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Edson Soares Martins Antônio Bilar Gregório Pinho Fernanda Lima Fernandes
Edson Soares Martins Antônio Bilar Gregório Pinho Fernanda Lima Fernandes
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A refexão que pretendo aqui desenvolver não possui ainda a sistematicidade que pretendo conferir-lhe e deve, portanto, ser compreendida como um esboço do momento mais atual da construção do argumento e da exploração de seus componentes mais importantes. Uma das razões que me incomodam na proposição de um esboço como esse é que esse tipo de comunicação breve não serve à articulação necessária das dimensões sincrônica e diacrônica dos eventos e comportamentos que estão na base da atividade refexiva, de modo que o velho problema do tempo cobra seu tributo de forma severa. A oportunidade de dialogar, contudo, faz-nos abdicar da maturação solitária e custosa que elegemos como imperativo de nossa colaboração aos estudos que versam sobre os variados aspectos da cultura no Cariri cearense.
Proponho, de imediato, um recorte, que facilitará a exposição da tese central deste texto. Limitarei nossas considerações ao conjunto de agentes culturais com os quais temos lidado mais cotidianamente, que são os cantadores e brincantes do coco. A tese pretende explorar como as políticas culturais constroem um lócus musealizado e conservador como espaço privilegiado da ocorrência desse patrimônio cultural. Seguirei muito de perto a lição de Néstor Garcia Canclini, confgurada, para o que nos interessa aqui, em seu Culturas híbridas. Eventualmente, um ou outro referencial pode se agrupar às nossas assertivas e argumentos, sem, todavia, disputar com o mestre mexicano o papel de eixo central das palavras que alinho aqui.
Alguns Coquistas do Cariri: Pessoas e Grupos
No cariri cearense, o Behetçoho – Núcleo de Pesquisa em Cultura Popular, vinculado à Universidade Regional do Cariri, vem trabalhando na identifcação de cantadores de coco. Na etapa preliminar, recentemente concluída, dois grupos foram identifcados no Crato, um em Juazeiro do Norte, além de um colaborador isolado no Crato e outro em Farias Brito.
No universo dos, aproximadamente, cem cocos recolhidos, é possível inventariar no repertório cearense um conjunto signifcativo de temas, melodias e combinações melódico-textuais. Os cocos, em seu conjunto, aparentemente contêm poucas marcas temáticas e textuais que pudessem indicar uma particularidade regional, sendo mais marcante a proximidade com os cocos colhidos por Mário de Andrade, na viagem de 1928-1928 e pela Missão de 1938. O mesmo se pode dizer de D. Naninha (Crato) e Seu Ciro Tatu (Farias Brito), acentuando-se em seus repertórios o aspecto relevante que ocupa a preservação dos cocos, tal como aprendidos na infância, em inícios das décadas de 30 e 40 do século passado.
Foto 1 – Mestra Maria da Santa e o Grupo Cultural Amigas do Saber, em apresentação no II Colóquio Nacional de Pesquisa em Cultura Popular. Crato, Universidade Regional do Cariri, 14 de abril de 2013
Foto: Edson Martins
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A gente do Coco é o mais antigo grupo, criado em 1979. Foi formado a convite da professora responsável pela turma do Mobral, auxiliada por Edite Dias, instrutora que viria a se tornar mestra do grupo e que ainda hoje o lidera. O Grupo Cultural Amigas do Saber, mais recente, surgiu no fnal dos anos 1990, também a partir de experiências estimuladas em ambiente escolar. O grupo Coco Frei Damião, liderado pela Mestra Marinez, de Juazeiro do Norte, esteve em João Pessoa em dezembro de 2009, participando do I Encontro de Cocos do Nordeste, mas ainda não foi pesquisado pela equipe da URCA.
