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BIBLIOTECA ESCOLAR DE OLIVEIRA DE FRADES |nº 1
Vida e Obra de Vergílio Ferreira Textos do Café-Concerto “Da minha língua vê-se o mar”
junho 2016
Newsletter – Vida e Obra de Vergílio Ferreira Edição: Escola Básica e Secundária de Oliveira de Frades | Biblioteca Organização e seleção de textos: Ana Luísa Torres Design gráfico: João Aparício Junho 2016
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Índice AUTOBIOGRAFIA ....................................................................................................................... 4 CRONOLOGIA (1916 – 1996): VIDA E OBRA .............................................................................. 6 Homenagem a Vergílio Ferreira \ EDUARDO LOURENÇO ....................................................... 13 Como uma Alta Montanha \ LÍDIA JORGE ............................................................................... 15 “Esperava um livro, não a notícia da morte” \ EDUARDO PRADO COELHO ........................... 16 Textos selecionados de Vergílio Ferreira ................................................................................ 18 Tábua bibliográfica .................................................................................................................. 24 Bibliografia .............................................................................................................................. 25
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AUTOBIOGRAFIA tinha o destino talhado para o Senhor. Minhas tias apoderaram-se logo de mim, negligenciando um pouco os meus irmãos, e sufocaram-me de religião. Na instrução primária cumpri. Deus mostrava à evidência que me chamava ao seu serviço. Era forte em contas, mais atrapalhado em História, de qualquer modo, os desígnios de Deus eram evidentes. E assim, para se cumprir a sua vontade, parti. Ficava à distância de um dia de comboio, o Seminário. Saio na estação ao anoitecer, há uma multidão de seminaristas à minha volta, todos vestidos de preto. Estou entre eles, não conheço ninguém. Avançamos pelo escuro estrada fora, no tropear confuso de uma enorme massa negra. O Seminário espera-nos numa curva da estrada. É um casarão enorme, olho-o do fundo do meu pavor. Há outono à minha volta, respiro-o agora em todo esse passado morto, nos castanheiros a desfolharem-se na cerca, no espaço dos salões, nos longos corredores ermos, nos ângulos cruzados pelos espetros perfeitos. Mas seis anos depois, levantado de heroísmo, saí. Fiz o liceu, entrei na Universidade. Mas não o fiz assim em três palavras como o faço aqui. Meu irmão corpo. Como foi difícil acomodarmo-nos um ao outro. A vida que me coube não a pude utilizar toda. Numa fração dela acumulei assim aquilo com que se realiza o sonho, o trabalho, a alegria.
ejo o meu pai no limite da minha infância, dobrar a porta do pátio, com um baú de folha na mão. Vejo-o de lado, e sem se voltar, eu estou dentro do pátio e não há, na minha memória, ninguém mais ao pé de mim. Devo ter o olhar espantado e ofendido por ele partir. Mas alguns meses depois o corredor da casa da minha avó amontoa-se de gente, na despedida de minha mãe e da minha irmã mais velha que partiam também. Do alto dos degraus de uma sala contígua, descubro um mar de cabeças agitadas e aos gritos. Estou só ainda, na memória que me ficou. Depois, não sei como, vejo-me correndo atrás da charrete que as levava. O cavalo corria mais do que eu e a poeira que se ia erguendo tornava ainda a distância maior. Minha mãe diziame adeus de dentro da charrete e cada vez de mais longe. Até que deixei de correr. Dessa vez houve choro pela noite adiante tia Quina contava, conta ainda. Mas não conta de choro algum dos meus dois irmãos que ficavam também. Deve-me ter vibrado pela vida fora esse choro que não lembro. É dos livros, suponho. Depois a infância recomeçou. Três irmãos, duas tias e avó maternas, depois a vida recomeçou. Mas toda essa infância me parece atravessar