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Christian Dennys Monteiro de Oliveira
Christian Dennys Monteiro de Oliveira
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Introdução
Todos os anos, em períodos muito específcos, caravanas de romeiros partem para sua visita habitual – e ritual – a algum centro de peregrinação tradicional, polarizado por alguma construção eclesial e/ou seu complexo ao redor, formando o que conhecemos por santuário. Na maioria das vezes, temos ali uma “vida normal” alterada, apenas, nestes momentos especiais pelo aumento signifcativo do fuxo de visitantes, que fazem daquele lugar santo um espaço privilegiado de fé e festividades.
No Brasil, especifcamente, existem centenas de lugares com o mesmo perfl. Se fzéssemos uma relação exclusiva para o mundo católico, encontraríamos hoje mais de 200 santuários, nas cinco regiões, ofcializados pela Igreja com esse status. Mas não se pode ignorar que em termos populares a ideia de visitar e venerar uma localidade mística não depende de ofcialização; santuários são erguidos e mantidos pelas comunidades e féis, até de forma independente das autorizações clericais. Quando essa visitação é combinada a outros eventos e atividades festivas – tradicionais para o lugar e a região – tal aspecto ganha uma autonomia ainda maior, fazendo crescer a representatividade cultural do santuário para além dos aspectos estritamente religiosos.
Entretanto, mesmo num país considerado “religioso”, existe uma diversidade muito grande de rituais, valores e comportamentos que alimentam as práticas habituais dessas
romarias. Não se trata apenas de enfatizar diferenças macrorregionais dos catolicismos populares que ocorrem no país. Gostaríamos, neste breve artigo, de demonstrar a diferenciação de romarias de origem rural que se dirigem a um dos mais tradicionais santuários do país – o de N. S. da Conceição Aparecida, localizado a 170 km da cidade de São Paulo e polo receptor do maior movimento anual de turismo religioso no Brasil. Tal diferenciação requer o levantamento de características peculiares a algumas romarias e roteiros, com nítidas marcas do universo rural: presença maciça de camponeses, trabalhadores rurais e seus parentes e agregados; utilização de veículos ainda expressivos da produção rural; reprodução de rituais, convenções e atividades muito ligadas aos costumes daquela comunidade; e um certo grau de resistência ou adaptação parcial aos novos serviços urbanos diretamente ligados à modernização que atinge o Santuário de Aparecida desde a década de 1970.
A grande maioria de romarias organizadas que se destinam ao Santuário de Aparecida provêm de um raio de 600km, envolvendo os estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná – cerca de 90% das visitas. São representativos também os deslocamentos que partem de Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Goiás, Brasília e Bahia; embora não ultrapassem 10%, a não ser em ocasiões muito especiais. Isso nos conduz a lembrança de que a capacidade de atração turística de Aparecida, em termos físicos, permanece circunscrita, efetivamente, aos arredores das grandes metrópoles brasileiras do Sudeste, com especial infuência nas regiões do Vale do Paraíba e no sul de Minas Gerais. Por conseguinte, é importante reconhecer que as áreas rurais dessas regiões têm sofrido consideráveis processos de reorganização espacial.
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Por outro lado, não ignoramos o fato de que a representatividade simbólica da Imagem da Padroeira do Brasil e sua Basílica Nacional trazem para esse romeiro, venha de onde vier, um sentimento de “monumentalidade”, uma atitude de reverência toda “especial”. O motivo central disso encontra-se no marketing do próprio Santuário. Vir a Aparecida é mais do que visitar um lugar sagrado. Signifca ir à Roma brasileira; à casa imperial da Mãe de Deus na Terra. É visitar o Santuário de todos os santuários da Igreja desse país.
A marca mais expressiva dessa reverência popular encontra-se na qualifcação do ritual da peregrinação. O importante para o romeiro da zona rural é harmonizar o esplendor do “contato” com a Santa – o encontro – com o sacrifício da própria caminhada até Ela – a busca. Por isso, torna-se relevante vivenciar uma mística durante a própria viagem ao santuário. O quê, na maior parte das romarias urbanas, acaba sendo desvalorizado pela lógica moderna da velocidade, do tempo que não pode ser perdido, por ser pouco e cada vez mais caro.
