Alem do pódio

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DO ALÉM PÓDIO

Bianca Yukari Horimoto



ALÉMDOPÓDIO

Bianca Yukari Horimoto


Autora Bianca Yukari Horimoto Ilustrações Ricardo Chagas Diagramação Beatriz Trindade Revisão Thamires Zabotto Orientação Denise Paiero


Para meus pais, a base de tudo, sem os quais eu nada seria. Para minhas três irmãs, por serem as melhores cúmplices e amigas que alguém poderia ter.


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AGRADECIMENTOS


Minha gratidão e meu amor à minha família, por nunca deixarem de acreditar em mim, pelo constante apoio e pelo constante apoio que me foi dado. Aos meus amigos, que me deram forças em cada dificuldade enfrentada, vibrando a meu lado a cada pequena etapa concluída. Foram quatro anos maravilhosos e marcantes, repletos de momentos especiais. Apesar das noites em claro e de toda a correria a cada semestre, sei que tudo valeu a pena. Ao corpo docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que me ensinou da melhor forma o fazer jornalismo, mas, principalmente à Denise Paiero, que me incentivou tanto como professora quanto como orientadora, me auxiliando durante todo o processo e apontando os melhores caminhos a serem seguidos. Agradeço por sua excepcional orientação e paciência. Agradecimentos especiais aos quatro personagens do livro que cederam horas e até mesmo dias para que eu pudesse colher todo e qualquer tipo de informação necessária, além de confiarem suas histórias de vidas a mim e não pouparem palavras para contar cada detalhe, o que fez toda a diferença. À Edinalva, por ter sido tão generosa e por ter confiado em mim desde nosso primeiro contato sem ao menos me conhecer, ao Messias, por ter se interessado desde o início pelo meu trabalho e sempre me receber de braços abertos, à Lucimar, que mesmo estando sempre ocupada abriu espaços nos seus dias para


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me ajudar no que fosse preciso, e ao Chicano, que não mediu esforços para colaborar com o trabalho. Obrigada a Beatriz Trindade, o trabalho não teria sido o mesmo sem todas as suas ideias e ajuda conveniente, além da atenção que me foi dada, a Thamires Zabotto, por toda a dedicação, por ter acompanhado a correria de cada capítulo e o término do livro ao meu lado, e a Ricardo Chagas, por cada desenho feito. Sou imensamente grata a todos que colaboraram para a concretização deste livro. A colaboração de cada um foi primordial para sua esperada finalização.


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SUMÁRIO


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INTRODUÇÃO

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A COMPETIÇÃO

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A DIFICULDADE

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A SUPERAÇÃO

4 5 #

UM DIA

83

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O LEGADO

177

RELATO DA AUTORA

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INTRODUÇÃO


INTRODUÇÃO

Este livro tem o intuito de apresentar histórias de superação que ocorreram graças ao esporte. São todas desconhecidas, de pessoas comuns, mas que merecem ser compartilhadas para servir de inspiração à todos. Quando escolhi esse tema não sabia muito bem qual seria o resultado final. Eu mesma não tinha certeza de sua finalização; porém, conforme pude entrevistar diversas pessoas e conhecer muitas histórias diferentes dentro do mundo esportivo, percebi o quanto foi especial e importante para mim, tanto em função de repórter, quanto em começar a enxergar tudo de uma forma diferente, ver positividade onde antes nunca havia visto ou sequer percebido. O livro foi feito a partir das memórias dos atletas. A intenção foi buscar detalhes do passado de cada um e entender melhor como eles próprios se interessaram pelo esporte, até chegar ao tema escolhido: as dificuldades superadas a partir da prática esportiva. Dentre oito entrevistados, foram escolhidos quatro. São dois homens e duas mulheres. Todos eles já treinaram outros esportes até chegarem ao qual optaram para a vida toda. Todos foram excepcionalmente receptivos, não teve uma fonte que se negou a ajudar e isso fez com que minha vontade e curiosidade como função jornalística somente aumentasse cada vez mais. As fotos registradas ao longo dos meses estão espalhadas por todo o livro. Três dos entrevistados autorizaram a publicação de suas fotos no livro, exceto

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Edinalva Messias

Lucimar Chicano


INTRODUÇÃO

um deles que, para preservar sua identidade – devido ao seu passado – pediu para que nenhuma foto relacionada a ele fosse colocada no produto final, nem mesmo o seu nome – já que todos o conhecem por apelidos desde muito pequeno. Muitos não praticam esportes e não sabem o que estão perdendo. Confesso que eu mesma me encaixava nessa grande quantidade de pessoas sedentárias, até começar a gostar do tema e, com o passar dos meses, procurei me exercitar de alguma forma além de começar a acreditar a cada dia que um bom livro seria feito diante de histórias maravilhosas e interessantes. Espero, realmente, que este livro lhe sirva de inspiração da mesma forma que serviu para mim, e que seja apenas o começo de que você tenha algum tipo de ligação com o esporte, assim como Edinalva, Messias, Lucimar e Chicano o tiveram. Conheça a história dos personagens e suscite o esportista que há dentro de você. Tenho certeza de que, depois que você der início a alguma prática esportiva, não vai conseguir parar. Só traz benefícios aos praticantes. É viciante. É envolvente.

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A COMPET


TIÇÃO


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A COMPETIÇÃO

2011. Santana. Corrida de rua. 48 anos. Quinta colocada. Quarta colocada. Terceira colocada. Segunda colocada. Primeira colocada: Edinalva da Silva Nunes. Vence com uma diferença de cinco segundos. Cansada, a mulher sobe no pódio com um imenso sorriso no rosto sem saber para qual das câmeras olhar. A medalha lhe é entregue, seguida por muitas palmas, assobios e gritos, todos voltados para uma só pessoa. Com as cinco medalhas entregues, as cinco participantes se juntam para fotos, mas todas as lentes parecem se voltar somente para o centro, para aquela mulher alta, magra e negra do sorriso bonito. Sentimentos de satisfação e prazer invadem seu corpo. Ver todas aquelas pessoas indo abraçá-la e perguntar qual é o seu segredo, só serviu para deixá -la mais confiante e segura de que, daqui para frente, ganharia todas as provas. O pensamento é apenas um: “Graça a Deus uma vitória!”.

# Parque do Trote, 7h. Edinalva se prepara semanas antes; corre todos os dias pela manhã e faz exercícios no chão da sala de casa até que chega o dia da competição. Todos se amontoam na linha de partida. O silêncio é instaurado por segundos até a buzina ser tocada e todos dispararem. Edinalva corre em meio a tanta gente, vai para os lados desviando cuidadosamente de cada um que ultrapassa, até ganhar uma boa distância dos outros competidores.

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Após 5 km percorridos, ela derruba a faixa da linha de chegada, com 19m19s. Chega em primeiro lugar. Suada e buscando o ar para se recompor, é aplaudida por todos que ali estão presentes assistindo. Enquanto bebe água, uma pessoa repousa uma mão em seu ombro. “Edinalva, eu te vi correndo, parabéns, você ganhou a prova!” - A filha da ex-patroa, Mônica, estava ali. As duas sempre se deram bem, já que Mônica nunca a tratou como empregada, mas como amiga. Sua ex-patroa sempre falava que a tendência do pobre é ficar mais pobre, e ela sempre discordava: “se você for à luta, você se supera”. A atleta tinha um sonho de ver sua patroa a assistindo na televisão. Um dia, o filho dela assistiu Edinalva competindo na televisão, e ele contou para a mãe, mas ela queria que a própria visse. Enquanto é parabenizada por todos, um repórter da TV Globo vai até ela pedir uma entrevista. Claro que ela cede, e Mônica fica assistindo tudo de perto. A cada passo que Edinalva dá, vem alguma emissora de televisão pedir entrevista, ou alguém conversar com ela. Passado as entrevistas dadas, quando finalmente ambas iam conversar, ela é chamada para o pódio. A locutora vai chamando os nomes e entregando as medalhas da quinta colocada até chegar à primeira. Até o segundo lugar ser chamado, as palmas eram fracas. Quando chega a vez da primeira colocada, muitos assobios, palmas e gritos surpreenderam a atleta.

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A COMPETIÇÃO


A COMPETIÇÃO

Diante de tanto alvoroço, a própria locutora brinca: “Gente, ela falou que vai ganhar todas esse ano!”. Edinalva, sem jeito, responde com um aceno negativo e um sorriso tímido no rosto, até que a locutora fala: “Mas ela é muito humilde, muito mesmo.” Ao descer do pódio, Edinalva tem a sensação de tudo ser muito gratificante, pois sabe o quanto treinou para poder vencer. Não se esquece de uma jovem que uma vez a puxou e disse: “Eu corro porque me espelho em você. Vejo o seu esforço a cada prova e quero ser como você”. Sem palavras, ela agradeceu, e chegou até a engolir algumas poucas lágrimas que insistiram em aparecer no momento. Conversa mais um pouco com Mônica e vai embora. No dia seguinte, seu telefone toca. “Parabéns Edinalva, eu te assisti na televisão!” Sua ex-patroa a parabeniza, dizendo que a viu correndo e dando entrevista. “Esse dia eu fiquei muito emocionada porque era meu sonho, fiquei muito feliz, não que eu queria me vingar dela, mas mostrei que eu tinha capacidade de fazer alguma coisa, provei que eu não era como ela imaginava que eu fosse, que não servia para nada, não era porque eu era empregada doméstica que eu era inútil.”