apenas um longo inverno. É um inverno soturno de chuvas e de vento, de neves na montanha, de histórias de terror, contadas à luz da candeia no negrume da cozinha, assombrada de tempestade. Até que um dia um tio de minha mãe, que era padre na aldeia, se pôs o problema de eu não ser talvez estúpido. E imediatamente se empolgou para me consagrar ao Altíssimo. E para me ir desbravando a alma, juntamente com a doutrina, atacoume a memória com o latinório todo da missa. Aprendi-o sem falhas, ia eu nos seis anos. E quando aos sete o fui ver esticado na cama, a face toda negra, e me obrigaram a beijar-lhe a mão morta, já
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E eis que se me levantam os sete anos de Coimbra. Sombrios, longos, penosos. Mas o que acede desse tempo à evocação tem apenas o halo de uma balada. Ruas da Alta, e a Torre, e o plácido rio do alto da Universidade, e os mestres que eu julgava um prodígio da Natureza, quando cheguei à cidade, e fiquei a julgar também, a vários deles, quando saí, mas com outro sinal, e a praxe estúpida, e os namoros estúpidos, e a descoberta, enfim, da literatura, que só então descobri, embora trabalhasse há muito o verso com obstinação, e as 4
tertúlias, as rixas, o próprio futebol, as próprias desgraças físicas - tudo me ressoa agora a uma toada de legenda. Da festa juvenil, como da festa literária eu só conhecia as margens do rumor que transbordava da alegria dos outros. Isso basta, porém, a que a legenda se me levante e o seu eco me ondeie ao espaço da evocação. Assim Coimbra, só no ressoar do seu nome tem já um timbre de guitarra. Música de miséria, não é nela que eu a ouço, mas no passado que a transcende e é da memória inatingível, da memória absoluta. Coimbra da saudade difícil, Coimbra de sempre e de nunca. Comigo a levei, longo tempo me acompanhou, presente, obsessiva. Mas havia tanta coisa ainda à minha espera. Faro do ar marinho, da laguna das águas mortas, Bragança das invernias, Évora, Lisboa. Professor sou-o por fatalidade. Mas alguma coisa se me impõe na avidez dos alunos que me escutam, na necessidade de responder à sua descoberta do Mundo - e assim me invento o professor que não sou, e eles imaginam em verdade o que é em mim só ficção. Mas dos centros de irradiação da minha atividade, apenas Évora transbordou de emoção para a lembrança. E como a Coimbra, é de novo a música, agora o coral dos camponeses, que a levanta ao espaço da minha comoção. Ouço-o ainda agora, a esse coro de amargura, raiado à infinidade da planície. Évora do silêncio com sinos nas manhãs de domingo, estradas abandonadas à vertigem da distância, ó cidade irreal, cidade única, memória perdida de mim.
Sou do Alentejo como da serra onde nasci, a mesma voz de uma e outra ressoa em mim a espaço, a angústia e solidão. E a minha biografia deve ter findado aqui. Lisboa é um sítio onde se está, não um lugar onde se vive. Mesmo que se lá viva há 18 anos como eu. Eu o disse, aliás, a alguém, na iminência de vir: quando for para Lisboa, levo a província comigo e instalo-me nela. E assim se fez. Os livros que aqui escrevi são afinal da província donde sou. Terrorismo do trânsito, das relações pessoais, da luta em febre pela glória por que se luta ou do ódio surdo pela que calhou aos outros, terrorismo das distâncias, das relações humanas ao telefone, das cartas que nos escrevemos para de uma rua a outra ao pé, da cultura tratada a uísque nos salões do mundanismo, da individualidade perdida, da vida massificada. Vejo-me numa enfermaria do hospital, acordando estranhamente de não sei que tempo de inconsciência, com vários médicos conversando entre si e sobre mim. Pergunto de que se trata, porque estou ali. «Foste atropelado» - diz-me o meu filho, que é um dos médicos. Tenho fratura do crânio, várias contusões pelo corpo. Lisboa, selvagem, cidade bonita na claridade dos prédios, no rio das descobertas, no aéreo das colinas, meu veneno e minha sedução. Fui atropelado. Mas é talvez justo que o fosse. Porque eu não sou daqui.
