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Subitamente, no horizonte... Agostinha Araújo
Subitamente, no horizonte...
Agostinha Araújo . Professora de Português
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Podem pensar que sou distraído, lunático, que ando ausente na vida. Mas não, eu reparei que: está sol; o céu é azul; há guindastes na paisagem. Não estavam aqui, mas agora há pontes que unem as margens, antes separadas. Há estradas que rasgam a carne das serras onde antes havia terra e pedras e ervas e flores e árvores e... e... e sossego. As pontes e as estradas são laços. Diria mais, são abraços. De uma margem à outra margem. De uma distância a outra distância, que deixa de o ser para se tornar aqui.
“É imprescindível (gosto muito desta palavra, toca a língua, os lábios e a boca toda como um beijo muito profundo), é imprescindível, dizia, que haja guindastes nesta paisagem” – dou por mim a refletir enquanto lanço para o ar argolas de fumo do cigarro...É um hábito que adquiri em África, para queimar o tempo, e que aos poucos me vai queimando os pulmões e tornando a minha voz grave ainda mais grave e rouca... Melhor seria haver guindastes na vida. Se isso significasse na vida haver pontes e estradas e bocas e lábios e sorrisos e abraços.
Reflito de novo. Hoje decididamente estou virado para a filosofia. “A vida é tão simples.” Muito mais ainda se houver sorrisos e abraços e bocas, mas transparentes como a água que corre por debaixo das pontes, mas quentes como o sol que brilha por trás dos olhos iluminados por um sorriso cristalino como as águas que aquecem com o sol, ou corre livre como o vento que sopra mais forte na ponte mais alta.
Haverá descoordenação, falta de lógica, loucura ou o que lhe quiserem chamar neste meu discurso, mas isso é porque, de repente, sinto um soco no estômago, uma falta de ar, uma tontura, uma vertigem, quando olho a paisagem e vejo coisas onde antes não havia nada, coisas que cresceram a um ritmo alucinante, da noite para o dia. Uma ponte, uma estrada, outra ponte, outra estrada, mais uma ponte, mais uma estrada, outra ponte, e isto só até ao horizonte, para lá dele não sei, não
João Ramos, ex-aluno.
vejo, mas deve continuar, porque toda a estrada a algum sítio vai dar, nada acaba subitamente no horizonte! Esta nova paisagem esmaga. Pela sua grandeza de betão e pilares como dedos cravados na terra... Na nossa vida também falta. Não betão, grandeza sim, grandeza de sermos nós, todo o ser que há em nós, em usufruirmos efetivamente da nossa humanidade (eu disse “humanidade”, não “ingenuidade”). Sim, faltam pilares que sustentem a nossa fragilidade, mas também a nossa felicidade. Pilares de tolerância, de empatia, de humildade, de simplicidade, do ser genuíno, da nossa nudez primordial, do nosso lado animal. Há uma beleza agressiva, mas não há lógica, nesta paisagem construída pelo homem à sua imagem ilógica. Há grandeza, há laços, há pilares, o eliminar de distâncias, há beijos e bocas e abraços. Há. São beijos longos, carícias no rosto ou no cabelo, num dia de sol e vento suave.
Pronto. Terminei o cigarro, apago cuidadosamente a beata. Ponho o carro a trabalhar e lá vou eu. Para onde? Sigo a estrada, em direção ao horizonte. A algum sítio há-de ela ir dar!