Jaleco

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olecção António Mota

Jaleco Ilustrado por Elsa Navarro

ÂMBAR


C o l e c ç ã o A n t ó n i o Mota

Jaleco Ilustrado por Elsa Navarro

•ÂMBAR* R. Manuel Pinto Azevedo, 363 • 4100-321 PORTO Tele(. 22 617 5151

Fax 22 617 1407

Títuloi

Etcolo Botica Integrada

JALECO

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OLIVEIRA DE FRADES

Autor

BIBLIOTECA

ANTÓNIO MOTA Colecção ANTÓNIO MOTA

Data ISBN 972-43-0375-6

N: Cóòigo 024640300

9 l!789724"303758'

ÂMBAR


Querido leitor.

O ano passado, num domingo de Inverno, farto de ver a chuva a cair, fui visitar o meu amigo Sebastião Teixeira que mora no Lar da Terceira Idade de Baião, um grande edifício cor de tijolo, cercado por hortas, um pomarzinho e muitos canteiros de flores. Há muito tempo que não via o meu amigo Sebastião, por isso foi longa a nossa conversa, decorada com risos, temperada com sonhos, e festejada com gargalhadas que quase iam espantando as intermináveis gotas de chuva que escorriam pelas enormes vidraças do Lar. Conversa vai, conversa vem... E, de repente, tal como as bátegas de granizo que de vez em quando faziam uma estranha música no telhado do edifício cor de tijolo, o meu amigo Sebastião, sentado numa cadeira de rodas novinha em folha e um cobertor de lã a tapar-lhe as pernas, começou a falar do Jaleco. Fiquei um ror de tempo a ouvi-lo. Quando ele terminou, apareceu, por breves instantes, uma réstia de sol. E eu disse: — Sebastião, deixas-me contar a tua história num livro que tenho de escrever? — Podes, é claro! Mas, ó António, quem é que vai gostar de ler a história do Jaleco? Se fosse uma coisa fantástica...


— Muita gente vai gostar, saiba eu contá-la como deve ser! — disse eu, todo animado. — Está bem... está bem... — riu-se o Sebastião. Quando cheguei a casa, escrevi a história tal e qual como ele ma contou. E juro que não acescentei nem retirei qualquer pormenor! Depois de a ter escrito, de ver e rever as palavras à procura de erros, pus dentro de um envelope as folhas com a história que o Sebastião me contou, colei-lhe selos e meti-o no marco do correio. Na editora, a Isabel e outras pessoas leram a história, e resolveram publicá-la. Mas acharam que ficava muito mais bonita se tivesse ilustrações. Quem se encarregou de as fazer foi a Elsa Navarro. Agora que já te contei como nasceu a história do livro que tens à tua frente, será boa altura de virares a página e começares a ler o que o meu velho amigo Sebastião Teixeira, com 72 anos de idade, caixeiro viajante reformado, solteiro, e a viver no Lar da Terceira Idade de Baião, me contou nessa tarde chuvosa de Inverno, de vez em quando aquecida por envergonhados raios de sol.


O negócio de meu pai

No dia em que fiz dez anos meu pai prometeu comprar-me uma botas novas, as primeiras da minha vida. — Estás com sorte, rapaz! Ainda és um fedelho e já vais ter umas botas com solas cardadas... Claro que eu fiquei muito contente. Nesse tempo poucos eram os rapazes da minha idade que se gabavam de enfiar os pés numas botas novas, abundantemente besuntadas com sebo de anho, para melhor as impermeabilizar e tornar o couro mais macio. Tão radiante fiquei que me esqueci do meu pé direito, muito bem entrapado, que escondia o golpe fundo, causado por um vidro de arestas vivas, que dias antes eu pisara sem notar. Mas nós tínhamos de seguir viagem, e o Jaleco não me podia levar. A carga que o burro alombava era mais que suficiente para as suas forças que, dia após dia, iam esmorecendo.