Vergílio Ferreira, 1977
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CRONOLOGIA (1916 – 1996): VIDA E OBRA 1916
Vergílio Ferreira nasce em Melo, Gouveia, a 28 de janeiro.
Aldeia de Melo
1920
Os pais de Vergílio Ferreira emigram para os Estados
Unidos, deixando-o com os seus irmãos ao cuidado das suas tias maternas.
1926
Entra no Seminário do Fundão, que frequenta durante seis anos. Esta vivência será o
tema central de Manhã Submersa.
Seminário Menor do Fundão
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1932
Deixa o Seminário e acaba o Curso Liceal no Liceu da Guarda. Começa a dedicar-se à
poesia.
1935 Entra para a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Universidade de Coimbra
1939
Escreve o seu primeiro romance, O Caminho Fica Longe.
1940
Conclui a sua Licenciatura em Filologia Clássica.
1942
Termina o estágio no Liceu D. João III, em Coimbra.
Começa a lecionar em Faro. Publica o ensaio Teria Camões Lido Platão? e, durante as férias, em Melo, escreve Onde Tudo Foi Morrendo. 1940 – Ano em que conclui em Coimbra o Curso de Filologia Clássica
1944 Passa a lecionar no Liceu de Bragança.
Publica Onde Tudo Foi Morrendo e escreve Vagão J.
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1945 Ingressa no Liceu de Évora, cidade que marcará vários romances de Vergílio Ferreira, entre os quais Aparição.
1946
Casa-se com Regina Kasprzykowsky.
Publica Vagão J.
Com a mulher e o filho.
1948
Publica Mudança, que marca a sua passagem do neorrealismo para o existencialismo.
1953
Publica a coletânea de contos A Face Sangrenta.
1954 Viaja por França, Bélgica e Holanda. Publica Manhã Submersa.
Fotograma do filme Manhã Submersa, de Lauro António
1956
Escreve Cântico Final.
1957
Publica a coletânea de ensaios Do Mundo Original.
1958
Publica um novo ensaio, Carta ao Futuro.
1959
Ingressa no Liceu Camões, em Lisboa. Publica Aparição.
No Liceu Camões em Lisboa (1981)
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1960 Com Aparição recebe o Prémio
Camilo Castelo Branco, da Sociedade Portuguesa de
Escritores.
1965
Publica Alegria Breve e uma nova coletânea de ensaios, Espaço
do Invisível I. É galardoado com o Prémio da Casa da Imprensa. Publica a tradução portuguesa do livro Sartre Por Ele Próprio.
1967
Viaja por Itália.
1968
É publicada uma edição de Aparição, ilustrada por Júlio
Resende, comemorando os 25 anos da sua atividade literária.
1969
É editada a tradução francesa de Alegria Breve.
Publica o ensaio Invocação a Meu Corpo. Viaja por Inglaterra.
1971
Publica Nítido Nulo. Viaja pela Grécia.
1972 É editada a tradução espanhola de Nítido Nulo.
1973
É editada a tradução espanhola de Alegria
Breve.
1974
Publica Rápida, a Sombra.
Manuel Guimarães realiza um filme a partir de Cântico Final.
1975
Lauro António realiza a curta-metragem Prefácio a Vergílio
Ferreira.
1977
Publica Espaço do Invisível II.
Faz uma viagem à Alemanha, juntamente com outros intelectuais portugueses, como convidado oficial. A Editorial Inova organiza, no Porto, um Colóquio de Homenagem a Vergílio Ferreira.
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1978
António Macedo realiza um filme inspirado no conto Encontro.
1979 Lauro António realiza a curta-metragem Vergílio Ferreira numa Manhã Submersa e a longa-metragem Manhã Submersa, onde Vergílio Ferreira desempenha o papel de Reitor. É editada uma tradução polaca de Aparição.
Vergílio Ferreira com Lauro António no Seminário Velho
1980 Faz uma conferência na Dinamarca. Publica Conta-Corrente I. São editadas traduções russas de Aparição e de Rápida, a Sombra.
