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Liberdade de pensamento A. Marcos Tavares

Liberdade de pensamento

A. Marcos Tavares . Professor de Filosofia

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Em circunstância alguma é justificável um ataque à liberdade de pensamento.

1. Neste ainda jovem séc. XXI, tem imperado um monstruoso carrossel de atentados, que já ceifou milhares de vidas. O ciclo do ódio não para, desde que dois aviões foram lançados contra as torres do World Trade Center, matando 3.017 pessoas e ferindo mais de 6.300.

Um dos atentados mais mediáticos pelo seu simbolismo, por ter ocorrido na tradicional capital europeia da cultura e por ter juntado, em grandes manifestações de repúdio, intelectuais, artistas e políticos, foi o ocorrido naquela fatídica manhã do dia 7 de janeiro de 2015, em Paris, quando três homens armados entraram na sede da revista semanal “Charlie Hebdo” e mataram 12 pessoas.

Este assalto assassino, que passou a simbolizar todo a tentativa de silenciar a liberdade de pensamento, é o mote para o presente texto, onde se procura apresentar uma leitura sobre a raiz e o significado de tanta violência. parece questionar a racionalidade humana e faz pensar sobre se, de facto, o ser humano caminha para uma fase de realização superior ou estará a cavar a sua própria ruína.

O séc. XVIII trouxe a afirmação do iluminismo, da racionalidade e da liberdade. O séc. XIX começou a circunscrever a racionalidade a uma mentalidade egocêntrica, totalizante, cientificista e positivista, abominando em certa medida o diverso e o diferente. No séc. XX, assistiu-se ao falhanço da modernidade como pretensão de fundamentação universal dos grandes valores: foi o século das mais destrutivas guerras de que há memória.

Face a estas dolorosas experiências e confiando ainda na sensatez humana, esperava-se que, no século XXI, ressurgisse a interioridade, que o ser se impusesse ao ter; a esperança era tal que, nos finais do séc. XX, alguns pensadores falavam mesmo de um próximo século de espiritualidade. E ao que se assiste? Ao radicalismo, ao fundamentalismo, ao fanatismo, à mais insana

irracionalidade. Os fanáticos do ódio não param.

3. Por muito que se queira compreender este ódio, por muito que se tente explicar pelos excessos do imperialismo ocidental, não é possível aceitar tais monstruosidades impiedosas.

Confesso que fiquei chocado com a posição de alguns, que procuravam justificar o atentado de 7 de janeiro, em Paris, com o principal argumento de que o hebdomadário, ao publicar as caricaturas de Maomé, teria violentado as convicções religiosas de outros. Dito de uma forma sem enfeites: a revista estaria mesmo «a pedi-las». Como se o invocado desrespeito pelas convicções religiosas de uns fosse motivo válido para destruir o valor fundamental em qualquer sociedade que se pretenda verdadeiramente humana: a liberdade de pensamento!

Prefiro falar aqui de liberdade de pensamento em vez de liberdade de expressão; com efeito, julgo aquela mais ampla do que esta. Porque não há pensamento sem linguagem e porque o pensamento quer manifestar-se na vida e na realização das pessoas, a liberdade de pensamento concretiza-se na liberdade de expressão, na liberdade de opção, na liberdade de associação.

Decerto que tanto a liberdade de pensamento como o respeito pelas convicções dos outros são valores. Mas o problema de fundo que aqui se coloca é este: numa situação de conflito, qual deles é mais valioso? Qual deles deve prevalecer? Todos os valores «valem», mas, em situações extremas de confronto, não será legítimo estabelecer uma hierarquia?

Penso que a liberdade de pensamento, que no caso presente se materializa na liberdade de expressão, é a mais fundamental. Na verdade, é à sua luz que se explica o respeito pelos outros – pelas suas ideias, crenças, convicções. Como tal, e esta é a minha tese, em circunstância alguma é justificável um ataque à liberdade de pensamento. Por duas razões essenciais: em primeiro lugar, porque sem liberdade de pensamento também não seria possível respeitar as ideias dos outros, pelo simples motivo de que a força bruta (seja a de poderes instituídos, seja a de grupos fundamentalistas) se encarregaria de anular qualquer veleidade de ideias diferentes; em segundo lugar, porque atentar contra a liberdade de pensamento, por pretensamente não se estar a respeitar as crenças próprias, para além de contraditória, é uma atitude redutora, etnocêntrica e absolutista – é querer impor à força a própria opinião a todos os outros, tomando-a como superior e inquestionável.

4. Em suma, não se vê justificação eticamente aceitável para a atitude assumida por aqueles que, por não concordarem com o conteúdo das publicações da revista, intentaram silenciar pela violência mortífera a liberdade de pensamento/ expressão. É uma posição dogmática e totalitária, própria de quem considera que os únicos valores «valiosos» são os seus e que, portanto, todas as demais pessoas devem aceitar, nem que para tanto seja necessário impô-los pelo recurso à violência e à morte.

Acresce que, sendo o «Charlie Hebdo» um semanário humorístico, mais ferve a fúria dos fundamentalistas. É que, como diria Umberto Eco, «O fundamentalista é desprovido de sentido de humor, porque o humor é um instrumento crítico».

Ouve-me Helena Almeida,

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