Para pensar essa valorização do ritual de peregrinações vamos nos ater aos meios de transporte e as formas de deslocamento usadas, ainda hoje, pelas romarias mais tradicionais provenientes dos municípios da Serra da Mantiqueira, especialmente a da cidade de Natércia-MG. O leque de características rurais dessas romarias alia três aspectos decisivos para confrmar a ideia de que a metropolização do Santuário de Aparecida 1 não eliminou ou excluiu as formas populares de peregrinação, identifcadas com um “catolicismo rural”. São eles:
y A ideia de comunidade como sujeito de todo processo de peregrinação, distanciando-se, portanto, daquele quadro
1 Tese de doutoramento com o título Um Templo para Cidade-Mãe defendida pelo autor em outubro de 1999 na FFLCH da Universidade de São Paulo.
predominante das “romarias de domingo”, feitas por famílias e/ou indivíduos isoladamente. y As etapas rituais da passagem do profano ao sagrado, propostas por Mircea Eliade, e retomadas pela Zeny Rosendhal (1994), que marcam o tempo das festividades e reforçam os laços de sociabilidade dessa mesma comunidade. y O alerta para que a refexão sobre o chamado turismo religioso não fque aprisionada pelas referências modernas e pós-modernas do mundo do lazer e do ócio. Isso porque o comportamento dessas romarias, embora não reduzidas às obrigações mítico-religiosas, não absorvem outras atividades socioculturais próprias do fazer turístico. E o elemento geoeducativo da visita cênica, que reedita a trama rural/ urbano na aprendizagem do mito de encontro de “sacralidades” no templo. O que nos permite imaginar o elemento símbolo retorno ou volta como indispensável à compreensão da prática da religiosidade turística como alternativa aos limites do turismo religioso.
Vejamos como o exemplo da 60ª Romaria de Natércia – que atualmente encontra-se em sua 76ª edição – pode nos auxiliar na interpretação de uma das mais notáveis simbologias da religiosidade cristã de matriz católica diante da espacialidade geográfca contemporânea:
A Reverência da Comunidade de Natércia – MG
Em 1997, a edição de nº 4.820 do jornal Santuário de Aparecida2 publicava uma reportagem, de uma página inteira, dedicada a romaria de Natércia, que entre 7 e 8 de julho
2 Semanário editado pela Congregação do Santíssimo Redentor pela editora Santuário – Aparecida-SP
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chegou a Aparecida para completar seus 60 anos de existência3. A descrição, feita pela imprensa ofcial do Santuário, chama atenção para a tradicional devoção expressa naquela festividade religiosa, que sempre foi marcada pela simplicidade e pelo envolvimento de toda comunidade municipal e, na ocasião, dedicou suas missa em agradecimento aos fundadores da Romaria: cônego Francisco Fortes Bustamantes e João de Souza e Aplínio Arantes.
Segundo a reportagem, naquele ano a peregrinação contou com a participação de oito ônibus, 130 cavaleiros, 50 bicicletas e motos, uma centena de carros e inúmeros romeiros que vieram a pé. Isto consumiu dois meses de preparação, envolvendo a visita da imagem peregrina de N.S. de Aparecida em 15 comunidades rurais do município, entre os dias 14/05 e 27/06. Do dia 28 de junho ao dia 6 de julho, realizou-se uma novena na igreja matriz de Santa Catarina. E, neste período, alguns romeiros já se puseram a caminho de Aparecida, antecipando a partida para um novo encontro, no próprio Santuário. Segundo Maria Marta de Souza Teixeira, diretora de uma das seis escolas locais e coordenadora da Pastoral Familiar: Estamos comemorando 60 anos de romaria com uma peregrinação iniciada nas comunidades rurais, no mês de maio. Nossa Senhora Aparecida peregrinou e abençoou toda área rural de Natércia. Para nós o motivo é de muita alegria. Inclusive a missa de encerramento contou com a participação de crianças, jovens, adultos e idosos, numa confraternização muito bonita entre os cidadãos (jornal Santuário de Aparecida, 19-25/07/1997, p.16).