1981
É editada a coletânea de entrevistas organizada e
prefaciada por Maria da Glória Padrão, Um Escritor Apresenta-se. Publica Conta-Corrente II. Obtém a aposentação de professor do Ensino Secundário.
1983 Viaja pela Grécia, Egito e Brasil, em comitivas presidenciais. Publica Para Sempre e Conta-Corrente III. Recebe os prémios do Pen Club, da Associação Internacional de Críticos Literários, do Município de Lisboa e o Prémio D. Dinis da Casa de Mateus. Lauro António realiza Mãe Genoveva.
1984 É eleito para a Academia Brasileira de Letras. 1985 Realiza conferências em Toronto (Canadá) e Providence (EUA). Participa num colóquio sobre literatura Portuguesa Contemporânea, em Santa Bárbara (EUA). Participa no Congresso da Associação Internacional de Críticos Literários (URSS).
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1986
Publica Espaço do Invisível IV e Conta-Corrente
IV. É homenageado em Gouveia, seu concelho natal, onde é dado o seu nome à Biblioteca Municipal.
1987 Publica Conta-Corrente V e Até ao Fim. Edifício da Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira, Gouveia
1988
Publica o ensaio Arte Tempo e recebe o
Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, pelo romance Até ao Fim.
Recebe o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores
1990
Publica Em Nome da Terra. Recebe o Prémio Fémina, pela tradução
francesa de Manhã Submersa.
1991 Recebe em Bruxelas o Prémio Europália, pelo conjunto da sua obra literária. Realiza-se em Bordéus uma semana cultural em redor da sua obra literária, com a participação de Robert Brechon, Eduardo Lourenço e Eduardo Prado Coelho.
1992
Publica Pensar. É eleito para a Academia das Ciências de Lisboa. É galardoado com o Prémio Camões, atribuído por um júri luso-
brasileiro.
1993
Publica Na Tua Face, Conta-Corrente- Nova Série I e Conta-
Corrente –Nova Série II. Recebe o Doutoramento Honoris Causa, pela Universidade de Coimbra.
1994
Publica Conta-Corrente- Nova Série III e Conta- Corrente- Nova Série IV.
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1995
Acompanha o Presidente da República, Dr. Mário Soares, na inauguração das novas
instalações da Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira, em Gouveia, à qual doa toda a sua biblioteca particular.
Sala Vergílio Ferreira, Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira, Gouveia
1996 Morre a 1 de março, em Lisboa. Está sepultado em Melo, “virado para a serra”, como sempre desejou. É publicado, postumamente, o romance Cartas a Sandra.
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Homenagem a Vergílio Ferreira \ EDUARDO LOURENÇO (…) Seremos nós, mais do que o pensamos, um povo ”naturalmente filosófico”? Repetiu-se com Vergílio Ferreira o milagre – na cultura francesa mais previsível – que valeu a Albert Camus o estatuto de filósofo para os não filósofos? A ficção de Vergílio Ferreira, quando o autor a assumiu como decidida empresa existencialmetafísica – ocupando dentro da sua ficção o lugar do “profeta”, ou do “filósofo” ou do “guru” – veio preencher esse lugar vago de preocupações “metafísicas” ditas trágicas – que só, em parte, obras como as de Régio e Sena, num outro espírito, haviam satisfeito?
P
ara um escritor, a longevidade, graça ou excesso de zelo da vida, é um acidente. O tempo de uma obra, aquilo que lhe dá coerência por dentro e a torna única, não se mede pela balança dos anos. Ninguém sabe o que o peso dos anos acrescenta ou rouba a esse outro tempo fora do tempo onde a obra existe e faz existir os que a leem. É daí, e não dos seus invejáveis 80 anos, que Vergílio Ferreira pode comtemplar, com a cumplicidade e a companhia dos que na sua obra se reconhecem, um itinerário de criador, de rara coerência e plenitude ficcionais. Como se o tempo que lhe foi concedido para levar a cabo a sua obra só servisse para confirmar o carácter de universo sobre si mesmo centrado que o distingue no panorama das nossas letras. Os anos só deram azo a que levasse ao limite, como uma fuga de Bach, aquela intuição criadora e ordenadora da sua visão do mundo que sem rutura ilumina a sua obra desde Aparição até hoje.
