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PREFÁCIO
from Offereço meu original como lembrança: circuito social da fotografia nos sertões da Bahia (1900-1950)
O retrato do casal fgura na sala de uma casa do sertão. Um senhor de paletó e gravata, olhar fxo sobre a câmera, e uma senhora de cabelo liso, preso atrás. A fotografa esteve ali por décadas, olhando para os frequentadores da sala com mais atenção, quem sabe, do que eles quando a olhavam. É provável que o casal fosse enquadrado na sua função de ancestral próximo, garantindo um rastro de sentido permitido no mapa do tempo. Não se havia dirigido aos rostos ali entrelaçados pelo matrimônio e pela descendência a pergunta sobre a origem étnica de cada um. Eis que a nora da mulher que é neta dessa outra que permanece olhando, de dentro da fotografa, percebe que aquela ancestral próxima é uma índia. A mulher que guarda o retrato lembra-se de sua avó como uma matrona sertaneja rígida e racista. Entretanto, sua origem está ali e acaba de ser desvelada. Não estava propriamente escondida, mas calada, à espera da interpelação. Foi necessária a intervenção de um olhar externo àquela consanguinidade que se representou cuidadosamente, por mais de meio século, para que os antigos habitantes dos vales, montanhas e tabuleiros – que hoje se chama
Chapada Diamantina – saltassem de dentro do papel impresso com aqueles pigmentos que viram gente e derramam história, quando generosamente perscrutado o suporte de celulose. No caso dessa cena, outro olhar feminino. Quantos olhares, quantos canais de exibição e percepção num só palco da existência. E coube ao historiador desvendar essas tramas em torno do registro fotográfco, permitir que o rosto presente todo esse tempo na parede pudesse transparecer sua identidade tapuia. É o pesquisador que detém essa arte – ou quem sabe seria melhor dizer esse artesanato, essa magia, esse feitiço – de ajudar as gargantas, línguas e lábios fxados no plano da fotografa a falarem. E a fotografa passa a ser escultura do passado que alça voo e chega ao presente como numa viagem de duas mãos no túnel do tempo. Não é só o espectador – no caso do retrato – que passa a ter permissão para se aproximar daquele momento que está ali fxado. Ao ente retratado, é permitido vir ao presente e dizer de si mesmo. A velha índia comparece e parece deixar os cabelos soltos comprovarem sua marca tribal. Ao mesmo tempo, é a mesma que sempre esteve ali, ao lado do marido menos misterioso que ela... E jamais será novamente a mesma, pois seu segredo, compartilhado através do zelo com que se aliviaram seus traços de Iracema, acaba de ser desmontado. Aqueles cabelos negros como a asa da graúna se libertaram do broche que os prendiam, no fundo do papel da fotografa, como as amarras invisíveis que parametrizam a sociabilidade humana. Jamais a sua neta vai
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olhar o retrato do mesmo modo. Enquanto artefato, o retrato é o mesmo; a imagem já é outra. O poder do pesquisador está tanto em desmontar certas magias do silêncio e do ocultamento como em engendrar outras magias, na forma de caminhos de percepção do objeto. Como no caso dos retratos de defuntos. O fotógrafo se aproximou com cuidado, certamente com respeito também. Fixou um momento pouco posterior ao da cessação defnitiva dos processos respiratórios e circulatórios, como se defnia a morte nos manuais antigos. É possível que tenha sugerido a algum familiar que arrumasse o morto em algum aspecto. Pelo menos o ângulo do qual se capturou aquele momento é do fotógrafo, com a aquiescência da família que deveria estar falando em voz baixa, entre uma e outra providência para o enterro. Cada fotografa de defunto já contém uma produção cenográfca considerável. A cama está sempre arrumada, o corpo está sempre em postura simétrica. Até aí, é o registro de uma passagem. É, contudo, a administração da fotografa no álbum ou no correio que vai conferir outra dimensão ao registro. E essa magia é novamente desvelada pelo olhar do pesquisador, como um metafotógrafo que lança luz sobre a própria cena da fotografa e sobre as cenas presumidas dos cuidados com o registro. Com as mãos esmeradas de quem não pode comprometer um grama do registro exposto ao tempo, qual um flatelista que remove o selo de um envelope, o pesquisador lida delicadamente com as cantoneiras que prendem a fotografa, cuidando para que