A coordenadora que também é flha de um dos fundadores da romaria, afrma ainda que a verdadeira tradição da
3 Em 2012 o portal do Santuário de Aparecida http://www.a12.org.br notícia a visita de 75 anos (jubileu de platina) da comunidade, demonstrando que as romarias de Natércia continuam seu ciclo anual, nos meses de julho
romaria concentra-se na capacidade das famílias de Natércia em transmitir a necessidade da participação contínua, como uma “herança para seus flhos e netos”. Por outro lado, o perfl agrário da localidade – com uma população total de aproximadamente quatro mil e quinhentos habitantes (ver tabela) e uma economia ligada a produção de café, banana e lavoura branca (feijão, arroz e milho) – tem colaborado para a manutenção dessa continuidade cultural e religiosa; principalmente quando se percebe que o mecanismo de transmissão dos valores e ideias, mantém-se bastante relacionado ao cultivo das lendas, “causos” e histórias que reivindicam a mediação de Nossa Senhora. Lembrando algumas declarações do ministro da eucaristia e membro da coordenação, Luiz Rodrigues de Souza, o jornal destaca que: Algumas pessoas, segundo Souza, têm motivos especiais para peregrinar e agradecer a Nossa Senhora Aparecida. Um de seus parentes, por exemplo, quando ainda era menino, foi pego por uma tempestade enquanto trabalhava no campo junto com outro garoto. Assustados fugiram da forte chuva e abrigaram-se num estábulo. Durante a tempestade, caiu um raio no local e matou dois animais. Os meninos, no entanto, nada sofreram. “Foi Nossa Senhora Aparecida que os salvou da morte”, disse Souza. Este ano, já adulto e casado, o parente de Souza (o menino da história) participou da romaria juntamente com seu flho pequeno. “Venho todo ano agradecer o dom da vida, a oportunidade que Deus me deu de continuar vivendo e poder ter meus flhos, criá-los e vê-los crescer” (Jornal Santuário de Aparecida, 19-27/07/1997, p.16)
Relatos envolventes como esse permitem engrandecer as ligações entre a comunidade rural de Natércia na caracterização mais signifcativamente geográfca da reconstrução anual de seus itinerários. A Mãe Aparecida traduz o ponto
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geográfco mítico-existencial dos fuxos de partida e chegada para renovação da vida devocional, fundada na permanente gratidão. As imagens seguintes (Figuras 1 e 2) retratam a caracterização geográfca desse vínculo simbólico de Natércia com Aparecida, por intermédio dos dados – precários como de qualquer município limitado pela economia da dependência primária – do ciclo da viagem peregrina. Mas cada vivência devocional, direta do fel ou por acompanhamento social (parentes e amigos) corresponde a uma reedição das motivações de Souza (acima mencionado). Ainda que o estudo não tenha trabalhado relatos colhidos primariamente em campo, tal percepção permite construirmos, em futuras pesquisas sobre a irradiação devocional uma “geografa do devoto peregrino”, na circularidade rural-urbana dos lugares turístico-religiosos: o que demanda e o que oferta os bens simbólicos da fé.
Tabela 1 – Caracterização de Natércia-MG
Itens de Referência do Município/Cidade de Natércia-MG População estimada 2013 4.802 (55% urbana / 45% rural) População 2010 4.658 População Católica 4.303 (92% do total) Total de Veículos 1.919 Área da unidade territorial (km²) 188,719 Densidade demográfca (hab/km²) 24,68 Matrículas no ensino médio (2012) 166 IDH. (2010) 0,693 (posição 2105º) Rendimento mensal médio (rural) 410 reais Taxa de Crescimento 0,28 Distância relativa até Aparecida SP 163km Fonte: Instituto Brasileiro de Geografa e Estatística (2013). http://www. ibge.gov.br/cidadesat/xtras/perfl.php?codmun=314440&search=minas-gerais|natercia
Figura 1 – Intercâmbio da religiosidade turística
Ida peregrina e volta espiritual: realização do dever turístico
Volta turística e ida missionária: completude do ciclo religioso
Fonte: Elaboração do autor 2013
Para fnalizar a reportagem, é lembrado o empenho da própria Prefeitura em garantir a presença maciça dos natercianos em Aparecida, justamente porque toda peregrinação já esta inserida na cultura local como um evento de primeira ordem e capaz de mobilizar todo município pelo maior período de tempo possível.
