O peixe azul

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Estrela

Margarida Fonseca Santos

Chegou mais um verão, e com ele as tão esperadas férias grandes. Daniel está ansioso por ir para S. Pedro de Moei, onde espera reencontrar alguns amigos que fez no ano passado. Mas este verão reserva-lhe uma surpresa inacreditável, a maior de todas que alguma vez se possa imaginar: um amigo novo que vem, imagina!, do mundo dos sonhos e que tem a forma de um belíssimo peixe azul! Não, a sério, eu garanto-te que o Daniel não está louco, nem a sonhar, ou melhor, ele na verdade sonhou, sonhou com o peixe azul, que agora está cá fora, no mundo real, e passeia-se, feliz da vida, como se nadasse no ar, pelo quarto do Daniel. Quando está contente até lhe faz umas coceguinhas na cara com as suas fantásticas barbatanas

T Edição

azuis. Já sei, estás a pensar: «Mas assim já conheço a história toda e nem vale a pena comprar o livro!» Não é verdade. Eu só te contei o início das aventuras que o Daniel vai viver neste verão. O peixe azul é apenas o começo de uma espantosa série de peripécias que vais poder descobrir neste livro! Nem vais acreditar! Margarida Fonseca Santos, autora de livros de grande sucesso, tem muitas das suas obras infantis e juvenis publicadas na Presença, com destaque para os títulos: Será Que Tudo Me Acontece Por Acaso?, Encruzilhada no Tempo, O Boião Mágico, Temos Mesmo de Esperar até Segunda-Feira?, O Nosso Clube de Teatro, O Livro Misterioso, as séries A Escola Fantástica e O Reino de Petzet. Em coautoria com Maria Teresa Maia Gonzalez, escreveu As Aventuras de Colombo. É também autora das histórias ilustradas do cachorro Frik, para os leitores mais pequeninos. Uma Prenda Muito Especial e Rafaela são igualmente êxitos a destacar na obra prolífica e sempre criativa desta autora. Alguns dos seus livros foram dist:~ com prémios literários - o Prémio Nacional de Conto Manuel da e o Prémio Revelação APE/IPLB 1996, entre outros.

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Margarida Fonseca Santos

o peixe azul

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Para o Miguel, porque os sonhos são uma parte de nós.

FICHA TÉCNICA Título: O Peixe Azul Autora: Margarida Fonseca Santos Copyright © by Margarida Fonseca Santos e Editorial Presença, Lisboa, 2003 Capa: Lupa Design — Danuta Wojciechowska Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. l.3 edição, Lisboa, fevereiro, 2004 7.' edição, Lisboa, maio, 2015 Depósito legal n.° 304 853/10 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 BARCARENA info@presenca.pt www. presenca.pt


A televisão estava uma bodega. Os meus pais continuavam os dois a trabalhar no escritório e eu estava ali sozinho com o meu avô, que já dormia, evidentemente. Isto de estar de férias em Lisboa é um bocado chato. Os meus amigos já tinham ido para o Algarve, para Trás-os-Montes, para montes de sítios. Mas nós ainda cá estávamos. Só mais esta semana, dizia a minha mãe, mas pelo suspirar do meu pai, parecia que ia ser um bocadinho mais. Eu acho que uma semana é imenso tempo! O meu avô acordou e sorriu com aquele sorriso de quem quer fingir que não dormiu. Entrei no jogo, não custava nada. — Estás a gostar, avô? Eu acho uma seca medonha. — Não digas essa palavra, Daniel, isso não quer dizer nada. — Pronto, uma chatice. Está melhor? O meu avô tirou os óculos e esfregou os olhos. — Se queres que te diga, nem sei bem. Não estou a prestar atenção. Claro, estavas a dormir, pensei. Mas não disse nada, óbvio.


— Eu já me deitava. — Podes ir, avô, não tem problema. — Ficas aqui sozinho... — Com o pai e a mãe lá dentro. — Pelo ar daquelas contas, não te vão fazer companhia nenhuma. Sabes que isto de gerir uma empresa... - ... tem muito que se lhe diga, já sei. O pai está sempre a dizer isso. E não é bem uma empresa, é mais um negócio. — Seja o que for, dá trabalho. E indo de férias... — Se formos, claro. — Vão, então não vão? Fiquei a olhar para ele. O meu avô achava que íamos de férias de certeza, o que eu duvidava, mas ele não se incluía. Não percebi. — Até parece que não vais connosco. — E não vou, Daniel, este ano não vou. — Porquê? — Estou velho, só dou trabalhos. Fico aqui e fico muito bem. A porteira ficou de rne vir trazer comida todos os dias e de ver se preciso de alguma coisa... — ... como se fosses um gato de estimação. A mãe sabe

Levantei-me e desliguei a televisão. Já me estava a irritar demasiado. Sentei-me numa cadeira em frente ao meu avô. Ele estava com os olhos cheios de sono, mas não me comoveram. — Diz lá essa parvoíce outra vez. — Estás a falar com o teu avô... — Que parece que perdeu o juízo. — Sabes, Daniel, eu acho que atrapalho muito lá no hotel. Vocês ficam todos presos por mim, eu acabo por ir à praia sem me apetecer, depois à noite ficam todos a olhar uns para os outros sem saber se é mau sair e deixar-me em casa, só trabalhos. — Que estupidez, avô, ninguém pensa assim. — A tua irmã quer sempre sair. — E sai, mesmo sem autorização, ou não é? - E tu? — Eu o quê? — Não sais porquê? — Não curto aquelas discotecas. — Curtes...

— Não, ainda não. — Logo vi. — Não lhe vais dizer agora, pois não? — Só não vou agora porque ia apanhar com uma fatura na cabeça, só por isso. Mas amanhã... — Eu digo-lhes quando for a altura. Não te preocupes.

— Não gosto de ir a discotecas, só isso. Aliás, nem tenho idade para lá entrar. A Joana já tem dezasseis, agora eu com doze... — De repente lembrei-me que o meu avô pensava que era por ele ficar na pensão que eu não saía. — Não é por tua causa, avô, não te armes em convencido. Ele riu-se. Eu estava a falar verdade, mas ele não estava a querer perceber. Nessa altura, chegou a minha irmã. Vinha com um ar muito estafado, cheia de fome, como

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disto?


de costume. Fomos os dois com ela para a cozinha. Era

— Era só o que faltava! Ó avô, passaste-te?

o máximo ouvi-la dizer que estava a morrer de fome e depois vê-la comer um iogurte magro e uma bolacha de

— Passei-me...? — Pronto. Enlouqueceste?

água e nada, como eu e o avô dizíamos.

— Não, só não quero ser um estorvo.

— O pai e a mãe?

— Que parvoíce!

— Nas contas.

— Eu sei que dou trabalho.

— Acabam esta semana? — Não fazemos ideia. — Queria ir para S. Pedro de Moei hoje, agora. Uff,

— Um trabalhão, não há dúvida. Ele é o pequeno-almoço, o almoço, o jantar... Bolas, avô, vamos para um hotel. — Está bem, mas isso custa dinheiro.

que seca — Ó filha... — Pois, já sei, avô, não é seca. Mas olha que é muito

Fez-se luz! Percebi as reservas do avô. Estava preocupado com as contas do negócio e queria poupar-lhes uns

parecido. O que é que estavam a fazer? — Nada — respondemos os dois ao mesmo tempo. Ela

tostões. Desmanchei-me a rir. A Joana ficou com aquela

ficou a olhar para nós desconfiada. A Joana percebeu logo

— Deixa-te disso, avô, nem penses que caímos nessa!

cara de quem não percebe logo, coitada, faz uma cara... Por causa do dinheiro? És tonto? A mãe não ia sem ti.

que havia asneira. — Desembuchem.

Nem nós! Vais ter que despachar a porteira.

— Embucha tu o teu iogurte e deixa-te de manias —

— A porteira? — perguntou a Joana, ainda com cara de parva.

tentei eu. — Que maneiras, meninos! — Vamos, quero saber tudo. Qual foi a bronca de hoje?

— Sim, a porteira, eu tinha-lhe pedido para me fazer a comida durante esse tempo..,

Até parecia que havia bronca todos os dias! A Joana

— Credo! — A Joana percebeu finalmente. Não está

não está muito tempo em casa, mas controla-nos mais

tudo perdido! E pensou noutras coisas... — Tu nem pen-

que a mãe. Isto de ter irmãs mais velhas tem muito que se

ses que eu vou dormir no quarto deste palerma, avô, tem

lhe diga. Bom, pensando bem, não era mau contar-lhe a

dó! Isso é a tua cruz, não é a minha! E essa história das

história do avô não ir de férias connosco. Ele ainda tossiu

refeições, ora, são uma pechincha.

para ver se eu desistia, mas eu mantive-me de pedra e cal

— E tu dás sempre tantas ajudas todo o ano — rematei eu.

e disse tudo. Ela estoirou. 12

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— Nem mais — disse a Joana. Quando ela diz isto, não vale a pena tentar mais nada. É definitivo. — Nós não vamos sem ti. — Fixe, mana, assim é que é!

II

O iogurte já estava devorado até à última partícula e a bolacha, igual. Mas a Joana começou a olhar para a prateleira das bolachas da engorda e toca de abrir um

Não sei bem como explicar o que aconteceu nessa

pacote daquelas que, só de olhar, já dá gozo. Ficámos os

noite. Não sei sequer se foi por causa da conversa

três a comer as ditas bolachas. O meu avô estava tão ali-

parva do meu avô. Dormi sempre um bocado aos sal-

viado por não ficar em casa que até se esqueceu de tomar

tos. Ouvia as vozes dos meus pais ainda no escritório

o comprimido para dormir. Deitámo-nos depois de dar as

e lembro-me de pensar que eles estavam doidos por

duas últimas bolachas ao pai e à mãe. Eles nem agradece-

ficarem acordados até tão tarde, mas depois voltava

ram, mas avisaram que as contas estavam a andar bem.

a mergulhar no sono profundo. Mergulhar, é mesmo o

— Preparem-se! Na sexta-feira partimos! — Fixe — disse o avô, e nós os dois desmanchámo-

termo, mergulhar. Sonhei toda a noite com água e peixes enormes e coisas gigantescas. Tínhamos ido ao Oceanário na semana

-nos a rir.

anterior, por isso já era um bocado fora de tempo aquele sonho. Mas durou a noite inteira. Não sei se toda a gente acordou muito cedo ou se fui eu que acordei muito tarde, mas a Joana entrou pelo meu quarto a falar altíssimo e a abrir as persianas, coisa que me irrita até ao tutano. E foi nesse momento que aquilo aconteceu. Imaginem a cena — ela entra naquela algazarra, eu acordo assustado e fico logo encandeado com a luz, ela atravessa o quarto a dizer uma data de coisas que eu faço o grande esforço de não ouvir e a porta fecha-se. No ar, mesmo ao meu lado, fica um peixe azul, talvez com o 14

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comprimento de um dedo, não mais. E, estranhamente,

— Se não estou doido, porque é que te estou a ver aí no meio do quarto e ainda por cima a pingares o chão todo?

aquele peixe pareceu-me um bocado atrapalhado e até envergonhado. Atirei-me para trás. Estava a sonhar. Tapei-me com o

— Não tenho culpa, estou molhado.

lençol e voltei a adormecer. Mas acordei outra vez, agora

— Os peixes costumam andar molhados...

com um pingo de água na cara.

— É uma situação embaraçosa... Fiquei a olhar para ele. Debaixo dos lençóis, voltei a

— Desculpa. — Não me molhes a cama toda, por amor de

beliscar-me, agora nas pernas e com muita força, o que me causou uma nódoa negra enorme, mas nada. A porta

Deus. — Já pedi desculpa.

voltou a abrir-se. Era o avô. — Vens?

— Bom... Só então caí em mim. Eu estava a falar com um peixe

— Eu?

azul, que estava aparentemente suspenso no ar e que fazia

— Sim, quem é que havia de ser... — Podia dizer-lhe,

um barulho irritante a abrir e fechar a boca, isto quando

mas não ia adiantar. — Vamos almoçar ao chinês.

não estava a falar, claro. Sentei-me na cama e belisquei-

— Alguma razão em especial?