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A COMPETIÇÃO


A COMPETIÇÃO

1976. CMTC Clube. Torneio Estímulo Kid Jofre. 20 anos. Messias Gomes recebe o troféu de primeiro lugar no pódio. “Me senti feliz, com o pensamento de missão cumprida.” As pessoas presentes aplaudem e, assim que desce do pódio, se aproximam para parabenizá-lo. Ele compete representando a Sociedade Amigos da Vila Corberi, de Itaquera. Apesar de ganhar o primeiro lugar entre os atletas, a academia fica em segundo lugar. Seu adversário termina em terceiro lugar e também lhe dá os parabéns. “Na realidade a rivalidade aconteceu só dentro do ringue, porque quando você entra, a meta é vencer.” O oponente sai inchado e, Messias, ileso.

# No início da semana antes da competição, Messias cai do trem e leva alguns pontos na cabeça. Na sexta-feira, durante o treino, o ferimento começa a sangrar depois de levar um golpe na cabeça e seu treinador não quer deixá-lo lutar na terçafeira seguinte, na semifinal do torneio Estímulo Kid Jofre, campeonato que tem anualmente em homenagem ao pai do Éder Jofre. O aluno, teimoso, diz: “Vou lutar de qualquer jeito, tenho que lutar, preciso ganhar.” Sua vontade era somente uma: “Eu queria nocautear; a minha vontade era a de ver o adversário no chão.”

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A COMPETIÇÃO

Durante os três rounds de 2 minutos, Messias se sai melhor nos três. Consegue marcar pontos por ataque, defesa, eficiência e técnica, já que mais bate do que se defende. Ao final, nenhum dos dois está sangrando. Seu oponente se machuca e Messias marca muitos pontos se comparado a ele; o suficiente para vencer a luta, que foi sem capacete. A categoria é de 57 kg. Como trabalha desde muito pequeno, sua resistência e força são maiores do que as do adversário. Satisfeito com o resultado, ele afirma: “Eu tinha noção de quando estava perdendo ou ganhando. Usei uma técnica para que ele não me tocasse, muito menos na minha cabeça, porque poderiam abrir os pontos de novo. Foi uma estratégia. Eu usei mais a inteligência do que a força nessa luta. Foi o primeiro nocaute, eu achei demais, aquilo pra mim foi o máximo, a satisfação foi muito grande.” A partir do resultado dessa luta que Messias vai para o Centro Olímpico. Ele começa a perceber que o boxe não é só bater e apanhar. “Foi um teste pra mim. Em cada luta eu aprendia alguma coisa. Depois dessa luta comecei a lutar melhor, aprendi mais técnicas, passei a não buscar mais o nocaute, mas melhorar meu nível técnico, porque eu era muito briguento.” É como Messias sempre fala para seus alunos: “Não existem problemas e sim desafios. Não podemos nos acomodar diante das situações, devemos sempre procurar superar. Competir é para os derrotados, a meta é vencer no estudo, no trabalho e na vida.”

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2004. Madri. Pré-­olímpico mundial de lutas. 33 anos. Finalizadas todas as lutas entre as cinquenta e uma participantes, todos esperam intermináveis minutos até anunciarem os resultados. Ao menos uma das três vagas deve ser de Lucimar. Ela sabe que não lutou como o esperado, mas também viu que muitas meninas perderam pontos decisivos. Depois de todo o salão ficar inquieto, pedem silêncio. O primeiro nome finalmente é anunciado. A primeira menina selecionada, que está próxima de todas as outras, vai em direção ao júri, que a parabeniza. Ela se acomoda agora de frente para as cinquenta meninas restantes. Lucimar fica mais nervosa. Uma vaga a menos para ser preenchida. O segundo nome é anunciado. A menina faz o mesmo percurso da outra. Ela junta as mãos, faz um sinal de reza e fecha os olhos. Segundos depois, o terceiro e último nome é anunciado. Lucimar abre os olhos, relaxa os ombros e tem vontade de chorar enquanto assiste a terceira menina ir em direção às outras duas. As três se abraçam e todos aplaudem.

# “Não lembro quantos pontos eu fiz, só sei que eu derrubava muito, mas não conseguia ponto. O mais próximo que cheguei das olimpíadas foi nesse pré -olímpico, na minha última chance de conseguir uma vaga olímpica, de me classificar para as Olimpíadas

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A COMPETIÇÃO


A COMPETIÇÃO

de 2004. Nunca me esqueço desse dia; me marcou muito, de verdade.” - Ela afirma, decepcionada. Lucimar termina a competição na 18ª posição. O juiz apita o primeiro round. A adversária é do tamanho de Lucimar, e também mais rápida. Na categoria sênior, sua vaga teria de ser conquistada em algumas lutas de apenas dois rounds de 2 minutos. Cinquenta e uma meninas competindo na categoria. Apenas três vagas estão em jogo para completar a equipe. É sua primeira e única chance de conquistar uma vaga na equipe de luta das olimpíadas. Os 30 segundos de descanso pareceram inúteis para ela. Continua ofegante, suada, e não vê a hora de terminar o round seguinte, com a adversária no chão. É dado o início do segundo round. Lucimar vai para cima, as duas lutam por alguns segundos até ela conseguir derrubar a outra competidora no chão e a deixar imóvel. O som do apito é ouvido novamente, encerrando essa partida. Ambas se cumprimentam após a luta, e cada uma vai para um lado. Lucimar sai do tatame de cabeça erguida, feliz, olhando em volta. Após assistir outras lutas, chega novamente a vez de Lucimar. Mais confiante ainda, no apito do primeiro round já dá o primeiro passo da luta. Consegue derrubar a adversária com um pouco mais de esforço. No segundo round é derrubada e dessa vez sai do tatame sem olhar para ninguém.

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A COMPETIÇÃO

Sua terceira luta chega. Nos dois rounds desbanca a adversária, porém, não consegue fazer movimentos que valem pontos altos. Sempre quando sente uma forte pressão sob sua costela, recua. Depois de participar de várias lutas e assistir tantas outras, Lucimar percebe que sua pontuação não foi tão alta quanto desejava. Enquanto assistia suas adversárias, nota que os movimentos das meninas eram mais precisos, por isso elas marcavam mais pontos, enquanto os movimentos que fez foram mais simples, de menor valor. Só ela sabe o quanto sonhou em estar ali, competindo por uma vaga que poderia abrir sua carreira totalmente. Ser reconhecida através da luta e sobreviver dela, é seu sonho. Treina todos os dias incansavelmente. Não dorme por ansiedade faz dias. Não come como de costume, parece que nada é digerido como antes. Competiu lesionada na costela e no braço. Machucou-se nos treinos, mas sabia que valeria a pena no final. Após esse dia lutou outras vezes e ganhou várias, porém, um de seus maiores sonhos era ter conseguido uma daquelas três vagas.

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2012. Moema. Virada esportiva. 21 anos. É com muita satisfação que Chicano ganha sua primeira medalha de ouro. Em sua primeira luta já conquista o primeiro lugar. Apesar de não ter ninguém da sua família presente, seus colegas de treino e seu professor estão ali, aplaudindo e sorrindo para ele. Com seus ombros machucados e ardendo e com o nariz dolorido, felizmente nenhuma parte de seu corpo está sangrando; diferente de seu oponente, que termina o último round com o nariz ensanguentado e com o rosto todo machucado. Depois da vitória, vem a certeza: “Para mim foi o valor do que é o boxe, já que foi o primeiro contato que tive com uma luta, vi que não é uma brincadeira qualquer, não é diversão, é o que quero fazer pelo resto da vida.”

# No vestiário, enquanto passa vaselina no rosto, seus amigos de treino o apoiam. Coloca o protetor bucal e as luvas. Arruma uma última vez as luvas e sai do vestiário, esperando ser chamado. Quando os dois nomes da próxima luta são anunciados, o adversário, da mesma idade, já estava inquieto e não desvia o olhar de Chicano, que o encara fixamente. Soube que o oponente já luta jiu jitsu há anos, o que o intimida ainda mais. Primeiro round: batem o gongo. Chicano está nervoso. Não ataca o adversário, mas também não recua.

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A COMPETIÇÃO


A COMPETIÇÃO

Na maior parte do tempo os dois só se tocam com golpes no rosto e no queixo. Em sua primeira luta é notável o seu cansaço. “Teve uma hora que achei que não ia aguentar, apesar de ter treinado muito. Mas não desisti.” Terminados os três minutos, no intervalo ele se senta no pequeno banco colocado em um canto do ringue por seu professor. Todos os seus colegas se aproximam rapidamente, estimulando o amigo a agir, falando que ele deve ser o ataque e a ação. As palavras de seu professor, durante os treinos, vêm à tona: “Se você achou o treino pesado, fique sabendo que a luta não vai ser nada comparada com o treinos.” Segundo round: Chicano recupera um pouco o fôlego e começa a isolar o outro competidor. Do centro do ringue, bate sem parar no rosto e no queixo do adversário até ele ir para o canto da corda, quando os dois trocam muitos socos até terminar o round. Depois de mais três minutos ele agora está mais cansado que antes, ofegante e suando muito. “Dava pra ver que ele estava tão cansado quanto eu. Quando as luvas se batiam, eu sentia o cansaço dele, mas nenhum para de bater, nenhum abre mão da vitória”. No intervalo, Chicano parece não dar ouvidos a seus colegas. Fecha os olhos enquanto bebe água e espera pelo último round. Terceiro round: Nos últimos três minutos chega a hora do “tudo ou nada”, como os lutadores chamam. “Foi muita pancada. Consegui efetivar uma sequência boa no meio do round e foi a hora que senti que eu finalmente intimidei ele.”

