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Romeu Duarte Junior
Romeu Duarte Junior
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Os atos ofciais da preservação do patrimônio histórico-cultural no país1 se iniciaram em 1933, com o tombamento, por decreto presidencial, da cidade de Ouro Preto, uma das mais destacadas do ciclo do ouro havido no século XVIII em Minas Gerais. Defagradas no âmbito federal sem o concurso de uma instância ou órgão especifcamente voltados à sua promoção, mesmo assim, desde o seu nascedouro, as ações de proteção dos acervos culturais no Brasil, notadamente os de natureza edilícia, serão marcadas pelo cunho estatal, de clara inspiração francesa. Somente em 1937, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN (posteriormente Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN) no primeiro governo de Getúlio Vargas, é que o país passou a ter, na esfera federal, um órgão encarregado diretamente dessas responsabilidades.
Criado como a base legal para a operação do recém-nascido órgão, o Decreto-Lei Nº 25/372, gerado no bojo da constituição outorgada de 1937, continua detendo essa condição, tendo sido mantido em vigor por todos os diplomas constitucionais subseqUentes. O caldo de cultura patrimonial
1 Anteriormente, dignos de nota, somente alguns poucos eventos: em 1920, Bruno Lobo, presidente da Sociedade Brasileira de Belas Artes, encarrega o professor Alberto Childe, do Museu Nacional, da elaboração do anteprojeto de lei de defesa do patrimônio artístico nacional; em 1923, Luiz Cedro, deputado por Pernambuco, apresenta à Câmara dos Deputados o primeiro projeto com vistas a organizar a defesa dos monumentos artísticos e históricos do país; e em 1927, Francisco Góis Calmon, presidente estadual da Bahia, organiza a defesa do acervo histórico e artístico do Estado, criando a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais. 2 Legislação esta que estabelece o tombamento como forma adequada de proteção para o patrimônio material.
à sua volta é curioso: quem vai se ocupar da preservação do patrimônio cultural brasileiro, batendo ponto diariamente na repartição federal, serão os intelectuais que já respondiam pela renovação de nossas expressões artísticas. Com efeito, serão os pioneiros modernistas, em sua maioria mineiros, reunidos em torno do prestígio de Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde, e em boa medida simpáticos às propostas do comunismo, que vão dar concretude às ideias do IPHAN. Começarão pelos inventários da arquitetura religiosa do período colonial, que lhes revelará a imensidão e a urgência de sua tarefa.
De outra parte, será o conceito de “cidade-monumento”, elaborado a partir de sua própria condição de refnados estetas, que animará seu trabalho. Por este prisma, só serão alçadas à condição de patrimônio nacional aquelas manifestações arquitetônicas e urbanísticas produzidas sob o risco português, os materiais locais e o braço escravo, fliadas estilisticamente ao barroco. As cidades protegidas nesta etapa serão contempladas como obras de arte perfeitamente acabadas e consagradas, dignas de estudo e reverência, relegando-se a patamar bastante inferior as realizações de períodos posteriores, considerados como espúrias. Este era um momento em que os nossos pioneiros do IPHAN repudiavam o emprego no presente das linguagens historicistas europeias (neoclássico, ecletismo, Art Nouveau, Art Déco etc.) e procuravam encontrar nexos entre a produção construída dos séculos coloniais e a modernista, num esforço de continuidade de uma tradição construtiva e espacial. Como bem disse Castriota (2009, p.74), nesse período,
considerada como expressão estética privilegiada, a cidade é abordada segundo critérios puramente estilísticos, ignorando-se completamente sua característica
documental, sua trajetória e seus diversos componentes como expressão cultural de um todo socialmente construído...com isso, instaura-se ali, como de resto em todo o Brasil, uma prática de conservação orientada para a manutenção de conjuntos tombados como objetos idealizados, desconsiderando-se, muitas vezes, sua história real.