-me. Devia estar a sonhar, só podia ser. A porta abriu-se de repente. A Joana voltou ao ataque.

— Sou eu que ofereço. — Boa. Vou já tomar um duche.

— Molúsculo! Mexe-te! Vamos almoçar fora e nem

A porta voltou a fechar-se. Sem pensar no que fazia,

penses que vais sem tomar banho.

agarrei no peixe e meti-o dentro do bolso de cima do pi-

Ia perguntar-lhe o porquê do almoço, mas ela já

jama e levei-o comigo. Não podia deixá-lo ali.

tinha fechado a porta. O peixe, esse tinha-se escondido

Tomei banho sempre na esperança de que ele se entu-

atrás da mesa de cabeceira e estava agora a agitar uma

siasmasse, mergulhasse e desaparecesse pelo ralo, mas ele

das barbatanas como que a dizer que tinha escapado

ficou no meio da casa de banho a olhar para as conchi-

de boa. — Ainda aí estás...

nhas que a minha irmã tem na prateleira. Despachei-me num abrir e fechar de olhos e voltei para o quarto, com o peixe dentro do pijama, claro está.

-É. — E eu estou doido. — Não faço ideia. Mas olha que não pareces.

Vesti-me e fiquei a olhar para ele. Não sabia bem o que havia de pensar. Ainda tinha tanto sono... 17

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- Ficas ou vens? - - Acho que foi a pergunta mais estúpida que fiz até hoje. — Acho melhor ficar. Abre essa gaveta, que eu fico aí. III

E eu abri. E fechei. E fui-me embora. E acreditei que era um sonho e que, quando voltássemos do almoço, o peixe já teria desaparecido.

Podem não acreditar, mas durante o almoço não pensei mais no peixe azul. Convenci-me tanto de que aquilo tinha sido um sonho, que arrumei o assunto. Chegámos a casa já a meio da tarde. Estávamos muito bem-dispostos (mesmo a minha irmã, o que é fantástico!) porque parecia que íamos de férias naquela sexta-feira, tal como se tinha combinado de início. O meu avô não tinha voltado a falar na ideia parva de não ir, se bem que tenha começado a falar nas despesas. Mas a Joana olhou para ele com um ar tão irritado, que ele até se assustou. Os meus pais nem perceberam, mas também não era difícil distraírem-se porque estavam todos contentes por terem resolvido as coisas do negócio. A Joana instalou-se no computador e eu tive um pequeno ataque de fúria, mas passou-me. Para quem acha os jogos um vício, ela joga imenso. Mas pronto, deixei-a. Entrei no meu quarto e lembrei-me de repente do peixe. Primeiro fiquei irritado comigo mesmo por ligar àquela treta, mas depois não resisti a abrir a gaveta. Pois é, eu sei que não devia falar nisto, mas a verdade é que ele estava lá. Até sorriu quando me viu. 18

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Eu já sou crescidinho, não sou nenhum miúdo de sete anos com amigos imaginários e esta história começou a fazer-me fumegar. Se ele estava ali, isso queria dizer que eu era um miúdo com sonhos parvos. Mas ele pôs-se a esvoaçar pelo quarto com imensa velocidade, como se estivesse a desentorpecer as barbatanas, se é que não são motores a jato. Depois de se pavonear por ali, parou à minha frente, a três dedos do meu nariz. Cheguei-me para trás. — Assim nem te vejo, credo! — Desculpa. Assim está melhor? — disse ele pondo-se a dois palmos. — Aí está bem. — Demoraste. — O teu relógio é que anda muito depressa — disse eu, muito parvo, — Que vais fazer agora? Fiquei ainda mais irritado. Era o que me faltava, ter de dar satisfações a um peixe. Ainda por cima a um peixe azul. — Dormir e sonhar outra vez para tu voltares para

— Porquê? — Esqueci-me de perguntar como é que se fazia. — Vais ficar aí para sempre? — assustei-me. — Não sei... Sentei-me na secretária. Ele veio aterrar no agrafador, que é amarelo e até fica bonito com um peixe azu! em cima. — Não pensei que te importasses tanto — disse ele com cara de vítima (não sei se se diz cara quando se fala de um peixe...}. — Não me importo. Podes andar por aí, não me ralo. — Ao pé de ti? — Sempre ao pé de mim?! — Às vezes...? — Bom, às vezes pode ser. Mais do que isso é que não! A porta abriu-se, o meu avô entrou e o peixe escondeu-se atrás dos livros. Vinha com ar de ficar à conversa. Eu gosto, gosto mesmo muito de ficar a conversar com ele, mas estava preocupado com o peixe. Coitado, deve ter pensado que eu estava com pouca paciência para ele.

o sítio donde vieste. — Ah. Não pareceu muito feliz, estranhamente. — Tive tanto trabalho para vir cá para fora... — Ah, foste tu que quiseste — sempre era melhor que

Detesto que o meu avô pense isso, mas já tinha saído quando caí em mim.

ter sido eu a fazer a gracinha. — Fui. — Bonito. E agora voltas para lá, espero. — Isso já não sei se sou capaz.

— Porque é que tens essa cor? — perguntei eu com cara de quem a acha um pouco foleira.

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O peixe azul voltou para o agrafador amarelo. — Eles veem-te? — Não faço ideia.

— Foste tu que a sonhaste assim, acho eu. Bem feito para mim, o foleiro era eu... 21


— E não precisas de água? — Acho que não. — E voas como? — Acho que não sei. Faço assim — e pôs-se a demonstrar as habilidades do costume. — Bolas! Só achas e não achas...

— Agora? — Não, avô, de noite. Só que aconteceu uma coisa esquisita. — O que foi? — Bem, nem sei como dizer... — Miúdas...?

— Parece que sim... Esta ia passar a ser a sua frase preferida.

— Não, avô! Fogo!

— Bom, temos mas é de perceber se os outros te vêem,

— Sonhei com um peixe.

senão morro de ataque cardíaco. — O que é isso? — É o coração parar, assim BUM!, percebeste?

— Então? — Normal, normalíssimo. — Calma, avô, não sei se vais achar assim tão normal. É que ele ficou preso cá fora, ou melhor, quis sair e não

— Parece que sim. Ia barafustar, mas desisti. Escusava de lhe pôr grandes

sabe voltar para dentro do sonho. Nem quer voltar, aliás.

defeitos, eu é que o tinha sonhado assim... — Experimentamos com o teu avô, não? — suge-

facilmente a cara do meu avô. Não é tão grave como a pintam porque ele é superfixe. Fixe?!... Fish?! Ai a mi-

riu ele.

nha cabeça.

Vocês têm todos adultos por perto. Podem imaginar

— Achas? — Não sei bem. Se tens outra ideia, pode ser.

— Tu não o vês?

— Talvez tenhas razão. Vou chamá-lo. Saí e chamei pelo avô no corredor. Lá veio ele, com

— Não te vou dizer, não te quero sugestionar.

a perna um pouco pesadona, mas a andar depressa. — Que foi, Daniel? — Entra. — Esperei que se sentasse à secretária e fechei a porta do quarto como se fosse uma reunião clandestina. E era... O peixe estava no seu lugar, quer dizer,

-Eu?! Onde? — Não está dentro de água? — Não, anda por aí como se nadasse no ar. Cabe na palma da tua mão. O meu avô olhou para a palma da mão. O peixe, com imensa lata, foi pôr-se lá e sorriu para ele. O meu avô não reagia.

naquele sítio onde parecia gostar mais de estar, o agrafa-

— Dizes que saiu dum sonho...

dor. — Tive um sonho.

— Estás a achar que sou parvo. 22

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— Não! De todo. Estou a tentar imaginar. Tem cara de boneco animado? — Desenho animado. — Pois, como tu dizes. — Não. Tem cara de peixe. Ri para mim, mas tem cara de peixe. Podia'ser um peixe vermelho. O peixe reagiu mal. Devia ser uma ofensa. O meu avô

— Estou a ver a cauda mesmo junto aos meus dedos. — Só vês a cauda? — Só. Espera! Estou a ver também umas barbatanas. Que cor linda! — Acreditas em mim... — Olha, Daniel, é assim. Ou estamos os dois loucos, o que não é difícil, ou acho que é mesmo verdade.

continuava a pensar e a olhar para a palma da mão.

O avô disse isto e deu um salto na cadeira.

O peixe continuava calado.

— Já o vejo todo! É fantástico! Se a tua mãe descobre,

— Não me dizes a cor... — Para não te sugestionar...

vou parar a um lar, ai isso é que vou! — E eu vou para adoção...

— Mas não tem cor de peixe.

— Tretas — disse o peixe. O meu avô fartou-se de rir.

— Pois não, quer dizer, daqueles normais.

O peixe esvoaçava pelo quarto para fazer as delícias

- Azul? Disse-lhe que sim. Os olhos continuavam a olhar para a mão e o peixe estava já impaciente. — Porque é que olhas para a palma da mão? — perguntei. — Não sei. Estava a imaginar o tamanho dele e senti

do avô. Até mergulhou no bolso da camisa dele e voltou a sair. Depois foi para o seu trono de agrafos. — É impressionante! Devemos estar mesmo passados! — Ó avô, tu não costumas dizer isso... — O que é que queres? Aplica-se na perfeição!

umas cócegas. - É ele! — Está aqui na minha mão? — Está! — Olha o malandro. Aposto que está a dar à cauda de impaciência. E estava de facto. Parou de abanar a cauda e sorriu. — Ora esta! — Que foi? 24

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— Não vejo nenhum peixe desenhado. — A sério?

IV

— A sério...?! Tu estás é a brincar comigo, é o que é! Parvo! — Não consegues ver o desenho de um peixe? — disse o avô, fazendo com o dedo o contorno do peixe azul, que

Claro que o teste seguinte seria a Joana. Eu queria imenso que ela não o visse, mas também não queria sur-

se arrepiou com cócegas.

presas. Fiz um desenho à pressa, todo em tons de azul,

do Daniel a inventar parvoíces... — De repente mudou

numa folha A4. Pus a folha no meio da secretária e o

de expressão e ficou com um ar que eu não consegui

peixe deitou-se nela, todo espalmadinho como se dor-

entender logo. Primeiro achei que ela tinha visto o peixe.

misse assim. Vim a saber à noite que dorme realmente

Depois percebi que não. Os olhos estavam a ficar varados

naquela posição. E mais. Ressona baixinho.

de fúria. — Isto foi tudo para me tirares do computador,

Bom, chamei a Joana. Refilou imenso mas veio. Eu disse-lhe que era uma experiência com desenhos e que

— Tu também, avô?! Bolas! Já não bastava a abécula

não foi, engraçadinho? Pois fica sabendo que hoje não voltas a pôr as mãos nele.

queria que ela fosse a primeira a ver. Ela não resistiu.

A Joana levantou-se e deu uma palmada no desenho

Realmente, a Joana tem essa parte boa — gosta imenso

com tanta força que pensei que o peixe tinha morrido.

dos meus desenhos.

Saiu e bateu com a porta. Eu acho que é da idade, estas

Entrou no quarto e o avô levantou-se da cadeira para ela se instalar a ver o desenho. Acho que estávamos os dois muito nervosos. O meu avô até me segurou pelos ombros para nos aguentarmos melhor.

cenas de bater com as portas e achar que é a maior. Tem dezasseis anos, coitada! Assim que ela saiu, eu e o avô debruçámo-nos sobre o desenho. O peixe estava todo espalmado. Mas ainda falava.

A Joana olhou, olhou. Mudou o desenho de orien-

— Ponham-me dentro de água — disse com dificuldade.

tação, levando o peixe de roldão, mas não dizia nada. Até

De um segundo para o outro já estava o avô com um

pôs a língua de fora para ver melhor. Eu tinha-lhe dito

copo de água no quarto. Peguei-lhe pelo rabo e mer-

que era um desenho abstrato com um peixe escondido.

gulhei-o lá dentro. Ficava um pouco incómodo, assim ao

— Tu estás a gozar comigo, Daniel.

alto, mas sacudiu-se e voltou à forma que tinha antes.