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Chicano ataca primeiro, bate até colocar o oponente no canto da corda, quando começa a bater diversas vezes. “Eu soquei ele, voltava e batia de novo. Nisso ele ficou com receio e foi onde eu cresci naquela luta. Bati sem parar; ele tinha algumas pequenas reações para me impedir, mas não conseguiu me fazer parar nem por um momento. Eu estava muito cansado e desgastado, mas até o final eu lutei.” Com o término da luta Chicano não se machuca tanto, fica somente com os ombros marcados das esquivas que fez. A edição do evento da Virada Esportiva nesse ano de 2012 foi no próprio Centro Olímpico. A cada ano mudam os locais. Estavam presentes atletas de várias outras academias, como Mogi das Cruzes, Poá, Rio Claro, entre outras. O atleta que representaria o Centro Olímpico parecia mais nervoso que os demais. “Eu estava “em casa” e o papel fundamental seria ganhar, mas estava com receio. Tinha muita gente, eu estava ansioso.” - Ele se lembra do que pensou no dia. Desde os 16 anos treina boxe, mas nunca havia competido. Ainda não conhecia a sensação de subir no ringue em uma competição e não mais em um treino. “Eu sabia que nós dois estávamos com o mesmo propósito, não só de bater, mas de derrubar o outro”. - Ele afirma. Seus treinos sempre acontecem naquele mesmo ringue, mas Chicano teve treinos mais pesados e cansativos umas semanas antes. Sabia que valeria a pena todo o esforço; não bastava só bater, era

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A COMPETIÇÃO


A COMPETIÇÃO

preciso também saber se defende. Reforçou isso nas aulas extras que teve semanas antes: “Eu tinha mais brutalidade do que experiência, mais agressividade do que técnica.” Chicano afirma sorridente e satisfeito com o resultado tanto daquela competição, quanto de todos os seus treinos. “Foi a força de vontade que fez a diferença; a superação de querer lutar, sentir o medo e a dor em cima da adrenalina e descobrir que eu ainda tinha força pra continuar. A primeira luta a gente não esquece. Foi muito importante pra mim porque a partir dali eu descobriria se eu queria o esporte pra amar, aquela disciplina do boxe, sentir a dor, ter a vontade de estar no ringue sem desistir; e foi onde me encontrei e tive a certeza de que queria aquilo para a vida toda.”

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A DIFICU


ULDADE


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A DIFICULDADE

27 de outubro de 1963. Edinalva da Silva Nunes. 51 anos. Corrida.

Filha de um caminhoneiro e uma feirante, nasceu em Mucurici, no Espírito Santo.

Tinha apenas seis meses quando, com os irmãos em casa, engatinhou até os restos das brasas do fogão a lenha, ainda quente, que estavam espalhadas pelo chão. Caiu e ficou alguns minutos com a barriga queimando. Seu irmão mais velho foi quem a salvou. Como as opções de hospitais na cidade eram poucas, saíram da emergência de um hospital no Espírito Santo e levaram-na rapidamente para São Paulo. Ficou dois meses em coma, até voltar para casa. Quando fez quatro anos, a família de mudou para Claro das Poções, em Minas Gerais. Não seria a primeira mudança da família: elas sempre aconteciam através de caronas, com caminhões abertos que transitavam pelas estradas e, se o percurso fosse o mesmo, ajudavam quem precisasse. A segunda mudança ocorreu um ano depois; agora, no interior do estado, em Santa Vitória, Edinalva começou a estudar em escola pública. Sempre muito quieta, tinha medo de ser uma das crianças castigadas

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com palmatória. Nesta época, todas as quartas e sextas-feiras era servido sopa, sua refeição preferida. A terceira mudança ocorreu quando Edinalva tinha seis anos. A família se mudou para Uberlândia e lá, ela continuou os estudos. Sua mãe deixava os cinco filhos em casa e ia frequentemente para São Paulo, já que o trabalho rendia melhor. Cada vez que voltava, trazia consigo um homem diferente. Sua mãe teve o primeiro filho, Isaías, aos 13 anos. Benívia, Narcísio e Osmar vieram depois, os três do mesmo pai. Edinalva foi a quinta filha, fruto da relação de sua mãe com um caminhoneiro que conheceu enquanto trabalhava no Espírito Santo. Ademir nasceu depois, filho de outro pai. João (o irmão que Edinalva hoje mais tem contato) e Cida, irmãos do mesmo pai, vieram em seguida. Depois veio Dijanira, e, por último, Helena, a caçula dentre 10 irmãos, todos unidos pela mesma mãe.

# Seu pai era servente de pedreiro e trabalhava das 6h às 18h ganhando pouco. Edinalva, como segunda filha mais velha, ia ao mercado a 4 km de sua casa procurar nos lixos comida para sua família. Colocava sacos plásticos na cabeça e na volta, sempre pelo mesmo caminho, passava por outras crianças que a xingavam de maloqueira e atiravam pedra. Sempre chorava. Raramente seus irmãos iam com ela.

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A DIFICULDADE


A DIFICULDADE

Para esquentar a comida era usado o fogão a lenha. Quem tinha que sair de casa para procurar gravetos e lenha era sempre Edinalva, que também fazia a comida, como arroz e feijão, que comprava quando o pai dava dinheiro. Quando havia água para tomar banho, era sempre de bacia. A única separação para delimitar o espaço do banho eram alguns panos. Suas irmãs atiravam pedras nela e ela não entendia o motivo, só continuava seu banho, como se nada estivesse acontecendo, chorando baixinho.

# Aos 10 anos de idade, ainda em Minas Gerais, veio o primeiro emprego: empregada doméstica na casa de uma médica. Ficou apenas três meses por não conseguir realizar todas as tarefas ao longo do dia. Aos 12 anos veio para São Paulo. Seu irmão mais velho já tinha se mudado alguns anos antes para São Paulo e, ao voltar para Uberlândia para visitar a família, logo lhe contou de um emprego para ser empregada doméstica, em Indianópolis. Ela aceitou sem hesitar e se mudou para a cidade, passando a viver no seu local de trabalho com uma família de origem japonesa. Dona Meire, sua nova patroa, a tratou de maneira rude desde as primeiras semanas, desmerecendo tanto seu trabalho quanto sua pessoa. Trabalhando há dois anos na casa, Edinalva dividia o dinheiro que ganhava: guardava pouco para si e o

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restante enviava para sua família, por correio. Cansada de ser maltratada pela então patroa, Edinalva queria desistir. Sabia que não podia, porque não teria para onde ir ou ficar, e nem como ajudar sua família que ficou em Uberlândia. Ela fala: “Nunca tive amor de pai e mãe, então sempre procurei me ocupar no trabalho. Muitas noites eu sonhava em amanhecer morta por não aguentar mais. Eu não tinha vontade de viver.” Passou a não tomar mais café da manhã. Almoçava o que sobrava somente por volta das 16h e era assim também no jantar, comendo só se sobrasse. Grande parte da comida que sobrava na casa ia para os cachorros de Dona Meire. Pensava todos os dias: “Quero viver só até os 17 anos, aí não quero viver mais, quero morrer”. Sua patroa não dava esperanças de vida para ela, dizendo que pessoas pobres não tinham chances de subir na vida. Edinalva não se conformava com tudo o que a patroa lhe falava, mas ficava quieta, apenas ouvindo. Aos 17, ficava feliz quando ganhava roupas velhas da patroa. Era o único momento em que se sentia bem na casa. Agora queria viver até completar 20 anos. Querendo mudar de vida, Edinalva voltou a estudar. Fez o uso do dinheiro guardado para pagar o supletivo – dois anos de estudo em um. As meninas de sua sala começaram a chamá-la de Olívia Palito, pois era muito magra, e insinuavam que ela gostava de Jorge, o professor de 19 anos, que

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A DIFICULDADE


A DIFICULDADE

também era treinador de karatê e de boxe e grande amigo de Maguila. Em um aniversário de Edinalva, Jorge lhe presenteou com flores e a acompanhou até sua casa. Ele se declarou. Os dois se beijaram. Com seis meses de namoro veio a gravidez. Casaram-se depois de muito Jorge insistir. Edinalva deixou os estudos em segundo plano para cuidar da criança e se mudou para casa de Jorge, no Anhangabaú. Sua sogra se muda para o Rio de Janeiro, deixando o aluguel da casa agora para o novo casal, mas voltando todo mês para visitar o filho.

# Uma de suas irmãs, Dijanira, se envolveu com drogas em Uberlândia. Por consequência de um estupro, ficou grávida. Foi para São Paulo pedir para morar com Edinalva, que não negou. Dijanira não aceitava a criança e ficava dando marteladas em sua barriga para perder o bebê. Certa madrugada, com o intuito de morrer, encontrou alguns comprimidos da sogra de Edinalva no banheiro e tomou cerca de quarenta enquanto todos dormiam. Neste dia, a sogra de Edinalva chegou de viagem do Rio de Janeiro e encontrou Dijanira deitada no chão, rodeada de comprimidos e vomitando. A própria senhora gritou por ajuda e colocou o dedo na garganta de Dijanira para que vomitasse todos os comprimidos. Depois de uma hora, levaram-na para o hospital.

