Estafeta de Leitura 2016
O meu vizinho é um cão (Isabel Minhós Martins)
O meu prédio sempre foi muito sossegado. Quase nunca acontecia nada por aqui... Até ao dia em que um enorme camião de mudanças parou mesmo em frente à nossa porta... Os vizinhos vieram todos à janela, para ver entrar caixas, caixinhas e caixotes... ...alguns deles com formas bem esquisitas! No dia seguinte, finalmente, chegou o novo vizinho... Era um cão. Ladrou um "bom dia" simpático quando entrou e foi sentar-se à varanda a ler o jornal e a fumar o seu cachimbo Os meus pais acharam logo um pouco estranho ter um cão como vizinho. Dizem que larga pelo nas escadas. Que esconde ossos nos sítios mais bizarros… E que às vezes se coça assim de forma pouco educada... Eu, por acaso, até gostei dele. Gosto de o ver tocar saxofone na varanda ou fazer bolinhas de fumo com o seu cachimbo encarnado. É tão simpático que nos vem trazer o jornal a casa todos os dias. Mas em pouco tempo uma casa vagou no nosso prédio… E de novo um camião de mudanças parou em frente à nossa porta… E mais uma vez, vimos entrar caixas, caixinhas e caixotes. Desta vez bem mais volumosas e assustadoras! No dia seguinte, chegaram os novos vizinhos... Um par de elefantes bem simpático! Seriam irmãos, primos, namorados? Os meus pais, mais uma vez, estranharam a nova vizinhança. Queixam-se dos lençóis, que ocupam muito espaço no estendal. E depois há qualquer coisa no modo como entrelaçam as trombas que os incomoda também... Eu, por acaso, até simpatizei com eles. No outro dia, ajudaram-me a lavar o carro do meu pai. E num instante fizeram o mesmo a todos os carros da vizinhança. Querem melhor do que isto? Mas uma outra casa vagou no prédio. E mais uma vez, um camião de mudanças parou em frente à nossa porta. E de novo os vizinhos assomaram à janela, para ver entrar todo o tipo de caixas, caixinhas e caixotes. Parecia chique, o novo vizinho. Seria desta vez que os meus pais fariam boa vizinhança?
Era já noitinha quando se deu a conhecer. Os seus olhos amarelos brilharam no escuro (assim como os dentes que mostrou quando sorriu…) Mas desta vez, confesso, até eu lhe torci um pouco o nariz... Mas foi por pouco tempo. O meu vizinho crocodilo é tão boa gente que já me ensinou a dançar. E, este Natal, até se vestiu de Pai Natal para dar presentes a toda a vizinhança: malas às senhoras, sapatos aos homens e, a mim, um colar com um dente molar! Mas nem por isso os meus pais deixaram de lhe torcer o nariz. Dizem que é um tipo esquisito… E depois ficam assim calados a fazer rolar os olhos de um lado para o outro. No outro dia disse aos meus vizinhos: "Não acham esquisito que os meus pais vos achem esquisitos? Ao que eles responderam imediatamente: "Os teus pais é que são esquisitos". "Olham-nos de cima a baixo", queixou-se o cão. "E sempre com ar superior", disseram os elefantes. "E nem agradeceram os presentes", acrescentou o crocodilo, magoado. Compreendem que tive de concordar… Os nossos vizinhos mereciam melhor vizinhança! Pensei em falar com os meus pais. Mas a minha mãe estava ocupada a arrumar as nossas coisas em caixas, caixinhas e caixotes... “... Esperem lá!” disse eu de repente. “Não se esqueceram de me dizer nada?” E foi assim que no dia seguinte mudámos de casa (falta acrescentar: para grande desgosto meu e dos meus vizinhos também...). Disseram-me que em nossa casa mora agora uma família de três ursos. E que o meu prédio está cada vez mais divertido. Não é de admirar. Qualquer dia, quando crescer, faço-lhe uma surpresa também. Paro um enorme camião de mudanças em frente à porta... e mudo-me para lá! Tenho a certeza que eles não me vão achar nada esquisita!
A menina gigante (Manuel Jorge Marmelo e Maria Miguel Marmelo) Ana Grande era uma menina que talvez tivesse a tua idade. Que ia à escola, como tu, que brincava no recreio quando chegava a hora, que fazia os trabalhos de casa sem muita vontade, que gostava de ver televisão e que nunca ia tomar banho sem antes inventar mil e uma desculpas para não o fazer. Que gostava de vestidos com flores e de fazer compras no centro comercial. Que fazia birras na hora de comer a sopa. Que protestava, de manhã, quando, no Inverno, tinha que sair da sua cama quentinha para ir para a escola. Ana Grande, porém, era um bocadinho maior do que tu. Era mesmo muito maior do que tu, do tamanho, mais ou menos, de uma pessoa crescida, embora o seu rosto e os seus modos fossem exatamente iguais aos dos meninos e meninas da idade dela, que é a tua idade. Ana era tão grande que, nas aulas, tinha que ficar sentada na fila de trás da sala, para não estorvar os colegas que queriam ver o que a professora escrevia no quadro. Tão comprida que não podia jogar às escondidas, nem às caçadinhas, pois nunca conseguia esconder-se sem que uma parte do seu corpo ficasse demasiado visível, nem lhe custava nada agarrar os outros meninos, quando estes tentavam fugir-lhe, visto que lhe bastava dar um passo e esticar o braço para que qualquer um ficasse ao seu alcance. Na verdade, Ana Grande não só não podia brincar com os amigos da escola, como também se transformou em objeto de maldade dos outros meninos, que corriam à sua volta, gozando enquanto lhe chamavam: — Menina de andas! Menina de andas! Menina de andas! Na escola os meninos apontavam-na de cada vez que alguém fazia uma asneira: — Foi ela! Foi ela! E se a professora, de castigo, lhe marcava mais trabalho de casa, os colegas ainda se juntavam à sua volta para gritarem: — Bem feita! Bem feita! Bem feita! Nessas ocasiões, Ana Grande sentia-se triste, confusa e envergonhada. Chorava com a cabeça encostada aos joelhos e punha-se a pensar: — Porque é que eu sou assim tão grande? Porque é que não consigo fazer nada direito? Porque é que ninguém gosta de mim? Ou então: — Porque é que só eu sou tão grande e os outros são todos baixinhos? Porque é que os meus pais não são maiores do que os pais dos outros meninos? Ou: — Se sou grande e sou filha deles, eles deviam também ser grandes como eu. Se eu sou gigante, a minha família também tinha que ser uma família de gigantes. Como se isso não bastasse, Ana era também um bocado trapalhona e desengonçada, o que por certo se devia ao seu tamanho excessivo e ao facto de, por dentro, ser ainda uma menina como tu. Percebeste? Não? Então imagina que calças os sapatos do teu pai e a roupa do teu pai – ou os sapatos de salto alto da tua mãe e os vestidos da tua mãe. Agora tenta andar, tenta mexer-te, agarrar nos objetos à tua volta, pois suponho que é assim que ela se sentia: incómoda e incapaz de controlar totalmente os movimentos. Por isso, quando Ana se virava de repente para fazer isto ou aquilo, era quase certo que uma parte do seu corpo ia, sem que ela o quisesse, esbarrar contra algo que estivesse quieto, como uma jarra de vidro que logo caía no chão e se partia, ou um livro que tombava sobre um copo que, por sua vez, se inclinava até derramar o leite que tinha dentro. E isto era tanto verdade na escola como em casa. Aqui os pais ralhavam-lhe e chamavam-lhe: — Desmiolada! Mas quando é que tu cresces e paras de fazer asneiras? E acontecia-lhe mesmo achar que era um monstro, pois em todas as histórias que conhecia os gigantes são todos monstros e são todos maus. (…)