— Porquê?

Suspirámos de alívio. 26

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Assim que se sentiu melhor, o peixe saiu da água e pôs-se a nadar no ar de um lado para o outro. Deixava pingos por todo a parte e tive de lhe pedir que tivesse

V

cuidado com as madeiras dos móveis. Até parecia a minha mãe a falar, eu. Não havia dúvida de que ele estava bom outra vez. Foi pousar na mão do avô e começou a conversar. — Ela não me vê, está visto, não é assim tão má que me esborrachasse de propósito.

Foi assim que tudo começou. O peixe azul estava cá fora, tinha sido sonhado por mim mas tinha vontade própria e queria estar do lado de cá dos sonhos. Custou-me

— Lá isso, não tenho bem a certeza — disse eu.

muito a aceitar, a princípio, mas fui começando a achar

— Ó Daniel, não exageres — ralhou o meu avô. — Mas

graça àquele peixe simpático. Era um segredo meu e do

eu vejo-te tão bem...

meu avô, os únicos que o víamos. Ao jantar do primeiro

— E eu...

dia, experimentei levar o peixe até à mesa. Ele pousou

— Ela não acreditou que eu existia, não se esforçou,

na cesta do pão e só se desviava quando alguma mão se

não me viu. Deve ter sido por isso. — És capaz de ter razão. Eu, a princípio, também só vi a cauda e as barbatanas.

preparava para tirar um bocado. Sorria para mim e para o avô, feliz por estar ali. Só houve uma altura em que a brincadeira ia dando

— Mas esforçaste-te para ver, avô!

para o torto. O peixe deve ter-se cansado de estar ali no

— Pois foi.

pão e esvoaçou pela mesa. Eu e o avô olhávamos para ele

— Quer dizer que quem não souber, não te vê nem des-

disfarçadamente para ninguém desconfiar. Mas fiquei logo

confia. Sobretudo se não andares por aí a molhar tudo.

com a sensação de que ele ia fazer asneira, como de facto

— Parece que sim — rematou o peixe.

aconteceu. Ao passar pelo jarro da água, vimo-lo parar

Um tipo fixe... Fixe?!... Fish...?!

e olhar para dentro. Eu ainda tentei afastá-lo, como se estivesse uma mosca por ali. Mas ele voltou logo a seguir, curioso por ver tanta água que lhe devia parecer apetecível. Não tirei os olhos dele e tentei, sempre que ele sorria para mim, que percebesse que ia dar asneira. E deu. De repente, mergulhou. Claro que fiquei com o coração aos

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saltos. Felizmente estavam todos tão entretidos a discutir

medo que, nos sonhos dele, ele encontrasse uma passagem

sobre se valia a pena levar o atrelado com as bicicletas para S. Pedro de Moei, que não ouviram o barulho do

e deixasse de estar ali. Fiz-lhe uma festa na cabeça azul. Ele continuou a dormir.

mergulho. Mas a água estava gelada, claro, e ele saiu

O meu avô entrou. Viu-o assim e riu-se.

abertos. Escusado será dizer que molhou a toalha toda

— Ia dando bronca grande, aquele mergulho no jarro da água.

naquele momento. A minha mãe ia a olhar para a dire-

— Ficou congelado. Mas acho que percebeu que a

ção do jarro e eu só tive uma solução — entornei o meu

brincadeira não é para repetir. Adormeceu em dois segundos.

logo a seguir com o corpo azul-clarinho e os olhos muito

copo com um ar distraído. Levei um raspanete valente, e «olha para o que fizeste», mas o pior ainda era o frio

— O raio do peixe é mesmo engraçado. E ninguém o viu. É fantástico!

que sentia no bolso dos calções onde sua excelência se

Começámos então a pensar onde o havíamos de aco-

daqueles do género «já não tens idade para essas coisas»

modar. O meu avô lembrou-se de qualquer coisa e saiu

veio aquecer. Quando voltámos para o quarto, fiz de pai ralhador

para ir buscá-la. Voltou com uma caixa de cartão forte,

e preguei-lhe um sermão e pêras. Ficou muito caladinho

não muito maior que um maço de cigarros, mas que

enquanto eu ralhei.

tinha o tamanho ideal para o peixe dormir sem pro-

— Percebeste o que eu disse? Olha que se voltas a fazer uma destas não sais daqui do quarto. Ouviste bem? — Parece que sim.

blemas. — Podias pintá-la por dentro, para ele se sentir mais confortável.

Fiquei logo sem raiva. Estendi-lhe a mão e ele veio

— Ai, avô, às vezes sinto que estamos mesmo doidos...

aninhar-se nos meus dedos. Ainda estava gelado e parecia

— Não digas isso! É tão engraçado. Eu acho diverti-

cansado. Comecei a pensar onde poderia pô-lo a dormir.

díssimo. Anda lá, pinta qualquer coisa aí por dentro.

Arranjei um lenço de assoar lavado, amarrotei-o para o deixar mole e fiz uma espécie de alcova para ele se dei-

O avô é o meu maior entusiasta. Eu gosto muito de pintar e desenhar. Os meus pais acham que eu desenho

tar. Ele aceitou logo e, passados dois segundos, estava a

muito bem, mas o meu avô acha-me um génio. Estou

ressonar baixinho. Tapei-o melhor e pareceu-me que já

sempre a dizer que ele é um exagerado, mas sinto que

estava mais quente. Foi então que me apercebi que não me apetecia nada que ele se fosse embora, que estava com

ele gosta mesmo do que eu faço. A Joana também gosta. Deve achar que é giro ter um irmão mais novo com jeito

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para desenhar porque está sempre a mostrar aos colegas

— Que tal Fish-azul?

os meus desenhos, quando eu deixo, claro está! Mas o

— Hum... Pode ser. Fish para os amigos.

avô é o fã número um. A caixa era bonitinha por fora. Tinha umas riscas

Rimo-nos da saída dele. — Gostas do nome?

atravessadas azuis e brancas, a marca do produto em letras

— Parece que sim.

gordas, e por dentro era cor de papelão. Fui buscar as tin-

Não consegui esperar mais e mostrei-lhe a casa que

tas e deitei mãos à obra. Desenhei uma espécie de fundo do

lhe tinha arranjado. Ele ficou tão excitado que já queria

mar, com pedras redondas, algas, tudo isto sobre um fundo

ir com o lenço dormir para lá. Foi uma trabalheira para

azul-marinho claro. Ficou engraçado. Fomos pô-la à janela

o convencer de que a tinta não estava ainda seca. Mas adorou.

para secar mais depressa e perder o cheiro das tintas. Como o peixe continuava a dormir, o meu avô disse que também se ia deitar. — Não lhe damos um nome? — perguntei.

Ficou com uma espertina diabólica. Eram duas da manhã e ele ainda andava de volta da casinha a ver se já tinha secado.

— Ao peixito? E que género de nome?

— Dorme, Fish, ela só vai estar pronta amanhã.

— Não faço ideia.

— Mas eu queria experimentar...

— Mas é um tipo fixe, o raio do peixe.

— Dorme! Bolas, que chato! Estou a morrer de sono...

— É isso, avô! Chamamos-lhe Fish-azul. — O quê?

— Pois... — disse ele antes de apanhar com o lenço em cima e aterrar à força sobre a colcha.

— Fish, avô, do inglês. Fixe, fish. Fish-azul! — Ah! Não estava a perceber. Mas olha que é melhor pedir-lhe a opinião quando ele acordar. — Tem de ser. Ele até pode já ter nome, nós é que não lhe perguntámos. Mas o peixe acordou naquela altura e mexeu-se no lenço. Fui até ao pé dele e não resisti. — Tens nome? — Não. Podem chamar-me como quiserem — disse ele ensonado. 32

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— Já tens tudo pronto? — perguntei eu a fingir que não percebia que ele tinha medo de não ir de férias.

VI

— Pronto?! O quê? — disse ele depois de uma travagem brusquíssima que deixou no ar um cheiro de travão de peixe. — Então? Já arrumaste a tua cama?

Os dias que se seguiram foram preenchidos com os preparativos para as férias. O Fish ficava volta e

— Arrumar a minha cama?! Mas ela está no sítio do costume.

meia amuado por eu não lhe ligar muito, mas eu fiz

— Pois é, mas já devia estar aí no canto do saco.

de conta que não percebia. O avô achou por bem

Ele percebeu naquele momento que ia comigo. Ficou

começar a olhar mais pelo peixe e esteve com ele no

completa mente histérico, até fazia impressão. Veio encostar-

bolso da camisa várias horas por dia. Como o Fish

-se ao meu nariz, obrigou-me a trocar os olhos e dar um

não se calava, o meu avô às vezes começava a rir sem

passo atrás e desatou a falar.

os outros perceberem porquê, mas lá foi disfarçando

— Então eu vou? É? Eu vou? Pensei que ia ficar aqui

como pôde. Na manhã da partida, senti que o peixe azul me estava

sozinho! Não pensei que ia. Mas vou, não vou? Nem

a olhar com uns ares muito esquisitos. Viu-me meter a

— Cala-te! Vais, claro que vais, que raio de ideia a tua

roupa no saco, selecionar os livros e os jogos, deixar

de que ias ficar. Às vezes parece que tens miolos de peixe

a secretária arrumada. Comecei a espiá-lo pelo canto do

vermelho.

olho e vi-o olhar para a cama dele muitas vezes. Percebi

quero acreditar! Vou, não é?

Ia-me tirando um olho, da rasante que me pregou com a fúria. Mas passou-lhe depressa. Estava tão contente

então o que se passava. — Estás com um ar muito abatido, hoje.

que começou a tentar pegar na cama dele com a boca e a

— Eu? Não. — Estás, estás. Algum problema?

arrastá-la. Escusado será dizer que não conseguiu nada.

— Nada, nada.

um peixe daquele tamanho. Ri-me a vê-lo fazer esforços

— Estás com cara de peixe vermelho. Isto era a pior coisa que eu lhe podia dizer. Ficou fu-

para a deslocar.

rioso e pôs-se a nadar no ar às voltas, amuadíssimo. 34

Mesmo sendo a cama pequena, o peso era muito para

— Queres ajuda, Fish? — Parece que sim. 35


Assim que entrámos no carro, veio a questão do costume entre a Joana e eu — quem ia à janela. O meu avô disse logo que ia ao meio para parar a discussão, mas a

lá do fundo o que via e vinha pôr-se na minha boca para saber mais informações. O meu avô até se engasgou de tanto fazer força para não se rir.

minha mãe ralhou-nos imenso. Ficámos calados durante cinco minutos, a mostrar um ao outro que estávamos

a nadar ao meu lado. Pedi-lhe disfarçadamente que se

amuados. Mas'passou.

controlasse, ele jurou-me que sim. Mas tive a certeza de

O Fish, após uns dez minutos, saiu do bolso da camisa

Parámos para comer qualquer coisa e o Fish veio então

que ele ia asneirar, como diz a minha mãe.

do avô (é que eu ia de T-shirt e ele não queria ir nos cal-

Pedi um pão com chouriço e um sumo, os outros

ções com medo de ser esmagado). Nadou pelo ar deva-

pediram outras coisas. Lembrei-me que o Fish poderia

garinho, sempre encostado a mim e ao meu avô, e foi-se

precisar de água. Fui buscar uma garrafa e ele achou

pôr à janela. Fiquei a ver a reação dele.

ótimo. E fiz uma maldade. Assim que ele se meteu na

Primeiro abriu muito os olhos, parecia um sapo.

garrafa e começou a molhar tudo, fechei a garrafa. O meu

Depois começou a seguir os carros que se cruzavam con-

avô censurou-me com os olhos, mas eu já estava cansado

nosco e parecia que estava num aquário à luta com

de tanta agitação. Já só faltavam sessenta quilómetros

o vidro. Finalmente, começou a fazer comentários.

e ele ia fazer o resto da viagem dentro da garrafinha, ai

— Bem! Isto é o máximo! Já viste estes carros todos?

isso é que ia!