Foto 2 – Mestra Edite Dias (à esq.), em apresentação das Mulheres das Batateiras (Grupo A Gente do Coco) no Largo da RFFSA. Crato, Concertos do Nordeste/BNB, 22 de fevereiro de 2013

Foto: Edson Martins
A pesquisa do Behetçoho, pela constituição dos tipos de colaboradores que reuniu, tem investido na distinção de dois cenários. O primeiro deles é aquele em que a comunidade assumia a forma peculiar de grupo circunstancial. Esse cenário tem extraordinária vitalidade como tesouro da memória; na vida material e concreta, não ocorre mais em seu formato ori-
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ginal, ao que parece. Referência constante dos mais velhos, esse formato comunitário descreve a forma como o coco era acontecimento agregador, suspendendo temporariamente as tensões possíveis e realçando os laços de compartilhamento da existência em grupo. Não por coincidência, é um cenário mutuamente colateral àquele do mutirão: a diversão coletiva sucede o trabalho coletivo e o trabalho coletivo convida à diversão coletiva. Na memória das mulheres, o agrupamento circunstancial tem, a partir do que se depreende de seus relatos, muito a ver com um tipo de diversão supervisionada, sendo permitido às moças e às mulheres casadas, sem ocorrência necessária do mutirão, reunirem-se regularmente à noite, para se divertir, cantando e dançando.
Foto 3 – Dona Naninha (Ana Gouveia), cantando coco no II Colóquio Nacional de Pesquisa em Cultura Popular. Crato, Universidade Regional do Cariri, 14 de abril de 2013

Foto: Edson Martins
Outro cenário bem diverso é aquele em que o grupo se diferencia da comunidade e se constitui como gerador de demandas, entre as quais se destacam a perenidade e o reconhecimento (do) público. É este o caso dos grupos culturais e é o primeiro elemento da equação que aqui queremos investigar.
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Os Confitos e a Questão do Valor Patrimonial
A denominação como grupo cultural, em si, de largo e irrestrito uso no cariri cearense, já é indicativa de como a necessidade de (re)afrmação do valor patrimonial da brincadeira já opera de modo tensionado nas fronteiras criadas entre o grupo e sua comunidade: esses grupos reivindicam para si o pertencimento à esfera do patrimônio cultural, o que indica a existência de alguma resistência social que atuaria negando ou disciplinando esse reconhecimento. Um aspecto dessa resistência advém da própria comunidade: queixas são muito comuns no sentido de os grupos se sentirem hostilizados pela comunidade que, invariavelmente, constitui um anseio da agência dos próprios grupos. Essa agência intracomunitária – um agir em lugar de – promove uma identifcação muito viva e, frequentemente, pungente, em função da luta por reconhecimento ser, invariavelmente, sentida como frustrante. Outro aspecto, igualmente importante é a relação dos grupos com os agentes que delineiam as políticas culturais no Cariri, diante dos quais os grupos atuam, voluntária ou involuntariamente, de modo que a sua agência assume um contorno extracomunitário.
Reconhecemos, sem pretender ser exaustivos e ignorar nuances e graus intermediários, duas modalidades de constituição da agência extracomunitária: a pré-institucionalizada e a institucional. Também cumpre notar que emerge de cada um desses arranjos um tipo específco de zona de confito, demarcada como fronteira que cinde o tecido comunitário e instaura um grupamento interno. O grau de alternância que os membros estabelecem entre si, passando da posição de líder-comunicador à de componente (com sua complexa hierarquização de níveis de prestígio intra e extragrupal), é o
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mais defnitivo fundamento que nos permite arguir o estado de institucionalização que cada grupo experimenta.
Quanto menor o grau de alternância, mais institucionalizado está o grupo, sendo bem marcado para todos que aquele que é o líder na hora em que a roda gira é ainda líder na hora em que ela se dissolve. Não é de estranhar, portanto, que o líder-comunicador no grupo também costume exercer outros papéis de liderança diante de sua comunidade. Há casos em que o líder do grupo exerce clara e inequívoca militância no movimento popular comunitário, mas também pode ser o organizador do coral da igreja, o promotor de campanhas e iniciativas de organização comunitária das mais variadas naturezas e fnalidades ou rezar as renovações do Sagrado Coração, por exemplo.
O caminho cada vez mais aplainado na direção da institucionalização conduz, em nosso sentir, àquele outro cenário, já observável em Pernambuco e Maranhão, por exemplo, em que o grupo afrouxa seu agenciamento dos anseios de representação e situa a si mesmo para além do território comunitário. Assim constitui fronteira entre a comunidade, a que ele quase não pertence mais, e o espaço artístico profssional, entendido como exterior à comunidade e homólogo à diversidade da cena social, percebida como mais ampla e englobante, ao qual ele não consegue pertencer em sua inteireza identitária.