As cores de Mateus (Maria Lopez Soria) Mateus é um menino de cor. Mas não é de cor vermelha…Nem verde…Nem azul…Nem sequer amarela… Ou com bolinhas… Mateus é um menino de cor negra. Mateus é negro como a noite. E escuro como um mistério. Mateus tem a pele tostada, cor de azeviche e de ameixa e é por isso que no seu rosto resplandecem as duas luas dos seus olhos, pequenos faróis que lhe iluminam o sorriso claro. Mateus gosta do som das palavras que a sua mãe usa para chamá-lo. Azeviche. — Que coisa é azeviche, mamã? — O azeviche, Mateus, é um mineral especial, de uma tonalidade de preto tão bonita que se utiliza para fazer joias. - Aaaaaaaaahl Mateus gosta que a mãe o compare com esse carvãozinho. — E de certeza que também gostarás de saber, Mateus, que o azeviche é um pássaro pequeno, com o corpo cinzento escuro e a cabeça e as asas negras... — Um pássaro! Que sorte tem Mateus por se parecer com um pássaro. E ameixa. — E também és uma pequenina ameixa — sussurra-lhe a mamã — Como as das ameixoeiras da quinta da tia Margarida, que todos os Verões nos oferece deliciosas ameixas negras. Mateus sorri por ser parecido com esse fruto redondo, saborosa ameixa morena... Mateus tem uma mamã que lhe canta canções de embalar e lhe conta histórias, como a história da sua vida, que ele escuta prestando muita atenção. — Sabes, Mateus? E a voz da mamã de Mateus fica suaaaaave, para contar: — Tu nasceste numa ilha distante das Caraíbas. Uma ilha bonita, onde a vegetação transborda das montanhas e os coqueiros se aproximam da praia para acariciar a água cristalina.
— Lá, Mateus — continua ela, repetindo o seu nome, enquanto o abraça —, os homens e os mulheres têm a pele da cor da canela e caminham como se dançassem entre as bananeiras, o cacau e a doce cana de açúcar. À noite costumam cantar canções nostálgicas para que o vulcão e o furacão sejam bons; para que durmam tranquilos o papagaio, a tartaruga e o caimão... Quando for grande, sonha Mateus, irá navegando na sua canoa, até chegar à longínqua ilha e trepará às árvores mais altas para deslizar depois até à praia como se descesse por um escorrega. De certeza que ali, entre animais selvagens e perigosas plantas carnívoras, viverá mil aventuras com final feliz e, se calhar, até poderá travar amizade com um macaco, como o Tarzan. Mateus já o sabe. Aquela senhora da ilha não podia cuidar dele. — Ela que também te amava muito, pediu-me que eu cuidasse de ti — diz-lhe a sua mãezinha branca — E é por isso que agora eu sou a tua mamã. O menino quer ouvir mais. — Oh, Mateus, aquele foi um grande dia para mim. Não imaginas a emoção enorme que senti quando te conheci e te peguei ao colo. Estava tão contente por seres meu filho, Mateus, que desatei a chorar de felicidade. Nunca tinha visto um bebé tão bonito como tu! E Mateus, que adora que a sua mãezinha branca o aconchegue e lhe diga todas as palavras que ele já sabe da história da sua vida, deixa-se embalar pelo doce murmúrio, como se essa voz fosse o vento morno que faz mexer as papoilas e o trigo ou um passarinho que tem o ninho no mais fundo do seu coração. Naturalmente que Mateus é adotado. Por isso mesmo é que Mateus, o próprio, adora explicar isso aos seu colegas de turma, fazendo-se Interessante: — Eu não sou biológico, sou um menino adotado. Todos o olham com olhos espantados, olhos de meninos brancos que não se parecem com as luas cheias que Mateus tem a brilhar na cara. — Puxa! Que sorte! — exclamam admirados. (…)
Anton (Simão Vieira) Sim, Antón. O meu nome é Anton. Não é “António”. Durante as primeiras semanas que vivi neste país, os colegas de escola estavam sempre a dizer o meu nome. Talvez quisessem gastá-lo para deixar de lhes soar estranho. A muitos meninos diziam só “olha” ou “vem cá”. Comigo era“Anton. Sim, tu, Anton.”Isso até me ajudava. Apesar de “Anton” lhes parecer estranho, eu ia ficando tão conhecido como o Pedro ou a Luísa ou o João ou a Rosa — que poucas vezes eram chamados pelos nomes. Engraçado. Enquanto eles se habituavam ao meu nome, eu começava a achá-lo misterioso. Lembro-me de estar frente ao espelho da casa de banho, fechar os olhos, dizer: «Sim, Anton. Eu, Anton.” E abrir os olhos em resposta ao eco. Ainda hoje, passado um par de anos, muita gente se espanta com o meu nome. Até eu continuo a espantar-me: como é que um nome pode chamar uma pessoa? Parece magia, não é? "Anton! E, abracadabra, cá estou eu.” Mas não estranhavam só o meu nome. Ou a minha maneira de falar, emendando as palavras. Estranhavam-me por causa dos meus olhos, do meu cabelo, Da minha pele — que, segundo os comentários, tinham uma transparência de água. O João chegou a dizer-me impressionado: “Na chuva, tenho de te adivinhar.” Eu dava que pensar. Como se, por vir de longe, tivesse de demorar muito até me tornar alguém "perto". Sentia-me de outra galáxia. Afinal, eu era novidade naquele mundo e o mundo inteiro era novidade para mim. Ainda falava pouco uma primeira língua e já me pediam uma segunda, cheia de sons novos ou que apareciam noutra ordem. Por exemplo, o, ão, r no fim de uma palavra, na impressão de querer o ar até para acabar de dizer “começar”. Em casa, quando falava com os meus pais e comparava com a língua do meu país de origem, reparava em coisas pequeninas e parecidas como pais e país, espaço e passo ou “aves” que pousam em “árvores”. Coisas em que muitos não reparavam. Uma vez perguntei ao João: "Não te parece estranho usares as mesmas letras para dizeres "tu" e o princípio de "tudo"?” Aprender uma língua é aprender a ler e escrever coisas que também estamos a aprender a pensar.