Vale lembrar que Natércia compõe um dos 11 municípios da microrregião de Santa Rita do Sapucaí, na faixa de divisa entre os estados de São Paulo e Minas Gerais. Portanto, não sendo exceção entre as cidades da serra da Mantiqueira, recebe infuências signifcativas das funções urbanas exercidas pelos principais centros do Vale do Paraíba, incluindo a função religiosa. Sendo assim, podemos avaliar a dimensão regional de todo ritual dessa peregrinação (FICKLER, 1999) considerando a profundidade dos elementos culturais que ela contém. Da mesma forma que as comunidades rurais foram – pela 60ª vez – “convocadas” pela imagem milagrosa para aquele ritual. Todo “sacro-ofício” era um gesto mínimo de agradecimento coletivo que se poderia esperar daquela gente humilde e daquele lugar tão simples. Contudo, no momento de realizá-lo, não se pode negar sua grandiosidade proporcional.
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A romaria rural, acima de qualquer outra, traduz a imensa distância entre o espaço sagrado e os níveis de espacialidade profana, conforme as classifcações de qualitativas de santuários cristãos (ROSENDHAL,1999). Mas em sua realização, a condição hierárquica das próprias comunidades é mantida e produzida, até nos meios “escolhidos” para o deslocamento. O antropólogo Rubem César Fernandes, em seu trabalho sobre as romarias para o santuário de Pirapora do Bom Jesus, deixa bem claro que a ideia da separação simbólica entre nobreza e plebe que se estabelece na relação entre os romeiros a cavalo e os que vão a pé:
Temos então o perfl da romaria: heterogênea quanto aos meios – com a predominância do gênero cavalar, acompanhado em contraponto pelos pedestres, acomodado apesar dos acidentes com os ciclistas, irritados pelos veículos motorizados... É um conjunto que contrasta com a norma medieval portuguesa, em que o cavalo era distintivo das ordens nobres da sociedade, associado, sobretudo, com a arte guerreira. No Brasil foi estendido para outras classes, graças à importância do gado e do vaqueiro na colonização. Tornou-se acessível também ao “comum”, dando lugar inclusive a uma segunda defnição de “peão”, exclusivamente brasileira, segundo o Aurélio: “amansador de cavalos, burros e bestas” (FERNANDES, 1982, p.64).
Muitos outros componentes devocionais se destacam no conjunto de uma romaria como a de Natércia, além dos tradicionais “meios de transporte”. Provavelmente o componente mais signifcativo do cerimonial permaneça no “êxtase” de uma das missas celebradas no Santuário; ou, individualmente, no momento em que o peregrino cumpre seus votos diante da Santa, no altar, na capela das velas ou na sala dos milagres (das promessas). Trata-se de um instante e de um ponto de vista místico, profundo; que verdadeiramente trans-
cende a dicotomia sagrado/profano, posto pela maioria dos cientistas e estudiosos dos fenômenos religiosos. Ainda que concordemos com essa progressiva passagem, não podemos admitir a ideia de que uma participação efetiva naquele espaço sagrado fque encerrada assim que a comunidade deixe o local. Segundo Paul Fickeler (1999) um traço fundamental do sagrado – além da pureza e da atração/repulsão – encontra-se na possibilidade de sua transferência, santifcação.
De certa maneira, ao retornarem para Natércia os romeiros irradiaram a energia espiritual que renovaram no Santuário de Aparecida. Portanto, sacralizaram o profano de alguma forma. Este é o ponto que dá a questão do retorno/volta à complexidade necessária e relativa ao entendimento da religiosidade turística: sem garantir “volta” – tanto na aparente ida à “casa” da divindade, lócus da morada espiritual, quanto no consequente retorno ao ponto de partida, agora sujeito ao bom contágio dos devotos.
A Reverência de Outras Regiões: ”Renovando” a Tradição
Boa parte da devoção das comunidades rurais, nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, teve sua expansão com o incremento de dois fatores espaciais simultâneos: o desenvolvimento dos meios de transporte rodoviários (ônibus, automóveis e estradas) e o fortalecimento nacional do marketing da imagem da Padroeira através das comemorações do 250º aniversário de sua pesca milagrosa, nas águas do Paraíba do Sul (1717- 1967). Não só municípios vizinhos como Natércia, Três Pontas (MG), Resende (RJ), São Sebastião e São Luiz do Paraitinga (SP), entre inúmeros outros, foram estimulados a continuar aumentando as romarias que já promoviam. Outros, um pouco ou bem mais distantes (na Bahia,
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Mato Grosso ou Rio Grande do Sul), em diferentes períodos e formas de organização, também incrementando fuxos de peregrinos, atendendo de maneira considerável os apelos de muitos camponeses e trabalhadores rurais.