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Dijanira não perdeu o bebê. Meses após o ocorrido nasceu, com deficiência, Michele. Chegou a pedir para Edinalva que trocassem de filhos, mas ela se recusou. Decidiu, então, que não queria cuidar de Michele e voltou para Minas Gerais, entregando a menina ao avô.

# Edinalva trabalhou normalmente durante os nove meses da gravidez e só parou quando as dores do parto apareceram. Neste dia, pediu permissão para ir para casa e foi liberada, mas sem receber ajuda alguma. Voltou para sua casa de ônibus e metrô e, ao chegar em casa, entrou em trabalho de parto. Por sorte, seu marido saiu do trabalho e a levou para o hospital a tempo. Em 28 de outubro de 1982 nasceu Tatiane, um dia depois de seu aniversário de dezenove anos. Três dias após o parto, já estava de volta ao trabalho a pedido de Dona Meire, fazendo todos os serviços como antes, sem descansar. Aos 20 anos, seu marido Jorge finalmente a convenceu a treinar karatê e boxe com ele. Descobriu que sua irmã Cida, que costumava visitá-la todo mês, estava a roubando. Acabou perdendo o contato com a própria irmã.

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A DIFICULDADE


A DIFICULDADE

Era um sábado do mês de maio de 1983. Edinalva tinha 21 anos e, Tatiane, 1 ano e sete meses. Moravam no sexto andar. Edinalva havia combinado com uma vizinha do primeiro andar para cuidar de Tatiane enquanto ia ao mercado. Trocou de roupa para sair. Pegou a filha no colo e desceu até o primeiro andar. Bateu na porta, mas, como não ouviu nenhum barulho vindo de dentro, desistiu e subiu de volta os cinco andares até seu apartamento. Todos os planos pareciam dar errado. Seu irmão havia combinado de ficar com a sobrinha e iria pegá-la na casa da vizinha do primeiro andar, mas estava atrasado. Ela pensou em pedir para a vizinha de porta olhar a filha rapidamente, mas ninguém atendeu. Ficou então com Tatiane até ela adormecer. Fechou a tampa do vaso sanitário, todas as janelas da casa e foi para o mercado comprar banana para a filha, deixando-a dormindo sozinha no apartamento, com a porta destrancada. A vizinha de porta, procurando Edinalva, entrou na casa e, notando que tudo estava fechado e abafado, abriu a porta da sacada. O barulho da porta despertou o bebê. Minutos depois Edinalva voltou do mercado e viu um amontoado de gente em frente a seu prédio. A vizinha de porta se aproximou e disse, chorando: “Edinalva, sua filha…”, mas não conseguiu terminar a frase. Ela, agora desesperada, perguntou várias vezes o que havia acontecido, mas não conseguiu nenhuma resposta de sua vizinha, que não parava de chorar com as mãos cobrindo o rosto e fazendo sinal de negação com a cabeça.

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Com lágrimas escorrendo dos olhos, ela se lembra do acontecimento. “Na hora eu comecei a ficar preocupada. Subi correndo, mandaram-me deitar na cama, falaram para eu tomar alguns remédios – nem sabia para o que serviam, mas tomava. Eu não conseguia associar as palavras de ninguém. Pensava comigo mesma: será que ela caiu da cama? Mas a cama é baixa. Só ouvia algumas pessoas falando que ela teve sorte porque o ferro amorteceu a queda, mas eu não entendia, até que chegou uma senhora e falou para mim: “Minha querida, não adianta te enganar, a sua filha caiu daqui de cima, do sexto andar. Torça para que ela morra, porque se ela sobreviver ela vai te dar trabalho para o resto da vida”. Naquela hora eu não ouvia mais nada, meu mundo tinha desabado. ” Edinalva se levantou, empurrou todo mundo e foi para a sacada, onde os ferros batiam na altura do seu estômago. Colocou um pé para fora e todos correram para segurá-la. Um puxou sua outra perna, outro agarrou sua camiseta, todos impedindo que ela se jogasse. Algumas das vozes diziam: “Não, não faz isso, agora que sua filha mais precisa de você!” Ela não viu a filha. Alguns vizinhos comentaram que viram algo parecido com um pano caindo. Logo que caiu da sacada, Tatiane bateu em uma placa de propaganda que amassou, e caiu para o lado de dentro do prédio e não para a rua. Foi parar no espaço da sacada do apartamento do primeiro andar, justamente aquele que a filha deveria ter ficado alguns minutos antes. Um dos vizinhos pegou o bebê e levou para o hospital.

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A DIFICULDADE


A DIFICULDADE

Os policiais chegaram depois para buscar Edinalva e a levaram para ver sua filha. Enquanto descia da viatura, o rapaz que pegou sua filha caída logo falou: “Olha, eu fiz o possível, veio uma junta médica inteira, tentaram salvar a vida dela, mas não teve jeito…”. Ele não sabia como terminar, mas, pela sua feição, isso bastava. Ela tinha entendido. Entrou em choque. Levaram-na para um quarto e a medicaram. O marido estava no trabalho. A vizinha do primeiro andar estava dormindo àquela hora. O irmão havia perdido a hora e desistiu de ir. A vizinha de porta não estava em casa naquele momento. Por seis meses, todas as manhãs, ela foi ao cemitério às 6h30 e só retornava às 17h30. Depois desse acontecimento ela nunca mais foi a mesma. Começou a ter perda de memória e de atenção no que está fazendo. “O esporte me ajudou. Eu cheguei a conhecer muitas mães que ficaram loucas depois que perderam os filhos, e eu não queria aquilo pra mim.”

# Chega uma notícia inesperada, que renasce a esperança em Edinalva: aos 24 anos, está grávida novamente. Seus pensamentos começam a mudar: agora tinha sede de viver, de ter uma vida ao lado do marido e do novo filho. Deixa o boxe para se dedicar à família, apesar de nunca ter participado de competições.

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No dia 6 de abril de 1988, nasce sua segunda filha, Cristiane. Deixa o emprego de empregada doméstica por insistência do marido e vai trabalhar na feira, enquanto sua filha tem apenas seis meses de vida. Satisfeita, não esquece o que sua patroa lhe disse no último dia: “você foi a melhor empregada que eu já tive na vida. ” Compra roupas no Brás e eletrodomésticos na rua 25 de Março para revender e chama uma amiga para trabalhar com ela. Sua irmã caçula, Helena, deixa Minas Gerais e vem à São Paulo pedir para Edinalva para para que possa morar com ela, que não nega. Meses depois descobre que seu marido a traiu com Helena, e depois, com outra mulher. Se divorciam porque Jorge escolhe ficar com a segunda amante. Edinalva o perdoa, mas agora fica sozinha com Cristiane. Helena continua morando na casa de Edinalva, mas se envolve com drogas e a irmã decide interna-la em uma clínica no Espírito Santo. Helena permanece durante oito meses, até receber alta. Com o dinheiro que juntou como empregada doméstica, se muda com Cristiane para a zona norte da cidade, em Santana. Para poder trabalhar o dia todo, deixa a bebê todos os dias com a sogra, que voltou a morar em São Paulo para ficar. Apesar do divórcio, sua sogra nunca negou ajuda.

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Aos 26 anos abre uma sociedade com um amigo. Edinalva entra com a maior parte do dinheiro e seu sócio com a mão de obra. Agora, além de trabalhar na feira, também era dona de uma funilaria. Consegue juntar dinheiro o bastante e realizar um de seus sonhos: comprar um carro. Usa o Ômega para poder transportar as roupas que vende na feira e andar com a filha em segurança. Um cliente da funilaria passa a frequentar mais o local porque se interessa por Edinalva. Ele também passa a ir toda semana à feira para vê-la. Tornam-se amigos. Quando um dia o carro dele quebra, ela não cobra pelas peças do conserto. Ela conta a ele, orgulhosa, que comprou um sobrado. Um dia, ele oferece companhia a ela para voltar para casa, que mostra o lugar de seu novo lar. Apesar da insistência, Edinalva nunca quis se envolver com ele. Na feira, seu amigo comenta com Edinalva que ouviu que ela está precisando de pedreiros para ajudar na reforma de sua casa. Ele conta de um amigo que trabalha como pedreiro e cobra barato; logo, ela aceita. Diz que eles podem ir à sua casa qualquer dia para que possa fazer o orçamento o quanto antes.