Jaleco era o nosso grande companheiro e a nossa fortuna. Sem a ajuda dele não podíamos governar a vida. Não tínhamos carroça porque, nas nossas andanças de terra em terra, éramos obrigados a passar por carreirinhos de cabras e junto de precipícios. Às vezes, para o Jaleco poder caminhar sem medo, meu pai punha-lhe antolhos, indumentária que o bicho detestava tanto como às moscas varejeiras que lhe sugavam as feridas. No dia em que eu completava dez anos meu pai resolveu visitar uma terra pequena que ficava a meio da serra do Marão. Um lugarejo com um nome esquisito: Permeja. No dia seguinte estaríamos na feira de Penaventosa para mercar as botas. Para chegarmos a Permeja não era fácil: tínhamos de caminhar bastante, subir por entre fragas e atravessar matas cerradíssimas. Mas valia a pena o esforço. As pessoas eram simpáticas, recebiam-nos com alegria, e fazíamos muito negócio. Quando abalávamos para outra terra, o Jaleco levava a barriga atestada de erva fresquíssima, menos peso sobre o lombo, e nós um saco cheio de queijos de cabra. O burro carregava três grandes malas de madeira. Numa, estavam pratos, malgas, canecas de barro e travessas, tudo muito bem acondicionado com palha. Noutra, havia panos e rendas; e na terceira uma grande variedade de bugigangas: cordões, guizos, escovas, galos de Barcelos, cornetas, fitas de



nastro, agulhas, elásticos, dedais, navalhas de barba, canivetes, tesouras, botões, colchetes, lápis, anuários, metros articulados, brinquedos de madeira, pincéis, envelopes, sabonetes, frasquinhos com perfume e muitas, muitas outras quinquilharias... De todas as aldeolas que visitámos, Permeja era a nossa preferida. Mas, nesse dia em que fiz dez anos, haviam de acontecer coisas tristes que eu nunca mais esqueci.


Permeja

Quando vimos as primeiras casas de Permeja, com uma pequenina capela a branquejar a todo o cimo, meu pai apressou-se a tirar do bolso do casaco uma gaita de folheta. Pô-la nas minhas mãos e disse para eu tocar nela com toda a força. Dava bastante resultado esse truque mil vezes repetido, embora o Jaleco não apreciasse aquele som agudíssimo: parava e começava a mexer as orelhas! Dessa forma, e sem enrouquecermos as gargantas, as pessoas tomavam conhecimento da nossa presença. Lá fomos andando devagarinho, porque o burro estava bastante cansado, e eu, de vez em quando, tocava na gaita. Atravessámos uma pequena ponte de madeira, subimos uma calçada e estranhámos não haver crianças a receber-nos, eufóricas e impacientes pela abertura da mala das bugigangas. Naquela terra toda a gente trabalhava no campo. Como era Verão e a tarde estava quase a terminar, pensámos que as pessoas andassem a regar as terras


e as crianças a tratar do gado. — Vamos aliviar o burro! — disse meu pai. E eu ajudei-o a descer as pesadas malas no largo da Permeja, junto de um fontenário de pedra por onde brotava água gelada todos os dias do ano. O Jaleco, quando se viu livre do peso, correu para junto da fonte. E esteve mais de um quarto de hora a beber. Depois — como era seu costume — começou a zurrar: ih... õh... ih... õh... ih... õh... Aquela cantiga desafinada demorava uma eternidade a ficar concluída! Ainda hoje não consigo entender por que razão o burro desatava a zurrar depois de tanto beber!... Seriam zurros de alegria, ou de revolta? Após ter bebido e zurrado, o Jaleco veio ter comigo e lambeu-me as mãos. E eu estava farto de saber o significado daquelas lambedelas; o bicho queria comer. Costumávamos comprar fava e cereal e deitávamos os grãos dentro de um saco que pendurávamos na cabeça do burro, de forma a que ele conseguisse comer 12

descansado e aproveitasse toda a comida. Aliás, era essa a primeira tarefa que fazíamos. Meu pai, que gostava muito de rimar palavras, costumava dizer:

Sebastião, Malas no chão... Burro com grão!


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O Jaleco lambeu-me as mãos, cheio de fome. E eu disse: — Tem paciência, meu velho. Vai-te entretendo a rapar o que puderes até vermos se te conseguimos arranjar mantença. Não era só o Jaleco que tinha vontade de comer; nós também estávamos esfomeados. Era costume entrarmos nas pequenas tascas ou mercearias que existiam em quase todos os lugarejos. Outras vezes as pessoas ofereciam-nos um prato de comida ou uma malga de caldo muito bem adubada com bocados de toucinho. Na Permeja não havia qualquer loja, mas nós estávamos confiantes. Como te disse, era costume sermos ali muito bem tratados. Assim pensávamos, mas nada disso aconteceu.