A Sala das Promessas, no subsolo da Basílica Nova de Aparecida, reúne uma densa simbologia da religiosidade popular. Nela, podem ser notadas representações signifcativas de pedidos e doações ligadas ao mundo rural. Há fotos de alimentos armazenados como lembrança do agradecimento pela boa safra de milho, de feijão, de algodão etc. Há objetos relacionados à montaria e a criação de equinos, em que a gratidão se faz presente pela doação de uma cela, de um pedaço da crina de um cavalo ou de uma ferradura, indicando o sucesso da criação. Mas também há imagens de calamidade (pequena maquete de um sítio devastado pela seca ou pela geada) e as frases de intenção para que aquela situação seja revertida por Deus, com a mediação de Nossa Senhora.
Em qualquer um desses casos é fundamental perceber que o romeiro das áreas rurais, em condições habituais da própria romaria a qual está integrado, desenvolve seu ritual de visita como se todas as atividades e localidades fzessem parte de sua via-crúcis pessoal. Difcilmente vem à tona uma possibilidade de que ele possa aumentar sua racionalidade do tempo da visita por intermédio de um exercício tipicamente turístico ou de lazer. E neste campo de ocupações, quando as “tarefas estritamente religiosas” – no reduzido espectro de atividades que essa noção contém no interior do catolicismo – já se realizaram, fca disponibilizada a oportunidade do lazer turístico, dentro ou fora de um “certo” comprometimento religioso.
Ir às lojas, bazares e lanchonetes, na área central de Aparecida, na Feira dos fns de semana ou no “Shopping da
Fé” (como é também conhecida a parte comercial do Centro de Apoio ao Romeiro) signifca ocupar-se de atividades não religiosas. Para alguns autores, indica apenas um uso “profano” do contexto que se desenvolveu à margem da função religiosa. Entretanto, seu desenvolvimento na maioria dos santuários de grande porte como Aparecida, não se originou nem por força de outras modalidades de turismo, comércio ou demais serviços nem por demanda das romarias de tradição rural.
O entendimento deste fenômeno perpassa a lógica da expansão da rede metropolitana e as estratégias político-eclesiais de organização de santuários regionais e nacionais. Congressos intercontinentais de reitores de Santuário, como o que se realizou na Polônia, de 23 a 25 de setembro de 1999 (junto ao Santuário de N. S. de Czestochowa, padroeira nacional) retomam as preocupações de cientistas e teólogos que veem, na modernização acelerada dos grandes santuários, um perigo à transformação (desvirtuamento) da fé em “consumismo religioso”. Pode-se fazer tal raciocínio, desde que sejam discriminados três aspectos anteriores às mudanças arquitetônicas e funcionais que vêm ocorrendo nestes santuários:
a) em termos geográfcos, nenhum processo de metropolização elimina as particularidades locais e regionais; assim como não há cidade mundial que não tenha peculiaridades exclusivas, nenhum templo metropolitano – no âmbito do catolicismo – corre o risco de perder, por si só, os costumes mais tradicionais e populares das manifestações de fé; b) em termos comportamentais é preciso lembrar que são as demandas sociais – velhas e novas, autóctones ou estrangeiras – que moldam, em primeiro lugar as exigências de reorganização dos cerimoniais religiosos (sagrados ou profanos); portanto, nada impede que o romeiro da área rural
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selecione qual aspecto “moderno” do urbano – entre eles o turístico – deva ser incorporado a cultura religiosa; c) e, no plano político, o decisivo para a instituição católica não está na coerência de práticas e discursos que separariam, radicalmente, “o joio do trigo”, isto é, “o mal do consumismo do bem da devoção”, mas na capacidade de conciliar a aliança entre poder imperial da evangelização e viabilidade material da instituição. Neste sentido, nenhuma modalidade de turismo, nos santuário, pode ser ignorada.