Serão os primeiros documentos preservacionistas de escala internacional, posteriormente conhecidos como cartas patrimoniais, que, de certa forma, balizarão o ideário e a ação dos modernistas preservacionistas brasileiros. A Carta de Atenas de 1933, um dos principais produtos teóricos do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – CIAM, apresenta em seu escopo, noções que estruturam essa forma de conceber o patrimônio construído. Baseando-se no princípio funcional das quatro “chaves do urbanismo”, a saber, habitar, trabalhar, recrear-se e circular, a carta vai tratar a preservação do patrimônio edifcado por uma ótica higienista e a-histórica característica do Modernismo, já que, para seus redatores,
a morte, que não poupa nenhum ser vivo, atinge também as obras dos homens...Nem tudo que é passado tem, por defnição, direito à perenidade; convém escolher com sabedoria o que deve ser respeitado (apud CURY, 2004, p.52), o que deixa claro que esta última ação caberia somente aos técnicos envolvidos com a construção da nova cidade industrial.
É mister também reconhecer que a linha interpretativa dos grandes feitos e da contribuição dos “heróis” de nossa história, o que passou a ser conhecido como “história ofcial”, determinou fortemente a compreensão e interpretação da trajetória histórica brasileira, na qual o povo, em sua miscelânea de classes sociais, raças, origens e credos, ainda não era reconhecido como seu principal protagonista. Daí a construção da
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imagem de um Brasil idealizado, com manifestações artísticas próprias, entendidas como dignas de proteção e valorização por parte dos pioneiros, em detrimento de outras não reconhecidas por estes como tal.
As ações do IPHAN, consentâneas com essa orientação teórico-conceitual, vão, portanto, se concentrar nas regiões brasileiras que, para os intelectuais do patrimônio, expressavam de forma eloquente esse cenário imaginado. As cidades da administração colonial e imperial (Salvador e Rio de Janeiro) e as dos ciclos econômicos da cana-de-açúcar (Recife, Olinda, João Pessoa), do ouro e das tropas (as urbes mineiras, paulistas e goianas), com sua diversifcada, rica e por vezes suntuosa arquitetura, serão aquelas escolhidas para atendimento prioritário pelo órgão federal de preservação. Outros Brasis, seja pela ocupação territorial recente ou por manifestarem, ao ver desses estetas, valores arquitetônicos e urbanísticos de menor relevância, terão que aguardar na fla até que estes sejam compreendidos e aceitos como legítimos, operação que consumirá tempo razoável.
É o que aconteceu, dentre outros estados-membros da federação situados nesta zona cinza, com o Ceará. O patrimônio edifcado cearense só mereceu menção federal no fnal da década de 19503, com o tombamento em 1957, pelo IPHAN, da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, em Aracati. Emblemático do posicionamento teórico-conceitual anteriormente descrito é o tratamento concedido ao monumento por Lúcio Costa em seu parecer de tombamento, o que evidencia também os “cuidados” dispensados pelas instâncias administrativas locais ao acervo teoricamente posto sob a responsabilidade destas:
3 O primeiro bem tombado pelo IPHAN no estado foi a coleção arqueológica do Museu da Escola Normal, em 1941, atualmente sob a guarda do Museu do Ceará.
Arquitetonicamente, a Matriz de Aracati não tem qualidades que justifquem a sua inclusão nos Livros do Tombo Artístico como monumento nacional. Excetuados, externamente, o conjunto das portadas e internamente a banca de comunhão, é obra destituída de qualquer signifcação artística. Embora edifcada no século XVIII, o seu interior só foi concluído no século XIX, quando também foi acrescentada a volta redonda às janelas do coro. O retábulo singelo do altar-mor, mandado vir de Pernambuco, data de 1814. O varandão do coro foi posto em 1852, pelo tesoureiro Capitão Melquíades da Costa Barros, etc. Contudo, como os governos estadual e municipal não se interessam pela preservação do patrimônio regional ou local, o recurso à intervenção federal visaria, no caso, unicamente impedir as obras desfguradoras que se anunciam, dando-se assim satisfação ao louvável empenho demonstrado pela população e ao interesse manifestado pelo Dr. Gustavo Barroso4, sempre atento na defesa das obras antigas da sua terra (COSTA, apud PESSÔA, 2004, p.147).