Enquanto desenho e combino palavras, também desenho e combino ideias. Devagarinho. À minha maneira. Felizmente, os colegas esperam por mim — e o professor dá-me mais tempo e explica mais vezes. Acho que só aprendemos bem se estivermos juntos e só estamos juntos se esperarmos uns pelos outros. Quem é rápido, ganha tempo para ajudar quem demora mais. É o que eu faço. Se percebo e resolvo depressa, explico aos outros. O professor falou disso com os meus pais e chamou uma senhora que me fez umas perguntas especiais, com uns "testes". Ficam todos cada vez mais espantados comigo. É que eu gosto muito de contas. Contas de cabeça. Nunca me esqueço de que as contas começam de cabeça — incluindo as mais complicadas, em que também usamos máquinas. Começam porque fazem parte de nós. Não entendo as pessoas que SÓ resolvem contas com a ajuda de máquinas. Como se os números fossem menos nossos do que as palavras escolhidas para dizer o que se passa cá dentro. Como se os números fossem só para usar e não para sentir. Ora, eu sinto. Os números. A viagem para o país dos números é um instante: basta querer estar lá, onde falamos uma única língua e não somos estrangeiros. Juntos, descobrindo problemas de contas, seremos irmãos de pensamento. As pessoas têm de resolver problemas e podem tornar a vida mais simples quando se juntam para resolvê-los. Sei bem que é assim. As contas ajudamme a estar com os outros, a fazer amigos. Sempre que fazes uma amizade, aprendes a ser mais. — Eu e tu somos mais que dois, somos nós. Porque a palavra nos cresce até não deixar ninguém de fora, até ficar a melhor maneira de dizer “todos” — quando contamos com todos e para todos. “Contamos", repara. Estas são algumas ideias que descubro, vivo. Eu, o Anton, que começo umas coisas e já sei completar outras, que ora me sinto de fora ora me sinto em casa. Mas, vendo bem, toda a gente é assim, não é? Tu és, mesmo que não tenhas vindo de outro país. “TU" que estás no princípio de “tudo”. Procura-me na escola. Sou colega e amigo do João, da Luísa, do Pedro, da Rosa, do Zeca, da Filomena e de outros meninos. É fácil estar mais perto. Podes contar comigo.
Menina bonita do laço de fita (Ana Maria Machado) Era uma vez uma menina linda, linda. Os olhos dela pareciam duas azeitonas pretas, pretas, daquelas bem brilhantes. Os cabelos eram enroladinhos e bem negros. Feito fiapos da noite. A pele era escura e lustrosa que nem o pelo da pantera negra quando pula na chuva. Ainda por cima a mãe gostava de fazer trancinhas no cabelo dela e enfeitar com laço de fita colorida. Ela ficava parecendo uma princesa das Terras da África ou uma fada do Reino do Luar. Do lado da casa dela morava um coelho branco, de orelha cor-de-rosa, olhos vermelhos e focinho sempre tremelicando. O coelho achava a menina a pessoa mais linda que ele tinha visto em toda a vida. E pensava: — Ah, quando eu casar quero ter uma filha pretinha e linda que nem ela... Por isso, um dia ele foi até a casa da Menina e perguntou: — Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? A menina não sabia, mas inventou: — Ah, deve ser porque eu caí na tinta preta quando era pequenina... O coelho saiu dali, procurou uma lata de tinta preta e tomou banho nela. Ficou bem negro, todo contente. Mas aí veio uma chuva e lavou todo aquele pretume; ele ficou branco outra vez. Então ele voltou lá na casa da menina e perguntou outra vez: — Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? A menina não sabia mas inventou: — Ah, deve ser porque eu tomei muito café quando dera pequenina. O coelho saiu dali e tomou tanto café que perdeu o sono e passou a noite toda fazendo xixi. Mas não ficou nada preto. (…) Por isso, daí a alguns dias ele voltou lá na casa da menina e perguntou outra vez: — Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? A menina não sabia e já ia inventando outra coisa, uma história de feijoada quando a mãe dela, que era uma mulata linda e risonha, resolveu se meter e disse: — Artes de uma avó preta que ela tinha... Aí o coelho — que era bobinho, mas nem tanto — viu que a mãe da menina devia estar mesmo dizendo a verdade porque a gente se parece sempre é com os pais, os tios, os avós e até com os parentes tortos E se ele queria ter uma filha pretinha e linda que nem a menina, tinha era que procurar uma coelha preta para casar. Não precisou procurar muito. Logo encontrou uma coelhinha escura como a noite, que achava aquele coelho branco uma graça.
Foram namorando, casando e tiveram uma ninhada de filhotes, que coelho quando desanda a ter filhote não para mais. Tinha coelho pra todo gosto: branco bem branco, branco meio cinza, branco malhado de preto, preto malhado de branco e até uma coelha bem pretinha. Já se sabe, afilhada da tal menina bonita que morava na casa ao lado. E quando a coelhinha saía, de laço colorido no pescoço, sempre encontrava alguém que perguntava: — Coelha bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? E ela respondia: — Conselhos da mãe da minha madrinha...