E estas algas grandes? São algas, não são? Fiz que não com a cabeça. Ele percebeu que eu não

tentou dar cabeçadas na tampa, mas lá se resignou. Pus

podia responder e chegou-se à minha boca para eu lhe

a garrafa à janela, depois de ouvir comentários parvos da

dizer o que eram. Era uma operação complicada. Eu tinha

minha irmã, do género «não sei porque é que pões a gar-

de fingir que estava com a mão na cara, assim a tapar a

rafa ao sol, minha abécula», e ele lá foi ficando. Acabou

boca, ele metia-se na concha que eu fazia com a mão e eu

por se distrair com a paisagem. Continuava a falar, mas

dizia-lhe baixinho o que eram — lá lhe disse que eram

eu já não o ouvia, felizmente. Encostei a cabeça no ombro

árvores. O meu avô estava cheio de vontade de rir. Eu sei

do meu avô e dormi cinquenta quilómetros.

Claro que ele fez cara de peixe vermelho, claro que

o que ele estava a pensar. Mais um ou dois solavancos, e eu engolia o Fish, era limpinho. Acabei por empurrá-lo para o vidro de trás, para ver se ele ficava menos conversador, mas não adiantou. Gritava 36

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meio das duas camas. Ele nadou por ali, curioso. Já tinha as escamas no sítio. Deixei a mão aberta para ele pousar, e lá veio ele todo contente.

VII

Como podem calcular, não foi nada fácil aturar a

— Fala-barato! — O que é isso? — O que tu és! Não te calas nunca. — Parece que sim...

birra que o Fish fez quando o soltei da garrafa. Estava

— Bom, porta-te melhor daqui em diante.

irritadíssimo, molhado, com cara de peixe vermelho e as

— Vou tentar.

escamas todas eriçadas. Nunca o tínhamos visto assim,

Fiquei preocupado. Se ele ia tentar, talvez não conseguisse

mas mais tarde vim a perceber que ficava assim quando

fazer melhor que aquilo, e as férias iriam ser complicadas.

estava mesmo furioso. De qualquer forma, garanti-lhe que

Nessa tarde ainda descemos à praia, eu e o meu avô.

iria fazer isso sempre que ele se portasse mal. E ele foi

O Fish foi no bolso dos meus calções, muito quieto, só

amuar junto à janela do quarto.

com a cabeça de fora. Tinha-me esquecido de pensar qual

— Ficas de que lado, avô?

seria a reação dele ao ver o mar e só depois de ele ter

— Tanto me faz. Podes escolher, eu durmo em qual-

nadado para fora do bolso é que fiquei aflito. Podem imaginar a cena — nós os dois a olhar para o

quer sítio. — Então eu fico do lado da janela. Já viste que já cá estão os miúdos do ano passado? — Devem ter vindo no princípio da semana. Não vais

Fish e ele com a boca aberta a olhar para o mar, sem se mexer. Olhei para o meu avô. Ele estava com o mesmo medo que eu. Não sabíamos o que ia acontecer. O Fish chegou-se às ondas e eu ainda pensei em agarrá-

fazer as pazes com o Fish? — Eu? Ele é que tem de se portar como deve ser. — Coitado, nunca tinha andado de carro... — Pareces a mãe a defender a Joana. — Mas é verdade o que eu estou a dizer.

-lo, mas o meu avô segurou-me no braço. — Se tiver de ser assim, não podes evitar, Daniel. Deixa-o ir. Fiquei a vê-lo mergulhar nas ondas, a aparecer e a ace-

O Fish olhava-nos de lado para ver se eu ficava menos

nar-nos com a barbatana, feliz. Esteve que tempos na

chateado. Comecei a ter pena dele. Tirei a cama de pape-

brincadeira. Como estava frio, eu não me meti na água.

lão e coloquei-a em cima da mesa de cabeceira, mesmo no

Só pensava que ele ia ficar ali.

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Quando o Fish saiu da água para vir ter connosco, eu suspirei de alívio cedo de mais. Pensei que ele estava satisfeito e que podíamos voltar para o hotel. Mas não. — Posso ficar aqui até amanhã? Sim? Ficámos os dois sem saber o que responder. O meu

— Foi por causa da cena da garrafa, não foi? — Não, Daniel, não me parece. Isto tinha de acontecer, nós é que não pensámos nisso — disse o avô. — Mas ele é que quis sair dos meus sonhos e ficar

avô até ficou 'um bocado engasgado. Eu, se tivesse uma

cá fora. — Se calhar, o apelo do mar é mais forte. Também,

garrafinha, tinha-o metido lá dentro. Mas não havia nada

nada nos garante que ele não volte. Amanhã pode estar

a fazer. Percebemos que não podíamos dizer que não.

lá na praia à nossa espera.

— À noite fica tudo escuro.

— Não acredito, avô.

— Não faz mal.

— Não sejas pessimista...

— E podes perder-te.

Estava a animar-me, mais nada. Foi só depois que o

— Não, eu sei onde estou.

meu avô me disse que também não tinha acreditado que

— E dormes como?

o Fish voltasse.

— Dormir? — Sim, à noite dorme-se... — Durmo no mar. — E a corrente leva-te — disse o meu avô. — Tretas... Raspou ao de leve nas nossas caras e voltou para o mar. Só disse um até amanhã bem-disposto. Podem imaginar como nos sentimos. Pensámos que eíe não ia aparecer mais. Jantámos tão tristes que a Joana até nos poupou e não embirrou nem um bocadinho. Não falámos durante o resto da noite. Os meus pais ficaram preocupados, mas não perguntaram nada. Quando nos deitámos, fiquei a olhar para a cama do Fish. Estava connosco há muito pouco tempo, mas já lhe sentíamos a falta. 40

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Só ao fim do dia fui, sozinho, até à praia. O meu avô tinha ficado no quarto a descansar. Veio outra vez a saudade do Fish. Senti-me muito triste. A cada onda que

VIII

rebentava, eu lembrava-me do tamanho dele. Já estaria tão longe que eu nunca mais o iria ver. A corrente em S. Pedro de Moei é forte e tinha-o arrastado para longe,

Os dois dias que se seguiram foram passados no mar,

pensava eu. Sim, porque eu pensava, para me diminuir a

a mergulhar e a procurar o Fish. O meu avô quase não

tristeza, que o Fish tinha querido voltar, mas que o mar

toma banho, aliás nem costuma ir à praia, mas também

o levara.

ajudou um bocadinho. Parecíamos doidos, sempre na

Na praia estava outro miúdo com um ar tão desolado

água. Quando eu já estava fora de pé, gritava pelo Fish,

como eu. Por momentos, até pensei que devíamos sofrer

mas ele nunca me respondeu.

do mesmo mal, imaginem a parvoíce. Ele vagueava pelo

À noite, ficávamos tão tristes que eu até sentia um nó

meio das pessoas, ninguém olhava para ele, tudo um

na garganta. A cama dele continuava no meio das nos-

pouco estranho. Parecia que andava à procura de qual-

sas, vazia. O meu pai fazia anos no domingo seguinte. Às escon-

quer coisa atrás das costas das pessoas. Rapidamente tro-

didas, preparámos um bolo de anos, combinámos com

doido varrido!

toda a gente que já conhecíamos uma festa surpresa. O meu pai estava a leste de tudo isto. Demos-lhe a prenda de aniversário logo de manhã —

quei o meu sentimento de pena por outro bem pior — é Meti-me a caminho outra vez para cima. Só que, quando me dirigia para o hotel, senti que estava alguém

uns binóculos que ele queria havia imenso tempo. Ficou

atrás de mim. Virei-me várias vezes de repente para surpreender o perseguidor, mas nada. Apenas uma sen-

na varanda do hotel durante toda a manhã, entusiasmado

sação estranha de medo, como se me pudesse acontecer

com tudo o que conseguia ver.

qualquer coisa. Ainda pensei que fosse o Fish, mas não o

Confesso que durante a festa me esqueci do Fish e fiquei

via. A sensação de medo ia e vinha, como naqueles dias

mais bem-disposto. Quando se tem doze anos, todas as

em que estamos preocupados com qualquer coisa muito

pessoas acham que nós temos amuos próprios, desculpam

grave. Eu virava-me para trás e a sensação desaparecia.

o isolamento, justificam tudo com a nossa idade. Mas o domingo passou depressa e andei mais ou menos distraído.

Comecei a andar mais depressa, estava a ficar mesmo incomodado.

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Entrei no hotel. Os meus pais estavam a mostrar os binóculos a toda a gente que tivesse paciência para os aturar. Aquele medo estranho desapareceu. A Joana estava

— Foi, Fish? Que grande atrevido! — Eu estava aflito — desculpou-se o Fish.

à conversa com a Bia, uma miúda da idade dela. Pensei

— Aflito porquê? Eu é que vinha aflito a subir da praia. Sentia assim uma sensação tão estranha... de medo... até

que já era suficiente ter de aturar a minha irmã, duas

me arrepiava!

iguais é que não. Preferi ir para perto dos meus pais. Ao

— Pois, o medo — disse o Fish.

fim de um grande bocado, consegui pegar nos binóculos

— Como é que sabes?

e tentar ver os pássaros que o meu pai inventava em

— Nada... É uma coisa que eu... Uma parvoíce.

cada ramo. E foi aí que o safado apareceu.

Então contou que tinha perdido a noção do tempo a nadar. Tinha percebido que havia noites, mas estava

- Fish?! — O que foi que viste? — perguntou o meu pai.

tão feliz que não saía nunca a tempo de voltar connosco

— O peixe — disse estupidamente.

devia sair do mar. Mas teve medo de que nos tivéssemos

— Veem-se daqui? Tirou-me os binóculos e começou a espreitar. Nem lhe

esquecido dele e veio atrás de mim durante toda a subida

disse que eu não tinha visto nada. Cheguei ao corredor pronto para qualquer coisa do género beijos, abraços, lágrimas. Mas ele não me

para o hotel. Naquele dia, ele tinha-me visto e achou que

até ao hotel. Aqui calou-se. Não me pareceu que estivesse a contar a verdade toda. — Eras tu que vinhas atrás de mim? O Fish hesitou. Estranhei. O meu avô também ficou um pouco desconfiado.

deu tempo. — Vem depressa ao quarto.

— Era eu, pois, parece que sim...

— Ao quarto? Porquê? O meu avô nem queria acreditar no que via. Dei-

— E mais quem?

xou-o roçar-se na cara, segurou-o nas mãos, uma festa

— Mais quem?! Não sei de nada!!! Esta última frase foi dita um bocadinho aos gritos. Achei melhor não insistir naquele momento, mas que

pegada. — Encontraram-se na praia, foi? — Não. Não o vi. Só nos binóculos.

havia coisa, havia. Nessa noite, custou-me dormir. Ele estava ali no

— Nos binóculos?

meio das nossas camas, já não ia desaparecer. Mas

— Pôs-se a dizer-me adeus da ponta dos binóculos.

sobretudo, estava a tentar imaginar o que seria que

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ele estava a esconder. Ele dormia que nem uma pedra e estava a fazer um concurso de ressonamento com o meu avô. A certa altura, levantei-me e fui à casa de banho. Não acendi a luz para não os incomodar. Foi então que a tal sensação de medo voltou. Parecia que tomava conta de mim, que me obrigava a estar aflito. Acendi a luz de repente, convencido de que ia encontrar qualquer coisa. Só vi uma sombra a desaparecer pela janela aberta. A coisa mais estranha era que a janela só tinha um palmo de tamanho. Nada poderia ter saído por ali! Deitei-me com o coração aos pulos. O sono, esse tinha feito as malas! Notei que o Fish também estava com um sono pouco tranquilo. Estava a esconder-me qualquer coisa. Mas lá parar de ressonar, é que não parava. Nem ele, nem o meu avô! Acordaram os dois quase às onze e meia. — Ficaste sem pequeno-almoço, avô. — Não tem importância, almoço melhor. — E tu, Fish? Que dorminhoco! — Foi dos dias no mar. Não preguei olho. — Nunca dormiste? Ficou com cara de desculpa esfarrapada e atirou: — Tinha medo de ser arrastado pela corrente. — E fazias o quê? — Ficava com os outros. — Os outros?