Neste momento, o patrimônio não despertava o interesse dos escassos arquitetos existentes no estado, este destituído ainda de escolas de arquitetura ou de qualquer outra instituição de pesquisa nessa área.
Em meados da década seguinte, essa situação iria se alterar. Mediante a condução do arquiteto José Liberal de Castro5, então professor da Escola de Engenharia da UFC, o
4 Gustavo Barroso (Fortaleza/CE, 1888 – Rio de Janeiro/RJ, 1959) exerceu as atividades de advogado, professor, político, contista, folclorista, cronista, ensaísta e romancista. Ideólogo destacado da Ação Integralista Brasileira, foi diretor do Museu Histórico Nacional. Membro da Academia Brasileira de Letras, presidiu-a por diversas vezes. Em 1941, foi designado para coordenar os estudos e pesquisas relacionados ao folclore brasileiro, juntamente com Afrânio Peixoto e Manuel Bandeira. 5 José Liberal de Castro (Fortaleza/CE, 1926) é arquiteto e urbanista formado em 1955 na Faculdade Nacional de Arquitetura (atual FAU/UFRJ), ex-presidente do Departamento do Ceará do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB/CE, fundador da Escola de Artes e Arquitetura da UFC, professor emérito da UFC e pioneiro do
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Ceará daria seus primeiros passos no sentido do reconhecimento federal do seu acervo construído dotado de interesse cultural. Com bom trânsito junto às autoridades do IPHAN, foi comissionado pelo seu presidente, doutor Rodrigo Melo Franco de Andrade6, para cuidar do patrimônio cearense de valor nacional. Os trabalhos tiveram início em 1964 com os tombamentos do Theatro José de Alencar e da Casa Natal de José de Alencar, o primeiro remetendo aos experimentos de portabilidade da arquitetura metálica produzida na Europa, na esteira da Revolução Industrial, e exportados para o Brasil na passagem do século XIX para o XX, e o segundo, relacionado a uma singela edifcação vernácula, verdadeiro repositório de técnicas construtivas retrospectivas. Em 1965, com a criação e o pleno funcionamento da Escola de Arquitetura e Artes da UFC7, Liberal de Castro passou a contar com apoio institucional e humano para realizar suas pesquisas relativas ao patrimônio construído cearense, de que é exemplo o notável esforço de inventariação de nossa arquitetura antiga, por ele conduzido até meados da década de 1980 com a ajuda dos seus muitos alunos. Data deste ano também o tombamento federal do Passeio Público, a velha Praça dos Mártires de Fortaleza, tipologia urbanística típica do Império e associada às transformações havidas nas cidades brasileiras decorrentes da vinda da família real portuguesa ao Brasil em 1808.
Como elemento balizador dos tombamentos da arquitetura cearense, Liberal de Castro elegeu o processo sócio-histórico de ocupação do território da província, com suas
patrimônio cultural edifcado no Ceará. 6 Rodrigo Melo Franco de Andrade (Belo Horizonte/MG, 1898 – Rio de Janeiro/ RJ, 1969) exerceu as atividades de advogado, jornalista e escritor. Presidiu o IPHAN de 1937 a 1967. 7 Atual Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, ligado ao Centro de Tecnologia desta universidade.
penosas lidas civilizatórias ligadas à formação e evolução dos núcleos urbanos. Enfatizando o papel aglutinador dos ciclos econômicos havidos nos séculos XVIII e XIX, respectivamente o do charque e o do algodão, e das ribeiras dos principais cursos d’água (Acaraú e Jaguaribe), desenvolveu uma linha de raciocínio e operação arrimada tanto no modus faciendi da “fase heróica”8 do IPHAN quanto em uma história feita por homens sem rosto, nome ou sobrenome, na linha da narrativa histórica de um Capistrano de Abreu9. Sob essa ótica, passam a ser investigadas nossas primeiras aglomerações humanas, com destaque para Aracati, Aquiraz, Fortaleza, Icó e Sobral.
