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A dimensão religiosa do humano
A dimensão religiosa do ser humano*
A. Marcos Tavares . Professor de Filosofia
Afigura do argentino Jorge Mario Bergoglio, o atual Papa Francisco, é bastante consensual não só entre católicos, mas também entre outros cristãos e mesmo entre não crentes. Ouve-se muita gente dizer que não é crente mas que nutre especial admiração pela missão deste homem vestido de branco. Penso que este consenso não se deve apenas à simpatia, à ternura ou à proximidade do Papa. Francisco, de algum modo, apresenta um caráter de hierofania, ou seja, converteu-se numa manifestação visível do sagrado. Por outras palavras, o Papa Francisco tornou-se uma revelação palpável de transcendência, um símbolo de religiosidade no sentido mais radical do conceito. A opinião mais frequente dos linguistas é que o conceito «religião» vem do latim religare e traduz a dimensão de união, de ligação à transcendência. Esta religação mostra o caráter finito do ser humano, que procura ultrapassar a sua finitude e a sua fragilidade projetando-se numa dimensão mais profunda e mais completa. Neste sentido, todo o ser humano é um ser religioso, pois procura a plenitude não só em si mas também fora de si, na sua relação com o outro. Claro que ser religioso não significa necessariamente acreditar em Deus, nem que a transcendência que plenifica o humano seja a transcendência divina. A ânsia de realização última está presente no humano, seja ele crente, agnóstico ou ateu. Ora, a personalidade de Francisco é de tal forma abrangente e cativante que nela se reveem todos aqueles que procuram essa religação última, todos aqueles que procuram a transcendência. A preocupação pelos pobres, pelos pequenos, pelos mais frágeis, tão vincada em Francisco, representa nitidamente essa religação ao fundamental, revela a transcendência. É a dimensão religiosa na sua essência. Ao contrário do que alguns pensam, a religião por si não significa a fuga do mundo e das responsabilidades. A acusação de Karl Marx - «a religião é o ópio do povo» - só se poderá aplicar a falsas vivências religiosas, que projetam num qualquer deus os anseios mas nada fazem para os cumprir. A religiosidade no seu sentido autêntico exige compromisso com a humanidade e esforço constante de realização. O ser humano realiza-se na sua plenitude, liga-se à transcendência, lutando pelo bem de todos os seres humanos. Não há ser humano sem Humanidade. Claro que para os crentes, é em Deus que se alcança toda a realização e transcendência. Para os crentes, designadamente para os cristãos, a realização última do humano está em Deus. S.
Foto: Pablo Cuarterolo
Agostinho dedicou grande parte da sua vida e obra a tentar compreender o mistério divino. A inteligência humana, por muito limitada, não atingindo a compreensão de Deus, pode ajudar no aprofundamento da fé. É o seu «Intellige ut credas; crede ut intelligas» (Entende para acreditares; acredita para entenderes). Razão e fé iluminam-se reciprocamente. Digo muitas vezes aos meus alunos, quando me questionam sobre se há provas da existência de Deus, que eu, que sou crente, deixaria de acreditar se fossem apresentadas provas de que Deus existe. É que se fosse possível provar filosoficamente ou cientificamente que Deus existe, isso significaria que Deus era tematizável, era abarcável, pela razão humana. Ora, sendo a razão humana finita e limitada, tudo o que ela possa abarcar é também necessariamente finito e limitado. Logo, a provar-se racionalmente que Deus existe este ser passaria a ser finito e limitado, portanto, não Deus. Não há, então, qualquer possibilidade de chegar até Deus? Penso que há e o caminho é apontado por Francisco: a religação à transcendência (a Deus, para os crentes) realiza-se na abertura aos outros, no compromisso com os mais frágeis, na defesa da liberdade e da dignidade do ser humano, contra tudo o que o possa diminuir, denegrir ou escravizar. Esta é a religiosidade no seu sentido mais profundo.
*A propósito da visita do Papa Francisco a Fátima em maio de 2017.