Um barco no céu (Quentin Blake) Isabel e Nicolau passeavam na praia. Não procuravam nada na areia, nem na água, nem no céu. Apenas passeavam nas dunas. — Olha, Nico! O esqueleto de um barco em mil pedaços! — Tenho a certeza que é possível consertar estes destroços. Ajuda-me a soltar o leme! — Esta polé é para este pedaço de madeira e a roda é... — Acho que este barco está a ficar muito esquisito, Nicolau! O vento vindo do mar começou a soprar nas dunas. A velha vela inchou. E eis que o estranho barco começou, lentamente, a andar na praia. Isabel e Nicolau pareciam deslizar sobre a areia. — Um desconhecido a bombordo! — gritou Isabel. — Sou a cegonha Sidónia e estou ferida. Um tiro de espingarda atingiu-me aqui, no ombro, e impede-me de voar. Repentinamente, o barco ganhou velocidade e apareceram outras aves no céu. A embarcação levantou a proa. Nicolau e Isabel estenderam rapidamente a mão a Sidónia. Depois, o veleiro descolou e elevou-se. Em pleno céu, aproximou-se uma cegonha de asas enormes. Chamava-se Gu. Gritava mais alto que o vento: — Quando salvamos uma Sidónia, não podemos desistir a meio! Sabem? Do alto do céu vi muitas outras Sidónias feridas! — Temos que as ajudar a voar? — perguntou Nicolau. — Evidentemente, —replicou Isabel— Vamos segui-la! A vela ficou cheiinha. E, em breve, debaixo do barco passou uma praia, depois outra e mais outra... onde uns rapazes perseguiam uma menina. — Parem de lhe atirar pedras! — gritou Sidónia— Vão acertar-lhe e talvez no ombro! — Entra, depressa! — exclamou Isabel — A madeira do nosso barco é mais dura que as pedras deles. A menina agarrou-se e o casco do barco protegeu-a. Chamava-se Heloísa. Sob o céu imenso, a Terra parecia imensa. Lá de cima, longe de tudo, Isabel e Nicolau distinguiram homens fortes a trabalhar. Ao seu lado, também trabalhavam meninos minúsculos sem força e sem idade. Um deles já nem conseguia levantar a picareta. O barco tocou no chão, ao de leve. Isabel, Nicolau e Heloísa agarraram no rapazinho exausto pela ponta dos dedos. — Sabes? — explicou Heloísa, secando-lhe a testa—, a vela do nosso barco é mais doce que o vento. Sidónia aprovou e encostou a sua plumagem à cara de Rachid. — Mas que nuvem tão grande é aquela, mesmo no meio do céu? — perguntou Nico. — Olhem! Estamos sobre uma cidade gigantesca, onde tudo deita fumo: as pessoas, as casas, as fábricas, os carros... Heloísa engasgou-se e começou a tossir. Rachid e Nicolau também tossiram e taparam as narinas. Sidónia começou a tossir, batendo com o bico e Isabel enfureceu-se: — Mas será que vocês não veem aquele rapaz que já não consegue respirar por causa do fumo? — É a minha vez de tomar uma atitude, — exclamou Gu, enquanto mergulhava. De repente, um ruído surdo sacudiu o céu. — Eu, — declarou Isabel — não tenho medo de tempestades. Nem mesmo de um dilúvio! Só que não eram relâmpagos, eram explosões. Nem eram trovões, mas o troar de canhões. Naquele lugar no mundo, o planeta era um terrível campo de batalha. As crianças agacharam-se no fundo do barco, apertadas umas contra as outras. Sidónia ousou espreitar: — Vejo uma mulher a fugir... — Temos que sair daqui — gritou Isabel— Imediatamente! — Impossível! — respondeu a cegonha — O bebé que ela leva ao colo de certeza que viu o nosso barco no céu. Todas as mãos foram necessárias, até as de Isabel e as garras de Sidónia, para que Amália e a sua pequena Lira ficassem, enfim, a salvo. Depois o barco descolou, tentando evitar os tiros que vinham de todos os lados. Mas o casco foi atingido! Com a vela esburacada, o barco tornou-se pesado e começou a perder altitude. Ao longe, viram, enfim, uma praia. — Podíamos aterrar, — disse Nicolau. — Não, cuidado! — gritou Isabel— Uma feiticeira! — Não é nada uma feiticeira! — disse Heloísa— É a minha avó! (…)
A história da praia grande (João Paulo Seara Cardoso) O sol já estava alto, era uma manhã de céu aberto e azul e, num certo silêncio próprio das manhãs assim, podia-se ouvir nitidamente o murmurejar das ondas pequenas que iam e vinham com um ritmo próprio, como se fossem pacientes e sentissem que nada pode alterar os movimentos de vai e vem que o mundo tem. Neste ar brilhante da manhã, os pelicanos andavam de um lado para o outro com uma certa indolência, alguns esboçavam breves movimentos de asas, não se percebendo muito bem se se estavam a espreguiçar ou se seria por uma questão de estilo, e até pequenos voos junto à areia que às vezes acabavam de uma forma bastante desastrada. Nesta fase estremunhada, as conversas entre eles eram um tanto ou quanto monótonas e não iam além de “Bom-dia!”, “Chega-te para lá!” ou “Estás-me a pisar o pé!”. Tudo isto se passava na parte este da praia. Porque no lado oeste vivia uma colónia de pinguins, num território bem delimitado por uma fieira de rochas negras que ninguém ousava passar já que a relação entre os pinguins e os pelicanos era muito pouco pacífica. Segundo contavam os pelicanos e os pinguins mais velhos, nem sempre fora assim. Há muito tempo atrás, no tempo dos avós dos seus avós, havia um único território junto ao mar, que ia de este a oeste, no qual todos conviviam pacificamente, na medida do possível, já que tanto pinguins como pelicanos têm as suas manias. Mas uma guerra terrível, cuja origem ninguém sabia muito bem, pusera termo à coexistência das duas espécies no mesmo território. Antes da guerra, na perspetiva dos pelicanos, os pinguins eram muito brancos, porque quase sempre os viam de frente, com o seu peito muito macio e imaculado, mas atualmente, dado que os pinguins viviam de costas para eles, pareciam-lhes um povo muito negro. A colónia dos pinguins era muito barulhenta. Os pinguins, como se sabe, são muito faladores e, apesar de às vezes não terem nada para dizer falam sem parar mesmo se aquilo que dizem não faz grande sentido, porque acreditam que se pararem de falar podem morrer. Para os pinguins falar é como para os humanos respirar, costumam dizer os pinguins mais entendidos nestas coisas dos humanos e, até no meio das maiores confusões a palavra “silêncio” é uma palavra proibida na colonia de pinguins. Estavam os pinguins a apanhar sol nesta manhã de sol e a andarem de um lado para o outro daquela maneira muito engraçada de os pinguins andarem, que é uma espécie de “aqui vou eu para a esquerda, aqui vou eu para a direita, deixa-me apanhar o balanço para ir para a frente”, sem se importarem com o tempo que vai fazer amanhã, já que para os pinguins “amanhã nunca é igual a hoje e por isso logo se vê o que vai acontecer, que nem se aperceberam do que se passava num pequeno intervalo da fronteira de rochas negras. Nem tão-pouco os pelicanos, atarefados na sua pescaria. — Tu não pescas, como os outros? — perguntou Matias, o jovem pinguim, espreitando através das pedras. — Mete-te na tua vida, ó casaquinho preto, e não me aborreças! — respondeu-lhe, com uma voz grossa e visivelmente irritado, Gabriel, o Pelicano, com o seu ar indolente, enquanto palitava o bico tentando extrair uma incomodativa espinha de peixe. — Só queria conversar contigo... — disse Matias. — Conversa! Bah!... Malditas espinhas de faneca!... balbuciou o pelicano, escarafunchando desesperadamente o enorme bico. — Talvez eu te possa ajudar, tenho um bico fino... arriscou o jovem pinguim. — Está-me a querer parecer que tu não conheces as leis desta praia. Os teus paizinhos não te disseram que É ABSOLUTAMENTE PROIBIDO AOS PINGUINS FALAREM COM OS PELICANOS?! — vociferou Gabriel, colocando um ênfase ameaçador na última parte da frase, tentando desta maneira pôr um ponto final na conversa. — Não vejo mal nenhum nisso — respondeu com um ar ingénuo. — Eu vejo mal NISSO! Raspa-te daqui antes que eu te faça o mesmo que os avós dos meus avós faziam aos avós dos teus avós! — ameaçou Gabriel.