Em 1968, o governo do Estado do Ceará cria a Secretaria Estadual da Cultura, que já nasce com um serviço de patrimônio dotado de atribuições técnicas, legais e administrativas estruturadas pela Lei Nº 9.109/6810. Portanto, mesmo antes da realização dos Compromissos de Brasília e Salvador, promovidos pelo IPHAN respectivamente em 1970 e 1971, os quais, claramente infuenciados pelos ditames preservacionistas constantes das Normas de Quito11, motivaram os governos estaduais a criarem secretarias estaduais de cultura e órgãos específcos de patrimônio cultural, o Ceará passou a contar com uma instância voltada especialmente para esta tarefa no âmbito estadual. Como se verá, por uma série de razões, será
8 Para Lima (1997), “Até os anos 1960, a idéia que se fazia da arquitetura como patrimônio cultural era ortodoxa e calcada sobre conceitos estratifcados na fase “heróica” do IPHAN, onde as estéticas do colonial, do barroco, do neoclassicismo e do Movimento Moderno representavam um sólido modelo”. 9 Capistrano de Abreu (Maranguape/CE, 1853 – Rio de Janeiro/RJ, 1927) é notável historiador brasileiro, com produção registrada também nas áreas de etnografa e linguística. As principais características de sua obra são a rigorosa pesquisa das fontes consultadas e uma visão crítica dos fatos históricos. 10 Substituída pela Lei Nº 13.465/04. 11 Evento realizado pela Organização dos Estados Americanos – OEA na capital equatoriana, em 1967, que teve como objetivo discutir a “conservação e utilização de monumentos e sítios de interesse histórico e artístico” (apud CURY, 2004. p.105).
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bastante defciente a ação do Estado neste campo, gerando uma dívida para com o reconhecimento e a salvaguarda de suas legítimas manifestações culturais.
A década de 1970 se inicia com a liderança do órgão federal de preservação. Como refexo da política nacional de patrimônio, consubstanciada nas ações do Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas – PCH12, são elaboradas, de modo preliminar, propostas de tombamento por parte do IPHAN para os sítios históricos de Aracati e Icó, as quais só foram realmente fnalizadas e levadas a efeito no fnal da década de 1990 e no início da década de 2000. São tombadas as casas de câmara e cadeia de Quixeramobim (1972), Caucaia (1973) e Icó (1975)13, programas edilícios do período colonial relacionados à administração e à segurança das vilas. O prédio da antiga Assembléia Provincial14, em Fortaleza, projetado por Adolfo Herbster15, completa a lista de imóveis públicos protegidos pelo IPHAN naquele período (1973), revelando o pendor de então pela preservação de edifícios de inequívoca relevância histórica, estética e social, mas com funções que, por si sós, já garantiriam, de certa forma, sua integridade física. A nota pitoresca vai para o tombamento, em 1974, da fachada da Igreja Matriz de Sant’Anna, em Iguatu, solicitação
12 O PCH foi criado em 1973 e incorporado à estrutura administrativa do IPHAN em 1979. Primeiro programa oficial de preservação urbana no país, visava prioritariamente à recuperação das cidades históricas do Nordeste pela via da atividade turística como fator de revitalização urbana. 13 Todas mantendo, no período assinalado, as funções de Câmara Municipal e cadeia pública. 14 À época, ocupado pela Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, e hoje pelo Museu do Ceará. 15 Adolfo Herbster (Pernambuco, 1820 – Fortaleza/CE, 1893), arquiteto, exerceu as atividades de engenheiro da Câmara e da Província, tendo produzido notável documentação cartográfca sobre Fortaleza, tais como as suas plantas de 1852 (Planta da Cidade de Fortaleza), 1859, 1875 (Planta Topográfca da Cidade de Fortaleza e Subúrbios) e 1888 (Planta da Cidade de Fortaleza Capital da Província do Ceará).
de conterrâneos de prestígio intelectual16 face à iminente execução de obras de reforma no templo, que o descaracterizariam completamente, propostas pelo titular da Diocese17 .