Diante dessas premissas, podem ser organizados estudos a respeito da caracterização e evolução das romarias rurais, sem engessar os aspectos devocionais mais autênticos dos camponeses. Modelos fechados de comportamento daqueles “peregrinos” (“estrangeiros” ou alóctones conforme a raiz da palavra) não permitem compreender a receptividade das romarias às inovações urbanísticas que vêm ocorrendo em Aparecida nos últimos anos. Ainda que pessoas, famílias e grupos tenham deixado de fazer suas viagens à terra da Padroeira ou abandonado a regularidade dessa visita, não se tem notícia de qualquer romaria rural que tenha substituído a devoção à Santa do Rio Paraíba do Sul, em razão da “turistifcação” ou da “comercialização” dos espaços correlatos ao santuário. Ao contrário, os relatos registram a renovação e ampliação de velhas romarias e a criação de novas.
Um exemplo bastante signifcativo é o da Romaria Masculina a pé de Três Corações – MG, que se realiza há 48 anos e, em 1980 ganhou sua versão feminina, embora ambos os grupos tenham que enfrentar os mesmos 240 km de caminhada, no período de inverno. Outro exemplo é a 15º romaria de Paraibuna-SP, que congrega caminhantes, cavaleiros, ciclistas e motociclistas, num total aproximado de 150 romeiros,
reunindo integrantes de comunidades urbanas e rurais. Assim como a anterior, a referência do “sacrifício” de outras romarias acaba sendo uma motivação de novas pessoas e grupos se integrarem àquele movimento. Isto sem falar nos Grupos de Jovens, Vicentinos, Apostolados Marianos, Grupos Sindicais, Entidades Recreativas e Esportivas etc. que continua reinventando práticas cerimoniais, nas quais o morador ou trabalhador da área rural não sente a menor difculdade em participar.
Precisamos lembrar ainda, que para essa integração continua concorrendo positivamente as missões de evangelização dos padres redentoristas pelo interior do País e as transmissões da Rádio Aparecida. Esta tem sua programação sintonizada em todas as frequências, alcançando a maior audiência entre as rádios católicas do Brasil e da América Latina. Difcilmente este vigor da fé em N. S. Aparecida poderia ser convertido em tamanha reverência sem o trabalho prévio e constante dessa “mídia” institucional, principalmente no alcance e envolvimento das comunidades rurais.
Uma Pista para Compreender Tamanha Reverência
A noção de “irradiação da sacralidade” (FICKELER, 1999) talvez indique um caminho, uma pista para interpretarmos o crescimento dessa reverência do mundo rural ao espaço urbano, polarizado por uma manifestação milagrosa. A ideia central, que poderia motivar pesquisas específcas visando sua melhor representação demonstração seria: ir ao santuário é buscar ao “ouro” simbólico que permitirá a riqueza real (o desenvolvimento) de nosso lugar de origem. A romaria rural, neste sentido, é uma busca mais funcional e concreta do que do que as peregrinações advindas dos grandes centros metropolitanos. Estes últimos têm muitos outros caminhos – ma-
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teriais e espirituais – para se desenvolver e oferecem muitas opções à sua população, podendo assim diluir os interesses de seus indivíduos e comunidades. Já para um lugar demarcado por uma vida rural nos limites da sobrevivência, o Santuário é um “garimpo”, “um paraíso de fartura”, fonte única de energia para o abastecimento da vida naquele “pedacinho do mundo”...
Mas até que ponto, geografcamente, esta relação desigual e ritual do romeiro para com esses dois espaços existenciais – meu lugar e o lugar da Santa – não seria uma simples inversão do que ele inconscientemente considera sagrado? Neste sentido, nada é mais sagrado do que o “mundo” contextualizado por seu lugar de origem, posto que nenhuma outra realidade (incluindo pessoas, motivos ou situações) faria o romeiro forjar tamanho sacrifício.
Ao partir para a romaria, nas condições que vimos pelos exemplos anteriores, a comunidade de romeiros comunga um desafo espiritual em nome de sua identidade, que inclui a dimensão territorial (HAESBAERT, 1999) por manifestar-se concretamente num espaço mítico, isto é, um espaço que veicula o compromisso cerimonial. Por isso, o grande objetivo da romaria – chegar ao Santuário – pode ser reconhecido com a roupagem de um objetivo menor, porém mais essencial: voltar dele, ou melhor, trazer dele o lugar santo que em que pode ser convertido o santo lugar onde o sacrifício começou.
Vejamos este último relato, questionando a perspectiva posta há pouco.