O sapo e o estranho (Max Velthuijs) Um dia chegou um estranho que acampou na orla do bosque. Quem o viu primeiro foi o Porco. — Já o viram? – perguntou o Porco muito excitado quando encontrou a Pata e o Sapo. — Não. Como é ele? – perguntou a Pata. — Cá por mim, acho-o um rato sujo – disse o Porco. — Que é que ele quer daqui? — É preciso ter muito cuidado com os ratos – disse a Pata. – São todos uns ladrões. — Como é que sabes? – perguntou o sapo. — Toda a gente sabe – disse a Pata indignada. Mas o Sapo não esta lá muito convencido. Queria ver com os seus olhos. Quando caiu a noite, viu ao longe um clarão vermelho. O Sapo aproximou-se, muito sorrateiro. Na orla do bosque viu uma tenda improvisada, feita com um pano atirado por cima de uns paus. O estranho estava a cozinhar. A panela pendurada por cima da fogueira cheirava que era um regalo. O Sapo achou que tudo aquilo tinha um ar muito acolhedor. — Eu já o vi – disse o Sapo aos outros, no dia seguinte. — E então? – perguntou o Porco. — Parece simpático – disse o Sapo. — Tem cuidado – disse o Porco. – Olha que ele é um rato sujo. — Aposto que ele vai comer a nossa comida toda sem nunca trabalhar – disse a Pata. – Os rato são atrevidos e preguiçosos. Mas não era verdade. O Rato andava sempre atarefado. Arranjou madeira e fez uma mesa e um banco muito jeitosos. E não era sujo. Andava um bocado amarrotado, mas tomava muitas vezes banho no rio. Um dia, o Sapo decidiu visitar o Rato. O Rato estava a descansar ao sol, sentado no seu banco novo. — Olá – disse o Sapo. – Eu sou o Sapo. — Eu sei – disse o Rato. – Vê-se bem. Não sou parvo. Sei ler e escrever e falo três línguas: português, francês e inglês. O Sapo ficou impressionado. Nem a Lebre sabia assim tanto. Nesse momento chegou o Porco. — De onde és tu? – perguntou ele ao Rato com voz zangada. — De todo o lado e de lado nenhum – respondeu o Rato calmamante. — Bem, por que é que não vais para a tua terra? – gritou o Porco. – Não tens nada que estar aqui. O Rato manteve-se calmo. — Tenho viajado pelo mundo inteiro – disse o Rato, ampassível. – Isto aqui é tranquilo e tem uma linda vista para o rio. Gosto de aqui estar. — Aposto que roubaste a madeira – disse o Porco. — Encontrei-a – disse o Rato numa voz digna. – É de todos. — Rato sujo – murmurou o Porco. — Pois, pois – disse o Rato amargamente. – Sou sempre o culpado de tudo. O Rato é sempre acusado de tudo. O Sapo, o Porco e a Pata foram visitar a Lebre. — Aquele Rato sujo tem de se ir embora – disse o Porco. — Não tem o direito de estar aqui. Rouba a nossa madeira e ainda por cima é malcriado – gritou a Pata. — Calma, calma – disse a Lebre. – Ele pode ser diferente de nós, mas não está a fazer mal nenhum, e a madeira é de toda a gente. (…)
A história do homem calado (Valter Hugo Mãe) Na primeira casa de uma rua vivia um homem muito calado sobre quem não se sabia quase nada. Era um homem muito especial, achavam as pessoas só de olharem de longe. Especial porque, mesmo muito calado e sem conversas, se distinguia facilmente de todos os vizinhos. Ao invés de ter dois braços, não tinha nenhum e vestia umas roupas lisas que pareciam camisolas estragadas. Nas outras casas da rua, achavam todos que viviam pessoas mais faladoras. Caminhavam pelos passeios, juntavam-se aqui e acolá e punham a conversa em dia sobre assuntos pequenos e grandes. Falavam da felicidade dos filhos, dos casamentos e das escolas ou da compra de parafusos para os armários da cozinha, ou até faziam o tradicional pedido de açúcar porque, à última hora, sentiam vontade de fazer um bolo e a despensa estava meio vazia. Era uma vizinhança muito ativa, sempre de um lado para o outro entretida com a vida e, na maior parte das vezes, ninguém se lembrava daquele homem muito calado que, tão diferente, fazia o seu caminho até à primeira casa da rua. A verdade era que, quanto menos se lembravam dele, mais ele parecia ficar calado. Ia pelo passeio metido nos seus pensamentos e entrava em casa tantas vezes sem sequer levantar a cara do chão. Quem pensava sobre ele, pensava que estranho homem havia de ser. Mais até do que ter apenas um olho ou não ter braços, mas porque era tão calado que parecia comer palavras por alimento. Seria possível que comesse palavras como quem come a sopa ou um prato de arroz?, ponderavam os seus vizinhos. Comentavam em surdina que ele era esquisito e punham-se do outro lado do passeio a fazer de conta que nem reparavam quando ele passava. Um dia, uma senhora não se apercebeu de que ele vinha no seu caminho de sempre e descuidadamente esbarraram os dois. O homem ficou um pouco encostado ao muro e, ao contrário do que a senhora esperava quando notou quem era, ele não fez cara feia. Sorriu e disse: — Boa tarde. A senhora sorriu também, um pouco envergonhada, e respondeu: — Estava tão distraída. Peço desculpa. E ele acrescentou: — É perfeitamente normal! Não se preocupe. Seguiram depois como se nada fosse, mas a senhora não resistiu a olhar para trás uma e outra vez, muito impressionada com o sorriso tão simpático do vizinho. Em pouco tempo, todos sabiam que aquela senhora tinha esbarrado contra o homem calado e que ele fora simpático e sorrira. Queriam saber mais, todos queriam saber mais. Perguntavam o que dissera ele, que outras coisas dissera, insistiam. A senhora dizia que não houvera grande conversa, apenas o que já se sabia, e que, além de não ser mudo, o homem tinha um sorriso bonito e nada agressivo. (…) Numa noite de festa, alguém se lembrou uma última vez de como as coisas eram antigamente e do preconceito todo que sentiam em relação ao senhor Gabriel. Riam-se todos a recordar os disparates que pensavam e de como imaginavam a sua vida. Depois alguém disse que já não percebia a diferença e que, verdadinha, eram todos diferentes e engraçados. — Eu tenho um nariz com um metro – dizia alguém brincando com o seu nariz — E eu tenho uma orelha muito maior do que a outra — dizia outro vizinho — Pois eu, quando me rio muito, pareço uma avestruz — dizia uma senhora (…) Naquela rua, como no mundo inteiro, as pessoas eram todas diferentes e, vistas com atenção, tinham mil e uma divergências que, por serem tantas, só ajudavam a que ficassem mais iguais. Sim, é isso mesmo, o ser toda a gente tão diferente só prova que não importa para a amizade ou para o amor. Aos olhos dos outros, quando não nos conhecemos, todos podemos parecer, num dado momento, monstros coloridos de feitios esquisitos e até impossíveis. O Sr. Gabriel pôs um chá a fazer e, esta noite mesmo em que te conto a sua história, recebe os amigos da rua ara mais uma grande festa. Estão todos muito felizes com isso.