não se machuque, e aponta não apenas a morte do fotografado. Acena na direção de sua sobrevivência. Torna-se cúmplice de sua ressurreição no modo como disponibiliza não mais o rosto de cera de dentro do esquife, e sim sua presença de vivente. Sim, aquele retrato veio habitar mais de um álbum, foi enviado pelo correio ou por mãos de um gentil portador até as mãos comovidas de alguém que amava quem partiu e agora vê tornada substância, no registro, a permanência daquela pessoa. A adolescente que deixou sua casa para repousar no cemitério habita agora várias casas. Seu retrato de morta está cercado de outros em que está sorrindo, passeando, quem sabe no sítio da madrinha ou na saída da escola. E assim como o fotógrafo revelou a imagem a partir do negativo, o pesquisador revela o alcance da prática histórica de fotografar na observação atenta, incansável, renitente, condenando-se prazerosamente a acompanhar o itinerário da fotografa, tomando conta de seu cortejo no tempo da memória. Assim é o trabalho que se apresenta adiante, fruto da obstinação de Valter de Oliveira diante do que chama de circuito social da fotografa. Essas cidades do Piemonte da Chapada Diamantina e cercanias surgem no que aparece das fotografas e também no que pode ter sido discretamente ocultado. A cor do coronel Dias Coelho é entronizada no Paço Municipal de Morro do Chapéu. É sua cor que está ali. Sua origem não impediu sua escalada, antes, tornou-o um herói sertanejo singular. Aí, a cor não é somente o resultado do refexo decomposto da luz que volta daquele corpo. É coloração.
O centro da fotografa da entronização é o retrato, parece óbvio. Ocorre que, na fotografa, só existem obviedades para os observadores apressados ou descuidados. O retrato leva de volta ao pequeno prédio municipal, que na escala de Morro do Chapéu é um paço, o homem negro que superou o sepultamento. É mais um sertanejo imortalizado. Como os outros retratados do ambiente serão provavelmente brancos ou pelo menos bem mais claros, ele sobressai para além da moldura, com a farda imponente. A farda lhe confere honra e prestígio, mas não o sentido de sua singularidade. É o pesquisador que auxilia o leitor na trajetória da análise, da percepção, da interpretação, como queiram. E oportuniza ao leitor compreender que o que torna imponente o retrato do coronel fardado é a unicidade de sua condição de negro elevado à glória dos mandantes naquela região, e não mais a humilde condição de mais um descendente de escravos que sucumbiu. E tudo isso passa pela mediação da cor que é coloração fxada no papel. Após uma leitura mais detida deste trabalho, fquei a pensar no que poderiam estar por dizer aqueles rostos e paisagens que um dia nos esperam seja nas paredes de restaurantes de caminhoneiros, seja nos guichês de casas lotéricas, seja ainda perdidos em alguma gaveta ou arquivo, à espera de um pesquisador. Já se alonga este Prefácio e o leitor está curioso para ver, seja nas fotografas pacientemente resgatadas de tantos acervos, seja nas propostas de análise do autor, a vida pulsante que, de
dentro do registro em duas dimensões, surpreende o futuro, como a querer mapear seus contornos como de possibilidades que estavam ali já delineadas e que viriam a se desdobrar. Quando menino, eu que estou fcando velho ainda ouvi dizer do ato de fotografar: “bater uma chapa”. Pois bem, vamos então ao texto de Valter de Oliveira e sua querida Chapada Diamantina. Mais uma vez, os velhos fotógrafos baterão a chapa e buscarão fxar, em papéis que o tempo não cessa de amarelecer, diamantes de sentido no tempo que teima em passar.
Milton Moura