Passemos agora à consideração propriamente dita da investigação dos confitos estabelecidos entre a vida comunitária intragrupal e sua luta por reconhecimento (Cf. HONNETH, [2003] 2009) no plano extragrupal. O edifício teórico de Axel Honneth permite arguir três importantes dimensões, que observamos no recorte em questão. Em primeiro lugar, a teoria privilegia um momento da esfera emotiva, em que o
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autorreconhecimento passa por uma autorrealização pessoal, ligada ao segundo momento, aquele da estima social, e ao terceiro, o da esfera jurídico-moral, em que se demanda o reconhecimento da autonomia propiciadora ao autorrespeito.
Entendemos como confito – acompanhando Honneth e a tradição em que ele se inscreve, mas fazendo do termo um uso deliberadamente delimitado – a quebra de expectativa quanto às pretensões normativas que regulam o reconhecimento entre sujeitos. Há confito quando, por exemplo, um sujeito que rompeu os laços de pertencimento grupal passa por membro do grupo, voluntária ou involuntariamente. Se o grupo é pré-institucionalizado, esse confito é vivido de modo desigual pelos componentes, verifcando-se diversos níveis de concordância mútua entre cada subconjunto possível. Nos grupos institucionalizados, o confito passa necessariamente pela fgura do líder-comunicador, a quem se reconhece como habilitado a enunciar o grupo como sujeito uno, diante de um contexto sempre extragrupal. Mesmo nesses casos, é possível estabelecerem-se confitos internos entre subconjuntos, mas os confitos tendem a opor os subconjuntos e o líder-comunicador e não os subconjuntos entre si. Nessa capacidade de agenciar coletivamente os fundamentos de unidade representada, enxergamos mais uma característica decisiva da institucionalização do grupo.
Observamos, para concluir mais essa passagem, que a situação do confito do interior dos grupos não representa necessariamente algum tipo de tensão de ruptura e não engaja obrigatoriamente movências no sentido de um rearranjo das posições de prestígio e liderança. Constitui, pelo contrário, o modus vivendi necessário para o exercício do prestígio/liderança e, em sentido fundante, é mesmo necessário à própria autorrepresentação como grupo. A posição dos sujeitos – sen-
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do intervalar ou mediada, em uns casos, colinear ou imediata em outros – em relação à formação de fronteira criada pelo manejo dos confitos é tão variada quanto no plano comunitário ou social, devendo ser afastada a ideia de uma posição específca do enfrentamento de confitos. Todavia, parece-nos que o modo de situar-se quanto às fronteiras pode ser descrito em alguns poucos tipos básicos, tarefa que ainda cumpre realizar.
Eminentemente ideológica e constitutivamente porosa, a fronteira é um dado material na vida intergrupal e sua percepção difcilmente está dissociada das dinâmicas de linguagem mobilizadas pelos membros do grupo. Um dado fortemente impregnado nas práticas discursivas dos grupos é a internalização das visões extragrupais.
A Gestão Cultural e as Políticas Públicas para a Cultura
É evidente que, ao promover o deslocamento do coco de seu universo tradicional para a cena urbana, as políticas de gestão cultural – públicas ou privadas – promovem sua fetichização. Mas também seria muito ingênuo crer que essa promoção não seja permeada por contradições mais profundas. Canclini (1997, p.153) nos auxilia nesse raciocínio, ao advertir que, em vez de entender o consumo de arte como “eco dócil do que a política cultural [...] quer fazer com o público”, mais produtivo seria analisar referentemente a esse consumo “como sua própria dinâmica confitiva acompanha e reproduz as oscilações de poder”. Sugere que perscrutemos aí os níveis de cumplicidade que se podem ter engendrado sob a aparência ostensiva da imposição, assim como as nuances de reconhecimento mútuo e da busca de estabilidade que orienta o poder político e, acrescentamos, a própria estratégia de vitalidade dos grupos, que se compreendem, em certa medida,
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como patrimônio que se legitima ao mesmo tempo em que se dá ao uso social instrumentalizado. Neste mesmo ensaio, Canclini já pontuara como o confito pelo reconhecimento da legitimidade é um componente que não pode faltar à consideração do analista da cultura.
