Diário inventado de um menino já crescido

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O autor José Fanha nasceu em Lisboa a 19 de fevereiro de 1951. É um arquiteto, poeta e divulgador da

poesia, dramaturgo, autor de letras para canções e textos para rádio, guionista de televisão e cinema e escritor de literatura infanto-juvenil português.

O Diário é um dos géneros da literatura autobiográfica. Registo das vivências e sentimentos de um “eu” face ao mundo que o rodeia.

Através da sua escrita, retrata: factos, desejos, emoções, vivências, memórias...; Cada dia corresponde a um registo de situações e sentimentos diferentes;

A personagem principal e o narrador são a mesma entidade.


Identificando cada capítulo como sendo um conto, são eles:

Chega para lá seu preto!

Conta-me uma história

O chinês do pastel de carne

De manhã

O senhor diretor

A escola

A minha prima Torre Eiffel

Milhões de coisas

As coisas que me lembro

O meu amigo Valdemar

Xarope de cenoura

Os medos

O meu banquinho

A empada

A melhor caneta do mundo

Passarinho verde

Por fora por dentro

A noite em casa da minha avó

Ganhar sempre

Zê zangado

As gajas são lixadas

Pensar no futuro

O dia de receber a pensão

Duas professoras

Como o Picasso

Barba na cara

Cara de camelo engasgado

Há coisas do caneco

Para sempre o futuro vai chegar um dia destes

















“O SR. DIRETOR” O sr. Diretor chamou-me ao gabinete dele, fechou as persianas e eu vi logo que ele tinha posto uma cara daquelas de quem anda a comer ervas azedas há muito tempo. Eu estava pequenino, cada vez mais pequenino e fiquei do tamanho de uma ervilha pequenina quando ele abriu a boca e me perguntou se eu sabia bem o pecado que tinha cometido. Eu não sabia. Ou pelo menos não me lembrava de nenhum pecado assim tão grande. Mas os olhos dele estavam muito grandes e a minha ignorância ficou pesada que nem chumbo. Olhei à volta e à volta, a ver se algum santinho me ajudava. Mas nada. Não havia nenhum Santo à mão de semear. As paredes estavam brancas e vazias e eu fazia tudo para não mostrar que estava todo a tremer. O sr. Diretor insistiu: “O menino sabe ou não sabe o pecado que cometeu?” E os olhos dele continuavam apontados contra mim como fogo em brasa. E eu, para não ficar ainda com mais culpas, disse logo que sim, que sabia muito bem qual era o pecado que tinha cometido. O sr. Diretor parecia um rato pronto a deitar o dente ao queijo.... O queijo era eu e estava pronto a qualquer coisa para sair dali o mais depressa possível. Passados para aí uns quinhentos anos ou mais, o sr. Diretor lá se acalmou e mandou-me ir confessar. Foi o bom e o bonito para explicar o tal pecado na confissão. Eu não sabia dizer que pecado era aquele que tinha cometido. Fiquei muito tatebitates e pus-me a dizer que era um pecado muito grande, mesmo muito grande e muito horrível e que estava muito arrependido. E estava mesmo muito arrependido. E continuo a estar muito arrependido apesar de, passado tanto tempo, não saber ainda qual é o tal pecado tão grave que um dia cometi.



Às vezes vou visitar as coisas de que me lembro. Ainda não sou muito grande mas já sou capaz de me lembrar de muitas coisas. Umas coisas que aconteceram e outras que nunca aconteceram. Lembro-me, por exemplo, de me pôr a engolir ar, engolir ar e, depois, começar a sentir-me leve e leve até levantar os pés do chão e ficar a flutuar pela sala da minha casa. Lembro-me muito bem de andar assim suspenso junto ao tecto. Parecia um heli-pássaro. Uma mistura de passarinho e helicóptero. Ficava quase sem peso e andava a flutuar, a ver as coisas de cima, a ouvir as coisas lá em baixo. Tudo parecia tranquilo e calmo. As pessoas entravam e saíam da sala e falavam com suavidade sem sequer repararem que eu andava por ali quase a bater no tecto. A minha mãe era leve. Trazia os talheres, os guardanapos, os copos. O meu pai chegava. Sorria. Os dois sabiam ainda sorrir um ao outro e eu seguia daqui para ali como se uma brisa me empurrasse e de repente quase que dava uma cabeçada no candeeiro. Lá em baixo havia uma grande arrumação e limpeza. A madeira dos móveis brilhava. A mesa estava posta para jantar e a luz da tarde adormecia por fora da janela e tudo ia ficando envolto numa penumbra morna e doce. Lembro-me tão bem de como era bom andar a flutuar pela casa fora quando tudo em casa era uma grande paz... Que pena nunca ter acontecido...