(…) Sem dúvida que a Conta Corrente – obra sem precedentes em Portugal – trouxe o deus para a praça pública e permitiu uma nova familiaridade com o autor em busca de si mesmo de outros tempos. Tanto mais acessível que o bom público aí descobriu com reconhecimento uma visão das coisas, uma ideologia da anti ideologia, uma conivência no seu espontâneo desamor à chamada “elite” intelectual – e política – que o consolou de tudo.
Num certo sentido, a obra de Vergílio Ferreira não tem exterior. A sociedade, a História, os outros estão incorporados no longo monólogo autobiográfico que é a sua ficção, mas não como referentes exteriores ou objetivos dela. (…) história de um Eu que transfigurou durante mais de sessenta anos a sua vivência íntima em mitologia pessoal – é um acontecimento cultural e literário de exceção nas letras portuguesas.
(…) É claro que a singularidade da sua aventura romanesca, o carácter míticopoético da sua escrita, o contínuo e sempre surpreendente retomar das suas obsessões metafísico- existenciais, reinventando a fábula onde se inscreve, já justificam de sobra esse fenómeno de identificação cujo mais alto sucesso é o de conferir ao autor vivo a figura da lenda que na ficção se inventa contra o 13
esquecimento, a morte e o próprio Deus inexistente fazendo de Vergílio Ferreira o cavaleiro solitário do seu mundo apocaliticamente deserto onde nada mais brilha do que a luz inextinguível de Sandra.
frequentou e admira. Mas faço-o por sentir neste momento o excesso de vida-outra que para além dos seus incríveis 80 anos de vital intensidade o subtraem a toda a angústia da homenagem. E também para não me sentir de todo morto em sua companhia.
(…) Aqui ficam estas breves e talvez deslocadas questões a propósito de um amigo e de uma Obra que na plenitude da sua irradiação conserva ainda este poder de intrigar mesmo quem tanto a
in Expresso, 24/01/96
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Como uma Alta Montanha \ LÍDIA JORGE (…) Sempre me sentei na sua frente como aluna tardia de um mestre que se
E
screvo este texto longe das estantes onde a obra de Vergílio Ferreira, título ao lado de título, constitui uma muralha da casa. (…) Fazem-me falta as páginas físicas por onde caminham dezenas de personagens inesquecíveis, faltam-me frases impressas cujas letras sempre vejo miúdas, escritas pela mão de Vergílio. Falta-me sobretudo a sua voz silenciosa que ecoa em voz alta, a sua cadência de música sacra que constitui o andamento do seu estilo inconfundível. Falta o Vergílio que interessa, o único corpo que deve ser evocado, e que inclui naturalmente esse título anátema que é Invocação ao meu Corpo.
expunha. Passaram 20 anos, e é como se tivesse sido ontem. O dia de ontem de Vergílio para alguns dos seus amigos, e os que sempre o leem, resultou no dia de hoje e é aí que estamos. (…) Cartas a Sandra é um romance póstumo. E eu testemunho que Vergílio iria começar a escrever um novo romance, porque me contou a história. A Regina disse que não sabia, e nem acreditava. Eu ouvi a história contada por Vergílio, mas não me lembro. Ele está diante de uma montanha, e essa história está com ele.
O corpo que merece estar presente nas Escolas, nas Universidades, nos jornais, nos programas de divulgação da Literatura enquanto arte maior, o escritor que mereceria andar nas mãos dos leitores, se o nosso quotidiano fosse menos fútil e a pressa de absorver o passageiro fosse menor. Sobre a sua obra concreta, a legível, a que merece ser analisada, lida em voz alta e passada a filme e a sério, é que seria importante falar.
