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Jörn Seemann

PAISAGEM, MOVIMENTO, PERFORMANCE

Jörn Seemann

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Será que o conceito de paisagem se tornou uma ideia ultrapassada na Geografa? No decorrer dos últimos cem anos, surgiram muitas perspectivas diferentes, convergentes e divergentes acerca daquilo que o olho vê e a mente pensa quando confrontados com o espaço observado. Não se deve falar de uma evolução do conceito de paisagem desde as concepções mais “primitivas” até os arcabouços pós-modernos e pós-estruturalistas mais sofsticados. Trata-se de um processo em constante criação, um devir e convite para repensar a ideia. Essa diversidade e multivocalidade conceituais têm gerado muitos confitos e incertezas entre os geógrafos. Não existem defnições corretas ou erradas do conceito de paisagem. Há diferentes modos de ver e compreender (MEINIG, 2003; COSGROVE, 1998). Em outras palavras, cabe dizer que a discussão sobre paisagens literalmente está criando “paisagens intelectuais”. Cada abordagem tem as suas limitações e merece uma análise mais aprofundada. Sempre falta um aspecto, um detalhe ou um ângulo que não é levado em conta nesses modos de pensar.

Sob essa premissa, o objetivo deste artigo é refetir sobre o potencial da ideia de paisagem na Geografa em face de novas teorias e metodologias nas ciências sociais e nas humanidades. Para esse debate, introduzo dois modos emprestados de áreas de conhecimento como teatro, arqueologia e antropologia que possam enriquecer a discussão: mobilidade e performance. Dividi o texto em três partes: na primeira, relato brevemente as tensões geradas pelo conceito de paisagem. Em seguida, apresento algumas refexões sobre “paisagens

em movimento” e possíveis formas performativas de diálogo entre o observador e o observado. A terceira parte inclui um estudo de caso sobre paisagem, mobilidade e performance, tendo como palco o Cariri cearense.

Paisagens em Tensão

O conceito de paisagem na cultural ocidental surgiu no fnal do século XV como uma forma de ver o mundo externo, tendo como base o humanismo renascentista e suas concepções do espaço (COSGROVE, 1985, p.46). Com a consolidação da Geografa como disciplina acadêmica ainda no século XIX, a ideia de paisagem se tornou um dos conceitos centrais nos debates. Portanto, muitos geógrafos restringiram o estudo da paisagem às marcas visíveis. Forças mentais e práticas sociais que moldaram a paisagem não pertenciam ao objeto de estudo da Geografa (SCHLÜTER, 1906; SEEMANN, 2004). De certa forma, essa concepção refete a defnição do termo, que ainda pode ser encontrada em dicionários dos dias atuais: “extensão de território que se abrange num lance de vista”.1 Paisagem era o que o olho via e que os pintores paisagistas retrataram nas suas telas. Sob a infuência de autores europeus, o geógrafo norte-americano Carl Ortwin Sauer (1889-1975) refnou esses princípios sobre o conceito, estabelecendo uma relação mais forte entre o meio ambiente e a produção humana do espaço. Para Sauer, o ponto de partida era a paisagem natural que seria transformada pelas ações antrópicas: “a paisagem cultural é modelada a partir de uma paisagem natural por um grupo cultural. A cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural é o resultado” (SAUER, 1998, p.59). Se-

1 http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=paisagem

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gundo essa posição, paisagens eram vistas como produtos das interações entre as condições físicas (tempo, relevo solos etc.) e as práticas culturais (agricultura, atividades socioculturais etc.), o que, em décadas posteriores, gerou um atrito entre fatos objetivos e signifcados subjetivos e uma divisão artifcial entre o meio físico e as ações humanas.

Nos tumultuosos anos 70 do século XX, havia diversas reações políticas e flosófcas na Geografa, muitas como contracorrentes à Geografa quantitativa. Geógrafos humanistas se apropriaram do conceito de paisagem para revelar experiências, valores e conhecimentos humanos (TUAN, 1976; LEY e SAMUELS, 1978; MEINIG, 1979,) e interpretar paisagens vernaculares (JACKSON, 1984). Paralelamente, cientistas sociais marxistas submeteram o conceito de paisagem a uma análise crítica. Com base em pinturas artísticas, esses autores argumentaram que paisagens tinham uma carga simbólica e ideológica, responsável pela projeção de um modo de ver, muitas vezes hegemônico (BARRELL, 1980; COSGROVE, 1984). Mais recentemente, geógrafos culturais começaram a investigar o simbolismo e as camadas de ideologia em paisagens do presente, concebendo-as como resultados de lutas sociais (COSGROVE, 1998; MITCHELL, 1996, 2003, 2008).