Os grupos intuem, e com muita habilidade, a existência de uma comunidade hermenêutica possível (CANCLINI, 1997, p.152) e já avançaram muito no entendimento das formas de diálogo mais produtivas com essa instância mediadora do consumo e circulação de bens simbólicos. Enquanto isso, aqueles sujeitos depositários de valores da tradição e que se encontram em posição intervalar relativamente às fronteiras, não problematizam sua atividade produtora de sentido a partir das diretrizes de consumo de bens simbólicos, mas da luta por reconhecimento no plano do amor, do direito e da solidariedade, na expressão de Honneth.
Trataremos de delinear aqui, mantendo-nos nos rumos da refexão proposta por Canclini, alguns traços defnidores das políticas públicas de cultura, no que interessa aos grupos de coco (e, por extensão, aos demais agrupamentos culturais que são atravessados pela predefnição de contextos que se exprimem em termos de URBANO versus RURAL). 1) O fascínio pelo popular, e a insistente e rebarbativa estratégia que lhe dá sustentação no discurso hegemônico, camufam uma compreensão em que POPULAR equivale a PRIMITIVO e operacionalizam estratégias de apoio a uma compreensão de dinamismo e vigor da cena cultural do presente e de legitimação da compreensão hegemônica atual através do
“reconhecimento” do patrimônio histórico-cultural.
A noção mais consistente que embasa as compreensões de políticas culturais é a de que a promoção destas políticas
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signifca a realização de eventos e de espetáculos. Não se localiza, em tempo algum, o esforço de constituir um programa ou ações de caráter duradouro que representem a valorização efetiva e o apoio aos “grupos culturais”. Toda a questão do reconhecimento passa, exclusivamente, pela criação de oportunidades de participação em eventos e espetáculos promovidos pelos agentes públicos e pelos equipamentos culturais que, sendo privados, atuam na esfera pública, por omissão desta ou por uma compreensão prévia de que a cena cultural é pouco densa e justifcaria ações sobrepostas. Canclini desnuda os interesses que se harmonizam sob essa aparente competição: “Uns e outros buscam na arte dois tipos de rédito simbólico: os Estados, legitimidade e consenso ao aparecer como representantes da história nacional; as empresas, obter lucro e construir através da cultura de ponta, renovadora, uma imagem ‘não interessada’ de sua expansão econômica.” (p.89)
No leito da espetacularidade desses estilos de gestão cultural, os agentes culturais do campo popular acabam por ser apreendidos como se possuíssem uma homogeneidade que não apenas não possuem como seria profundamente indesejável que possuíssem. Centenas de jovens, por exemplo, se dedicam à música tendo como referente uma esfera de produção e consumo de natureza popular (seja esta de massas ou não). Artistas plásticos, subjugados ao conceito operatório de “artesãos”, modelam, há décadas, no Cariri, uma sensibilidade estética profundamente enraizada em uma experiência de vida comunitária. Sujeitos se reúnem sob a consigna da devoção, dentro e fora da expressão religiosa hegemônica, e seu pertencimento à esfera da cultura popular é quase que rigorosamente ignorado, salvo quando se insere no aspecto restrito das romarias, que são percebidas como patrimônio histórico. Como síntese, parece-nos que a fórmula consagrada consiste
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em remeter essas práticas e formas artísticas a um domínio impessoalizado e pretérito, pois assim as formas de agenciamento das estratégias de legitimação dos padrões culturais hegemônicos atuais não teria que enfrentar, por exemplo, a resistência de sujeitos mais empoderados e mais refratários ao uso social instrumentalizado.