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A surpresa

— Isto não me está a cheirar bem! Toca na gaita, Sebastião! Com força, com muita força! — gritou meu pai. Toquei até ficar cansado. De nada valeu tanto esforço. O silêncio continuou, só de vez em quando quebrado pelo cantar das galinhas que tinham acabado a postura dum ovo, ou dos chilreies da passarada que se empoleirava nas trepas de frondosos castanheiros. — Não estou a gostar nada deste silêncio... É muito estranho tudo isto... Não achas. Sebastião? 15

— Tem razão, pai. Há aqui silêncio a mais. Desta vez nem a moçarada apareceu!... — Enquanto não aparecem fregueses vamos acalmar os estômagos — sugeriu meu pai, tirando de cima de uma das malas poisadas no chão um pequeno saco de cotim, que tinha dentro um pedaço de toucinho e metade de um pão de centeio. Lavámos a cara e as mãos com a água da fonte, sentámo-nos


sobre uma pedra, e começámos a mastigar devagarinho o pão e a carne que meu pai sabia cortar em fatias tão finas como hóstias. Vendo-nos comer, o Jaleco desinteressou-se das ervas mirradas e das folhas meio amarelecidas das silvas, e pôs-se a olhar para as nossas mãos. — Tem um pouco mais de paciência... Garanto-te que a tua barriga ainda hoje há-de ficar mais testa que um bombo dos grandes! — prometeu meu pai. Jaleco não entendeu a conversa. Demos uma risada e oferecemos-lhe o pão que restava no saco de cotim. Estávamos assim entretidos quando ouvimos o choro de uma criança. Pelo tom de voz pareceu-nos ser de colo. — Uma vez, pouco maior eras que um coelho, estiveste um dia inteiro a chorar como ela. A tua mãe dava-te o peito, embalava-te, mas tu não te calavas... E tinhas razão para protestares tanto! Sabes o que te fazia chorar, sabes?... O pico de um tojo que estava escondido nos cueiros!... 16

Quando meu pai falava de minha mãe eu ficava calado e imaginava-me ao colo dela, ou então a dar os primeiros passos entre os seus braços abertos. E não conseguia perceber porque razão o seu corpo partira tão cedo para fazer companhia às raízes das árvores. Farto de ouvir o choro do bebé levantei-me decidido: — Vou ver o que é que ele tem!


Dei algumas passadas, subi as escaleiras que davam para um pequeno quinteiro e cheguei-me à porta, que estava fechada. Lá dentro continuava o choro interminável do bebé. Bati suaves pancadas na porta e ouvi de imediato passos no soalho da sala. — Quem é? — perguntou uma criança com voz ansiosa. — Gente de paz! — respondi. — Mas quem é? — Sou o Sebastião... Lembras-te?... O dos brinquedos... — Hoje trazes cornetas? — Sim... — Eu não posso abrir a porta!... A chave deve estar dentro dessa panela que tem uma sardinheira. — E queres que eu a abra? — É melhor. — Onde estão os teus pais? — Foram à festa da Senhora do Monte. Eu não fui porque não tinha roupa nova. E fiquei a tomar conta do Adriano. Mas, daqui a pedacinho, a minha mãe vai trazer-me biscoitos! — E os teus pais fecharam-te aí dentro? — Não! A minha avó ficou a tomar conta de nós. Mas ela, se calhar, teve de ir


apanhar erva para os coelhos e fechou-nos a porta. Descobri facilmente a chave, que era enorme, e metia-a na fechadura. A lingueta encolheu com grande estardalhaço e eu entrei na sala. Lá dentro havia três caixas de castanho, duas camas de ferro, um berço de madeira e algumas cadeiras encardidas. Ao centro estava uma mesa com restos de comida. Por ter ouvido uma voz diferente, ou por outro motivo que eu não sei explicar, o bebé, que estava deitado no berço, calou-se. A menina, que era muito mais nova que eu, disse que se chamava Amélia. — Onde estão as pessoas desta terra? — perguntei. — Foram todas para a festa da Senhora do Monte. Mas não devem demorar. Que é que tens no pé? — Uma cortadela. Mas já está quase bom. Pus-me a fazer festas ao bebé e ele começou a rir, mostrando a boca desdentada. E ali me deixei estar bastante tempo, esquecendo-me de informar 18

meu pai por que motivo Permeja estava deserta. — Então isso faz-se, rapaz?!... — gritou ele à porta da sala. — Ia já ter com vossemecê — disse eu. — Está a ficar tarde, é quase noite, e temos a nossa vida empatada! O Jaleco está cheio de fome, ainda não arranjámos sítio para dormir... Um sarilho, um sarilho...