As diferentes abordagens sobre a paisagem sempre enfatizam um aspecto e deixam de lado, outros. Uma perspectiva meramente visual exclui processos sociais, o imaginário e interesses políticos, enquanto um enfoque na carga simbólica dá pouca atenção aos aspectos materiais. Portanto, essas tensões a respeito do conceito de paisagem não devem ser consideradas como impasses ou obstáculos, mas como desafos criativos e produtivos para interpretar e escrever sobre paisagens à luz de diferentes aportes flosófcos e agendas políticas que fundamentaram essas concepções (WYLIE, 2007, p.2).

Uma das críticas mais pertinentes ao conceito de paisagem é a separação entre o observador e o espaço observado. O que permeia como ideia amplamente aceita é a imagem do pesquisador como fgura externa da paisagem observada, alguém que registra fenômenos e processos de uma posição privilegiada, sem interferir no espaço. Em outras palavras, a paisagem nos distancia do mundo de uma maneira crítica, defnindo uma relação particular com a natureza e aqueles que aparecem na natureza, e nos dá a ilusão de um mundo no qual podemos participar subjetivamente ao entrar na moldura da imagem seguindo a linha da perspectiva. Mas isso é uma entrada estética e não um engajamento ativo com a natureza ou o espaço que tem a sua vida própria (COSGROVE, 1985, p.55).2

Mais recentemente, geógrafos, antropólogos e arqueólogos começaram a repensar a paisagem com ênfase em aportes flosófcos da fenomenologia (TILLEY, 1994; HIRSCH e O’HANLON, 1995; INGOLD, 2000; WYLIE, 2007), retomando ideias como a noção heideggeriana de “habitar” e inserindo o observador dentro da paisagem. Desta maneira, o estudo de paisagens se torna uma experiência direta, porque o observador participa com o seu corpo nessas “paisagens de prática”, abrindo novas dimensões para a pesquisa:

O desafio para os geógrafos culturais que estudam paisagens é como produzir geografas que são vividas, corporifcadas e praticadas; paisagens que nunca se fnalizam ou completam, que não são fáceis de serem emolduradas ou lidas. Essas geografias devem ser tanto sobre o dia-a-dia e o que não é excepcional como sobre o que é grande e distinto (CRESSWELL, 2003, p.280-281).

2 Todas as traduções do inglês para o português são de minha autoria.

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Paisagens são processos e não produtos, processos dinâmicos e em constante formação, nunca acabados que convidam o geógrafo/a geógrafa com seu corpo e seus sentidos a se entrosar. Neste contexto, dois mecanismos que não fazem parte do repertório tradicional dos conceitos geográfcos dão suporte a essa abordagem: a mobilidade e a prática.

Movimento e Performance

“Estar-na-paisagem” implica um modo diferente de trabalhar com o conceito de paisagem. Primeiro, os seres humanos na paisagem não são elementos estáticos como árvores ou prédios, mas seres móveis que se movem e locomovem, seja andando, pedalando na bicicleta, no carro, no avião ou outras modalidades (VANNINI, 2009; CRESSWELL e MERRIMAN, 2011), em escalas e dimensões diferentes desde viagens curtas de lazer até migrações internacionais de refugiados.

Nos últimos dez anos, geógrafos culturais começaram a ler o espaço a partir do movimento, concebido como um aspecto central da vida humana e essencialmente espacial: “Por que se equipara a Geografa com fxidez e inércia? A mobilidade é simplesmente tão espacial – e tão geográfca – e tão central na experiência humana do mundo como o [conceito de] lugar [...] Mobilidade é uma forma de estar-no-mundo” (CRESSWELL, 2006, p.3). Há autores que falam de uma “virada de mobilidade” ou de um “paradigma de novas mobilidades” nas ciências sociais e nas humanidades (SHELLER; URRY, 2006; CRESSWELL, 2010), mas, na verdade, trata-se apenas de uma maneira diferente de ler o espaço. Nas pesquisas, é dada mais atenção aos processos e à “percepção-em-movimento” de modo que

A paisagem deixa de ser entendida como um olhar fxo, estático e emoldurado e se torna a verdadeira interconectividade entre olho, corpo e terra, um ambiente perceptual e material que emerge constantemente. Desta, maneira, o que se escreve nessa área se ocupa com a experiência pela mobilidade, como ser e se tornar móvel (WYLIE, 2007, p.177).

