierárquicas que, no fundo, enfraquecem o que as repúblicas têm de melhor: que ninguém é mais do que ninguém. Ouçam bem, queridos amigos: a cada minuto se gastam US$ 2 milhões em orçamentos militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em orçamento militar! Este processo, do qual não podemos sair, é cego. Assegura o ódio e o fanatismo, a desconfiança, fonte de novas guerras e, isso também, o esbanjamento de fortunas. Então cada qual esconde armas de acordo com sua magnitude, e aqui estamos, porque não podemos raciocinar como espécie, apenas como indivíduos. Porque não somos iguais. Não podemos ser iguais nesse mundo onde há os mais fortes e os mais fracos. Portanto, é uma democracia planetária ferida. No fundo de nossos corações há um enorme anseio de ajudar o homem a sair da pré-história. Até que o homem não saia dessa pré-história e esqueça a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a longa marcha e o desa-

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fio que temos à nossa frente. E o dizemos com conhecimento de causa, pois conhecemos a solidão da guerra. começa a ler as legendas em português, se coloca junto do público.

Paralelamente, devemos entender que os pobres do mundo não são da África ou da América Latina, mas da humanidade toda, e esta deve, como tal, globalizada, empenhar-se em seu desenvolvimento, para que possam viver com decência de maneira autônoma. Os recursos necessários existem. Toda a base material mudou e cambaleou, e os homens, com nossa cultura, permanecem como se nada houvesse acontecido e, em vez de governarem a globalização, deixam que ela nos governe. Mas, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem é capaz de transformar o deserto em verde. O homem consegue levar a agricultura ao mar. O homem consegue criar vegetais que vivem na água salgada. Se a força da humanidade se concentra no essencial, ela é incomensurável.

para de ler. ficam só as legendas.

Aqui estão as mais maiores fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. Há energia de sobra no mundo se se trabalharmos para usá-la corretamente. É possível acabar tranquilamente com toda a pobreza do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações futuras, se elas conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos. Mas para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nós mesmos, ou sucumbiremos porque não conseguimos estar à altura da civilização que temos desenvolvido com nossos esforços. Este é nosso dilema. Não gastemos nosso tempo apenas lidando com as consequências. Pensemos nas causas primárias, na civilização do desperdício que rouba o tempo da vida humana, desperdiçando-o com questões irrelevantes. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e que nada vale mais do que a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a vida e entender que a espécie somos nós. Obrigado.

suspensão. silêncio. [...]

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DISCURSO 16 1 mulher em meio ao público. 2 homens e 1 mulher no sobrepalco circular. Vestígios. Olham-se. Ouvem. Todos ouvimos. – O que nos marcou? – Vivemos um tempo do fim. – No fim não haverá nada, só seres humanos e não por muito tempo. – Gente de menos com mundo demais. Gente demais com mundo de menos. – A morte não é um acontecimento, pois quando acontece já não estamos lá. – Depois do futuro, o fim como começo. – Há muitos mundos no mundo. – Estamos diante de algo grande. – Sonhar outros sonhos. – Só o homem nu compreenderá. escuro. – Ele flutua. suspensão.

fim.

Marcio Abreu é dramaturgo, diretor e ator. Criou e integra a Companhia Brasileira de Teatro, sediada em Curitiba. Recebeu inúmeros prêmios e indicações. Entre eles o prêmio Bravo!, o prêmio Shell, o APCA, e o Questão de Crítica. Atualmente está em cartaz com Outros e Preto, e, é o autor do livro Maré/ PROJETO bRASIL publicado pela Editora Cobogó, com trechos reproduzidos aqui em nossas paginas centrais.

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UTOPIA DISTOPIA


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