Os anos de 1980, no âmbito da proteção do patrimônio edifcado cearense, serão marcados por várias novidades. A primeira delas é a implantação, em 1983, de uma delegacia regional do IPHAN no estado, a 3ª DR18, com jurisdição também no Rio Grande do Norte, cuja direção caberá ao arquiteto Domingos Linheiro19. A arquitetura vernácula cearense será objeto de inventariação por parte da 3ª DR/IPHAN, iniciando-se pela encontrada na Região Metropolitana de Fortaleza. A repartição recém-criada começará também a executar exemplares obras de restauro, tais como as efetuadas na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Almofala, em Itarema, e no Mercado da Carne, em Aquiraz. Os tombamentos federais realizados na década em apreço dão continuidade à práxis do período “heróico”: são protegidos o Mercado da Carne (1984), em Aquiraz; a Casa de Câmara e Cadeia de Aracati (1980); a Igreja de Nossa Conceição de Almofala (1983), em Itarema; o Palacete Carvalho Mota (1983), em Fortaleza; e o açude do Cedro (1984), em Quixadá, este de cunho paisagístico, talvez a grande ousadia do momento. A atividade de proteção, por parte da representação do IPHAN no Ceará, só será retomada 14 anos depois, com os tombamentos dos sítios históricos.
Mas a boa notícia do período é o começo das atividades de proteção do patrimônio cultural na esfera estadual, com os
16 Alcântara Nogueira e Cláudio Martins, conforme depoimento do professor arquiteto José Liberal de Castro. 17 Dom José Mauro Ramalho de Alarcón y Santiago, primeiro bispo de Iguatu. 18 Posteriormente 3ª Superintendência Regional do IPHAN, abrangendo os estados do Ceará e Piauí, e atualmente IPHAN/CE. 19 Domingos Cruz Linheiro (Taperoá/BA, 1945), é arquiteto e urbanista formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia em 1969.
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tombamentos da antiga Casa de Detenção (1982), da Secretaria da Estadual da Fazenda (1982), da Estação Ferroviária João Felipe (1983), do Farol do Mucuripe (1983), da Igreja de Nossa Senhora do Rosário (1983), da Agência Centro da Caixa Econômica Federal (antigo Palacete Ceará) (1983), do Palácio da Luz (atual sede da Academia Cearense de Letras) (1983), em Fortaleza; da Casa de Câmara e Cadeia (atual Museu Sacro São José de Ribamar) (1983) e da Igreja de São José de Ribamar (1983), em Aquiraz; do Museu Jaguaribano (1983), em Aracati; do Hotel Casarão (1983), em Barbalha; do Teatro da Ribeira (1983), em Icó; e do Teatro São João (1983), em Sobral (1983). A grande quantidade dos atos de proteção não esconde os mesmos propósitos e conceitos empregados nesse mesmo mister pelo órgão federal: são sempre imóveis destacados, em sua maioria públicos ou pertencentes à Igreja Católica, exemplares de uma arquitetura culta e relacionados às elites.
A década de 1990 se abre com a consideração da relevância da cultura e, por conseguinte, da preservação do patrimônio cultural, como função ligada à dinâmica urbana e ao desenvolvimento econômico e social, não mais como algo acessório ou mero enfeite administrativo. As obras de restauração do Theatro José de Alencar, levadas a efeito em 199020 , até hoje a intervenção do gênero de maior vulto realizada no estado, evidenciaram essa nova condição, mesmo assim, às vezes esquecida pelas gestões municipais e estaduais. Seguem-se os tombamentos no âmbito estadual: o Arquivo Público (antigo Solar Fernandes Vieira) (1995), o Banco Frota & Gentil (1995), o Cinema São Luiz (1991), a sede do IPHAN/
20 Executadas durante a gestão de Violeta Arraes quando Secretária Estadual da Cultura, na primeira administração de Tasso Jereissati como governador do estado do Ceará.