Assim sendo, a política cultural para o campo da cultura popular baseia-se em promover a encenação do popular, associando-o ao universo rural e tornando-o alienígena na cidade, enquanto, por meio dessa encenação reiterada, simula-se o reconhecimento de seu valor. Tal reconhecimento é desmentido pelas circunstâncias. O arranjo técnico da iluminação e sonorização dos palcos, por exemplo, ignora o aspecto circular e dramático de algumas destas formas artísticas, chamadas pejorativamente de manifestações. Manifestação não é conceito que recubra o alto grau de investimento comunitário que está por trás da complexa organização de um reisado. Reisado é forma artística, enquanto manifestação é a encenação controlada, descontextualizada, empobrecida e rápida que os poderes públicos promovem em datas e contextos ofcializados. A valorização se desmente quando a mais antiga universidade da região promove uma “programação cultural” paralela a uma programação “artística”, em que, nesta última, os artistas têm nome e currículo, ao passo que na primeira, todo mundo se reúne sob a denominação achatada de “grupos da tradição popular”. Na prática, é comum a ideia de que, para demonstrar publicamente a riqueza patrimonial da região, principalmente na presença de visitantes, o melhor modo seja convidar um grupo de coco ou um reisado para uma apresentaçãozinha rápida, ANTES do evento, o que permite, assim, não misturar as coisas... A lista de exemplos e situações em que tal prática ocorre não para por aqui e uma versão mais
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detalhada deste texto, com uma leitura pormenorizada dos “eventos” que, sem pretendê-lo, denunciam essa desqualifcação, é tarefa que pretendemos concluir nos meses que virão.
2) O agenciamento social instrumentalizado dos artistas populares traduz uma cerimonialização do patrimônio artístico, que nega a complexidade do passado e do presente e, sob a consigna da democratização da cultura, cedem ao discurso do empreendedorismo e da autossustentabilidade naquilo que têm de pior: a introdução da lógica de consumo.
Ao deslocar a prática e a forma artística de seus contextos, espetacularizando-as e fetichizando-as, submete-se a sua apreciação a uma fórmula de circulação que é regida por regras e costumes diversos daqueles de sua ocorrência cultural legítima. Falamos de legitimidade tendo em mente que, na eticidade do reconhecimento como forma de diálogo produtivo com o Outro, não é legítimo privar da autoridade e voz de comando aqueles que foram reconhecidos em seu grupo como portadores desses predicados. Um mestre e um contramestre não carregam essa credencial à toa, mas a cerimonialização é capaz de apresentá-los como sujeitos exóticos, via de regra, lançando mão da ideia de que é surpreendente que agricultores rudes sejam admitidos como indivíduos que fazem algo que, com liberalidade, podemos dizer que parece com arte...
Para fnalizar essa sessão, é necessária uma menção àquela fórmula especialmente infeliz da espetacularização que faz revezamento do que chamam e compreendem como “atrações”. A fórmula das “atrações” é a mesma que vemos em programas televisivos, em palcos de eventos etc. A concentração leviana de referências diversas promove um achatamento da experiência em duas dimensões cruciais: em primeiro lu-
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gar, ignora-se que aquela encenação é um momento sincrônico de uma vivência comunitária e contínua, o que pode ser desastroso, se o público que “consome” o espetáculo se deixa levar pelos protocolos habituais de manifestação de suas preferências; em segundo lugar, ignora-se que os artistas possuem uma consciência muito nítida sobre a forma artística em que eles estão engajados, mas nem sempre essa consciência exercita-se em pensar o engajamento de outras experiências, o que pode constituir um acúmulo de frustrações que têm peso importante na manutenção dos constituintes dos grupos.
Atendendo os limites desta refexão, deixaremos de considerar aqui alguns outros elementos importantes que, todavia, teremos o cuidado de nomear: a) as políticas públicas miniaturizam formas artísticas, assim como se faz nas estantes e nichos dos museus, como forma de ampliar a variedade dos tipos e formas em exposição; b) a idealização do passado mobiliza a categoria da autenticidade e isso tem consequências severas para a defnição de ações prioritárias e c) a noção de preservação é antípoda da renovação e reelaboração, próprias da cultura popular.
Finalizaremos esboçando algumas palavras sobre a noção de solidariedade, tal como proposta por Axel Honneth, como horizonte possível de uma base dialógica que permita pensar as ações culturais em outro modelo, menos autoritário e menos instrumentalizador das formas artísticas e dos sujeitos que as produzem.