# Ela acaba de voltar da academia, ainda está vestida com o quimono do karatê. Uma amiga está na casa para comprar roupas de presente para a mãe. Enquanto ambas conversam, batidas na porta são ouvidas. O amigo de Edinalva chega antes e já fala:

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– O meu amigo, o pedreiro, está a caminho! – Tudo bem! Olha, não repara na bagunça porque ainda estou reformando algumas coisas. – Imagine, Edi! Posso usar o banheiro? – Claro, é lá em cima. Ele demora; Edinalva e sua amiga até estranham, mas continuam a conversar. Nesse tempo que fica no banheiro, aquele que se diz amigo de Edinalva procura um lugar para guardar uma faca, um revólver, um rolo de arame e uma fita adesiva. Percebe que a janela do quarto não tem vidro e logo pensa que não dá para atirar, porque o barulho seria muito alto. A amiga vai embora e o pedreiro, enfim, chega. Ela abre a porta e ambos sobem em direção ao banheiro, onde o amigo está. Ele sai, e os três vão em um dos cômodos que precisa de reforma. Enquanto passam pelo corredor, o amigo chama sua atenção só falando seu nome e, quando ela se vira, é empurrada com força contra a parede. Ele tapa sua boca, aperta sua garganta e coloca um pano com gás em seu nariz enquanto o pedreiro borrifa mais gás em todo o seu rosto. Edinalva finge desmaiar e fecha os olhos. Escuta o amigo gritar “Pega a faca pra matar ela, tá no banheiro”. Ele a solta no chão e ela desaba. Ela sabia que iria morrer aquele dia, seja com faca ou com tiro, então resolve se suicidar. Se levanta rapidamente, empurra o homem que antes a segurava e busca qualquer janela para se jogar, mas sua vista está embaçada. Vai em direção à escada para descer e

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sente a mão de um deles a empurrar fortemente escada abaixo. Ao cair pelo último degrau, tudo o que é possível ver é o vermelho do sangue de sua cabeça e de seus braços espalhados pelo chão. Se levanta e corre para a cozinha enquanto ouve gritos: “ela tá fugindo!”; quando ela olha para trás, vê ambos vindo atrás dela, um com a faca na mão e o outro com a arma. Corre para passar pela porta da cozinha, que está entreaberta. Seu corpo inteiro passa, mas um deles encosta em seu pulso enquanto ela atravessa a porta correndo de lado. Ela, com reflexos rápidos, se solta antes mesmo dele agarrar com mais força. Edinalva fala, assustada, do momento que parecia não ter fim: “Foi um filme de terror, um desespero total. Graças às técnicas de reflexo que treinei no karatê consegui ir caindo pelas escadas e protegendo minha cabeça e consegui correr tudo o que corri, inclusive passar por aquele pequeno espaço da porta da cozinha. Não dá para entender, nem eu entendi como sobrevivi. Foi um milagre de Deus, não era pra eu morrer. Da mesma forma que minha primeira filha tinha que morrer, aquela não era a minha hora. Fiquei traumatizada.” Edinalva sai pela porta da cozinha correndo para a rua. Do outro lado da rua tinha um homem no orelhão e muitas crianças brincando. Quando viram sua roupa de karatê toda suja de sangue a cercaram perguntando o que havia acontecido. Sem fôlego, não consegue responder. Olha de volta para sua casa, vê o homem que dizia ser seu amigo embrulhando a arma na blusa,

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enquanto o outro agora está com um molho de chaves, entre os seus dois carros - o Ômega, o primeiro carro que comprou, e um Escort - tentando encaixar a chave certa no primeiro carro para roubar. O fôlego não volta, mas assiste aos últimos atos daqueles dois homens em sua casa. Não conseguiram abrir a porta de nenhum dos carros com nenhuma das chaves e ambos pulam o muro, que leva para o mato. Nunca mais aqueles dois foram vistos. Uma amiga vai buscá-la e a leva para sua casa, onde passa a noite. No dia seguinte, não consegue entrar na casa para pegar suas roupas. Ao passar pelo corredor, vê as marcas de suas mãos na parede que se formaram com o gás. Ao ver aquilo teve a certeza de que não queria mais morar ali. Vende a casa a um preço muito, mas muito pequeno.

# Edinalva está em um corredor imenso. Ela corre, mas parece não ter fim. Dois homens a perseguem rapidamente. Tudo em volta está escuro. Quando chega ao final, não há saída; não há janela ou porta e ela grita, mas ninguém parece ouvir. Muitas vezes acorda no meio da noite assustada com esse mesmo pesadelo. Quando se deita, lembra-se das cenas. Após alguns meses morando de favor com uma amiga, aluga uma casa no mesmo bairro, a 2 km da antiga, e passa a morar no fundo de uma casa. Apesar de ser perto, pelo menos não precisa dormir naquele

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lugar, palco de um dos piores momentos de sua vida. Assustada e traumatizada, contrata dois seguranças que a acompanham 24h por dia. Já fica nervosa quando algum amigo sequer encosta a mão nela. O medo não a deixa viver. Sua filha, Cristiane, fica com a ex sogra até que Edinalva se sente melhor. Começa a frequentar a igreja e, um mês depois do ocorrido, o trauma havia passado.

# Compra carros em leilões para consertar na funilaria e chega a ter sete carros de uma só vez, mas, ao ver que quanto mais carros tinha, mais atenção chamava, decide de desfazer de todos, dando-os de presente para seus irmãos e os outros para amigos. Acaba a sociedade na funilaria quando faz 30 anos de idade. Aos 32, descobre que o filho da dona da casa em que mora rouba suas coisas. Muda-se novamente, mas para o mesmo bairro.

# Começa a correr. Pega o gosto pela prática esportiva e não para mais. Sente-se livre de novo. No tempo em que teve aulas de karatê conhece muitas pessoas, entre elas, Antônia Osvaldina, uma maratonista. Um dia, Antônia a vê correndo no Horto Florestal de quimono, por causa das aulas de karatê, e logo diz:

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– Ô, guria, você corre? – Não, eu só corro às vezes. – Como consegue correr com essa roupa? – Eu já acostumei! É a roupa do karatê. – Você já participou de alguma competição? – Nunca, mas o meu sonho mesmo é correr uma São Silvestre. – Por que você não participa? – Não, eu não consigo! – Acho que consegue! Tenta fazer 15 km de voltas aqui no Horto e eu vejo o seu tempo. Edinalva correu. O tempo foi de 1h24 e Osvaldina logo se surpreende: – Guria, você vai conseguir! – Não, eu não consigo. – Você vai conseguir sim, ainda tem dois meses para treinar. A amiga consegue convencer Edinalva, que passa a correr todos os dias, durante dois meses, até chegar a sua estreia na São Silvestre, em 1996. Com 1h26, percorre os 15 km completos. Depois desse dia, não parou mais de competir. Aos 39 anos começa a ter dores fortes no joelho em um treino de rotina. Não costuma alongar antes dos treinos e sempre corre na rua, no asfalto desnivelado, o que começou a piorar seu joelho com o tempo.

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Começa a vender roupas em um brechó, usando a parte da frente da casa. Como compra muita roupa para vender na feira, não tem mais lugar para guardar. Aos 47 anos, seu pai vem a São Paulo morar com ela para receber tratamento médico por começar a perder a visão. A mãe continua em Uberlândia. Edinalva ajuda com o dinheiro que pode, mas o pai acaba voltando para Uberlândia semanas depois, para a casa de Benívia, por não ter condições de custear os tratamentos e, infelizmente, chega a falecer. Sua neta Michele, de quem cuidava, passa a morar com Benívia.

# Em setembro de 2014, Edinalva e a filha tinham até o mês de dezembro para mudarem de casa, já que o contrato do aluguel iria vencer. Por sorte, encontra na mesma rua uma casa menor e mais barata, com a qual comprou com a maioria do dinheiro que tinha, e mais um carro que deu ao dono, negociando pagar o resto todo mês. O irmão do dono da casa e alguns amigos dele são pedreiros, e combinam de reformar a casa. Em novembro a casa está quase pronta. O filho do dono da casa avisa que alguns daqueles pedreiros que estavam trabalhando para ela decidiram matá-la para ficar com todos os seus bens. Edinalva fica apavorada e conta a todos.

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Depois de ficar três meses fazendo hemodiálise, seu ex-marido, diabético, falece aos 52 anos, em dezembro. A saudade de Jorge ainda bate, mais pela amizade do que pelo amor.

# Em 18 de janeiro de 2015, Edinalva e sua filha de mudam para a nova casa, ainda em reforma. O primeiro dia de fevereiro também é a primeira competição do ano de Edinalva. Ao sair de casa às 5h, para levar as roupas à feira, não encontra seu carro no lugar onde sempre estaciona na rua, em frente à sua casa. Com o carro roubado, perde a primeira competição do ano. Chama a polícia, que encontra o veículo horas depois em Franco da Rocha. Não tem dúvidas de que o autor do crime foi o mesmo que teve a ideia de tirar sua vida. Fica mais triste pelos troféus do que pelo carro. Ao todo, tinha 31 troféus dentro do automóvel. Quando todos os rapazes que trabalharam na reforma de sua casa estão na rua conversando, ela se aproxima e começa a falar: “Eu sei quem roubou o meu carro! Não precisam nem falar quem foi! Vocês todos são jovens e eu não quero prejudicar nenhum, quero dar mais uma chance pra pessoa”. Um deles responde: “Então quem é? Fala o nome porque daí todo mundo fica sabendo e toma mais cuidado”. A própria Edinalva sabia que, entre eles, todos sabiam quem era o responsável. Não falou nada. Desejou boa noite e voltou para sua casa.