— Sim, os outros sonhos. — Não comeces, Fish... — Não acreditas? — perguntou ele com os olhos muito abertos. — Julgas que eu ia cair numa dessas? -— Parece que sim — rematou ele.

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— Ele é giríssimo! Já ontem tinha estado a vê-lo. É divertido, não é? Tinha virado os olhos verdes para mim, com uma

IX

expressão amigável, bem diferente da minha, que devia ser cara de peixe vermelho. Eu não sabia o que dizer. Ele riu-se. Estendeu-me a mão.

A seguir ao almoço, fui para a praia com o Fish. Estava

— Chamo-me... bem... chamo-me Hugo.

descansado, porque ele prometera não fugir nem fazer par-

Apertei-lhe a mão e fechei a boca, que estava escancarada.

voíces, se bem que isso não me deixasse cem por cento se-

Ele não estava nada incomodado com o meu ar pasmado.

guro. O avô e os meus pais ainda ficaram naquela conversa

— Sonhaste-o há quanto tempo? — disparou sem avisar.

mole que se cola ao fundo das chávenas de café. A minha

— Bem... acho que foi... há uma semana e meia, talvez.

irmã veio comigo, mas não nos atrapalhámos um ao outro.

— É muito bem-disposto, não é?

O Fish voltou a brincar nas ondas e até foi engraçado

— Sim, e fala de mais, também.

fazer concursos de mergulho com ele. A certa altura, fiquei

— Foste tu que o sonhaste assim.

cansado e fui sentar-me na areia, sem tirar os olhos do meu

Fiquei calado outra vez. Primeiro, porque era verdade.

sonho azul. De repente, senti que alguém se sentara muito

Depois, porque eu também devia estar a ficar maluco, pois

perto — era o miúdo maluco que eu tinha visto no dia ante-

estava a falar com ele sobre uma coisa que ele não devia

rior. Não se mexeu quando olhei para ele. Achei estranho,

ver. Foi aí que chegou a minha irmã. Quase gritei, quando

já que se tinha sentado mesmo ao pé de mim. Desliguei.

a vi sentar-se em cima do Hugo, que se escapou a tempo

Não me fazia diferença ele estar ali. O Fish estava a fazer

e ficou de pé ao lado dela, à espera, de braços cruzados. — A estúpida da Bia arranjou um namorado.

montes de disparates e eu estava a divertir-me à grande. A certa altura, o Fish deu um mortal de volta e meia

— Tu... não viste o miúdo?

e caiu com um chapão violento. Eu ia desatando a rir,

— Nem sei quem é o parvalhão! Eu bem disse aos pais

não fosse ter ficado gelado — quem se riu a bom rir foi o

que devíamos ter vindo mais cedo. Uma aposta em como

outro miúdo. Olhei para ele aterrorizado. Ele via o meu

era comigo que ele ficava.

sonho?! Quando olhei para o Fish, ele estava com um ar

Era evidente — ela não o tinha visto!

comprometido e fez-me sinal de que ia nadar um pouco.

— Agora andam por aí de mão dada e eu que fique a

Naquela atrapalhação, virei-me para o miúdo, sem fala. 48

olhar para o mar! Estúpida! 49


Levantou-se de repente, sacudiu a areia das pernas e começou a andar à borda de água. Ainda pensei dizer-ihe qualquer coisa simpática, mas não tive tempo. Era tudo muito rápido para eu conseguir reagir. O Hugo voltou a sentar-se. — A minha irmã não te viu. — Claro que não. Também não viu o peixe azul, pois não? Como é que lhe chamas? — Fish.

- Pois, a mãe deve ter-lhe enchido a cabeça sobre os perigos de nadar ao pé dos homens, mas ele viu alguém parecido comigo e sonhou-me, não muito malvado, pelos vistos. — Espera, diz-me uma coisa. Metade das pessoas que eu vejo são sonhos de outras pessoas? Estou a começar a ficar baralhado! — Não!! Que disparate! Que eu tenha visto cá fora... — Cá fora?

— Fixe? — Em inglês, Fish, percebes? É a brincar.

— Sim, fora do mundo dos sonhos...

— Giro. Eu dei-me um nome a mim próprio, porque

— Posso acabar?

o desgraçado que me sonhou não fala.

— Do mundo dos sonhos?! — gritei. — Desculpa...

Só aí é que percebi, irra!, sou mesmo burro!

— Devem estar uns três ou quatro soltos.

— Tu és um sonho!

— Soltos...

— Claro! O que é que querias que eu fosse?

— Sim. Não mais. Espero eu...!

— E quem é que te sonhou? Não está aqui perto?

Ia perguntar mais coisas, mas a Joana voltou. Agarrou-

— Não, anda por aí no mar alto. Eu nadei até aqui porque ele não era grande companhia, coitado.

-me por um braço e levantou-me. Estava decidida a voltar ao hotel e não queria ir sozinha. O Hugo fez-me sinal de

— Era o quê? — Estás a ver o tamanho do Fish? Imagina o tamanho

que depois falaríamos e começou a andar pelo meio das

do que me sonhou! Fez-me um gesto a dizer que o Fish tinha o tamanho

da Joana, a esconder-se do Hugo, calculo. Caminhámos

que tinha em relação a mim e que ele teria o equivalente

contente. Devia estar a preparar alguma!

em relação ao que o sonhou. Fiquei assustado! — Não faças essa cara! Estava a brincar, não é assim

Assim que pude, fui procurar o meu avô. O Fish foi logo meter-se no bolso da camisa dele.

tão grande — é um cachalote bebé, nada de especial. — Que te sonhou...

pessoas. O Fish, esse estava mesmo no meio dos cabelos em silêncio. Mas a minha irmã estava um bocadinho mais

— Tão cedo?! — A Joana está com a bolha...

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— Bom, temos de montar um sistema de segurança antimísseis. Rimo-nos. Comecei a contar-lhe o que tinha aconte-

-Joana? O que é que estás aqui a fazer?! - Daniel? Onde é que eu estou? - Tonta, estás no corredor do hoteí. Não me digas

cido na praia. Era estranho falar daquilo que tinha aca-

que estás a ficar sonâmbula! Só faltava mais essa...!

bado de viver, mas ajudava a dar um sentido às coisas.

- Bem, estava com um sonho tão confuso, fiquei tão baralhada! Vou deitar-me.

Ele ficou um bocado desconfiado, mas como o Fish estava muito comprometido, começou a acreditar. A certa altura, chamou-o para fora do bolso. — Tu já o tinhas visto?

- Não é esse!!! O teu quarto é o vinte e quatro! — Ah... Boa noite. Fiquei a olhar para a porta. Ouvi o barulho dela a

— Parece que sim...

chocar com a cama, sinal de que estava outra vez nor-

— E achas que também é um sonho?

mal. O meu avô apareceu à porta. Tinha tido um sonho estranhíssimo, muito confuso...

— Ai é, parece que sim! — Como é que sabes? — perguntei eu. — Não sei como é que sei, só sei que sei que é um sonho porque sinto que sei que é, não é? Já o tinha visto noutras alturas. Suspirámos os dois. Tinha sido uma frase monumental! O meu avô ficou sem resposta. Combinámos que iríamos ambos falar com o Hugo no dia seguinte. Eu achei que devíamos saber mais porque me pareceu que havia alguma coisa de estranho no comportamento dele, e mesmo no do Fish. A noite não foi lá muito descansada. Tive um sonho tão baralhado que acordei de pé, a meio do quarto, com a sensação de que estava qualquer coisa a chamar-me. Fui até à porta da casa de banho, mas não havia lá nada. Abri a porta do quarto e vi a minha irmã, espantada, no meio do corredor. 52

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bolso quando já estávamos quase ao pé do mar. Lá estava

Quando nos viu, sorriu. O meu avô não o viu logo. Depois de tentar ver na direção para onde eu olhava, começou a ficar com uma cara pasmada e estendeu-lhe a mão. Dei-lhe uma cotovelada para que percebesse que estávamos em público, e ele teve um ataque de tosse muito bem encenado. O Fish foi roçar-se na cara do Hugo. Achei estranho. Pareciam conhecer-se bastante bem, mas na véspera o Fish tinha estado tão comprometido... Porém, eu não quis perguntar nada. Estava muito confuso. Sentámo-nos todos nas rochas, ao fundo da praia. O Hugo sentou-se no meio de nós. Facilitava a conversa, claro está. Perguntou por que é que o meu avô o via. E eu fiquei sem saber o que dizer. — Acho que é porque acredita que estás aqui... — Pois é. Mas ao princípio... — Com o Fish foi a mesma coisa. Só o vi depois de imaginar como seria e depois de sentir a cauda dele a roçar-me nos dedos. — Deve ser assim, deve. É tudo novo para mim. E o Hugo começou a contar o que fizera desde que tinha ficado cá fora. A praia era o que o divertia mais, porque ouvia conversas, pregava partidas aos miúdos mais pequenos, um bocadinho de tudo. Mas depois calou-se. O Fish foi pousar no ombro dele. — Passou-se alguma coisa esquisita que vos permitiu estarem aqui, não foi? O Hugo e o Fish olharam um para o outro. Pareciam estar a comunicar. Depois, exatamente ao mesmo tempo,

o Hugo, sentado no meio das pessoas.

viraram-se para mim.

x Na manhã seguinte, o pequeno-almoço não correu nada bem. A Joana estava muito irritada. Dizia que eu estava a inventar aquela cena de a ter encontrado sonâmbula; eu fiquei furioso e, se não fosse o meu avô, tínhamos acabado aos gritos. Mas ele tinha visto que eu estava no corredor a ajudá-la e a minha querida irmã não é assim tão estúpida que diga que o avô também está a inventar. Valeu-nos um ralhão valente do pai, um trocar de olhos com a minha mãe, que ficou envergonhada por estarmos a discutir na sala do hotel; para não falar no desgraçado do Fish, que ficou entalado entre dois pacotes de manteiga com que o meu pai estava a brincar para disfarçar o nervoso. Eu e o avô estávamos com vontade de rir, por causa do Fish, claro, contudo a Joana achou que era por causa dela e jurou vingança. Mas era cómico o ar do Fish a ser espremido entre os dois pacotes e os dedos do meu pai. Não sei como foi que ele não o sentiu ali no meio. Assim que pôde, veio meter-se no meu bolso e já não saiu de lá — só na praia. O meu avô vai pouco à praia. Mas naquele dia tinha de ser, ele tinha de conhecer o Hugo. O Fish só saiu do

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— Se calhar é melhor explicar o que se passa. Talvez tenhas uma ideia de como se resolve o problema. — Olhou para o Fish, a ganhar coragem. — Bom... É assim: nós não costumamos andar por aqui desta maneira. Temos o nosso mundo, vamos visitando o sono das pessoas nas

Mas porque é que eu estou a dizer estas coisas?, pensei. Eu nem sabia bem se era assim. — Foi uma sensação, bem, foram várias... — Uma de medo — disse o Fish com um olhar decidido para o Hugo, como se isso o preocupasse.

formas que elas querem, até mudamos muitas vezes de

— Uma sensação de medo... — repetiu o Hugo.

forma. Eu acho divertido. Olhei para o Fish. Não conseguia imaginá-lo a ser mais

— Eu não estou a acompanhar-vos nesta conversa —

nada. Ele riu-se, com aquela cara de peixe azul.

disse o avô. — Estão a falar de sonhos? — Isto é assim. Há sonhos que estão cá fora em for-

— Eu gostei muito de ser avião — disse o Fish.

mas, outros em sensações. Os das sensações são mais

— Já foste um avião?!

complicados... não se vêem.

— Fui. Andei por aí, foi fantástico! Mas também já

Raciocinei depressa.

fui ratazana e achei horrível. Não sabia onde é que se

— A sensação de medo, o sonho confuso...

punham as patas, atrapalhei-me muito.

— Exatamente. Esses dois estão de certeza cá fora.

— O meu sonho Fish... Bem, que esquisito! Parece que tive um sonho em segunda mão!