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— As pessoas não estão cá, foram à festa da Senhora do Monte. Não devem demorar. — Foi um dia perdido!... Ainda bem que amanhã é a feira! Já as galinhas procuravam os buracos das capoeiras e os pássaros os ramos dos castanheiros quando meu pai entrou na sala com um isqueiro na mão para acender o candeeiro de petróleo poisado sobre uma das caixas. Mas não o chegou a acender porque a porta fechou-se com violência. E uma voz sobressaiu entre conversas desencontradas: — Estão apanhados. Dali já não saem sem confessarem tudo! Vigiem as janelas!

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O ataque

— O que é isto?! O que é isto? — perguntou meu pai com voz ansiosa. — O burro já está preso. Ia para a minha horta comer-me as couves todas, o lambão! — E agora? E agora?... — Meu pai dava passos miudinhos à roda da mesa. E eu comecei a ficar com medo ao perceber que as pessoas nos julgavam ladrões. — Que grande azar! — disse eu. — Se eles nos ouvissem... — e meu pai voltou a suspirar fundo. — Já sei! A Amélia explica tudo! Sim, ela é que pode dizer porque é que estamos aqui dentro! Dizes, Amélia? Ela não chegou a responder-me porque a porta da sala abriu-se num instante, e de entre a pequena multidão uma voz intimou: — Não se mexam, seus tratantes! — Fala, Amélia, fala! — pedi eu com os braços bem levantados e as pernas a tremer. — Boca calada, seus patifes!


As pessoas entraram de roldão portas dentro, e num instante a sala ficou tão cheia como um ovo. — Desculpem, mas não me posso calar! — Deve haver engano. Devem pensar que estão a falar com outra gente. Então não me reconhecem?! — disse meu pai com voz meiga, mas decidida. — São eles, são eles. Eu vi-os, eu vi-os! Não há dúvida nenhuma. São eles, tal e qual! Que alguém vá chamar a autoridade — gritou uma velhota magra e baixinha, com um lenço preto atado na cabeça. — Não senhor! A justiça vai ser feita pelas nossas mãos! Assim é que deve ser! Para eles aprenderem que com a gente da serra não se brinca! Nunca mais hão-de ter vontade de cá voltar!... — Caia pancada! Caia! — Caia! Eles merecem! — Deixem-me explicar! Deixem-me falar! — gritou o meu pai. E eu, tolhido 22

com o medo, não conseguia abrir a boca. Bem me apetecia dizer-lhes que o melhor era deixarem falar a Amélia, que ela é que podia contar como tudo se tinha passado, que nós não éramos gatunos, ganhávamos a nossa vida honestamente. Agora que te conto isto parece que tudo foi muito demorado. Mas não. Foi tudo tão rápido, tão precipitado que eu nem sei se consigo lembrar-me de todos os



pormenores. Eu estava junto de meu pai quando vi braços levantados, punhos ameaçadores, bengalas a bater no tecto da sala, gritos, o choro do bebé, uma voz que dizia: «foge, miúdo!», braços que me puxavam a manga da camisa... Meu pai, que era baixinho mas robusto, ia-se defendendo como podia... De repente dei conta que estávamos no quinteiro. E o meu paí gritou: — Procura o Jaleco e desaparece! Assim fiz. Corri com toda a força pelo caminho. Tinha o nariz a sangrar, o coração batia com força no meu peito, e o trapo já não estava no pé. — Jaleco! Jaleco! O burro desatou a zurrar dentro de uma corte que felizmente tinha a porta encostada. Escancarei-a para que ele saísse e, quando o vi na rua, montei-me no seu dorso e parti à desfilada. 24

Ainda hoje não sei por que razão fiz isso. Para onde é que eu ia? E o meu pai? E as nossas coisas? Agora é muito fácil pôr-me aqui a pensar. Mas, naquela altura, e essa é a verdade, o que eu queria era fugir dali. Jaleco, velho e cansado, andava devagarinho e eu impacientava-me. Se ele corresse como um cão perdigueiro, de certeza ninguém tinha tempo de me acertar. É que eu ia em cima do burro e, de repente, senti uma forte pancada na


EBI OLIVEIRA DE FRADES BIBLIOTECA

cabeça. Não sei se foi pau ou pedra, nem posso afiançar se foi rapaz maldoso ou homem com poucos escrúpulos. Não sei, podia inventar, mas não quero. Se isto fosse uma historieta, até era capaz de inventar. Mas eu quero contar a verdade. Estava eu a dizer que nunca consegui saber se foi pau ou pedra, se foi intenção do atirador acertar no pobre do Jaleco ou em mim; não sei. O que te digo é que, depois de me terem batido, senti uma dor horrorosa na cabeça e, logo depois, muita vontade de dormir.