O movimento é uma prática ou performance que uma pessoa realiza. Geografa signifca movimento e mobilidade, e não há movimento sem ação. Por essa razão, a mobilidade não pode ser separada da prática ou da performance. O fm do século XX registrou outra virada, uma “virada performativa”, inspirada em novas maneiras de compreender o mundo, oriundas das mais diversas áreas de conhecimento desde estudos teatrais, antropologia, linguística e psicologia até a história da arte, flosofa e estudos da cultura visual que favoreceram a prática com os seus fuxos e redes a não a representação e sua fxidez (PERKINS, 2009, p.126). Em meados dos anos 1990, um grupo de geógrafos britânico defniu essa abordagem como “teoria não-representacional”. A ênfase está em práticas e formas não discursivas como teatro, dança, música e arte de performance e suas diferentes teorias e não nas representações e suas interpretações que se baseiam em modelos contemplativos de pensamento e ação. O pesquisador/ observador inevitavelmente se torna parte do cenário: “Não há lugar para o pesquisador se esconder: ele/ela precisa estar lá dentro/no meio do movimento” (THRIFT, 2000, p.556).

Como funciona na prática? Um exemplo ilustrativo é a performance do projeto “As primeiras cinco milhas: a guerra do pequeno inglês” (PEARSON; SHANKS, 2001, p.142-146). O trabalho se baseia em uma história real sobre Augustus Brackenbury, um inglês que comprou mais do que 300 hectares de terras pantanosas no País de Gales em 1820, com a

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intenção de construir uma propriedade particular para a caça. Portanto, a população local que usava a área como pasto para os animais e explorava o turfo dos pântanos como combustível se opôs ao projeto e frustrou todas as tentativas do inglês de erguer uma casa. Em agosto de 1998, o teatrólogo Mike Pearson se vestiu como um cavalheiro vitoriano, empacotado em uma sobrecasaca, um colete bordado, perneiras de couro, uma cartola e luvas e carregando um microfone, uma unidade de baterias, fones de ouvido, um receptor e uma lâmpada de halogêneo para reviver as experiências de Brackenbury. Pearson caminhou por cinco milhas na paisagem dos pântanos galeses, acompanhado de um colega que carregava uma mochila com um rádio transmissor. As conversas da caminhada foram transmitidas, ao vivo, por ocasião de um programa de rádio bilíngue (inglês e galês) sobre o confito histórico. A performance provocou uma discussão sobre autenticidade e identidade. Os ouvintes do programa começaram a especular sobre os acontecimentos na segunda década do século XIX, interpretando e questionando fatos, criando, desta maneira, um “mapa profundo” do lugar (p.144) e estabelecendo um diálogo entre o passado e o presente.

Neste contexto, performance, história e geografa se complementaram como mistura de narração e prática científca e como abordagem integrada para gravar, descrever e ilustrar o mundo material do passado e do presente. Em outras palavras, atividades humanas são inscritas dentro da paisagem de tal maneira que cada falésia, árvore grande, riacho, pântano se torna um lugar familiar. As passagens diárias pela paisagem se tornam encontros biográfcos para indivíduos, relembrando traços de atividades do passado e eventos anteriores e a leitura de signos – um tronco partido aqui, um marcador de pedra acolá. Por

isso, todos os locais e paisagens estão embutidos nos tempos sociais e individuais da memória. Tanto os seus passados como seus espaços são crucialmente constitutivos dos seus presentes (TILLEY, 1994, p.27).

A combinação de movimento e prática não apenas ajudou a reconstruir o passado, mas também ressignifcou processos e acontecimentos. O que tinha validade no passado, mas tem necessariamente o mesmo signifcado no presente. No caso da performance “As primeiras cinco milhas”, Mike Pearson se sentiu como um cavalheiro vitoriano, embrulhado em várias camadas de roupa. No lugar da população local hostil que abandonou o lugar ainda no século XIX, havia grupos de espectadores curiosos que observaram a performance a distância, por cima das colinas da região, escutando a cobertura na rádio.

(E)moção e Paisagem no Cariri Cearense

A última parte deste ensaio consiste na breve descrição de uma experiência empírica no Cariri cearense durante a qual tive a oportunidade de pensar sobre paisagens, movimento e performance. Por ocasião da elaboração da minha tese de doutorado (SEEMANN, 2010), realizei um estudo cartográfco-performativo sobre as trajetórias do botânico brasileiro Francisco Freire Alemão (1797-1874) que, como presidente da Comissão Científca de Exploração, passou três meses na região, entre dezembro de 1859 e março de 1860, para coletar e estudar plantas.3 Durante a sua estadia, o cientista passou muito tempo coletando e classifcando espécies

3 Para detalhes sobre as atividades da Comissão Científca de Exploração, também conhecida pelo nome “Comissão das Borboletas”, veja Braga (1962), Porto Alegre (2003) e Kury (2009).