Não faz mal ser diferente (Todd Parr) Não faz mal ter um dente a menos (ou dois ou três) Não faz mal pedir ajuda. Não faz mal ter um nariz diferente. Não faz mal ser de cor diferente. Não faz mal não ter cabelo. Não faz mal ter orelhas grandes. Não faz mal ter rodas. Não faz mal ser pequeno, médio, grande ou muito grande. Não faz mal usar óculos. Não faz mal falar de sentimentos. Não faz mal querer comer na banheira. Não faz mal dizer não ás coisas más. Não faz mal vir de um local diferente. Não faz mal ficar corado. Não faz mal chegar em último lugar. Não faz mal dançar sozinho. Não faz mal ter uma minhoca de estimação. Não faz mal ter orgulho em si mesmo. Não faz mal ter mães diferentes. Não faz mal ter pais diferentes. Não faz mal ser adotado. Não faz mal ter um amigo imaginário. Não faz mal ser simpático para alguém. Não faz mal perder as luvas. Não faz mal ficar zangado. Não faz mal ser lambareiro. Não faz mal ajudar um esquilo a apanhar nozes. Não faz mal ter diferentes tipos de amigos. Não faz mal pedir um desejo. Não faz mal ser diferente. Tu és especial e importante por seres quem és.
A história da aranha Leopoldina (Ana Luísa Amaral) Era uma vez uma aranha simpática e gordinha, como são geralmente as aranhinhas. (É certo que há aquelas que, mesmo sendo belas, não resistem a dar umas picadinhas... Mas esta era uma aranha talvez um pouco estranha, mas engraçada e muito boazinha.) Talvez um pouco estranha era esta nossa aranha Por não gostar daquilo que fazia. O seu nome de aranha era Aranha Leopoldina (nome que vinha já da sua tia). A aranha Leopoldina Nem grande razão tinha para queixar-se da vida que levava. O que as amigas tinham ela também o tinha, mas algo de diferente desejava. É que a pobre da aranha Leopoldina era infeliz naquilo que fazia, ou seja, em vez de teia, s6 queria fazer meia (não importava a cor, qualquer servia). Podia ser vermelha, podia ser azul, podia ser até toda às risquinhas. Do que eia mais gostava era sentar-se ao sol e tricotar em linhas muito finas. Na pata, um fio de teia, ou então de retrós, depois bordar as cores mais levezinhas aquelas que o sapinho ou mesmo o rouxinol têm espalhadas pelo corpo ou pela voz. As amigas da aranha Leopoldina Bem lhe diziam: "Isso não se faz! Uma aranha a valer conhece o seu dever: Fazer teia para a frente e para trás." A mãe acrescentava, com ar de aranha brava não
(que era um disfarce para a sua confusão) : “Para trás, para a frente, a nascente, a poente, Nos tetos, nas folhinhas, ou no chão. Deve lazer a teia, E não fazer a meia. Por isso tens tu patas, e não mãos!" Mas, quanto mais ouvia, e quanto mais tentava aceitar o que os outros lhe diziam, menos se convencia a aranha Leopoldina (que de defeito só tinha a teimosia) mais se convencia a aranha Leopoldina de que podia ter também razão. Pois se estava a acabar urna obra sem par e para isso não precisara de mãos... Fora a sua patinha que fizera a esquadria, que a preenchera com cor roubada ao Sol, que de noite, ao luar, a fizera brilhar com gotas que entoara em si bemol. E esse si bemol fora ela encontrar no sítio mais bonito da floresta: o lar do rouxinol, que a ensinara a cantar, e assim, do fazer meia, fazer festa. Essa obra sem par que ela estava a acabar não era uma teia delicada, mas uma meia longa, muito comprida e funda, com uma utilidade ignorada. Convém dizer aqui que as coisas úteis costumam ter sentidos bem diferentes, ou seja, nas aranhas, as meias: coisas fúteis, que elas não têm que ter patinhas quentes. Só os pobres humanos
que usam, muito ufanos, nos pés tecido grosso ou transparente. Mas no caso da aranha Leopoldina, cuja patinha estava coberta de pelo, a meia: coisa útil, e nunca coisa fútil — que o útil também pode ser o belo. Por isso perguntava como podia ser ( o que era um grande assunto de pasmar!) que coisas tão bonitas feitas de luz e cor pudessem servir só para tapar. Era esse o argumento que as amigas lhe davam para a tentar convencer: “As meias não são belas, belas são as estrelas e as teias que nós sabemos fazer.” E assim a nossa aranha Leopoldina (que não gostava daquilo que fazia) trabalhava ao luar, em vez de descansar, e às vezes tudo o mais ela esquecia: a mosca de caçar, o inseto de apanhar, ou seja, muitas vezes, nem comia. Ou então, se comia (e isto, coisa estranha!), era folha ou pequenina semente, o que não é vulgar comerem as aranhas, que gostam é de moscas, normalmente. Mas ela não gostava, custava-lhe a comer um bicho que nem era tão diferente. O que é certo é que a aranha Leopoldina não era aquilo a que se pode chamar uma aranha normal, daquelas que, afinal, ou fazem teia ou gostam de caçar.