XAROPE DE CENOURA A minha madrinha é doce e cheira tão bem que eu, mal a vejo, atiro-me ao pescoço dela e dou-lhe muitos beijos e ela só diz:- Aí que ternuras, que ternuras! E as "Ai que ternuras, que ternuras" ficaram guardadas num dicionário que só eu é que tenho. Há palavras assim. Palavras que vivem numa gramática que não está escrita em parte nenhuma. A gente puxa por elas e logo atrás aparecem outras cores, cheiros e sabores. É tal e qual como se fôssemos à pesca de carapaus e nos viesse na linha uma lua cheia muito grande, um gato às riscas amarelas e verdes ou um chupa-chupa do tamanho dos candeeiros da minha rua. No meu dicionário, a palavra ternuras diz-se quase com o mesmo som que a palavra cenouras. Eu sei que isto pode parecer um bocadinho maluco. Mas é assim e é tão simples de entender como todas as coisas que são assim. Quando eu tinha tosse, a minha avó cortava cenouras às rodelas e punha açúcar, e eu até queria ter tosse para poder beber aquele xarope tão bom que ficava a escorrer das cenouras. Das cenouras vinha o xarope... Da minha madrinha, as ternuras... Cenouras e ternuras! É fácil de perceber. O xarope de cenouras tinha um gosto parecido com o cheiro das ternuras da minha madrinha. São duas palavras muito doces, cada qual à sua maneira. E pronto. No meu dicionário as coisas estão ligadas de uma forma um bocadinho misteriosa. E eu gosto de beijinhos e cenouras e xarope de ternuras...



A melhor caneta do mundo Eu já vi a melhor caneta de tinta permanente do mundo. É grande e pesada, tem uns desenhos dourados e está fechada à chave na gaveta de um armário em casa do meu amigo Armando. O pai dele dá-lhe prendas mesmo bestiais. Já lhe deu o melhor relógio do mundo. E a melhor cana de pesca do mundo. E a melhor caneta de tinta permanente do mundo. nem suja os dedos nem nada. O meu amigo Armando também não sabe se ela suja os dedos ou não. Nunca a usou. Nem pode usar. Podia estragá-la. As minhas canetas não são assim tão boas. Deixam nódoas de tinta nos dedos e esbotam de vez em quando. Não têm nada de importante. Só servem para escrever as estórias que eu às vezes me ponho a inventar. «Tens cá uma imaginação! » diz o meu amigo Armando quando lê as estórias que eu lhe mostro. «Eu cá, por mais que esprema a cabeça nunca me sai nada de jeito». Eu acho que o meu amigo Armando com certeza que também tem imaginação. Se calhar até tem a melhor imaginação do mundo. Mas deve estar fechada na gaveta do armário. Para não se estragar.




As gajas são lixadas O meu amigo Hélder levou ontem um medíocre da nossa professora e, quando chegou ao recreio pôs-me uma mão no ombro e disse-me com cara de quem sabe muito bem do que é que está a falar: -Sabes o que eu te digo, pá? As gajas são lixadas! Fiquei-me com aquela. Se o Hélder dizia é porque devia ser verdade. Eu é que andava distraído e nunca tinha pensado a fundo nesses assuntos relacionados com gajas. Mas pensando bem, o Hélder tinha toda a razão. Verdade, verdadinha: 'As gajas são lixadas.' Bastava lembrar-me da Armandinha que, em vez de me dar os cromos das pastilhas elásticas, preferia deitálos para o caixote do lixo só para me irritar. E da Célia, a quem pedi namoro e se desatou a rir. E da Joana que todos os dias me dizia que eu tinha cara de sapo engasgado. O Hélder tinha mesmo razão. Quando fui para casa, ia a repetir cá para comigo: 'As gajas são lixadas! As gajas são mesmo lixadas! Olhava para cada mulher que passava por mim na rua e pensava: 'Tu és uma gaja lixada. Vinha outra...'Tu também és uma gaja lixada!' Cheguei a casa a repetir baixinho -As gajas são lixadas...-Que que vens a dizer, filho?-Perguntou-me a minha avó, e eu nada, nadinha...Pus-me a pensar. A minha avó não era lixada. E a minha mãe também não. Nem a minha madrinha. Muito menos a Rita das trancinhas do 3º esq. que não era mesmo nada lixada. Mas não havia dúvidas. O Hélder tinha toda a razão. As gajas são lixadas. As gajas são mesmo lixadas. O problema é que, entre as mulheres que eu conhecia, não tinha a sorte de conhecer nenhuma gaja.