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botânicas, mas também se socializou com a população local. A convite de um fazendeiro, Freire Alemão realizou uma viagem curta de poucos dias para Pernambuco, atravessando a Chapada do Araripe várias vezes (Mapa 1). Ele anotou as suas observações sobre essa viagem minuciosamente no seu diário (FREIRE ALEMÃO, 2007). Com base nas suas descrições, procurei reconstruir o seu itinerário quase 150 anos depois da sua passagem pelo Cariri. Em seguido, apresento algumas refexões sobre a reconstrução desse percurso.

Mapa 1 – Itinerário da viagem de Freire Alemão (os números representam as diversas paradas no caminho)

No dia 30 de janeiro de 1860, às nove horas da manhã, Freire Alemão saiu a cavalo da cidade de Crato em companhia do zoologista Manuel Lagos, um coletor de plantas, um guia local e um escravo chamado Domingos para subir no paredão da Chapada do Araripe “pela ladeira do Belo Monte, que estava bastante arruinada, pelas últimas chuvas” (FREIRE ALEMÃO, 2007, p.45). O grupo de viajantes alcançou o topo do platô depois de uma hora e meia e seguiu a viagem por meio de uma vegetação de carrasco e sob um sol escaldante.

Imagino Freire Alemão montado em um cavalo, seguindo uma trilha de terra, passando por casas coloniais e de pau a pique e depois propriedades rurais e engenhos, observando a paisagem e as variações na vegetação. Minha viagem é menos difícil, mais rápida, até rápida demais. Quase 150 anos depois, no dia 7 de julho de 2009, preparo a minha rota. Às sete e trinta da manhã e em companhia de um amigo, encontro o motorista da Universidade Regional do Cariri que nos levará nessa viagem em uma Kombi VW muito “batida”. Combino o itinerário com ele e sento-me na poltrona ao seu lado, um conjunto de cartas topográfcas da área na escala 1: 100000 no meu colo. Durante a viagem tiro fotos da vegetação e da estrada e produzo alguns clipes de vídeo das paisagens que registro de passagem. Paisagem de passagem – essa foi boa. Da janela da Kombi, tenho a impressão de que a paisagem está se movendo e não o carro. Devido ao movimento, muitas imagens fcaram sem foco. O para-brisa serve como moldura, enquanto os limpadores e algumas rachaduras verticais no vidro marcam uma presença permanente nas fotos (fgura 1).

Figura 1 – O para-brisa como moldura de fotos (foto do autor, 2009)

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No fnal do primeiro dia da viagem, Freire Alemão e seus companheiros desceram uma ladeira íngreme, “ainda mui toscamente feita” (FREIRE ALEMÃO, 2007, p.46), e chegaram ao lado sul da chapada, “estrompados, suados e cobertos de poeira” (ibidem). Iam fcar na vila de Exu, um povoado “insignifcante, de aspecto triste e miserável: a matriz que nunca se acabou, está caindo em ruínas, nunca foi rebocada e por dentro [...] está inteiramente nova” (FREIRE ALEMÃO, 2007).

Diferentemente de Freire Alemão, nossa Kombi não encontra o povoado na primeira tentativa. O motorista desce com muita velocidade de modo que nem tive a chance de perguntar alguém ou consultar o mapa. Há 150 anos, Exu era uma vila nas encostas da chapada, mas devido aos frequentes desmoronamentos, a cidade foi transferida para uma área menos perigosa a cerca de dez quilômetros de distância. A minha carta topográfca não deixa dúvidas: Exu está lá, mas não é o Exu que procuro. No centro da cidade, alguns moradores me informam que o povoado agora é chamado de Gameleira. Outros nem sabiam que existia um Exu Velho. Confro a informação no mapa. Achei! Lá está o local. Voltamos no caminho e localizamos a entrada que nos leva para uma fazenda, onde a proprietária confrma os nossos dados.

Pergunto pela igreja “em ruínas” e ela aponta para uma trilha atrás da casa, um caminho quase fechado, com densa vegetação rasteira. De repente, os grossos muros da igreja aparecem, uma estrutura bombástica com arcos góticos, uma fortifcação sem teto. Em baixo da vegetação, há restos dos alicerces, até uma cruz de madeira... e cobras. Sinto-me traído pelo Freire Alemão que escreveu no seu diário que “em toda a minha viagem pelo sertão não tive ocasião de encontrar uma serpente de qualquer natureza” (FREIRE ALEMÃO, 2007,

p.125). Encontrei duas e a pele morta de outra. Nem falo do marimbondo que me atacou.