O vizinho de cima (António Torrado) Neste prédio, vive um senhor com umas grandes barbas.
Então o vizinho de baixo fica com a casa às escuras.
Pois é. Num dos andares deste prédio, vive um senhor com umas enormes barbas.
Muito irritado, o vizinho de baixo vai a uma cómoda, abre uma gaveta, tira uma tesoura e corre para a janela, de tesoura na mão.
Pois é assim. No terceiro andar deste prédio de três andares, vive um senhor com umas enormíssimas barbas. Quando este senhor desce à rua, para ir à sua vida, claro que também leva as barbas. Não são barbas de pôr e tirar, como as do Carnaval. São barbas verdadeiras. Se está frio, deita as barbas para trás das costas e enrola-as à volta do pescoço. Se está calor, leva as barbas à sua frente, num carrinho de mão. Como sai pouco, o senhor das grandes barbas gosta de vir à janela para ver quem passa. Quando vem à janela, as barbas sobram da janela e tapam a janela do vizinho de baixo.
Quando chega à janela para. Depois de ter chegado à janela e de ter parado, o vizinho de baixo volta à cómoda, abre a gaveta, mete a tesoura lá dentro e fecha a gaveta. Em boa verdade e lá no fundo, ele é amigo do vizinho de cima.
Um dia, os dois amigos combinaram uma coisa, que experimentaram logo em seguida. E nunca mais houve arrelias. São dois grandes inventores estes dois amigos vizinhos. E são amigos, o que também conta muito. Se não fossem amigos esta história acabava mal. Assim acaba bem.
O pavão do abre e fecha (Ana Maria Machado) Um pavão pavoneava-se na beira do lago, olhava-se na água e perguntava: — Sou feio? Sou bonito? Quando via a cauda aberta em leque, toda verde, roxa e azul-brilhante, achava-se lindo e elegante. Mas quando olhava para os pés e seu andar desajeitado, ficava até desanimado. E escondia-se envergonhado. Um dia, ele recebeu um convite para uma festa no céu, que devia ser ainda mais bonita que a tal do sapo. Abriu e perguntou: — Será que isso é bom? Será que é ruim? Sempre que precisava uma opinião, ficava assim. — Claro que é bom — disse o pombo-correio. — Festa é sempre bom. E ele achou que era bom. Abriu a cauda e ficou pavoneando-se. Depois, ensaiou uns passos de dança. E ouviu as gargalhadas de um tangará dançarino que, bem ao seu lado, treinava para a festança. — Que bicho mais desajeitado! Este baile vai ser engraçado… Ficou todo sem graça e fechou-se. Aí chegou um pardal e assim falou: — Que tristeza é essa? — É que eu danço esquisito… — E quem é que vai reparar nisso num bicho tão bonito? E o pavão, elogiado, abriu a cauda com pena pra todo o lado. Mas, de mau jeito, acabou perdendo uma, lá no canto direito. Foi uma tristeza danada. E lá ficou de novo, todo encolhido, de cara amarrada. — Porquê todo esse aborrecimento? — perguntou o periquito, que passava nesse momento. — Perdi uma pena e Isso é ruim. — Ruim uma ova. E sinal de que vai ganhar outra bem nova. Com isso, o pavão animou-se e abriu o seu leque. Aí chegou o bem-te-vi e riu muito moleque: — Olha o pavão de rabo benguela! Já se sabe: o pavão encolheu a cauda, tratou de sumir com ela. E ficou assim a tarde toda, abrindo e fechando, abrindo e fechando, mudando de ideia com cada bicho que ia encontrando.
No fim do dia estava vesgo, suado, cansado, espandongado, de língua de fora, exausto de abrir e fechar a toda a hora. Resolveu: não ia mais. Mas também não ficava ali para todo mundo rir dele. Viu uma moita e escondeu-se atrás. Aí ouviu uma conversa do outro lado. — Nem aguento mais esperar o baile. Que festança vai ser essa… — É mesmo! Comida boa, água fresquinha, amigos e música à beça... O pavão foi até lá, ver quem tinha tanta animação. Não era pássaro colorido, nem dançarino, nem de boa canção. Era um casal de urubus. Foi a vez do pavão se rir deles, abrindo suas penas verdes e azuis. — Vocês não se envergonham? Feios assim e cheirando ruim? Quando vocês dançarem, todo mundo vai rir. — Vai nada… — respondeu o urubu. — Todo mundo está mais ocupado tratando de comer e beber, de cantar e de dançar, de se ver e conversar. E se alguém quiser, pode rir. Não é por isso que vou deixar de me divertir. E a urubua completou: — E tem mais: não tem essa de feio e fedorento, não. Urubu é tão bonito, da cor do jamelão e do jaguar, da jabuticaba e da noite sem luar... E enquanto o pavão abria o bico e se espantava, ela continuava: — Você é que é feioso, com esse rabo escandaloso, abrindo e fechando que nem uma gaveta. E nem ao menos é da cor preta. Todo esse verde, roxo e azul, cheio de bolinha... Mas a última coisa que disse foi com um sorriso matreiro e olhar dengoso. — O que vale é que você tem uns pés que são uma gracinha… E depois, isso de bonito ou feio é só uma questão de recheio. Aí o pavão teve de se rir. E depois que os dois saíram voando, ele ficou pensando: — Feiúra de lixo ou beleza de artista não depende do bicho mas do ponto de vista. Cada um é diferente e o que importa é mesmo a gente. E lá foi ele animadíssimo para uma festa bem divertida. Ainda bem. Se não ficava naquele abre-e-fecha toda a vida.