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O casebre w"

O que entretanto aconteceu não o posso explicar. Só sei que, quando abri os olhos, estava deitado dentro de um casebre. Do lado de fora da porta vinha o barulho do vento e, de vez em quando, ouvia o longínquo latido dos cães. «Onde é que eu estou»?, pensei de mim para mim. Chamei pelo Jaleco, e ele não me respondeu. Levantei-me com o corpo dorido e tacteei as paredes à procura de uma porta. Era uma daquelas noites de lua-nova, mais negras que alcatrão, e eu não conseguia ver nada. Fiquei alarmado. Não era medo da escuridão; eu estava habituado a fazer caminhadas com o Jaleco e o meu pai em noites parecidas. Fiquei preocupado, porque não sabia onde estava, desconhecia o paradeiro do burro e não tinha notícias de meu pai. Lentamente os meus olhos habituaram-se à escuridão e, quando descobri a porta, que felizmente não tinha fechadura, e me vi companheiro da noite,


pensei: «Bonito serviço! Estou perdido!...» Se eu quisesse agora tornar-me herói, era facílimo esconder o que a seguir vou contar. Mas a verdade foi esta: quando senti a ventania que corria na serra e o pesado silêncio que a envolvia; sem o meu pai junto de mim e o Jaleco em parte incerta, apeteceu-me chorar. Senti-me o rapaz mais infeliz do mundo. De repente lembrei-me da caixa de fósforos que costumava trazer no bolso, junto de uma pequena navalha com cabo de osso e folha de gume bem afiado, presente de minha avó materna. Sempre estimei tanto a navalha que hoje, passados tantos anos, ainda a guardo. Mas essa é outra história que um dia hei-de contar! Tacteei a caixa de fósforos metida no fundo dum dos bolsos das calças e entusiasmei-me. Bastava arranjar umas ervas secas e uns gravetos. Uma fogueira dar-me-ia luz e calor, e seria um excelente sinal para algum caminheiro que passasse por ali perto. 28

Mas nesse dia tudo acontecia ao contrário do que eu pensava! Arranjei ervas secas espalhadas no chão do casebre e petisquei o fósforo, que se acendeu num breve instante e logo se apagou. Voltei a repetir a operação tantas vezes como de fósforos havia na caixa. E nenhum deles conseguiu pegar fogo às ervas porque a ventania não o permitiu. Sentei-me à porta do casebre e deixei cair a cabeça sobre o peito. Que é que eu


podia fazer com toda aquela escuridão? Se me pusesse a caminhar, podia estar a afastar-me cada vez mais de Permeja, podia encontrar matas cerradas ou caminhos cheios de precipícios. O melhor era entrar na choupana para me agasalhar do frio — ali dentro sempre estava mais abrigado das rajadas do vento — e esperar que raiasse a manhã. E o burro? Onde estaria o meu fiel Jaleco? E o meu pai, o que se teria passado com ele? Com essas perguntas a cujas respostas eu não sabia responder, adormeci novamente.


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A pastorinha e o Leonardo

Acordei com os raios do sol da manhã e o som de campainhas e chocalhos. Mal abri os olhos tinha pela frente um cão com o pêlo eriçado a mostrar-me os dentes mais brancos que neve. Deixei-me estar quieto e pus-me a falar com o bicho, que era bastante corpulento e tinha à volta do pescoço uma coleira repleta de pregos muito afiados. Fiquei contente por ter à minha frente aquele bicho; era sinal de que por perto andava gente... Pouco depois ouvi duas assobiadelas. O cão respondeu com meia dúzia de ladridos e, então, eu vi uma rapariga à minha frente. Fiquei um bocado 31

confuso porque pensava ver um pastor. — Que estás aqui a fazer a estas horas da manhã? — disse ela, surpreendida por encontrar ali um rapaz mais ou menos da idade dela. — Sei lá! — respondi, ensaiando um sorriso. — Vai embora. Quino, vai! — disse ela. Quino, que era o nome do cão, arrebitou as orelhas e veio farejar-me o pé onde


tinha o golpe, deu uma lambedela na ferida quase cicatrizada e foi para junto das cabras e cabritos que, em alvoroço de campainhas, pastavam com a fome eterna das cabras. — Ui, tens a cabeça rachada! E sangue seco no nariz... Que aconteceu? Saímos da casota feita pelos pastores aproveitando as paredes naturais de três grandes penedos. Três tábuas velhas cortadas e pregadas por quem sabia pouco de carpintaria faziam as vezes de porta. Ali à beira estava uma nascente de água e eu aproveitei para me lavar. Depois contei à Rosa Maria — era esse o seu nome — tudo o que me tinha acontecido. A pequena pastora, a princípio não queria acreditar, ria-se e dizia que eu estava a reinar com ela. Mas depois convenceu-se e deu-me um pedaço de pão de milho e uma malga de leite. E o meu estômago deixou de reclamar. — Para que lado fica Permeja? — perguntei. — Já ouvi falar dessa terra... mas nunca lá fui... 32

