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Soltam-se as Palavras

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Meu Douro, meu rio

Meu Douro, meu rio

Soltam-se as Palavras Prendem-se as nuvens

João Rebelo . Professor de Filosofia

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Antigamente era para mim um suplício ver o mundo lá das nuvens. Tinha pavor a andar de avião. Relembro a minha primeira viagem. Lisboa- Madrid- Cairo. Agora, aos poucos tenho mudado. Cada vez mais aprecio estar acima da nuvem. Sinto uma espécie de apelo divino. A participação com o Criador. E de repente tudo pode acabar. Ver a cidades lá tão em baixo fervilhantes de seres e de espíritos. Serão as nuvens as misturas dos espíritos dos mortos? Todas as lutas, todas as ambições, os anseios os desgostos e as alegrias se desvanecem neste espaço. Estão concentradas lá em baixo nas vidas de todos. Aqui é o silêncio que imagino fora do avião. Gosto mais das descolagens. O mundo não gira ao meu redor. Eu é que giro com ele. Vou nele com o tempo. Sou uma ínfima parte do planeta, que faz parte de um todo, que faz parte de uma inteligência cheia de amor e profundidade. Isto lembra-me que pertenço a esse todo, apesar das minhas mundividencias me levarem para outros mundos. Sou um minúsculo ser sentado neste avião, agora, e lá fora o mundo e o tempo vivem com outras realidades, com milhões de seres. Sou parte de um todo eterno e infinito, mesmo que me pareça apenas este instante. Lembro-me de um filme que vi recentemente,

apesar de já ter seis anos. Medianeras, que fala da vida nos dias de hoje, nas complicações de viver numa cidade, no século XXI. A nossa construção da realidade depende das nossas escolhas e elas dependem de um conjunto aleatório de factores que relacionam as pessoas e as inserem em organizações próprias. Vivemos os tempos dos hologramas, daquilo que é disparado pelas redes ditas sociais como o Facebook, o Twitter ou o Instagram. São tempos em que a subjectividade individual prevalece sobre a subjectividade geral. O que marca a notícia é o instante. Amanhã já ninguém pensa como foi ontem, o que aconteceu. Vivemos dominados por algoritmos que não entendemos e que fazem tudo para nos espiar sem no entanto nos conhecer. Eles são os criadores deste estado das coisas, da dita realidade. Filtram limitam e mostram aquilo que supostamente queremos ver e pensar. Estas novas plataformas são representações de realidades fabricadas sob um paradigma que está muito longe da realidade em si. Aldous Huxley viu isto muito bem. Há uma espécie de real, pré-fabricado (e mal) que resulta simplesmente do excesso de repetição com muito de sensacionalismo. Volto a subir nestes voos sobre as nuvens, para me tentar encontrar comigo mesmo e participar na realidade em que acredito, cristã, universal. Podemos sempre ser mais do que agora somos desde que tenhamos a tenacidade suficiente para contrariar as tendências e ver o mundo pelos nossos olhos, com as nossas emoções. Não há como escapar ao paradoxo. Hoje, estes voos baratos levam a mais consumo mas dão-nos outra liberdade para sermos mais nós, com toda a alma e mente. Olha só...

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