A ladeira (José Fanha) Era uma vez dois homens. Um era alto, outro baixo. Um era gordo, outro magro. Um moreno, o outro ruivo. Um tinha a voz muito grossa e outro uma borbulha na ponta do nariz. Um chamava-se Manuel Francisco e o outro Francisco Manuel. E muito mais coisas poderia dizer de cada um deles. Mas, o fundamental, é que eram muito diferentes um do outro. Só numa coisa se assemelhavam: ambos eram tremendamente teimosos. Na terra onde viviam havia uma ladeira íngreme, inclinada, cheia de pedras e calhaus. Uma ladeira daquelas que a gente só sobe ou desce quando não pode deixar de ser. Um dia, um dos homens ia a subir a ladeira quando o outro vinha a descê-la. Como é natural, encontraram-se a meio. Bem… A meio, a meio, exactamente a meio, não tenho a certeza se foi. Talvez tenha sido um bocadinho mais para cima ou um bocadinho mais para baixo. Para a nossa história esse pormenor não tem grande importância e, por isso, vamos fazer de conta que foi a meio. Mais ou menos a meio da ladeira, os dois homens encontraram-se, pararam à frente um do outro e desataram a discutir. Um ia a subir e, por isso, achava que a ladeira era uma subida. O outro vinha a descer e, pelo contrário, garantia que se tratava de uma descida. Sem chegar a acordo, sentaram-se ali mesmo no chão para tirar a questão a limpo. Quem os conhecesse, sabendo que eram homens de palavra fácil, capazes de inventar sólidas razões e grandes argumentos, logo via que aquela discussão ia demorar. E demorou. Passaram-se sete dias e sete noites e a discussão não parava. Veio a Lua e foi-se o Sol, veio o Sol e foi-se a Lua e os dois homens a discutir. Nem o frio, nem o calor, nem a chuva, os distraíram. Continuavam na mesma. Para um, aquela ladeira era uma subida porque subia de baixo para cima. Para o outro, era uma descida porque descia de cima para baixo. A discussão continuou e continuou. À sétima noite começou a soprar um vento muito forte. Um vento tão forte e violento que arrancava terras, árvores e pedras e as atirava de um sítio para outro. Um vento daqueles capazes de trabalhar lentamente, séculos e séculos a fio, para mudar a face da Terra e transformar montes em covas fundas e buracos de meter medo nas mais altas montanhas. O tempo passou. O vento mexeu com tudo. Mudou a paisagem. Transformou o mundo. Só os dois homens continuavam sentados no meio da ladeira sem darem por nada do que acontecia à sua volta. Estavam tão preocupados, cada um, em ganhar a discussão, que não sentiram nem a chuva na pele, nem o frio nos ossos, nem o sol na moleirinha. Passaram-se sete mil noites e sete mil dias, os homens a discutir e o vento a trabalhar. A ladeira, a pouco e pouco, ia ficando diferente. A parte mais alta cada vez menos alta, e a parte mais baixa a crescer sem parar à custa de entulho, areia, calhaus e pedrinhas que a tornavam cada vez menos baixa. Um belo dia, a parte de baixo e a parte de cima da ladeira ficaram iguais, da mesma altura e, portanto, a ladeira desapareceu. A terra ficou direitinha, lisa, uma planície que se estendia até perder de vista. O vento, sem mais nada que fazer ali, foi trabalhar para outro lado. Os dois homens que, como eu já disse, eram muito teimosos, continuavam a discutir se a ladeira era uma subida que se descia ou uma descida que se subia. A certa altura, olharam em volta, para um lado e para outro, até onde a vista podia alcançar. Aperceberam-se então que a ladeira tinha desaparecido. Olharam um para o outro, levantaram-se, cumprimentaram-se e, cheios de orgulho, afastaram-se cada um em sua direção, ambos seguros de que tinham ganho a discussão.
António (Matilde Rosa Araújo) António é um amigo. Trabalha num restaurante à beira da estrada. A história de António não é alegre. Porque não vos hei de contar a história de um menino feliz? Uma história alegre?
Reparei. E o meu olhar subiu das mãos para os pulsos. E vi, naquele dia de calor tão grande, duas mangas de camisola usada aparecerem debaixo da farda cinzenta, cheia de botões, de António. Estaria doente?
Mas António está ali. Ali, no meio de todos nós. É criança e trabalha.
— Tens frio, António? Está tanto calor! Estarás doente?
Tem o pai doente. Muitos irmãos.
E os seus olhos passarinhos negros mais estremeciam, gaguejavam também.
A primeira vez que o vi foi num dia quente de Verão. Um calor de escaldar. Comoveu-me a sua delicadeza. Um pouco gago e querendo, na sua gaguez, dizer tanta palavra amável, boa. Os olhos piscos a tremerem, passarinhos espantados. Há quem se ria dos gagos. E, afinal, um susto que apanhássemos em criança, um modo mais delicado de olhar a vida podem dar-nos essas pausas na voz, essa distância entre a palavra que se vai dizer e o pensamento. As pessoas que vão comer ao restaurante vão comer bem. Olham a ementa e não olham o António. Olham a conta e não olham o António. E o António tem fome: não da comida do restaurante, mas de ternura, de palavras boas. É muito magrinho o António! Para além da tal fome. Se me lembro dele, lembro-me de um choupo pequenino que vi numa madrugada, ia de comboio. Fazia vento e a madrugada molhava-se de azul. E o choupo abanava sozinho. António também abana. E vou explicar porquê. Naquele dia de muito calor (quando o conheci), António vendeu-me um postal ilustrado, daqueles que os hotéis e os restaurantes têm nos balcões de receção, para os turistas. Brilhantes e frios.
— Fri-fri-o não, mi-mi-nha senho-nho-ra.
— Então? Porque se não adivinha, porque se fazem perguntas cruéis? Sem o querermos… António estremeceu todo ele. — A a far-far-da é mui-mui-to gran-grande, é é pa-para não os-os-ci-lar… O verbo oscilar. Gaguejado. Um corpo magro dentro de uma farda cinzenta que criança nenhuma devia usar. Oscilar dentro do fato. Um fato que não foi para a nossa medida. O choupo novo e magrinho que vi molhado de azul na madrugada, no correr do comboio. Igual. Estremecendo. Só. António é meu amigo, nosso amigo. E nós é que não devemos gaguejar a nossa amizade nunca, a amizade que devemos a todos os Antónios. Um choupo, quando passamos no comboio, fica na estrada. De madrugada, de dia, de noite. E, mesmo assim, está só. Mas o António? — O-o-bri-bri-gado! — De quê, António? Tive uma vontade imensa de lhe pedir perdão. O coração a oscilar. Adivinha porquê.
Reparei nas suas mãos ainda de criança.
O próprio nome António estremece.
— Que-que-ri-a es-es-te?
E esta história, escuso de vos dizer, é verdadeira. E eu, como se estivesse envolvida num lençol do mundo, cheia de frio, vim escrevê-la aqui.
Eu queria. E reparava nas suas mãos de criança que deviam ainda estar sobre a carteira da escola. E estavam ali.