As paredes massivas da igreja foram pichadas com inúmeros graftes, a maioria riscada nos muros mais do que três décadas atrás: Ana, Maria, Pinau, Dumga, Vita, Edna, Zezé, Estácio, Ribamar, Fitita, Lala… Alguns graftes têm data: o tenente Gusmão esteve lá no dia 14 de dezembro de 1967 e o Pedrinho em 16 de setembro de 1968. Freire Alemão esteve lá no dia 1º de fevereiro de 1860, mas ele não deixou uma mensagem para a posteridade (fgura 2).

Figura 2 – Marcadores humanos nas paredes da igreja (foto do autor, 2009)

Freire Alemão e eu enfrentamos muitos outros desafos no percurso da nossa viagem, mas cada um em seu ritmo. Tento imaginar como o botânico teria concebido a paisagem dentro de um carro. Penso em realizar a travessia pela chapada a pé. Na descrição do meu percurso, relatei as minhas difculdades de geografzar a paisagem em movimento. O meu motorista, evidentemente, estava com pressa de chegar a um lugar e depois a outros, enquanto eu me interessava pela viagem e pelo movimento, atravessando uma paisagem que nada mais é do

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que o caminho e a conexão entre lugares, porque “lugares não têm locações, mas histórias. Amarrados pelos itinerários dos seus habitantes, lugares existem não no espaço, mas como nodos em uma matriz de movimentos” (INGOLD, 2000, p.219).

Falar sobre cobras e marimbondos parece uma banalidade ou até uma “quebra-de-decoro” no ambiente de produção textual acadêmica. As únicas fontes sobreviventes sobre o Freire Alemão são o seu diário e o acervo da sua correspondência e dos seus inúmeros desenhos botânicos na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Há apenas um mapa que o cientista esboçou durante a sua estadia em Exu, mas nenhum registro das paisagens da região. Os conteúdos do seu diário não dizem muito a respeito da sua vida cotidiana. Freire Alemão sua, sofre com o calor e fca de cama por mais do que uma semana para se curar de uma tosse persistente e uma gripe muito forte. Uma frase se repete frequentemente no seu relato pessoal: “de manhã estudei algumas plantas”. A nossa base é o texto que o botânico escreveu e não a sua experiência vivida.

Ao reconstruir o percurso de Freire Alemão, procurei não apenas conhecer os lugares que ele visitou, mas também imaginar como se relacionou com a paisagem. Daí o termo (e)moção, uma mistura de emoção e movimento, uma imersão na paisagem (CRAINE e AITKEN, 2009; SEEMANN, 2012). Não sei se consegui me aproximar das paisagens pessoais do cientista.

Considerações Finais

As paisagens não mudaram, mas o que mudou foram as maneiras de concebê-las. Este breve ensaio teve como objetivo repensar a ideia de paisagem à luz de novos focos. Meu maior argumento é que esse conceito pode ganhar novos impulsos quando combinado com mobilidade e performance.

Sob essa ótica, paisagens se tornam paisagens vividas, “mediadas, trabalhadas, alteradas, repletas com signifcados e simbolismo e não apenas algo que se olha ou pensa, objetos para contemplação, visualização, representação e estetização” (TILLEY, 1994, p.26). Pode-se acrescentar mais uma defnição à longa lista de defnições do termo paisagem: “conjuntos percebidos e corporifcados de relações entre lugares, a estrutura de sentimentos humanos, emoção, habitar, movimento e atividade prática dentro de uma região geográfca que pode possuir ou não fronteiras ou limites topográfcos (TILLEY, 2004, p.25).

Apresentei duas miniaturas para indicar possíveis caminhos para pesquisas. Portanto, os dois exemplos traduzem essas experiências apenas de uma maneira insufciente, porque, afnal de contas, são apresentados em forma de textos que, por sua vez, não substituem as práticas espaciais corporifcadas e as expressões de afeto, rejeição ou emoção da pessoa que experimentou e “habitou” a paisagem diretamente: “o texto presta tributo às vidas ordinárias inadequadamente porque valoriza o que é escrito ou falado e não as práticas e experiências multi-sensuais” (NASH, 2000, p.655).

Estas refexões servem como convite para repensar o conceito de paisagem, experimentar novas metodologias (inter e/ou transdisciplinares) e literalmente “adentrar” mais no espaço geográfco. Afnal, a Geografa também se consolida na prática e no movimento e não apenas no discurso.

Referências Bibliográfcas

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