O DIA DE RECEBER A PENSÃO O que eu mais gosto é de me lembrar do dia em que a minha avó ia receber a pensão. Levava-me sempre a comprar um soldadinho e a comer um bolo na Mexicana. Bem... A Mexicana não era mesmo mexicana. Era uma pastelaria portuguesa na Praça de Londres. E a Praça não era de Londres nem era preciso ir a Londres para lá chegar. A Praça de Londres fica em Lisboa. Ali ao pé da Avenida de Paris. Que também não tinha nada a ver com Paris mas era onde a minha avó ia receber a pensão. Não sei porque é que a pensão se chamava pensão. Para a receber não era preciso ir a nenhuma Pensão nem a nenhum Hotel. Íamos à Caixa. E a Caixa não era nenhuma caixa de bolachas nem de lápis de cor. Era um Banco. E o Banco também não era nenhum banco de cozinha nem de jardim. Era uma casa grande onde estava guardado o dinheiro. E só a minha avó é que era mesmo a minha avó. A pessoa mais bonita e mais doce que eu conheci na

minha vida.





O futuro vai chegar um dia destes "Naquela noite o futuro ia começar. Há que tempos que eu andava à espera dele. Toda a gente dizia que não falhava. O futuro ia chegar sem falta no dia l de Janeiro, ao bater da meia-noite. Parece que o futuro chega sempre à meia-noite. São manias. Era melhor que fosse de dia. Pelo menos cá para mim era melhor que fosse aí por volta das 11 horas da manhã. Ou mesmo à hora do lanche. Mas tinha de ser de noite. Por isso, paciência... De dia

ou de noite, o que interessava é que o futuro chegasse. Era de noite, portanto. Lá em casa, juntámo-nos todos na sala com garrafas de champanhe e bolo-rei e passas. Toda a gente se ria muito. Eu andava a depenicar frutas cristalizadas e pinhões, até que me mandaram sentar e portar-me bem. E eu portei-me tão bem que adormeci. Quando acordei, já passava da meia-noite. Bolas! Era mesmo azar. O futuro tinha chegado e eu estava a dormir. Grande parvalhão! Corri à janela para ver como é que era. Olhei para um lado, olhei para o outro e não vi nada. Quer dizer... Não vi nada que se parecesse com o futuro. As casas estavam iguais, a rua estava igual, as pessoas estavam iguais. Afinal o futuro não tinha chegado. Ou talvez tivesse começado por chegar a outros sítios e ainda demorasse um tempo até chegar à minha rua. Ou então era um futuro tão pequenino que não se via cá de cima da janela de minha casa. Passados alguns dias, ouvi dizer que o futuro afinal ainda não tinha chegado. Só vinha para o outro ano. Fiquei um bocadinho triste. Queria muito ver como é que é o futuro. Mas não faz mal. Mais ano menos ano, o futuro há-de chegar. O mundo vai ficar lindo. Cheio de cores e música e perfumes bons. E as pessoas vão desatar a ser boas e simpáticas todas ao mesmo tempo. E ninguém vai precisar de pedir esmola. E toda a gente reparte o pão e os bolos e os bifes e os rebuçados. E desatamos a dançar e a fazer piruetas como trapezistas do circo mais maluco do mundo. É assim que eu acho que deve ser o futuro. Pode demorar pouco, pode demorar muito a chegar. Não sei. Só sei que não desisto. Tenho a certeza de que um dia o futuro vai chegar. E nesse dia eu vou estar cá para ver."


Esta obra de José Fanha retrata o dia-a-dia da vida de uma criança (que é neste caso o próprio autor) durante a sua infância. Esta personagem é uma criança comum, que tem uma boa, ou até mesmo perfeita, ligação com os seus pais e familiares principalmente com a sua avó. É uma criança com uma imaginação muito fértil e que consegue distrair-se e desligar-se do mundo inocentemente e viajar pelos sonhos e brincar com objetos inanimados. Este diário, ao longo das suas páginas, acaba por nos transmitir também algumas lições de vida. Algumas simbologias: Milhões de coisas – distinção entre o fundamental e o acessório, planificação de atividades a desenvolver segundo as prioridades, as escolhas… O meu amigo Valdemar – a amizade Os medos – a razão dos medos e como combatê-los A empada – a fome, a solidariedade A noite em casa da minha avó – a família, as tradições


Zê zangado – características físicas e psicológicas, as emoções

Barba na cara – a adolescência, a transformação do corpo

Há coisas do caneco – a forma como os mais novos vêem os mais velhos, a imitação, as relações entre adolescentes

Chega para lá seu preto! – o racismo

O chinês do pastel de carne – aceitação de diferentes culturas, várias línguas

O senhor diretor – regras de comportamento na escola, hierarquias

A melhor caneta do mundo – aptidões individuais, o valor das coisas

Ganhar sempre – a competitividade, fair play, trabalho em equipa

As gajas são lixadas – cortesia no tratamento das pessoas, a boa educação

O dia de receber a pensão – o valor do dinheiro, literacia financeira

Como o Picasso – a arte, o espírito crítico

O futuro vai chegar um dia destes – pensar no futuro, orientação vocacional.


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