CE (antiga Escola Normal) (1995), a Praça General Tibúrcio (1991) (também conhecida como Praça dos Leões) e a SUCAP/ COELCE (antigo Hotel do Norte) (1995), em Fortaleza; a Casa de Câmara e Cadeia de Barbalha (1995); e a Igreja de Nossa Senhora da Soledade (1991), em São Gonçalo do Amarante.
Com a criação, em 1997, da Lei Nº 8.02321, a Prefeitura Municipal de Fortaleza formaliza a sua responsabilidade quanto à proteção do patrimônio cultural com um diploma legal específco, decorrência da Constituição Federal de 198822 . Anteriormente, os atos de proteção eram realizados por leis municipais específcas, abordando a preservação caso a caso. Dessa forma, foram protegidos a Capela de Santa Therezinha (1986), o Estoril (1986), os espelhos das lagoas de Messejana e Parangaba (1987), o Riacho Papicu e suas margens (1988), o Teatro São José (1988) e a Ponte dos Ingleses (1989), na gestão da prefeita Maria Luiza Fontenelle23; o Parque da Liberdade (também conhecido como Cidade da Criança) (1991), na gestão do prefeito Juraci Magalhães24; e a Feira de Artesanato da Beira-Mar (1995), na gestão do prefeito Antônio
21 Posteriormente substituída pela Lei Nº 9.347/2008. 22 “Título III – Da Organização do Estado – Capítulo II – Da União – Art. 23 – É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens, naturais e os sítios arqueológicos; IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; V – proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; Capítulo IV – Dos Municípios – Art. 30 – Compete aos Municípios: IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fscalizadora federal e estadual” (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988). 23 Maria Luiza Menezes Fontenelle (Quixadá/CE, 1942), socióloga e professora universitária, exerceu o mandato de prefeita municipal de Fortaleza no período de 1986 a 1989, tendo sido a primeira mulher a ser eleita para o cargo, bem como a primeira gestora de uma capital brasileira eleita pelo Partido dos Trabalhadores. 24 Juraci Vieira de Magalhães (Senador Pompeu/CE, 1931 – Fortaleza/CE, 2009), médico, exerceu o mandato de prefeito municipal de Fortaleza em três períodos, a saber, de 1990 a 1992, de 1997 a 2000 e de 2001 a 2004.
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Cambraia25. Esses tombamentos revelam uma intenção de valorizar, além de paisagens notáveis de Fortaleza, espaços utilizados no cotidiano pelos moradores da cidade, todos de essência simbólica e afetiva, alguns mesmo de forte apelo popular, não se centrando propriamente em seus predicados arquitetônicos ou urbanísticos. Cumpre destacar também que, apesar da determinação constitucional, são ainda muito poucos os municípios cearenses que desenvolvem gestões ofciais no sentido da preservação do seu patrimônio cultural26, razão da diminuta importância que a cultura ainda detém nas administrações municipais em nosso estado.
Os anos de 1990 vão ser marcados também pela emergência, no Brasil, do conceito de patrimônio imaterial no cenário da preservação cultural. Consideradas desde o início dos trabalhos do IPHAN nesse campo, merecendo inclusive a realização de extraordinárias pesquisas por parte de intelectuais do porte de Mário de Andrade e de Luís da Câmara Cascudo, suas manifestações (celebrações, formas de expressão, saberes e fazeres e lugares) e os meios necessários à sua salvaguarda, apesar da menção constante da Constituição Federal de 198827, ainda não tinham um diploma legal específco, o que irá ocorrer em nível federal com a criação do Decreto Nº
25 Antônio Elbano Cambraia (Senador Pompeu/CE, 1942), economista e administrador, exerceu o mandato de prefeito municipal de Fortaleza no período de 1993 a 1996. 26 Itapipoca, Maranguape e Sobral são exemplos de municípios que têm leis específcas de preservação do patrimônio cultural e bens protegidos. 27 “Título VIII – Da Ordem Social – Capítulo III – Da Educação, da Cultura e do desporto – Seção II – Da Cultura – Art. 216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científcas, artísticas e tecnológicas” (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).