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# Sábado, 28 de fevereiro. Ela acaba de chegar da igreja, quando ouve o toque da campainha. O responsável pelo roubo do carro vai até a casa dela e, assim que ela abre a porta, ele começou a falar antes que Edinalva fechasse a porta: – Desculpa por tudo o que eu fiz pra senhora, eu sei que errei muito. Eu nunca pedi nada pra senhora, mas eu queria pedir um favor. – O que você precisa? Se não for dinheiro, eu te ajudo. – Hoje tem uns caras que estão me procurando porque querem me matar. Por favor, dona Edinalva, me ajuda! A senhora me interna? Eu não consigo parar. – Olha, eu sou uma pessoa cristã, e não quero prejudicar ninguém. Eu vou te ajudar, vou te internar. Dorme aqui em casa e segunda-feira eu te interno. Edinalva já havia internado um dos vizinhos meses antes e falou para o rapaz, meses atrás: “O dia que você quiser que eu te interne, você me avisa”. O dia finalmente chega. Alguns dias antes esse mesmo rapaz havia bebido e se drogado, e decidiu invadir a casa de um traficante para dormir. Quando o dono da casa chegou, ao invés

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de se desculpar e sair, acabou dando um soco no dono da casa por reflexo e influência do que tinha consumido. Ela sabe que está abrindo as portas de sua casa a um traficante, ladrão e participante do PCC, que deve mais de cinco mil reais a outros; estes que o procuram para matá-lo, incluindo o dono da casa invadida por ele. A casa do rapaz é invadida no dia que ele decide pedir ajuda à Edinalva, mas ele já não estava mais em casa. Edinalva viu na rua um dos traficantes que está atrás do rapaz, tomou coragem e disse: – Perdoa ele, entrega pra mão de Deus! – Não sou eu quem vai acabar com eles, os caras que vão. Só tô ajudando a procurar ele. – Não faz isso, dá uma chance pra ele. – Não é pra mim que você tem que falar isso. E saiu, continuando a busca pelo rapaz. Na mesma noite sua filha Cristiane chega mais tarde em casa por ter ficado ajudando na igreja. Ao se deparar com aquele rapaz dentro de sua própria casa, começa a gritar: – Mãe, esse cara queria te matar e você ainda põe ele dentro de casa?!

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A mãe sobe para o quarto com a filha e fala sobre o perdão e sobre a internação que vai acontecer na segunda. A filha continua indignada e com medo, mas se acalma. Triste, Edinalva fala: “Eu estou ajudando ele porque sinto como se fosse mãe dele. Eu tenho uma filha, e se ela estivesse nessa situação? Ninguém pode negar ajuda a alguém. Eu quero ajudar.”

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31 de Maio de 1956. Messias Gomes. 58 anos. Boxe. Fruto de uma cabocla com um índio, nasceu na cidade de Abaetetuba, interior do Pará. Com apenas um ano e seis meses, sua mãe biológica deu Messias para uma conhecida, com a qual viveu uma parte de sua infância. Nunca conheceu o pai, mas, aos seis anos, conheceu a mãe. Uma senhora se aproximou de Messias e disse: “Oi, toma bênção”, algo comum que todos falavam. Ele ficou incrédulo ao ver aquela desconhecida bem na sua frente dizendo ser sua mãe. “Tu não és a minha mãe. Se tu fosses mesmo, não tinha me dado pra outra.” Ele se virou e correu em direção ao mato, se afastando dela sem olhar para trás. Aos oito anos pediu para trabalhar em um pequeno mercado do Pará. Foi por pouco tempo, mas, depois disso, vendeu picolé, chapéu e tudo o mais que podia na feira. Queria ficar o mínimo possível dentro de casa porque estava cansado de apanhar. Certo ou errado, Messias sempre apanhou e, na maioria das vezes, não entendia nem sabia o motivo. A mulher descontava toda a sua raiva nele, batia e depois o colocava de frente para a parede. “Mas por que eu tô apanhando de novo? Eu não fiz nada!” ele falava, até que um dia desistiu e só ficou ali, quieto e apanhando.

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Com nove anos se mudou para a casa da mãe da moça com a qual morava. Esta, chamada Maria, mas para Messias, sempre foi “Lia”. Tinha um carinho por ela, diferente da outra, que o maltratava. Começou a estudar em uma escola do Estado. Morador da periferia, não tinha muitos amigos. Todas as noites sentava na rua e olhava para o céu pensando em como seria sua vida daqui para a frente, agora que se sentia seguro. Sempre disposto e enérgico, mesmo quando brincava com outros meninos não se sentia satisfeito. Vendeu coisas na rua para ajudar em casa, mas também porque não conseguia ficar parado. Aos poucos compradores de Messias, ele insistia para dar algo melhor em troca além dos objetos de pouco valor vendidos, como lavar o quintal, ou ajudar de alguma outra forma que fosse.

# Uma amiga de Maria passou a morar com os dois. Certo dia, Messias estava estudando, sentado no chão frio da pequena sala da casa. Ela o puxou pela orelha e bateu nele por estar estudando e não comprando o seu cigarro. Não saía muito de casa porque começou a arrumar brigas e justamente por isso, foi apelidado de “privado” pelos outros meninos. Com sua boa mira, acertava onde quisesse em qualquer um dos meninos do bairro, que passaram a respeitá-lo depois que começou a ganhar nas brigas. Com as constantes brigas entre os meninos na rua, um de seus poucos amigos acaba apanhando. Eram duas ruas paralelas; os meninos que moravam

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em uma não podiam pisar na outra e vice versa. Chamaram Messias, um dos “chefes” de uma das ruas. Com a briga marcada entre os meninos para a noite, Messias estava lá, pronto para brigar. O outro menino estava com um cabo de vassoura em mãos e ele, desarmado, mas louco para bater com as próprias mãos, até que a mulher que morava com ele aparece: – Tá fazendo o que aí, moleque? Vai pra casa! – Não, eu vou depois! – O que? Você disse que vai depois? Pra casa, agora! Messias encarou o menino e depois a mulher, que falou nervosa: – Tá esperando o que? O que é, vai me bater agora? – Não senhora. Messias chegou perto do menino, falou em seu ouvido, “Depois a gente termina isso” e foi para casa com ela, de cabeça baixa, que não hesitou em chamá-lo de sem vergonha na frente dos outros meninos.

# Aos treze anos ouviu sobre como São Paulo era um lugar para onde todos iam e conseguiam dinheiro. Desde então só ficou mais encantado com tantos elogios sobre como a cidade era bonita e recheada de oportunidades. Finalmente seu sonho se concretizou: saiu do interior do Pará com as duas

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mulheres que moravam junto, e os três pegaram carona com um caminhoneiro com destino a São Paulo. Seu novo lar passou a ser na zona norte da cidade, na Voluntários da Pátria. Andando pelas ruas tentou arrumar qualquer tipo de trabalho. A feira foi onde começou tudo. Messias conseguiu dinheiro, mas o pouco que ganhava era usado por uma das mulheres com quem morava para comprar cigarros. Ele tentava guardar o pouco que restava para comprar comida para si no dia seguinte. Um dia, à noite, as duas já dormiam, mas Messias não estava com sono. Saiu da porta de casa e ficou ali em frente, pensando em como sua vida parecia não ter melhorado e como queria ter um emprego de verdade. Mudaram-se para o bairro São Francisco, próximo à Ponte Rasa. Ele voltou a estudar porque sabia o quanto ter estudo era importante para arranjar emprego. Todas as noites, enquanto a amiga de Maria fumava, esta ensinava Messias a cozinhar e a costurar. Às vezes, antes de dormir, ela o ensinava a rezar e sempre usava as palavras de Deus para dar de exemplo a Messias. Não fez muitos amigos na nova escola e um dia, quando estava triste, sua professora consolou ele, que contou sobre suas dificuldades e pediu sua ajuda para conseguir tirar uma carteira de trabalho porque, até então, menor de idade podia trabalhar. Com a ajuda da professora, começou a trabalhar em uma empresa chamada Cristaleria Ampex, que hoje não existe mais. Chegou a trabalhar muito, além de ter de fazer café todos os dias, mas não se importava, contanto que continuasse ali, trabalhando e ganhando seu próprio dinheiro.

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Quando recebeu o primeiro salário voltou contente para casa e o entregou para uma das mulheres, a que não tinha empatia por ele. Mas estava alegre e entregou mesmo assim. Ela olhou, contou nota por nota, e gritou “Só isso?”. Messias ficou sem saber o que fazer ou falar, pois era tudo o que tinha conseguido depois de muitas horas extras. Sem pensar mais, pegou todo o dinheiro de volta da mão dela e disse “Só isso sim, daqui pra frente é só isso.” Foi dormir triste, e a vontade de sair daquela casa só crescia dentro dele. A cidade começa a se tornar um paraíso depois de ter sonhado tanto com esse momento. Com apenas um ano no emprego, conquista o cargo de chefe de seção. O que todos fazem em um mês, Messias faz em uma semana. Sempre disposto, não vai embora até terminar todas as suas tarefas, sem deixar nada pendente para o dia seguinte e, quando deixa, faz hora extra. Sai correndo do trabalho e vai para a escola, todos os dias. Aos finais de semana assiste a filmes sobre esportes de contato, como o kung fu e karatê, além de todos os filmes que Bruce Lee participa, pois não consegue acreditar em como ele faz aqueles movimentos tão rápidos e tão bem sincronizados sem se machucar. Sabendo que tinha seu trabalho garantido, aos quinze anos sai de casa. Em Itaquera, aluga um minúsculo quarto e passa a morar sozinho. Pega gosto por qualquer leitura e lê tudo o que lhe emprestam. De noite, gosta de ficar na rua olhando para o céu e para as estrelas. Fala sozinho. Com o gosto que tem pela corrida, depois de tanto apostar corridas quando mais novo, começa

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a fazer atletismo e a competir em corridas de rua aos dezesseis anos. Como não tem família e nem amigos próximos, se ocupa como pode no esporte.