— E não há aqui ninguém que me possa informar? — Às vezes vem cá ter um rapaz que se chama Afonso, mas hoje não aparece porque foi comprar calçado à feira de Penaventosa. Só se fores ter à minha terra e perguntares. O meu pai de certeza sabe indicar-te o caminho... — E como se chama a tua terra? — Machocas.


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E eu dei dois suspiros. Um, por me lembrar das botas que o meu pai prometera comprar-me na feira de Penaventosa. O outro, por nunca ter estado na terra da Rosa Maria. Devia ser um lugarejo bem pequenino, para nunca o termos visitado. E o meu pai, apesar de não usar mapa, era um homem muito bem informado sobre lugarejos. — Vou até às Machocas ver se consigo governar a minha vida. Obrtgadinho pelo leite! — disse eu, despedindo-me da pequena pastora que andava a tricotar umas meias com fios de lã de ovelha. Tinha andado já um bom pedaço, sempre com passos apressados, quando ouvi um som rouco e prolongado ecoando serra fora. — Sebastião! Volta, Sebastião! Reconheci a voz de Rosa Maria e não pensei duas vezes: desatei a correr. Quando cheguei junto dela estava bastante transpirado e com o coração a bater a uma velocidade fora do habitual. E não admira: quem já algum dia teve essa extraordinária experiência de trepar a uma serra sabe muito bem do que estou a falar.

i — Que aconteceu? — perguntei eu, de repente com uma sede insuportável. — Vem aí o Tolinho da Ponte, não é preciso ires gastar tempo. Olha que daqui às Machocas ainda é uma boa hora e meia de caminho... — Tolinho da Ponte?! Quem é?


— É a pessoa mais conhecida destas bandas. Não regula bem da cabeça, mas não faz mal a ninguém. Dorme onde calha, come a desoras e às vezes vem fazer-me companhia. Olha, lá vem ele! Olhei em frente e vi um homem alto e extremamente magro a aparecer e a desaparecer por entre os fraguedos. De vez em quando parava, tirava do bolso um chifre de boi e punha-se a soprá-lo na ponta mais fina. E um som rouco, prolongado, fazia-se ouvir de imediato por toda a serra. Depois arrumava com gestos vagarosos o corno no bolso de um sobretudo, recomeçava a dar passadas decididas e a bater palmas com as mãos em concha, acompanhando assim uma cantiga interminável que dizia sempre o mesmo:

E eu cá vou E eu cá vou E eu ca vou Assim assado E eu cá vou E eu cá vou

O meu nome é Leonardo!

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Quando chegou à nossa beira confesso que fiz um bocado de esforço para não desatar a rir. O Tolinho da Ponte transpirava por todos os poros e mesmo assim não tirava a montanha de roupa que trazia vestida! — Olá minha flor do monte! Dás-me leite? — disse ele fazendo de conta que eu não existia. Depois de agarrar duas cabras para lhes tirar o leite para a malga que eu tinha usado, o Tolinho da Ponte sentou-se sobre uma fraga, tocou mais uma vez o corno, pôs-se a brincar com o cão, desapertou as cinco camisas que vestia, olhou-me de frente e disse com a maior naturalidade do mundo: — Então não me agradeces, ó malcriadão?!... Fiquei calado, sem perceber nada. E ele, pouco se importando com o meu silêncio: — Fui eu que te tirei do relento da noite, estás a ouvir?! Estavas deitado no chão e dormias tanto como as pedras que te serviam de cama! Olarila! 36

— E onde está o meu burro, senhor Leonardo? — Vá chamar Leonardo ao paizinho, ouviu?! Eu não me chamo Leonardo, sou o rei Leonardo! — Desculpe, rei Leonardo!... Mas onde está o burro? — Não vi, não vi, não vi!... Tu estavas sozinho, palavra de Rei Leonardo! Palavra que se pode escrever!