Considerações Finais
Entendemos que, no plano estrito do trabalho de pensar, emerge o convite urgente no sentido de investigar com profundidade a posição da noção de solidariedade nesse espa-
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ço poroso das fronteiras. Salvadori resume a importância do conceito para Honneth, ao sustentar que:
A solidariedade (ou eticidade), última esfera de reconhecimento, remete à aceitação recíproca das qualidades individuais, julgadas a partir dos valores existentes na comunidade. Por meio dessa esfera, gera-se a autoestima, ou seja, uma confança nas realizações pessoais e na posse de capacidades reconhecidas pelos membros da comunidade. A forma de estima social é diferente em cada período histórico: na modernidade, por exemplo, o indivíduo não é valorizado pelas propriedades coletivas da sua camada social, mas surge uma individualização das realizações sociais, o que só é possível com um pluralismo de valores (SALVADORI, 2011, p.191)
Ao entender o Coco como um fazer dentro da vida e que distingue aqueles que o dominam, praticam, apreciam ou relembram, sujeitos constituem em seu estar-no-mundo uma feição identitária que os torna engajados na demanda de um reconhecimento, inicialmente, afetivo. Por essa fronteira, transitam expectativas de apreciação positiva tensionadas na direção dos membros do grupo, dos indivíduos que comungam do valor comunitário e da massa anônima que cerca e se opõe ao espaço de produção e gozo dos afetos. Ao demandar amor como momento e forma exteriorizada de um primeiro tipo de reconhecimento, os grupos, que já não são agrupamentos circunstanciais, veem-se às voltas com um fazer que se tornou um posse e isso conduz ao risco de ter de lidar com outras formas de desrespeito, que nada mais têm a ver com amor.
O Coco, em seu momento de coisa possuída, distingue seu possuidor, que deve agora lidar com aqueles que não possuem o Coco como marca de suas identidades, que podem ou não almejá-lo como um valor e que não estavam implicados no momento em que o Coco foi coisifcado e impregnado pelas
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formas do pertencimento. O confito agora, sempre não menos que duplo, tenta passar para um lado da fronteira carregando a reivindicação de um direito de posse, enquanto do outro lado transita em sentido oposto um outro sentido de posse, com critérios de valor, regras de uso, percursos de circulação e protocolos de hierarquização que fazem dessa segunda dimensão do reconhecimento a hora de lidar com regras que exigem um consensuamento interindividual ativo e multilateral.
Mestres e Mestras do Coco, brincantes de hoje e de ontem, público da vizinhança e telespectadores invisíveis mas presentes, intelectuais, governantes, todos confguram, no sentido e na valorização dos usos do amor e do direito, uma mesma, gigantesca e única roda, em que a solidariedade encarna o terceiro momento do reconhecimento, a sua eticidade. Não é uma demanda futura, um problema a resolver nas fímbrias do amanhã. A solidariedade e o momento ético da luta por reconhecimento, no conjunto vivo das relações interindividuais que têm o Coco como centro de gravidade, entre indivíduos no cariri cearense, são uma construção histórica que viveu diversas confgurações anteriores à atual e que, no seu aspecto sincrônico, confguram arranjos que se movem na direção de um esvaziamento social da experiência coletiva. Os que militam na esfera acadêmica têm o dever de solidariedade de tomar partido e formar fleiras na resistência à patrimonialização do Coco. Cabe a nós descrever e desnudar essa lógica de produção e consumo que descontextualiza, hierarquiza, esquematiza como produto e oferece ao consumo como especiaria exótica, o Coco. Cabe a nós, também e com o mesmo vigor, descrever e reconhecer esse Coco que ainda preenche os vincos do rosto sofrido de sertanejos e sertanejas, homens e mulheres, velhos em sua maioria, que cantam e pulam e pisam e riem como quando eram jovens e o seu fazer era deles.
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Referências Bibliográfcas
GARCÍA CANCLINI, N. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1997. HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos confitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Edições 34, 2003. SALVADORI, M. HONNETH, Resenha de Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos confitos sociais. Conjectura, v. 16, n. 1, jan./abr. 2011, p.189-192.
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