# 23h. Avaré. Corrida de 10 km. Véspera de Natal. Seu treinador o acompanha, mas mesmo assim não sente que está tão perto do Natal; só pensa na corrida, naquele momento e em vencer. Depois de guardar dinheiro, compra um tênis Conga branco, com o qual participa da prova. Não ganha, mas fica feliz simplesmente por estar ali, correndo. Seu treinador, que faz suas inscrições, incentiva os treinos ao máximo, mas o próprio Messias percebe que está fazendo o esporte errado porque ainda não sente que era realmente é o que quer. Todas as noites ele gosta de pular corda que ganhou de um vizinho, e chega a ficar mais de 2h se entretendo sozinho. Isso dá velocidade para suas pernas sem que ele mesmo perceba. Capoeira passa a ser seu novo esporte durante poucos meses. Desiste por não se sentir totalmente à vontade. Escolhe o judô, mas também não gosta. Fica então, desmotivado com qualquer prática esportiva.

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28 de Julho De 1971. Lucimar De Jesus Gonçalves Medeiros. 43 Anos. Luta Olímpica. Nasceu em Minas Gerais, assim como seus pais. Vieram a São Paulo quando Lucimar tinha dois anos, buscando oportunidades de trabalho na cidade grande. A menina negra, baixinha, magra e tímida sempre foi de poucas palavras. Nunca teve muitos amigos. Na escola pública, todas as manhãs pareciam não ter fim para Lucimar. Os meninos e até mesmo as meninas faziam piadas com ela; encaravam mesmo quando estava quieta, empurravam mesmo quando estava sentada. Para se distrair, aos dez anos, começou a treinar atletismo por curiosidade. Não gostou e ficou menos de um mês nos treinos. Assistiu a muitos filmes do Bruce Lee, ficou encantada e logo se interessou pela luta. Procurou aulas de kung fu. Seus pais não gostaram da ideia, mas, ao ver o desânimo da filha crescer, somente esperaram ela desistir. Durante as primeiras aulas sentiu que não se encaixou nos treinos e também abandonou as aulas. Pensou novamente em praticar algum esporte para se defender e a vontade, aos onze anos, foi do judô. Sua família não apoiou a ideia, achou violento

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demais. Ficou triste por não poder treinar. Adoeceu e ninguém soube explicar o motivo. No médico, o próprio disse à mãe que Lucimar precisava gastar as energias de alguma forma e que a prática de algum esporte seria ideal. A partir desse dia, a família não a impediu mais de treinar. Apesar da permissão dos pais, eles nunca apoiaram, mas também não acreditaram que ela iria treinar por muito tempo. Ela falou, angustiada: “Na época em que comecei o judô eu estava com alguns problemas pessoais, sempre fui muito agitada e era uma fase muito complicada. Quando entrei para o esporte, entrei com um único objetivo: o de brigar. Na verdade, era mais pra me defender, porque eu apanhava muito e queria entrar em algum esporte de contato para que eu pudesse brigar, encarar as pessoas.” Lucimar teve febre e começou a ter queda de cabelo aos doze anos. Sua mãe fez um alisamento e foi justamente este motivo que os médicos deram a causa, acreditando que o alisamento queimou seu couro cabeludo, causando a queda dos fios e a febre. Chegou todos os dias na escola já de cabeça baixa. Usou perucas e lenços para esconder as falhas do cabelo, e os colegas de classe a xingaram, empurraram e até bateram nela. “Sempre que chegava em casa apanhava ainda mais porque tinha apanhado na escola, o que era pior. Então eu não sabia se batia ou apanhava.” - Ela riu, com um tom de reprovação. Lucimar afirmou indignada: “Apanhei muito, muito mesmo. Tanto de meninas quanto de meninos. Alguns

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eram maiores que eu e, os que eram menores, sempre vinham em grande quantidade para me cercar.” Aos quatorze anos, após muitos exames, finalmente teve um diagnóstico da queda de seus cabelos. Segundo os médicos, ela tinha transtorno de ansiedade, ou seja, além de se cansar rápido, possui um sistema imunológico abalado que se voltou para seu cabelo que, depois de fazer alisamento, não cresceu mais. Através dos ensinamentos e dos treinamentos conheceu melhor a filosofia do esporte, percebeu que não servia para bater nos outros e sim para eliminar toda a sua agressividade acumulada. Conseguiu se reeducar e se realocar na escola, onde passou a ser respeitada quando todos souberam que a pequena menina indefesa e tímida agora sabia se defender, e muito bem. Conheceu um rapaz alguns anos mais velho morador do mesmo bairro, que a encantou por sua simpatia e por não ligar para a queda de seu cabelo. Depois de meses, começaram a namorar. Seu cabelo cresceu bem pouco durante sua adolescência e, quando chegou na vida adulta, parou de crescer completamente. “Eu sofri bullying, sofri muito na escola.” Aos dezenove anos foi pedida em casamento pelo seu então namorado e aceitou, feliz em saber que agora tinha alguém ao seu lado que apoiava todas as suas decisões e, principalmente, que gostava dela do jeito que ela era.

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# Se interessa pela luta olímpica aos vinte e oito anos e concilia seus horários de treinos de judô com a luta. Ainda se sente intimidada quando todos olham para ela fixamente, mas está cada vez mais confiante. Aos trinta anos, com as competições que participa na luta olímpica, compete contra meninas que representam o Centro Olímpico. A instituição que Lucimar representa não possui todos os recursos que uma atleta precisa, como acompanhamento de médicos fisioterapeutas, fundamental para um atleta, então ela resolve mudar seus treinos para o Centro Olímpico. Dois anos depois, decide abdicar do judô e passa a se dedicar somente à luta olímpica. “Fiz a escolha certa, sou apaixonada até hoje pela luta olímpica”. Lucimar é campeã brasileira de luta olímpica com trinta e três anos. Aos trinta e seis, para de treinar e de competir luta olímpica. Se candidata para ser voluntária, a ajudar os alunos nas aulas com o que sabe. A então professora vê seu potencial e a convida para ser sua estagiária. Com a saída da professora, Lucimar, agora com trinta e oito anos, passa a assumir as aulas, sendo contratada para o cargo de supervisora técnica. A sala dos professores passa a ser seu local de trabalho. É pequena, mas de uma forma confortável. Pintura toda branca, dois armários antigos que

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cobrem uma das paredes, uma grande mesa retangular ao centro da sala, outra parede vazia a não ser pelo relógio, e duas escrivaninhas e pequenas bancadas nas outras duas paredes, uma em cada, de costas para a mesa central da sala. Como nem sempre todos os técnicos ficam na sala juntos por conta dos horários das aulas, na maior parte do dia ela fica vazia. Sua vida foi mudando aos poucos. Conhece o mundo esportivo quando criança e não consegue mais largar. “Tive outra realidade graças ao esporte. Minha paixão sempre foi lutar. Conheci o judô, gostei, e meu principal objetivo era aprender a lutar para depois bater, mas na verdade nunca precisei usar o que aprendi; nunca entrei em brigas escolares e em brigas de rua porque o primeiro ensinamento é se autocontrolar. O judô era uma prática esportiva, era um caminho da suavidade, era uma limpeza do corpo e não a violência. Percebi que não é a luta que é violenta, são as pessoas.”

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2 de Agosto de 1991. Chicano. 23 anos. Boxe e Muay Thai. Pai de São Paulo, mãe do Nordeste, nasceu também em São Paulo. Seu avô é do México, um dos motivos por seu apelido.

Aos treze anos de idade, um garoto magricelo de olhos pretos marcantes e com muitas olheiras chamou a atenção de tanto se drogar. Foi com essa mesma idade que se envolveu com o tráfico e, além de consumir drogas, começou a vendê-las. Foi apelidado de Cobra. No início, vendeu somente entorpecentes. Vendeu muitas drogas para seus vizinhos, mas também para adolescentes ricos que entravam na periferia. Não era fã de futebol como todos os outros garotos de sua idade, mas como assistia a filmes de lutas na televisão, se interessou por outro esporte: o boxe. Começou a treinar por pura curiosidade. O primeiro local de treino de sua vida foi em uma academia na Avenida São Miguel. Treinou por pouco tempo já que más companhias o influenciaram no momento e, segundo suas próprias palavras, “Me fizeram achar que aquilo seria legal para mim e acabei me deixando levar”. O morador da periferia da extrema zona leste, no Jardim Nazaré, além de estar envolvido com drogas, passou também a roubar. O

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sentimento que lhe prevaleceu foi de pura indignação: “Onde eu morava eu via muita gente morrer; amigos meus, muita gente foi presa e me gerava frustração de querer algo melhor, de às vezes tentar mudar, mas pelo fato de eu ser da periferia as pessoas me olhavam de certa forma e não tinham muitas saídas. Como eu ia estudar se na escola o professor entrava na sala e não fazia nada? Nenhum dos alunos mostrava interesse. Eu iria me espelhar em quem? No cara que era empresário, advogado ou no cara que era traficante e estava andando com um carro rodeado de mulheres e com o bolso cheio de dinheiro? Não tinha muita alternativa, mesmo.” Cobra sempre pensou consigo mesmo, sem dividir suas opiniões com ninguém: “O que vinha na minha cabeça era: quem é mais bandido, o moleque que mora na rua, pede moeda, usa drogas e rouba os outros para sobreviver ou o policial e o político; quem é mais sujo? Porque até então o moleque que rouba não precisa se esconder atrás de farda. E a diferença é que quem vive dentro dessa situação não tem um diploma, enquanto os políticos têm e roubam. As pessoas te julgam pelo que você tem. A única diferença era essa, e era o que me revoltava mais.” Depois de ter se envolvido há um ano com o tráfico, foi promovido a gerente, e passou a tomar conta de quatro bocas dentro da periferia. Nesta época, Cobra já tinha passagem por tentativa de homicídio e roubo.