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Rosa Maria acenou afirmativamente com a cabeça. Fiquei calado, já sem nenhuma vontade de rir, preocupado com a minha vida. — Se eu caí, o Jaleco não saía da minha beira... O que teria acontecido? — perguntei em voz alta. Respondeu o cão que de repente se lembrou de ladrar a dois cabritos que ensaiavam uma contenda. — E onde fica Permeja, rei Leonardo? — Depois desta serra, ao fundinho do vale. — Não me perco no caminho, rei Leonardo? — Não, vais sempre em frente, sempre na direcção da ponta do teu nariz!... De repente lembrei-me da capela. Era o único ponto de referência que eu tinha, não muito seguro, porque é raro não haver uma capela em cada serra, mas já era alguma coisa. Essa ideia tranquilizou-me. Voltei a despedir-me da Rosa Maria e agradeci ao Tolinho da Ponte que batia 38

palmas e cantarolava. Meti-me a caminho e andei toda a manhã.


O Cabo Simão

Apesar de ainda não ter o pé completamente curado, e de haver tojeiros por todos os sítios, corri o mais que pude depois de ter visto ao longe a capela a branquejar. Quando vi as primeiras casas e reconheci a terra que tinha deixado na véspera, comecei a saltar como um dos cabritos da Rosa Maria. Entrei no povoado e de imediato fui cercado pela rapaziada da Permeja. Entusiasmados, começaram a rir e a gritar muito alto: — Já apareceu! O Sebastião já apareceu! 39

Eu não contava com aquela recepção e confesso que até fiquei com dúvidas se aquela terra era a mesma que nos tinha recebido tão mal na noite anterior. Reconheci a Amélia e perguntei-lhe pelo meu pai. — Anda à tua procura! — disse ela. Toda a gente anda a ver se te encontra. Fiquei banzado. — Toda a gente!... Mas como é que isso é possível?!


— Ah, Sebastião, se tu soubesses como as pessoas estão arrependidas! Que grande injustiça! — Ai, cada vez percebo menos do que estão a dizer... Quero que me contes tudo, mas mesmo tudo, desde o princípio! A Amélia preparava-se para iniciar a notícia quando meu pai apareceu acompanhado por outros homens, exaustos de tanto caminharem. — Que te aconteceu, moço? — perguntou ele. — Nada. Onde está o Jaleco? — disse eu. — O Jaleco... O Jaleco não andou contigo?!

— Não. Não o vi! Meu pai apertou as mãos na cabeça e eu apercebi-me que ele estava muito cansado e aflito por não saber o paradeiro do burro. — O animal não tarda a aparecer. Mais um pouco de paciência e tudo se resolve — disse um homem que eu reconheci imediatamente. Tinha sido ele o 40

primeiro a levantar a voz quando a pequena multidão entrou na sala. Pouco depois a mãe da Amélia convidou-nos para o almoço. Comi duas pratadas de arroz e uma rodela de salpicão com apetite devorador. Meu pai mal tocou na comida. A tarde passou muito devagarinho. Meu pai, ajudado pelos homens e rapazes da aldeia, continuou a andarilhar por todos os cantos à procura do Jaleco. E eu,


antes de os acompanhar, estive junto da Amélia para saber o que tinha acontecido depois de eu ter fugido. Pela voz da Amélia fiquei a saber que toda aquela barafunda não tinha passado de um engano e de uma precipitação. Agora toda a gente estava mil vezes arrependida e mil vezes pedia desculpa. O caso foi o que se vai seguir: Uns dias antes de eu, meu pai e o Jaleco visitarmos Permeja, uma casa da aldeia fora assaltada. Os gatunos entraram pelo telhado da cozinha e roubaram dois presuntos. Toda a gente ficou espantada porque era a primeira vez que tal acontecia naquela terra. Todas as portas conheceram fechaduras novas, reforçaram-se trancas, esconderam-se os presuntos nas salgadeiras. Participaram o roubo às autoridades e decidiram ficar atentos a todas as caras novas que surgissem na Permeja. 41

No dia em que aparecemos, com o povoado praticamente deserto — quem tinha força nas pernas, foi à festa da Senhora do Monte — a avó da Amélia, mal nos viu chegar, ficou apavorada. Correu a fechar a porta da casa onde estavam os netos, escondeu-se num palheiro e, através da pequena janela que lá havia, pôs-se a vigiar-nos. Como ela via muito mal, não nos reconheceu e, à medida que o tempo passava,