E a sensação de medo não é nada simpática! — A quem o dizes... Lembrei-me do que tinha sentido no caminho para

— Parece que sim... Rimo-nos, mas eu estava um bocado preocupado.

o hotel. E no quarto, quando vi aquela sombra. E o sonho

Não ia ficar com o meu peixe azul, isso era muito

confuso?, que me atacou a mim, à minha irmã e ao meu

claro. O Hugo parecia estar à espera que nos calássemos

avô ao mesmo tempo?

para continuar a falar. E assim fez, quando olhámos

— Dizes que estão cá fora, não é?

para ele.

— Sim, saíram do mundo dos sonhos.

— Eu fiquei preso, se assim se pode dizer, nesta figura de rapaz. O Fish na forma de peixe. Os outros... — Há mais por aí, não há? — Já os viste? — perguntou, ansioso, o Hugo. — Não, quer dizer, não sei bem como hei de dizer. Já os senti.

— Porque quiseram, não? O Fish disse que tinha querido sair. — Os que saímos, fizemo-lo porque não resistimos à tentação... a passagem estava aberta — explicou o Hugo. — Há sempre uma passagem aberta para sair do mundo dos sonhos? — perguntou o meu avô.

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— Não. Nunca há. Isto é tudo uma estupidez. E um

guimos explicar o que se passa... Espero que os outros

perigo. Não sei como é que havemos de fazer! O Hugo contou então que, no caso dele, tinha sentido

também estejam presos a este sítio. Mas tenho a certeza de que a porta é aqui.

que podia sair naquela noite. Todos os sonhos sabem

Ficámos calados. Eu e o avô devíamos estar a pensar

que há essa vontade de ver como é o mundo real, mas

o mesmo. Se tinham acesso à porta, era entrar e pronto.

nunca ninguém realmente fugiu. A sensação de poder

Claro que nem eu nem ele podíamos gostar da ideia.

sair foi qualquer coisa muito certa e o Hugo não hesi-

Perder o Fish parecia-nos insuportável.

tou. Esgueirou-se do sono do cachalote como um miúdo guloso a deitar mão a um chocolate. Agora estava cá fora.

— É preciso levar os outros... — disse o avô. — Parece que sim...

Sabia que podia voltar a entrar, sentia que a porta estava

— E fechar a comunicação — rematei. Estava a perce-

perto, que era fácil regressar. Mas preocupava-o saber que o acesso ao exterior estava aberto.

ber mesmo o que não queria. Nós tínhamos acesso ao mundo dos sonhos nos nossos

— Agora que dizes que tiveste a sensação de medo e o so-

sonhos. Eles tinham acesso à nossa realidade dentro do

nho confuso, tenho a certeza de que estamos cá fora os qua-

nosso sono. Mais que isto parecia não ser aconselhável.

tro. Não sei se haverá mais. Tenho passado dias à procura.

— Não sei como os vamos atrair para a passagem... —

Fiquei com cara de parvo.

pensei eu, já a magicar que podíamos agarrar nos quatro

— Mas só procuraste aqui, em São Pedro de Moei.

sonhos e levá-los de volta. Mas tudo me pareceu tão

O Fish fugiu, saiu (sei lá o que é que fez!) em Lisboa.

estranho!

— Mas a passagem é aqui perto, não sei porque é que

— Isso é impossível. E preciso remediar o mal lá den-

saí em Lisboa — disse o Fish. — Estavas a sonhar com o

tro... perceber quem nos aliciou, quem nos deixou sair,

Oceanário, mas também estavas a sonhar com as férias,

e fechar a passagem!

talvez tenha sido por isso.

Fácil, pensei com um sorriso irónico. Nada mais fácil,

— Quer dizer que a porta aberta é aqui, neste sítio? — perguntou o avô.

não havia dúvida. Era o mesmo que acertar na lotaria! Mas a conversa foi interrompida. A Joana e a Bia apro-

— Parece que sim. — Mas o Hugo fugiu no alto-mar, ou não?

ximaram-se de nós com os olhos muito abertos.

— Sim, fugi, mas sei que estou preso a esta zona, não

A sério, eu sinto qualquer coisa. O pai e a mãe, onde é

sei porquê. Como nunca nos aconteceu isto, não conse58

— Avô, Daniel, há qualquer coisa que não está bem. que eles estão? 59


— O pai e a mãe?! Estão ali, no toldo. — Ah!

Aquela sua atitude era muito diferente da que ele costumava aparentar — era um homem risonho, confiante,

— O que é, filha?

amável. Não era assim — atrapalhado, aflito, inseguro.

— Não sei, foi um pressentimento... — Uma parvoíce — disse eu, a fazer a cena que cos-

Mas o Hugo segurou-me no braço e disse: — É a insegurança a atacar! Ela também se escapou!

tumo fazer. Mas nem a Joana nem a Bia responderam à

É uma sensação quase tão má como a do medo! Até pode

provocação. Afastaram-se de nós e foram sentar-se ao pé dos meus pais, com a mesma conversa. O Hugo e o Fish

ter sido ela a atacar a tua irmã hoje à tarde.

estavam com um ar preocupado.

acordou daquele transe e encarou-me, não vendo o Hugo.

— Foi a sensação de medo que atacou... — Pois foi. Essa não devia mesmo ficar cá fora. Mas não sei como é que havemos de fazer. — O Hugo calou-se. Olhou para o Fish. — Sinto que nos estão a chamar de volta.

E foi ter com o homem e olhou-o bem nos olhos. Ele — Ai filho, acho que estava sonâmbulo! O que eu fui sonhar! Deu meia-volta e entrou no quarto dele. Nós voltámos para o meu. O Fish estava muito nervoso.

— Parece que sim.

— Temos de agir depressa! Se eles fogem desta zona...

Nessa noite, achámos melhor que o Hugo dormisse no

— Pois é! Temos de ver o que podemos fazer, e de-

nosso quarto. O Fish estava nervoso e o Hugo parecia cada vez mais preocupado — queria voltar para o mundo

pressa. Vens comigo? Olhei para o Hugo sem querer acreditar. Era para mim

dos sonhos mas tendo a certeza de que voltavam todos os

aquela pergunta? Eu? Ir ao mundo dos sonhos? E depois?

que tinham saído.

O meu avô acordou nessa altura. Viu-nos assim e sen-

Ficámos a conversar pela noite dentro. O meu avô acabou por adormecer e o Fish aninhou-se na almofada dele e adormeceu também. Recomeçaram o seu duelo de ressona me n to. Foi então que ouvimos um estrondo no corredor. Eu

tou-se na cama. Sem desviar os olhos do Hugo, eu disse-Ihe que tinha de os ir ajudar. Ele ficou calado. — E podes voltar? — Eu prometo-lhe que o Daniel volta para casa intacto. E, estranhamente, o meu avô disse que sim.

e o Hugo precipitámo-nos para a porta. O Fish acordou também e veio ter connosco. Estava um homem de meia-idade, que eu já vira ali no hotel noutros dias, muito aflito, muito atrapalhado, de pijama no meio do corredor. 60

61


do meu avô muita apreensão e quase desisti. Mas tinha de ser! Vi-o fazer um monte na cama com as almofadas, para que parecesse que eu estava ali a dormir. Que avô

XI

fantástico! Por momentos achei que ambos éramos loucos. Ele deu-me um beijo na testa e empurrou-me para a porta. Era preciso ir.

Na noite seguinte, depois de um dia sem fim, o jantar

Sair do hotel foi fácil porque a Joana estava muito

prolongou-se até já não se poder aguentar. O motivo era

entretida a desafiar a Bia. Coitados deles! O caminho até

simples — a Joana tinha um namorado que exibia para

ao pinhal estava livre. Continuámos em silêncio. O Fish

a mesa da Bia e a minha mãe estava muito curiosa

foi sempre dentro do bolso da minha camisa.

para saber tudo sobre ele. Esta minha irmã sabe escolher

Numa parte muito escura do pinhal, o Hugo parou

os namorados nas melhores alturas! Quando eu disse que

de repente. Eu também tinha sentido algo estranho:

me ia deitar lançou-me uns olhinhos cruéis.

a sensação de medo apoderou-se de nós. Trocámos

— O maninho está com sono... — disse com voz

olhares sem dizer nada. Talvez ela nos seguisse e ficasse no mundo dos sonhos. De qualquer forma, ainda fal-

de sonsa. — Quero ver um filme — menti.

tariam as outras duas sensações — a de confusão e a de

— E porque é que não o vês connosco?

insegurança.

Que rica ideia, santo Deus!

Foi então que o Hugo fez sinal para que eu fechasse os

— Vou para o quarto.

olhos. Fiquei primeiro muito tenso. Depois, aos poucos,

— Eu fico aqui, se quiseres — disse o avô a picá-la.

fiquei calmo. A sensação de medo fugira. Quando abri os

— Não é preciso. Tenho companhia.

olhos, estava do outro lado. Tudo o que estava à minha

— Bom, eu vou.

volta era, bem, era de sonho! Numa azáfama impres-

— Boa noite a todos — disse o meu avô, a encobrir

sionante, passavam por nós pessoas alegres, casamentos, funerais, sensações de mistério, vontade de aventura, uma

a minha falta de jeito. Os meus pais foram dar uma volta e a Joana ficou com o namorado preso pela mão para que não fugisse. O Hugo e o Fish estavam à nossa espera. Ainda pensei em levar um casaco, mas achei uma ideia tola. Vi nos olhos 62

tristeza profunda, tudo o que possam imaginar. O Hugo sorriu ao ver-me assim pasmado. O Fish não saía da minha camisa, parecia também pouco à vontade. Só muito mais tarde percebi porquê. 63


sem limites. — Estás a ver aquela porta? Se estava! Era uma porta que dava para uma sala sem paredes, um total disparate. Do outro lado, estava um grupo de velhos a discutir. A porta abriu-se de repente. Fomos sugados para dentro e ela fechou-se com estrondo.

O Hugo então disse-me baixinho: — Este é o Conselho dos Sonhos. Aqui, pouco mais se faz do que discutir. À esquerda está o representante dos sonhos de desafio, de aventura. Ao lado, está o dos sonhos confusos. Aquele que não está a discutir é o dos sonhos felizes. Aquele carrancudo é o dos medos. — Então esse já cá está dentro. — Não, aquele está sempre ali. Foi um dos medos que fugiu. Aquele ali, que não para quieto, é o das sensações

Todos se calaram. Olharam para nós com desconfiança. O silêncio durou uma eternidade. Eu sentia que os olhos deles me examinavam por dentro. O Fish tremia dentro do meu bolso. O Hugo deu-me a mão. Soube-me

físicas, como cair, fazer chichi na cama, essas coisas. — Conheço o género... E aquele? É um bocado triste... — E. Triste e depressivo. A sorte é que nem sempre se dá ao trabalho de enviar sonhos.

bem. Foi então que começaram todos a falar exaltados. Todos apontavam para mim, mas eu não conseguia perceber nada do que diziam. De repente, o Hugo deu

— E aquele ali? Está com um ar... — E o que representa os sonhos de precipitações — acaba sempre por ter imensos remorsos, fica todo cheio

um berro. — Parem! — Calaram-se. — Este humano veio aqui

de ansiedade. — Acho que a minha irmã tem uns desses... — É capaz. Olha ali o fantasista. Graças a ele, houve

Quando passou por mim o esticão (como se fôssemos cair), deu-me vontade de rir — não podia cair, estava, de certa forma, a flutuar. Andávamos sem chão, sem paredes,

para nos ajudar. Depois de um novo silêncio, desmancharam-se todos a rir, como se o Hugo tivesse contado a melhor anedota dos últimos tempos. Claro que não gostámos. O Fish veio cá

imensa gente que descobriu coisas fantásticas. Outros nem por isso... — E o do fim?

para fora. Provocou um súbito silêncio. — Tu foste o primeiro! — gritou um deles, de dedo apontado para o Fish. Assustei-me, mas a mão do Hugo apertou a minha. Era preciso firmeza. O Fish pousou no meu ombro. A discussão tinha recomeçado.