Um Mês de Caminhada para Chegar a Aparecida... e Voltar
A versão de 2012 da mesma romaria Natércia-Aparecida-Natércia, noticiava a presença de 400 peregrinos fazendo
a caminhada por 30 dias. E as páginas on line da diocese de Campanha destacava o marco festivo da Paróquia Matriz de Santa Catarina Alexandria de Natércia, noticiando, com um texto de Paulina Orsi, a ligação entre comemorações eclesiais (Figura 2), da Matriz (190 anos) e da Romaria (75 anos). Tal associação ainda recordava em um trecho os 250 anos da construção da primeira capela e o envolvimento das comunidades fliais na romaria que atingiu o total de 1600. O que equivaleria a aproximadamente 1% dos habitantes do município.
Não dispomos, no entanto, de informações publicadas na web que denotem o retorno desses peregrinos e a expressividade vivenciadas pelos moradores no receptivo do retorno turístico desses devotos. Em geral a invisibilidade dos momentos festivos é favorecida pela superexposição da monumentalidade urbana e massiva, tão presente em Aparecida, quanto nas grandes metrópoles e regiões de forte apelo midiático. Apenas neste sentido, pode-se cair na armadilha insana de afrmar que o rural, as tradições, as crendices populares, os veículos de tração animal e as formas comunitárias provincianas tendem ao desaparecimento. Mas na atenção redobrada para a trama de processos culturais interdependentes, capaz inclusive de reunir em sucessivos anos uma progressiva irrupção de efemérides – veja que só Natércia teve três comemorações em 2012 – há como evitar correlações extremistas. É nesse sentido que a conclusão deste trabalho sinaliza os estudiosos a observar a relação entre a ruralidade e a urbanidade no bojo de uma geografa simbólica dos ritos de peregrinação. Para se garantir a força ritualística que empreende o investimento cultural e espiritual da visita ao Santuário, é indispensável ter a certeza latente de que o retorno (a volta da “volta mística”) permanecerá energizando os devotos em sua chegada.
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Neste sentido, a religiosidade é turística pela capacidade de conciliar ou responder o que as “peregrinações sagradas” ou os “turismos profanos”, em si, não respondem: a) porque a festa permanece tão forte ou melhor para quem, apenas no retorno a suas respectivas “Natércias”, encontra o sentimento do dever plenamente cumprido; b) porque a paga da devoção não se encerra na paga da promessa e cria um vinculo de continuidade entre gerações descendentes e colaterais; c) e porque é cada vez mais difícil compreender a monumentalidade de Aparecida metropolitana de 11 milhões de peregrinos anos sem as centenas de ruralidade que refundam Aparecidas no imaginário pós-moderno de tantos camponeses.
Figura 3 – Fotocomposição
Mais uma grande e alegre data! Nos idos de 1937, precisamente na primeira segunda-feira do mês de julho, um grupo de natercianos (então catarinenses) sob o incentivo do saudoso senhor João de Souza, organizou uma romaria rumo a Aparecida – SP, para venerar a pequenina imagem da querida Mãe Aparecida. A Romaria, ao longo dos anos, diversifcou-se. Formaram-se grupos de: pedestres, ciclistas, motociclistas, cavaleiros e amazonas, de ônibus e carros particulares. No dia 2 de julho de 2012, comemoram-se os 75 anos de agradáveis e santas visitas a Casa da Mãe Aparecida. Agradecemos a Deus por ter iluminado os Padres a fm de manterem, incentivarem e participarem desta belíssima tradição; por ter concedido a graça

da perseverança aos organizadores e, sobretudo por não ter negado aos romeiros as graças da fé e da coragem, para enfrentarem o terrível frio do inverno na Serra da Mantiqueira e a chuva; a todos a graça de acreditarem que, através de Maria, chegaremos a Jesus. Fonte: Elaboração do autor (2013), com informações coletadas dos sites http://www.diocesedacampanha.org.br/component/content/article/940-paroquia-santa-catarina-de-alexandria-de-natercia-comemora-190-anos. html e http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5f/Natercia. jpeg. Acesso em 20 de setembro de 2013.
A irradiação devocional, na complexa religiosidade turística que articula os lugares um dia foi lida apenas em termos de funcionalidade. A demanda de sua leitura atual engendra um pouco mais: nenhum espaço geográfco brasileiro pode ser pensado culturalmente sem esta poderosa chave-mestra na abertura de tantas portas.
Referências Bibliográfcas
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