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mais se convencia de que éramos ladrões. Quando me viu entrar em casa dos netos, deixou de ter qualquer dúvida. Correu ao encontro das gentes de Permeja. Afogueada, contou-lhes o que tinha imaginado e os habitantes da Permeja, julgando terem apanhado os ladrões, desataram a correr. Entraram em casa da Amélia e aconteceu o que já vos contei atrás. E era mais que certo meu pai levar uma grande surra se, por sorte, um velho — o cabo Simão — não entrasse na sala ainda a tempo de evitar o pior. O cabo Simão andava muito devagar, por isso não foi capaz de chegar ao mesmo tempo que os vizinhos. Era grande amigo de meu pai. O acaso juntou-os no mesmo quartel; Simão era militar por vocação e meu pai um jovem recruta. Apesar da diferença de idades fizeram uma amizade que se prolongou pela vida fora. Sempre que visitávamos Permeja tínhamos de visitar o cabo Simão, agora sem farda e a viver da reforma. — Alto! Todos quietos! — gritou quando conseguiu chegar junto de meu pai. 42

— É o ladrão! E o ladrão! — voltou a afirmar a avó da Amélia. — Não é nada! Então não sabem quem é este homem?! Nunca viram o Joaquim dos Alfinetes? Que fizeram ao filho dele e ao burro? Não preciso contar o resto. Agora imagina a cara dos serranos quando perceberam no que tinha dado a precipitação.


A surpresa Toda a tarde procurámos o Jaleco. O burro não era do tamanho de uma agulha, por isso, à medida que o tempo passava, cada vez ficávamos mais preocupados. — Que é que vamos fazer a estas caixas? Como é que nos vamos arranjar? — disse meu pai, bastante desiludido depois de voltar para casa do cabo Simão, já com a noite a espreitar. Mal tínhamos começado a jantar, ouvimos gritos entusiasmados da rapaziada da Permeja: — Já apareceu o burro! Já apareceu o burro! Pousámos as malgas ainda quase cheias de caldo verde e bocados de presunto e corremos para a rua, satisfeitos. Num instante pusemo-nos no largo e ainda chegámos a tempo de ver o burro, exausto, cair no chão como se fosse um saco de batatas. — Jaleco! — gritei.

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O burro mexeu as orelhas, tentou levantar-se e olhou para mim com uns olhos parados, muito abertos, muito tristes. — O corpo do bicho está crivado de dentadas. Nem sei como é que conseguiu resistir! Mas perdeu muito sangue!... — disse o cabo Simão. Eu fiquei tão triste e tão admirado por ver o meu burro naquele estado deplorável que só soube abraçar-lhe o pescoço ferido e a sangrar sem conseguir dizer uma palavra. — Foi atacado por lobos... é a única explicação possível. Nem sei como conseguiu vencer a luta, que devia ter sido bem rija!... — Sentenciou um velho. Sem abrir a boca eu continuava abraçado ao pescoço do Jaleco sentindo a quentura do sangue que lhe saía do corpo e ia encharcando a minha camisa. — Tenham piedade do bicho! Acabem-lhe com o sofrimento! — disse em voz baixa, se calhar para eu não ouvir, o cabo reformado. Depois tudo aconteceu rapidamente. 44

O cabo Simão foi a casa buscar uma caçadeira e eu tapei os ouvidos e corri para longe sufocado em tristeza. Quando ouvi o barulho de um tiro fechei os olhos. Fiz de conta que era o ribombar do trovão — a chuva veio depois, saída das nuvens dos meus olhos. Na manhã do dia seguinte acordei com a voz do meu pai a sussurrar-me para me levantar. Tínhamos de sair daquela terra para irmos comprar um burro.


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A vida continuava! E de facto assim aconteceu. Mas ainda hoje, passados tantos anos, apesar de ser asno, de ser burro, Jaleco continua a ter um lugar bem destacado no meu coração.

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terra o jaleco levava a barriga atestada de erva fresquíssima, menos peso sobre o lombo, e nós um saco cheio de queijos de cabra. (...)"

Da Mesma Colecção O Grilo Verde

nes mais importantes no campo da literatura infanto-juveníl em Portugal. Nascido em Baião em 1957, onde é actualmente professor do 1 Ciclo do Ensino Básico, António Mota obteve a sua primeira distinção com o livro PEDRO ALECRIM (Prémio Guíbenkían de Literatura para Crianças 1990). A maior parte dos seus livros está publicada na Âmbar. A colecção António Mota, agora iniciada, irá constituir uma colectânea dos melhores trabalhos do autor destinados ao público infantil.

O Rebanho Perdeu as Asas

ISBN 972-43 _

789724"303758'


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