— É o mais complexo de todos... é o representante dos sonhos dentro dos sonhos. Quase não se consegue comunicar com ele. Mas espera. O precipitado vai a sair. Algo me diz que ele está comprometido... — Deve ser do que pensa. — Não sei... Vamos embora.

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— E eles?! — Ora, nem dão por nada. O que é preciso é ter motivos para discutir, para manter vivo o conselho. Mas não servem de muito. Como vês, nem conseguem mandar nos

XII

seus próprios sonhos. — Tu e o Fish eram de qual? — O Fish veio dos confusos, eu sou dos de fantasia.

Resolvemos montar guarda a tudo. A princípio, achei

— Que giro! Pensei que eram do mesmo clube.

que era uma missão impossível, mas aos poucos, tudo

Preparámo-nos para sair. Mas o representante do medo

me pareceu encaixar nos vários tipos de sonhos e come-

parou-nos. — Exijo uma explicação!

cei a perceber os seus atos. Consegui reconhecer vários sonhos que conheço bem de mais. Passaram por nós

—• Não a temos... — disse o Hugo.

sonhos confusos, desde imagens desfocadas e deslocadas

— Quem vos deixou sair?

umas em relação às outras, até portas que se abriam

— Não sabemos.

ao contrário para fazer, imaginem!, correr água de uma

— Como se atreveram a trazer um humano?!

torneira! Passou também um sonho de aventura muito

— É uma ajuda... A discussão voltou a estalar. Senti que o Hugo me

atarefado, com um mapa na mão, uma lanterna e várias peripécias a persegui-lo, prontas para lhe dificultarem

puxava e saímos dali, o que no fundo é o mesmo que dizer

a vida. Vimos igualmente sonhos fantásticos e sonhos

que deslizámos para longe.

terrivelmente tristes, que me deixaram também muito apreensivo. Mas nada de suspeito (se é que não era tudo extraordinariamente suspeito!), nada que pudesse indicar onde estava a fuga e quem era o responsável. Quando o conselho se dissolveu, apareceu no centro desse espaço uma estátua linda. Era a de Morfeu, o deus dos sonhos. Ficava ali como se uma figura de pedra pudesse guardar alguma coisa. Vim a saber que era uma réplica de uma estátua que um sonho uma vez vira e se deliciara a reproduzir. 66

67


Decidimos seguir cada um dos membros do conselho. Mas, logo que começámos a seguir o representante dos sonhos de medo, percebemos que nos estávamos a tor-

Tive a noção de que sair dali era muito difícil. Olhei para o Hugo. O que conhecia daquele mundo não parecia ajudá-lo muito. Foi nessa altura que o Fish nos gritou

turar em vão. Estar perto dele foi igual a ficarmos quase

para que o seguíssemos. Foi a pior vertigem que já tive.

entalados entre duas paredes de pregos, vermos pessoas

Caímos de uma altura descomunal até aterrar em sítio

a sofrer sem poder fazer nada, sentirmos uma sensação

nenhum, com as pernas a tremer — ele tinha-nos arras-

muito desconfortável de medo constante.

tado para a sensação de cair, para nos livrar do medo!

Eu disse ao Hugo que assim não íamos a lado nenhum. Era preciso procurar o ponto por onde saíam, isso sim. Talvez eles se lembrassem. Mas estávamos presos no medo. O corpo tolhido, o raciocínio pouco claro, os arrepios a atacarem-nos. O Fish fugiu para dentro do meu bolso e eu só lhe sentia o coração a bater rapidamente. A mão do Hugo começava a perder a força. Agarrei-a firmemente. Tínhamos de continuar juntos. Agora que conto tudo isto, percebo como é terrível aquele tipo de sonhos. O medo é tão desgastante! Parecemos uns náufragos a querer nadar sem conseguir! As forças abandonam-nos, deixam-nos sozinhos com os pensamentos todos cruzados... Nessa altura, apareceu à nossa frente uma baleia gigante a perseguir uma rapariga que nadava em vão. Percebi que era a minha irmã, mas não me adiantou nada saber que era um sonho. O medo tomara conta de mim e gritei para que ela fugisse. O Fish, ao perceber que era o sonho do Hugo e a minha memória a serem usadas, nadou pelo ar e fustigou-nos a cara com a barbatana. Só parou quando voltámos a nós e o sonho se dissipou. Estávamos exaustos. 68

69


— O que é que estás aqui a fazer? Como é que entraste? O Hugo chegou-se para lhe explicar, mas ela fez-lhe

XIII

sinal para que parasse. Era a mim que ela queria ouvir falar. Lá comecei a explicar o que se tinha passado. Ela mantinha-se calada, sempre à espera de mais informações.

— Assim não vamos longe... — Pois não. Fish, tens alguma ideia brilhante?

Quando me calei, estendeu-me a mão. — Chamo-me Helena. Estou de momento sem ocupa-

— Parece que sim...

ção. Considerem-me do vosso grupo.

— A sério?! Ficámos os dois espantados a olhar para ele. Tinha um

Apertei-lhe a mão um pouco surpreendido. Ela cumprimentou a seguir o Hugo e fez uma festa ao Fish.

sorriso tonto nos lábios e um ar satisfeito. — Voltamos para o hotel e deixamos tudo como está. Que tal? Sentei-me no vazio, sem forças. O Fish perdeu o sor-

— A ti... já te conheço, não? Não eras uma ratazana? — Parece que sim... — Exato, a ratazana «Parece que sim» dos sonhos confusos. E agora chamas-te como?

riso. O Hugo ficou a olhar para ele. — Tu sabes o perigo que é! Tu vês o que o medo faz

— Fish.

às pessoas! Como é que podes desistir?! Estás doido?

Eu ia a abrir a boca para explicar, mas o sorriso dela

— Fixe!

— Se vais dizer «parece que sim», Fish, não digas, por

a dizer-me «quem julgas que sou para não perceber o

favor — avisei. E ele calou-se. Ia mesmo! Passou então por nós uma rapariga vestida como o

trocadilho» deixou-me sem iniciativa. Perguntámos-lhe se tinha dado por alguma coisa estranha. Helena sabia

Indiana Jones. Era pouco mais velha que eu e tinha um

apenas que lhe faltava um amigo, um sonho confuso que por vezes se aconselhava com ela.

ar muito dinâmico. Pela vestimenta, percebi que só podia

— Já não aparece há três dias. Penso que está lá fora.

vir de alguma aventura. Parou à minha frente e pôs as

— Está. Atacou várias pessoas no hotel.

mãos nas ancas. — Tu não és um sonho.

— Bom, ele não ataca, é assim mesmo, não faz por mal. Mas temos de agir. Vamos procurar a saída. Vamos.

— Pois não. Sou uma pessoa. 70

— Pois — disse eu a sentir-me bastante parvo. 71


A Helena, com um ar decidido, começou a andar numa dada direçâo. O Hugo perguntou-lhe se ela tinha escolhido aquele percurso por alguma razão, e a resposta foi dada com um sorriso bem-disposto. — Não faço ideia por onde começar. Portanto, por

Mas era preciso continuar. Pensei se a noite estaria muito avançada lá fora, se o rneu avô estaria aflito, se lhe faria mal tanta aflição. Depois, logo de seguida, imaginei a minha mãe a descobrir tudo e a chorar por mim. Comecei a sentir-me mesmo infeliz. Foi então que

aqui deve ser ótímo. O Fish foi pousar no ombro dela. Senti uma ponti-

olhei para os olhos do Hugo e da Helena — estavam os

nha de ciúme, mas percebi que a Helena lhe inspirava

e desalentado!

dois quase a chorar. Tínhamos entrado num sonho triste

confiança. É engraçado porque, agora que penso nisso,

O Fish era o único a manter alguma compostura.

ela não estava segura de nada e, no entanto, era a mais

Falava sem parar para nos animar, mas a sensação de

confiante de todos nós. E isso ajudava-nos imenso. Ela

que tudo estava a correr mal tinha tomado conta de nós.

simplesmente acreditava que éramos capazes de desem-

E, no preciso momento em que íamos desistir da busca,

penhar aquela tarefa. E isso era meio caminho andado...

o Fish desatou aos gritos:

A certa altura, o Hugo sentiu uma enorme vontade de sair do mundo dos sonhos, como no dia em que fugira.

— Lá vai o representante dos sonhos de precipitação! Está com cara de quem vai asneirar.

Ainda conseguiu dizer o que sentia antes de sermos

— Asneirar? — perguntou a Helena.

apanhados novamente num sonho de sensações físi-

— Esquece! É verdade que ele está comprometido.

cas — estávamos todos a ser levados por uma forte corrente de água que nos largou de uma grande altura. Quando aquilo parou, eu suspirei. — E todos dizem que estes esticões são porque estamos a crescer!

Temos de o seguir! — gritei. Puxei pela Helena e pelo Hugo. Mas não conseguia arrancá-los daquela depressão. O Fish também não. Só o vi nadar pelo ar e voltar acompanhado por um sujeito com cara de baralhado. Pensei que o Fish se tinha enga-

— A sério? — perguntou a Helena. — Eu não desgosto, mas fazem perder muito tempo. Hugo, vê lá se

nado na ajuda, mas não. O senhor baralhado vinha a falar com os olhos muito abertos: — E se sete vezes três são vinte e um, então vinte e

percebes o que sentes. — Já não sinto nada. Perdi o contacto assim que caí.

um pode ser um número bem-parecido. Bom, parecido

Que chatice! Estava a ser atraído para a saída!... Talvez

com outro qualquer, digo eu, como ser parecido com um

a sensação volte.

irmão gémeo, daqueles que têm um irmão igual, ou não 72

73


igual, pois pode ser falso... Falso ou falsificado, que hoje em dia há por aí muita falsificação, uma coisa terrível.

reino dos sonhos. Aí, deixámo-lo ir sem lhe falarmos. Correu como um louco e nós três seguimo-lo de perto.

Terrível mesmo como os terríveis ataques de comichão no nariz quando não podemos espirrar... Espirrar, oh,

Depois de uma longa corrida estávamos próximos do representante dos sonhos das precipitações, que tentava

espirrar...

a todo o custo fechar um rasgão no vazio, se é que isto

E continuou'assim, saltando de assunto em assunto,

faz algum sentido.

e eu sem perceber o porquê daquilo. Só quando vi que a Helena e o Hugo estavam a conseguir sorrir, é que entendi a dimensão da estratégia do Fish. A sensação depressiva foi-se dissipando, aos poucos, e quando o homenzinho se afastou, na sua conversa sem nexo, eles já estavam de novo operacionais. Fechei os olhos, respirei fundo e, com o Fish, levámo-los na direção do sonho das precipitações. — Somos mesmo parvos. É óbvio que uma asneira destas só podia vir de alguém muito precipitado — refilou o Hugo. — Bem, era tão evidente que não parecia possível, não achas? — Como ficámos a olhar para ela, a Helena continuou: — A solução mais fácil não parece ser a certa, não é? Eu costumo pensar assim. — A minha mãe diz que às vezes a solução está mesmo debaixo do nosso nariz e... Mas parei de falar porque tinha a Helena, o Hugo e o Fish a espreitarem para dentro do meu nariz. Ia explicar-lhes que não era para levar à letra o que eu dissera, mas enxotei-os e resolvi a questão. Nessa altura, o Hugo sentiu outra vez uma enorme vontade de sair do 74

75


— Mas porque é que abriste o buraco?