3.551, no ano de 200028. Em 1997, em Fortaleza, o IPHAN promove o seminário internacional “Patrimônio imaterial: estratégias e formas de proteção”, evento que balizará a elaboração do decreto anteriormente mencionado e que teve no documento intitulado “Carta de Fortaleza” a sua expressão máxima.
Contudo, serão os tombamentos federais dos sítios históricos cearenses a realização de maior envergadura da década. Efetuados de forma tardia e protegendo trechos de cidades já bastante prejudicadas pela descaracterização e destruição de vários edifícios e espaços signifcativos, iniciam-se com o de Icó, em 1998. Posteriormente, em 1999, o de Sobral, reclamado por um abaixo–assinado com mais de duas mil assinaturas encaminhado ao IPHAN/CE. Na sequência, os de Aracati (2001) e Viçosa do Ceará (2002), este precedido em poucos meses pelo tombamento da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção. Se os tombamentos de Icó, Aracati e Viçosa do Ceará foram efetuados tomando-se por base os processos sócio-históricos de formação e evolução dessas cidades e o seu rebatimento em tipologias arquitetônicas e morfologias urbanas de maior interesse, com rigor na seleção do acervo edifcado passível de proteção, o de Sobral foi marcado pela vinculação do urbano à sua dinâmica funcional, à sua forma atual e às principais referências culturais aí existentes, elementos estes defnidores da preservação. Com efeito,
partiu-se do princípio que o patrimônio a ser preservado em Sobral não se compunha apenas das expressões materiais dos processos históricos e culturais aí ocorridos mas também das manifestações culturais produzidas por esses processos (DUARTE JR., 2012, p.336),
28 Legislação esta que estabelece o registro como forma apropriada de salvaguarda do patrimônio imaterial.
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o que diz da complexidade da pesquisa elaborada como base para a efetuação do tombamento do sítio histórico sobralense, muito inspirada nos cânones da Nova Historiografa29 e nos moldes da “cidade-documento”30. As proteções dessas especiais áreas contribuíram sobremaneira para a problematização das questões urbanas no estado, colocando a preservação como uma função a ser considerada de forma obrigatória nos processos de planejamento urbano municipal.
O novo século se inicia com a intensifcação dos processos de proteção, principalmente no âmbito do município de Fortaleza. Procurando tirar o atraso do protagonismo da atuação municipal, a administração Fortaleza Bela, tendo à frente a prefeita Luizianne Lins31, defagrou suas ações tombando os bens imóveis existentes na cidade protegidos nas esferas estadual e federal. Com o apoio do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico e Cultural – COMPHIC, procedeu ao tombamento de diversos imóveis de escalas, tipologias e essências arquitetônicas variadas e à abertura de uma grande quantidade de processos de proteção edilícia32, estes em boa medida prejudicados pela falta de regulamentação de instrumentos urbanísticos de mediação entre a preservação e o mercado imobiliário e a atuação desconexa das instâncias
29 Corrente historiográfca surgida por volta de 1970 na França e correspondente à terceira geração da Escola dos Annales. Recusa a abordagem da História como simples narrativa e considera a participação efetiva dos indivíduos como elementos explicativos para os eventos históricos, enfatizando a objetividade. Seus principais nomes são Jacques Le Gof e Pierre Nora. 30 Conceito elaborado para a abordagem das áreas urbanas de interesse histórico-cultural que preconiza “o estudo das etapas de formação e desenvolvimento da cidade e a identifcação das marcas dos processos históricos deixados no espaço” (SANT’ANNA, 1995, p.73). 31 Luizianne de Oliveira Lins (Fortaleza/CE, 1968), jornalista, exerceu o cargo de Prefeita Municipal de Fortaleza em dois períodos, a saber, de 2005 a 2008 e de 2009 a 2012. 32 Para conhecimento do acervo mencionado, consultar http://www.fortaleza. ce.gov.br/cultura/bens-tombados-em-nivel-municipal.