Lídia Jorge, in JL, 6/01/2116
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“Esperava um livro, não a notícia da morte” \ EDUARDO PRADO COELHO … E um dia abri a Colóquio Letras e havia uma carta à Sandra. A primeira, pelo menos, cronologicamente. Li-a do único modo em que a Literatura faz sentido, num dispositivo de levitação. E escrevi ao Vergílio a dizer-lhe: “ gostei imenso, era isto mesmo o que eu esperava”, mas ele tinha parado o projeto. Porque sim e porque não, porque era difícil, porque muita gente não tinha gostado suficientemente (pelo menos, para a necessidade de reconhecimento que Vergílio tinha), porque não sabia se era capaz. E respondeu-me:” vamos ver, vamos ver, talvez dê uma volta àquilo, mas não sei
se chego lá.” E ficámos nisto. Até à Gulbenkian, numa manhã de janeiro, Vergílio tinha o ar gaiato de quem tinha feito a proeza prometida, e murmurava-me ao ouvido:” Sempre vão sair as cartas à Sandra, lá para março, são dez e você é o culpado”. Isto é, se me vierem desancar, se disserem que aquilo não vale nada, a culpa é sua, ó crítico, que veio com falinhas mansas e me levou no engodo. Imagino esta fala de Vergílio Ferreira, porque ele era assim, uma espécie de brutalidade primitiva e visceral que dissimulava um insaciável desejo de ternura.
Eduardo Prado Coelho, in Público, 09/03/1996
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Textos selecionados de Vergílio Ferreira Escrever. Porque escrevo? Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo. Escrevo porque o encantamento e a maravilha são verdade e a sua sedução é mais forte do que eu. Escrevo porque erro, a degradação e a injustiça não devem ter razão. Escrevo para tornar possível a realidade, os lugares, tempos, pessoas que esperam que a minha escrita os desperte do seu modo confuso de serem. E para evocar e fixar o percurso que realizei, as terras, gentes e tudo o que vivi e que só na escrita eu posso reconhecer, por nela recuperarem a sua essencialidade, a sua verdade emotiva, que é a primeira e a última que nos liga ao mundo. Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser. Escrevo sem razão. erg lio Ferreira, in Pensar
Uma biblioteca é quase tão pessoal como as impressões digitais. Ela forma‐se como os problemas que nos formaram a nós e outros virão a abandonar. A cultura de cada um orienta‐se pela do tempo que lhe calhou no provisório definitivo desse calhar. E cada geração refuta a anterior, não porque a refute, mas por achá-la desinteressante. (…) Vergílio Ferreira, in Pensar
A razão é um elás co. Vê se consegues não a esticar muito para não rebentar. Vergílio Ferreira, in Pensar
Hoje fui ver o mar. Na realidade não ia vê‐lo mas aproveitei. E à primeira impressão eu via‐o mas não o via, porque via dele apenas a realidade imediata em ondas e espuma. Foi preciso que depois deixasse vir ao de cima o que oculto se me queria revelar. Abandonei‐me a ele e deixei. Mas o que então se me revelou foi uma nebulosa confusa de emoções, memórias, associações indistintas, qualquer coisa que se anuncia como uma casa desabitada. O indizível. O flagrantemente presente e que se não acaba de esclarecer. O estranho que nos perturba e não sabemos donde vem. A praia estava deserta e o mar convulsionava-se num mundo ainda por nascer. Mas havia sol e a alegria dele era gratuita, sem finalidade nenhuma, e isso agravava-lhe o absurdo de ser. As águas brilhavam até ao indeciso do seu limite. Um homem ocasional, eu, olhava o seu mistério inquietante, tentava entender a estranheza de tudo isso. Sentia a presença de uma realidade inexistente, porque ela não existia senão no que estava vendo e, no entanto, eu sabia, na minha inquietação, que estava lá. (…) Há no homem o insondável da sua interrogação. Mas só o artista a conhece e a pode revelar aos 18