XIV

— Foi sem querer, acreditem, eu estava só a praticar uns golpes de força... — Golpes de força...? — perguntei eu. — E, quer dizer, eu queria fazer aquela coisa de lançar um balão de água contra a parede. Nunca pensei que

O sonho das precipitações não se apercebeu de que estávamos mesmo ao pé dele. Quando finalmente olhou para trás, deu um salto e começou a tremer. Meu Deus, como ele se parecia com qualquer criança que acaba de fazer um disparate! Os olhos dele eram um poço de remorsos. — Vamos levá-lo ao conselho! — disse a Helena com um tom agressivo.

desse nisto... — Tu nunca pensas em nada antes de fazer asneiras... — queixou-se a Helena. — Um balão de água... e fez isto...! — disse o Fish impressionado. — Eu faço sempre tudo mal... E tapou a cara a chorar baixinho. Era o seu ataque

— Não, por favor não, eu não fiz por mal...

de remorso, estava visto. Golpes de força... O desgra-

— Nunca fazes nada por mal, não é? Mas depois

çado nem parecia ter força para enxotar uma mosca. Eu

temos de aturar as tuas parvoíces! — continuou a Helena.

fiquei com pena dele. Mas não fui o único! A Helena,

Olhei para o Hugo. Eu não queria nada levá-lo ao

a nossa rapariga decidida, não aguentou. Abraçou-o e

conselho.

embalou-o, tal qual como eu faço à minha irmã quando

— O conselho não interessa, Helena — disse o Hugo, felizmente. — O que interessa é fechar este buraco. — Parece que sim...

ela chora. Achei engraçado. Mas o buraco mantinha-se aberto. O Fish enxotava os sonhos curiosos como uma lança voadora.

Teria tido vontade de rir noutra altura, mas o clima estava tão tenso que até a frase do Fish era cortante. — Eu já tentei fechá-lo, mas não consigo — disse o sonho precipitado. — E estão sempre a pedir-me para sair e eu não sei como impedi-los. Já voltaram quatro, mais vocês dois, mas há três que não voltaram! Por favor, ajudem-me! 76

Eu e o Hugo metemos mãos à obra. Talvez aproximando os dois bordos... Mas nada surtia efeito. Nem eu nem o Hugo tínhamos força ou ideias para fechar aquele rasgão. Assim que colávamos os dois lados, descolava-se tudo novamente. Nada a fazer, parecia. E era evidente que a vontade de qualquer um deles se dirigia lá para fora, como se estivesse um íman a atraí-los do outro lado. 77


Mas então a Helena levantou-se de repente. Até me assustei. — Esperem lá! Isto precisa de uma solução louca!

Tempo, pensei eu. Quanto tempo teria passado na realidade? O fantasista começou a sondar o rasgão. Passou

Louca estava ela, era bom de ver. — Louca, completamente louca.

para lá e todos julgámos o pior, mas voltou no segundo

— Era mais de alguém eficiente que precisávamos...

rolava sempre de volta do rasgão. O Fish abriu várias

— E rapidamente! Mas a Helena estava com uma expressão decidida

vezes a boca para falar, mas eu fiz-lhe sinal de que, se

e gritou: — Fantasista!! Fantasista!! Vem cá já!!

seguinte. Esperámos em silêncio, enquanto ele canta-

tivesse uma garrafinha, era aí que o metia. Precisávamos de pensar. Ele percebeu. Voltou ao estado tristo-

Olhei para o Hugo. Ele encolheu os ombros a con-

nho em que se encontrava quando ali entrámos. Agora

firmar a loucura. O desgraçado do precipitado, afogado

sabíamos os dois porque era assim — o tempo estava

nos seus remorsos, apenas parou de chorar. O Fish escon-

a acabar-se.

deu-se no meu bolso. Os gritos não paravam.

A Helena, que se mantinha ao lado do sonho que

— Fantasista!! Fantasista delirante!!!!

fungava baixinho, não tirava os olhos do seu amigo fan-

E veio um ser muito estranho, com várias geringonças

tasista. Eu só pensava que ele já devia ter ajudado muita

atadas aos braços e às pernas, com um chuveiro a fazer

gente a descobrir coisas malucas nunca antes pensadas.

de relógio e um vaso a fazer de chapéu. Era fantastica-

Mas o tempo... o tempo ia passando e a solução não

mente estranho!

aparecia. A Helena estava tão confiante! Porquê?

— Por favor, ajuda-nos aqui.

Foi então que o fantasista tirou do bolso um enorme

— Eu ajudo sempre, se não melhoro, pioro, mas nunca

(e quando digo enorme é mesmo enorme, porque não

fico parado. — Essa parte de piorar a situação está fora de questão.

voltaria a caber lá dentro) fecho-ecler. Sim, foi isso que

Temos de fechar este rasgão por onde estão a passar os

duas bordas com uma agulha maleável e sorriu para nós

sonhos para o lado de fora.

quando terminou o serviço. Fiquei com cara de peixe

— Ai é por aqui? Que engraçado, fartei-me de procurar. No entanto, parece-me que... — Poucas conversas, por favor! Estamos a perder muito tempo, tempo precioso — cortou a Helena. 78

eu disse, um fecho-ecler. Um fecho de correr. Coseu-o às

vermelho. Uma solução tão simples! Simples?! Um fecho de correr para fechar rasgões no vazio?! Eu estava era a ficar doido! Ele ia já a correr o fecho quando todos nós gritámos que parasse. 79


— Os outros sonhos estão lá fora — disse a Helena. — É verdade! Já me esquecia. Quem são? — Três sensações: uma de confusão, uma de medo e outra de insegurança.

Qual ideia?! Eh, eu não disse nada, ouviram? Isto pensei eu, claro está. Eles os três riram-se na minha cara. Até o precipitado deu um sorrisinho, enquanto limpava o nariz à manga.

— Só se escapou a escumalha! — disse ele, mas o Fish não gostou, claro. — Temos de inverter a tentação.

— Nós achamos uma ótima ideia!!! — Parece que sim...

Inverter a tentação, boa, é isso mesmo, lindo! O homem

Até o Fish?! Mas para que é que eu me estou a armar

é parvo, ou quê? Mas, por outro lado, se calhar... tinha

em parvo? E eles a rirem-se... Se eu me calasse? Mes-

razão. Fosse isso o que quer que fosse.

mo em pensamentos...

Voltou a sair para o lado de fora do rasgão. Voltou

— Vá, concentração! — disse o Hugo, com os olhos

com um sorriso nos lábios e um enorme íman na mão.

brilhantes. Eles estavam mesmo a acreditar que era pos-

— Estava a pensar se isto serviria... O Hugo estava a ficar impaciente. Olhou para ele

sível. Talvez eu devesse acreditar também... Juntámo-nos todos e fechámos os olhos. Eu não sabia o que pensar, mas uma imagem começou a esbo-

irritado. — Eu não sinto nada com isso ao pé.

çar-se na minha cabeça. Via um espaço aberto e sen-

— Então não serve... Que pena!

tia que tinha de ir na direção de um rasgão muito maior

Começou a andar em círculos. Estava a pensar, mas

que eu, um rasgão com bordos de fecho de correr. Era

não dizia nada. O Hugo e a Helena olharam um para

a passagem. A força para ir por ali era grande, mesmo

o outro. Que sensação de impotência! Eu só pensava no

com consciência de que éramos nós a formar aquela

que poderia atrair sensações para ali. Mas confesso que

imagem. Foi então que uma ponta de dúvida surgiu.

sentia a cabeça completa me n te vazia. Olhei para o íman

Ouvi a Helena a dizer-me: «Não ligues! Não podes

ali caído no chão. Era enorme, daqueles com as pontas

ligar!», e assim fiz. Tive tantas dúvidas que quase abri

vermelhas. Era realmente uma pena que não fizesse nada.

os olhos. Tinha de continuar. A sensação passou. Ouvi

Mas... por outro lado... se nos concentrássemos e o virás-

a voz do Fish.

semos para o outro lado... O Hugo e a Helena olhavam para mini com uma cara

— A insegurança já entrou... O esforço continuava. Senti que tudo se deformava,

estranha. O fantasista também levantou as sobrancelhas.

que o que pensava não fazia sentido, pareceu-me que ia

— Mas meu rapaz, isso é uma ótima ideia! 80

adormecer. 81


— Atenção, rapaz, atento! — Era a voz do precipitado.

sentir a mão do Hugo a segurar a minha e senti. Apeteceu-me tocar no Fish e ele estava pousado na minha mão.

Aguentei firme. — Entrou a sensação confusa — riu-se o fantasista.

O nó na garganta era tão forte que tudo o que via estava tapado por uma cortina de lágrimas. Depois daquele

Os olhos doíam-me. Era incómodo estar assim. Comecei a sentir que não tinha onde me agarrar, que os con-

esforço, ir assim embora, tão de repente. E o Fish... Ia separar-me dele.

tornos de tudo se esfumavam. Pensei que podia cair, que podia ser cilindrado por uma multidão, senti um medo

— Parece que chegou a altura de me ir embora... — Parece que sim...

horrível. A Helena pôs um braço sobre os meus ombros. Não ia ser fácil. Penso que nunca me senti tão mal. O medo! O braço

— E tu ficas?

da Helena apertava-me com força a dizer-me que também

— E eu vou esquecer-me disto tudo?

se sentia mal. Podem não acreditar, mas tudo o que me faz

— Não sabemos — disse o Hugo. — Isto nunca acon-

— Parece que sim...

medo apareceu à minha frente. Imaginem as coisas que vos

teceu. Tenta lembrar-te.

fazem medo e juntem-nas todas. É horrível. Senti que o

Já não disse mais nada. Corno um condenado, apro-

Fish estava no bolso da minha camisa. Ele era tão pequeno!

ximei-me da passagem e esgueirei-me para o lado de

Tinha de aguentar. Os arrepios que sentia eram horríveis,

fora, ainda com o Fish na minha mão. Dei-lhe um beijo

Os gritos que ouvia eram ensurdecedores. Que horror!

e deixei-o nadar para dentro. A Helena sorriu, o Hugo

Subitamente, sem aviso, tudo passou. Abri os olhos.

enfiou as mãos nos bolsos, atrapalhado, o Fish aninhou-

Estávamos todos suados, todos brancos e com mau

-se nos ombros dele. Não precisava de dizer nada, eles

aspeto. Sorrimos levemente. Uma única certeza: tínhamos

sentiam tudo. Sempre era menos difícil...

conseguido.

O fantasista, com um sorriso louco, fechou a pas-

O fantasista pôs-se rapidamente de pé. Ele recuperava

sagem de repente. Eu fiquei no vazio, com uma dor forte

depressa, estava visto. Agarrou no fecho de correr e pre-

no peito.

parou-se para o fechar. — Eu não posso ficar cá dentro — pensei eu. E ele parou o movimento. Não sei bem explicar o que senti. Apeteceu-me que a Helena me consolasse e ela assim fez. Apeteceu-me 82

.

83


— Talvez um sonho dentro de um sonho, ou um sonho dentro da realidade — disse eu. Fiquei a olhar para ele.

XV

— O Fish? — perguntou. — Ficou. — E o buraco?

Acordei com a minha irmã a entrar pelo quarto como

— Fechou-se com um fecho de correr.

um furacão. Abriu as persianas com energia e eu sentei-me

— Hum... Mas estás com um ar tão cansado!

de repente na cama. A luz do sol fazia-me doer imenso

— Foi tão difícil puxar os sonhos para dentro...

os olhos. Estava tão cansado...! Ela disse um montão de

— Mas conseguiram...

coisas que eu achei que não devia ouvir. Fiquei a esfregar

— Sim.

os olhos e os cabelos, ensonado. Mas ainda ouvi:

Calámo-nos outra vez.

— Molúsculo! Mexe-te! Vamos almoçar fora e nem penses que vais sem tomar banho. Esperem lá! Eu já ouvi isto dito assim mesmo! Olhei

— Dás-me aquela caixa de papelão? — A caixa...? — Onde o Fish dormia. Quero pintá-la.

à volta. Estava em Lisboa no meu quarto. No meu

— Ele não vai voltar.

quarto?!!

— Mas eu pinto-o lá.

A porta abriu-se. Era o avô.

Quando cheguei do almoço, o meu avô não parecia

— Vens?

lembrar-se de nada. Deu-me a caixa de papelão com estra-

— Eu?

nheza. Percebi que eu me ia esquecer também.

— Sim, quem é que havia de ser. Vamos almoçar ao

Estou a pintá-la. No momento em que acabar, sei que me vou esquecer de tudo. Mas a caixa tem lá o Fish azul

chinês. — Alguma razão em especial?

guardado para sempre.

— Sou eu que ofereço. Partimos para férias na sexta-feira. Anda, duche. Olhei para ele. Pareceu-me que evitava os meus olhos. — Avô, foi tudo um sonho? Ele hesitou. 84

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