municipais. O estado, mesmo à mercê de uma equipe técnica insufciente, da inexistência de um órgão específco dotado de maior estrutura e de melhores condições de trabalho e da falta de uma política pública de patrimônio, ou melhor, da carência de vontade política para com este assunto, registrou um aumento de bens tombados33 no período da gestão do governador Lúcio Alcântara34, esforço este sem continuidade no governo posterior de Cid Ferreira Gomes35, expresso pelo funcionamento errático do Conselho Estadual do Patrimônio Cultural – COEPA. Na órbita federal, registrou-se apenas os tombamentos do conjunto de monólitos de Quixadá (2004), da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção (2008) e do Sítio Alagadiço Novo (2012), este em complementação à proteção da Casa de José de Alencar.
Quais os desafos à proteção do patrimônio cultural edifcado cearense? Se estas manifestações de arte e história ainda permanecem desconhecidas da maior parte do público é porque não há ainda obras de referência ou outros meios de promoção do acervo à disposição do interesse geral. Numa palavra: sabe-se ainda muito pouco sobre os marcos arquitetônicos e urbanísticos do Ceará. Permanecendo dissociado dos processos de desenvolvimento socioeconômico, o patrimônio não cumpre a sua função de “instrumento” (DUARTE JR., 2012, p.429) para a melhoria das condições de vida das comunidades, principalmente aquelas mais carentes, o que faz com que seja impositiva a sua consideração como ativo e
33 Para conhecimento do acervo mencionado, consultar http://www.secult.ce.gov. br/index.php/patrimonio-cultural/patrimonio-material/bens-tombados. 34 Lúcio Gonçalo Alcântara (Fortaleza/CE, 1943), médico e escritor, dentre outras atividades como político, exerceu o cargo de Governador do Estado do Ceará no período de 2002 a 2005. 35 Cid Ferreira Gomes (Sobral/CE, 1963), engenheiro civil, exerceu o cargo de Governador do Estado do Ceará no período de 2006 a 2009, tendo sido reeleito para cumprir o mandato no período de 2010 a 2013.
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recurso fundamental, conforme estabeleceram as Normas de Quito, de maneira a que possa se consolidar como eminente função urbana e infuir nos rumos dos planejamentos das cidades. Para tanto, faz-se mais que necessário que os municípios se organizem e estruturem para a montagem de uma política pública de patrimônio, que deverá se iniciar com um amplo trabalho de inventariação dos seus acervos, em largo escopo, pois, como disse muito bem o doutor Rodrigo Melo Franco de Andrade, “só se conhece o que se preserva e só se preserva o que se conhece”. Essa operação, realizada com o apoio do estado e do IPHAN, trará a lume expressões de arte, história e técnica que confrmarão a riqueza e a diversidade do nosso acervo construído, num momento em que o patrimônio se expande cronológica, tipológica e geografcamente, ampliando-se também o público interessado em seus assuntos. Para tanto, as ações dos conselhos municipais e do COEPA conformam-se como um ponto-chave, de forma a garantir essência democrática às decisões sobre o que proteger e preservar. De modo específco, a criação de um órgão estadual de patrimônio, nos moldes dos institutos existentes na Bahia e em Minas Gerais, autônomos e bem estruturados, preencherá a preocupante lacuna atual, resolvendo a dívida do estado para com essa faceta de nossa cultura. Na mesma linha, a atualização ou a criação das legislações patrimoniais, reconhecendo as peculiaridades e a complexidade das manifestações culturais e as maneiras apropriadas de salvaguarda, tendo em vista a existência do tombamento, do registro e da chancela36 .
Por fm, reconhecer que proteger e preservar são verbos de signifcados diferentes, mesmo operando sobre o mesmo
36 Forma específca de proteção das paisagens culturais, no âmbito federal, expressa pela Portaria IPHAN Nº 127/2009.
objeto; o primeiro se refere a um ato legal e distintivo que impõe uma tutela legal estatal sobre um determinado bem. O segundo diz respeito à manutenção e ao uso deste mesmo bem, à sua passagem pelo tempo e ao seu usufruto pela comunidade. Saibamos distingui-los e bem utilizá-los.
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