outros para ela ser desses outros e a verdade do ser se lhes iluminar. Escrever bem. Ser sensível ao que se quer revelar e ser só a sua revelação. E o mundo existir, porque ele o revelou. E é tudo. Vergílio Ferreira, in Pensar
«O inferno são os outros» - disse Sartre. E é sobretudo por isso que se usam óculos escuros. Vergílio Ferreira, in Pensar
O grande não diz mal do pequeno porque da sua altura não vê. E o pequeno também não, para parecer quem não é. Assim o dizer mal é uma pequenez. Mas pode ser também por isso afinal um sinal de modéstia. Deve ser. Vergílio Ferreira, in Pensar
Ouço um violino na rádio – onde é que toca? É o violino de Jascha Heifetz, um dos poucos que fixei na minha memória de violinista desde Paganini: Heifetz, Sarasate, David OistraKh, Yehudi Menuhin – onde toca o violino que ouço? Todas as formas de arte existem no presente em que as contactamos, ainda que nos remetam para outro tempo. Mas a música vem logo da distância, não existe no momento em que a ouvimos, mas num tempo que não sabemos. A música é sempre anterior a si, de tempo nenhum, de um absoluto não presentificado, de um tempo anterior ao tempo, de um tempo fora dele, da eternidade. Será por acaso que ela é uma forma de arte privilegiada pela religião? Arte dos deuses, ela é do que imaginamos maior do que nós, do que nos transcende para o absoluto que nos mora. Ouço Heifetz. E ele fala-me de uma memória que para sempre se me perdeu. Vergílio Ferreira, in Pensar
A literatura é a minha razão de ser. Tudo o mais me é secundário. A ela tenho sacrificado até parte da minha boa reputação. Mas só me sentiria plenamente realizado nela, ela só se me justificaria inteiramente, se eu fosse capaz de fazer dela a minha morada sem portas para a rua. Vergílio Ferreira, in Conta Corrente II
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Que prazer não publicar! Acumular inéditos, entesourar. Estou como avarento. Mas o avarento não é por força um homem rico. Vergílio Ferreira, in Conta Corrente II
A minha responsabilidade vai até àquilo que digo, não ao sítio onde o digo. Vergílio Ferreira, in Conta Corrente II
A minha “vida interior” não é suficientemente forte para se aguentar sozinha. Preciso miseravelmente dos outros para existir a pessoa independente que sou. Vergílio Ferreira, in Conta Corrente II
A minha pátria é a língua portuguesa disse Eça pela boca de Pessoa. Mas uma língua não é sobretudo a nossa pátria – é a nossa alma, o nosso modo de ser, de sentir e de ler o mundo, ou seja de o criar. A minha língua é a minha pessoa inteira. Mudar de língua é vender a alma ao diabo. Não vendo. Vergílio Ferreira, in Conta Corrente IV
O que para mim foi sempre fundamental foi sentir o que penso e digo e não pensá-lo apenas como quem joga xadrez. Vergílio Ferreira, in Conta Corrente – Nova Série
As coisas parecem outras consoante o nome do autor. Vergílio Ferreira, in Cântico Final
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Quem procura a glória não a merece, quem a merece não a procura. Absolutamente. Mas porque é que a glória há de ser para os cowboys da literatura, os plagiadores, os broncos, os estrategos, os medíocres? E porque é que estes, não contentes com o que lhes não pertence, humilham, vexam, insultam os que modestos se recolhem ao seu apagamento. Porque é que nestas contas o benefício há de ir para os imbecis? A praça literária está cheia deles e deles é que é o triunfo, a farófia, a pimponice, os jornais, a TV, as edições, as contas no banco. Vergílio Ferreira, in Conta Corrente IV
Sê inteiro e digno, só há dignidade e grandeza e virilidade na calma do sofrimento. Como se o que se lembra fosse só o relembrar, como se a saudade fosse feita de si própria. Vergílio Ferreira, in Para sempre
Porque a verdade das palavras não está só na sua verdade mas na coerência com o momento em que se dizem. Vergílio Ferreira, in Para sempre
A forma mais fácil de se parecer entendido em música é notar num concerto uma pequena desafinação. A forma mais fácil de se parecer entendido num domínio que se desconhece é dizer que “não é tanto assim” ou que “nem sempre é assim”. E tem-se sempre razão. Porque toda a verdade é um equilíbrio entre o certo e o errado. Vergílio Ferreira, in Pensar
Porque é assim a vida. Arranca-se em 1ª, em movimento lento. Depois vai-se acelerando. Até que aos 40 anos se começa a entrar na velocidade máxima, os anos começam a atropelar-se uns aos outos, o tempo passa em vertigem, até nos estamparmos enfim na eternidade. Vergílio Ferreira, in Conta Corrente III
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Não me entendo com a vida. A vida não se entende comigo. Um de nós tem de se separar. E a vida, obviamente, é que tem razão. Vergílio Ferreira, in Conta Corrente III
Não é bem a vida que faz falta – só aquilo que a faz viver. Vergílio Ferreira, in Para sempre
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Não, não quero saber mais, já sei tudo o que me chegue para encher a vida. O mais que viesse, que é que me ensinava? Ficava à espera de um outro mais que o negasse E do que negasse esse mais. Estou cansado, é a verdade que tenho, definitiva e insubstituível. Acumulei o que pude da verdade dos séculos que foi mentira no que o meu acumulou. Agora, não. Agora quero é estar só, entretido com o que passa, olhar mas sem ser muito, que tenho a vista cansada, e ouvir o rumor do que também passa, mas distraidamente, que ouço mal do ouvido esquerdo. Não há que ver nem ouvir, há apenas que ir estando, irmanado ao tempo, que é o nome que nós damos à consumpção das coisas. Não, saber mais não me interessa. Dêem-me apenas um livro, pequeno, resumido, que não há tempo e tenho pressa, um livro breve mas em que se aprenda a morte, essa matéria tão difícil de aprender. E é quanto basta para se ser homem.
Vergílio Ferreira, in Conta Corrente
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Tábua bibliográfica A produção literária de Vergílio Ferreira, considerado um dos romancistas do século XX, pode ser organizada em três grandes domínios: Ficção, Ensaio e Diário.
Ficção
Ensaio
1943 1944 1946 1948 1953 1954 1959 1960 1962 1963 1965 1971 1972 1974 1976 1979 1983 1986 1987 1990 1993 1996
1943 Sobre o Humorismo de Eça de Queiroz 1957 Do Mundo Original
O Caminho Fica Longe Onde Tudo Foi Morrendo Vagão “J” Mudança A Face Sangrenta Manhã Submersa Aparição Cântico Final Estrela Polar Apelo Da Noite Alegria Breve Nítido Nulo Apenas Homens Rápida, a Sombra Contos Signo Sinal Para Sempre Uma Esplanada Sobre o mar Até ao Fim Em Nome da Terra Na Tua Face Cartas a Sandra
1958 Carta ao Futuro 1962 Da Fenomenologia a Sartre 1963 André Malraux (Interrogação ao Destino) 1965 Espaço do Invisível I 1969 Invocação ao meu Corpo 1977 Espaço do Invisível II 1977 Espaço do Invisível III 1981 Um Escritor Apresenta-se 1986 Espaço do Invisível IV 1988 Arte Tempo
Diário 1980 1981 1983 1986 1987 1992 1993 1994 1994
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Conta Corrente I Conta Corrente II Conta Corrente III Conta Corrente IV Conta Corrente V Conta Corrente - Nova Série I Conta Corrente – Nova Série II Conta Corrente - Nova Série III Conta Corrente – Nova Série IV
Bibliografia Câmara Municipal de Gouveia. (2016). Centenário Vergílio Ferreira 1916 – 2016. Acedido em http://vergilioferreira.pt/ Godinho, H., Ferreira, S., & Ferreira, V. (1993). Vergílio Ferreira: Fotobiografia. Lisboa: Bertrand. Sousa, A., & Queiroz, C. (2000). A estrela de Vergílio Ferreira. Lisboa: Texto Editora.
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