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Com dinheiro garantido todos os dias e com responsabilidade como gerente que se tornou decidiu então, deixar sua família. Nunca ouviu os conselhos dos pais; desde pequeno ele e seu irmão ajudavam no que podiam, mas, com as coisas erradas que fazia, Cobra chegou a levar drogas para dentro de casa. Ele próprio percebeu o problema que estava trazendo para sua família e não os queria envolvidos em seus problemas. Seus pais imploravam para ele deixar essa vida, mas não ele não deu ouvidos e saiu de casa. Mudou-se para uma casa que dividiu com dois colegas, também envolvidos no crime. Um deles era um dos que tomava conta da periferia e o outro era gerente, assim como Cobra. Os moradores da periferia se vangloriavam pela ostentação que, para manter, para muitos era só com o crime. O garoto pensava: “tenho que fazer o meu porque sei que vou morrer ou vou preso, então tenho que ter dinheiro e conseguir alguma coisa pra mim. E se eu puder ter alguma coisa, deixar alguma coisa pra minha família, vou fazer. Eu tinha esse propósito dentro da minha cabeça. Não me desesperava, só estava levando com o tempo e continuava dentro do crime, que era a forma até então que eu tinha de conseguir dinheiro.”

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Antes de sair para um dos assaltos, encontrou seus amigos e todos se drogaram como de costume. No início da noite todos conversaram por celular, perguntando uns para os outros se alguém ia sair, fazer alguma “cena” e quem estivesse precisando de dinheiro, ia. Eles chegaram ao local escolhido: um bar movimentado do centro da cidade. Um deles já chegou apontando a arma no rosto e na boca das pessoas, Cobra deu mais coronhadas e socos enquanto seu amigo já chegou batendo. Tudo aconteceu muito rápido; eles mandaram todos darem tudo o que tinham e logo saíram correndo. A agressividade sempre esteve presente. Compaixão e dó nunca. Durante o assalto, tentou assustar as pessoas ao máximo; só atirava se alguém reagisse, o que não era muito comum. Cobra não costumava atirar, mas, quando era preciso, principalmente para se salvar, não pensava duas vezes. Sempre foram de moto ou de carro para outros bairros, como Morumbi e Vila Olímpia, e também em lugares sempre cheios, como os bares da Augusta. Quando voltaram deste assalto, de madrugada, estavam com objetos e dinheiro, somando em torno de R$1.000,00. Às vezes, a noite rendia R$500,00, mas, mesmo assim, todos dividiam os objetos e dinheiro entre si.

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Todos estavam acostumados a ganhar dinheiro rápido em apenas uma noite e não se interessavam em trabalhar para ganhar até menos em um mês. Infelizmente, acomodaram-se. Da mesma forma que o dinheiro entrava rápido, saía rápido, porque todos sabiam que teria mais na noite seguinte. Às vezes, Cobra e os amigos saíam com uma arma na cintura, mas voltavam sem nada pelo assalto parecer arriscado; então, saíam novamente de madrugada para conseguirem algo, ou seja, quando Cobra não estava vendendo ou consumindo drogas, estava roubando. O dinheiro foi sempre usado para os mesmos fins: roupa, mulher, balada e droga. Somente aos quinze anos de idade, as consequências apareceram. Como em todos os roubos de motos que faziam, eles desmanchavam, adulteravam o chassi e vendiam as peças. Um dia, em um dos assaltos que Cobra e um amigo fizeram, assaltaram um homem e roubaram uma moto de 500 cilindradas. A vítima reagiu e o amigo, o único armado entre os dois, deu três tiros nele; um foi de raspão e os outros dois acertaram na altura do tórax. Logo depois fugiram, achando que nada aconteceria como estavam acostumados, mas a polícia viu e a viatura seguiu a moto que, ao estar sendo dirigida desesperadamente por Cobra, acabou derrapando e os dois caíram dela. Ao se levantarem, seu amigo trocou tiros com a polícia, e levou dois na altura do pescoço; foi nesse mesmo momento em que Cobra se viu sem saída, colocou

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as mãos na cabeça e se ajoelhou, enquanto assistiu a um amigo que considerava um irmão morrer bem diante de seus olhos. Foi, então, preso por roubo de moto e tentativa de homicídio e levado para a FEBEM, hoje chamada de Fundação Casa, em Franco da Rocha. A cadeia era um mundo totalmente novo e diferente de tudo que ele já tinha visto e vivenciado. Segundo Cobra, “quando se é um pouco mais velho, o preso é transferido para uma cela cheia de homens, mas quando se é ainda um menino com apenas quinze anos de idade, todos são tratados como animais.” Muitas brigas resumiam desde o momento em que abria os olhos até quando se deitava no colchão frio todas as noites, sem saber se acordaria vivo. Para manter a vida, os menores precisavam saber brigar e, principalmente, se defender. Cobra não se esquece do que mais ouviu na FEBEM, que “Lá prevalecia a chamada “lei do cão” que todos falavam: ou você esfaqueia alguém ou você é esfaqueado.” Com a pouca idade que tinha viu muitas cenas fortes e marcantes ali dentro, mas sabia que tinha que lidar com as situações diante dos seus erros cometidos; sabia que tinha a probabilidade tanto de morrer quanto de sobreviver e só conseguia pensar no quanto precisava se manter vivo. Cobra comentou que na FEBEM, os “menores infratores, como eram chamados, sabiam do caso de cada novo garoto que entrava. Dependendo do processo, se fosse mais baixo ou algo mais simples,

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como eles falavam, chegavam a ter uma ideologia de respeito: o garoto novo tinha que saber lidar com os antigos, como falar na hora certa e obedecer, porém, se o menor entra com um processo mais pesado, todos os outros detentos olhavam-no de canto, encaravam, porque de certa forma você é mais conceituado e mais perigoso que os outros, então, para os outros detentos não ficarem com receio, logo de cara tentavam cortar o mal pela raiz, mostrar quem manda, gerando situações de conflito para testarem o limite do novato. Quando o menor é preso, não conhece ninguém lá dentro, então somente a partir de um menino novo olhar para o outro já gerava brigas, e nem mesmo na hora das refeições aquele lugar tinha paz.” Os infratores faziam uma ponta afiada em uma escova que usavam para limpar o chão. Esta era a arma mais usada entre eles, para atacar e se defender. Ele falou, agitado: “Todos deviam provar que eram o pior possível ou que não tinham mais nada a perder, já que tudo valia, desde facas até quaisquer objetos afiados, porque ali era preciso ter um instinto, uma vontade de viver, e se alguém se mostrasse fraco ou se desistisse de viver, todos se aproveitavam, e o destino final seria a morte.” Cobra machucou outros presos por defesa, mas também por ódio de saber que o queriam morto, e tinha somente um pensamento durante o dia: “antes a mãe de alguém chorar do que a minha, é melhor matar do que morrer.”

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# Depois de um ano e dez meses, até quase completar seus dezessete anos, chega finalmente o dia de sua liberdade. Sai da condicional com uma mão na frente e outra atrás, sem amigos, família ou dinheiro. Não recebe visita alguma durante o tempo que fica preso. “Eu tinha uma filosofia de que mãe era pra criar carinho, maternal, mas pai era pra brigar e bater; ele sempre dizia que se eu fizesse coisa errada e não era mais filho dele. Eu não escutava ninguém, mas o amor total que eu tinha era pela minha mãe, um amor forte; eu pensava que eu poderia morrer, mas a minha mãe não. Às vezes eu ficava uns seis meses sem ter contato com ela, e se me ligava eu não atendia o celular, eu só retornava a ligação dependendo de como eu estava e, por mais que eu estivesse mal, roubando e me drogando, sempre falava que eu estava bem. Ninguém foi me visitar quando eu estava preso, isso gerou mágoa, mas até que foi bom, porque eu não queria que ninguém me visse como eu estava lá dentro. Meu irmão é mais velho, não se envolveu com essa vida como eu. A gente nunca se deu bem; irmão a gente não pede, a gente tem, por mais que você não goste dele, o sangue do seu irmão sempre vai falar mais alto. Claro que eu nunca vou querer o mal, era neutro, não conversávamos, não tínhamos relação. Se hoje alguém me perguntar se eu tenho amor pelo meu irmão, se eu falar que tenho é mentira.”

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Procura a ajuda de um amigo que não está envolvido com o crime, que sabe das coisas que o tão conhecido Cobra faz, mas, mesmo assim o deixa morar com ele, contanto que deixasse o máximo de sua vida de antes para trás e se caso fosse fazer algo ruim, que fosse da porta para fora. Cobra, então, usa a casa somente para dormir, ficando uns três dias fora, usando drogas ou roubando, voltando somente para dormir e sair novamente. Volta a treinar boxe, mas só vai quando está lúcido e quando se lembra dos dias dos treinos. Depois de solto se arrepende por ter se envolvido no meio do tráfico. Antes, sempre usou muitas drogas e não tinha sentimentos, se preocupava em cuidar somente de si próprio e de mais ninguém. Não se arrepende em momento algum de ter machucado outras pessoas porque, para ele, foi necessário para se manter vivo. Cobra, com seu jeito simples e independente, conquista uma garota quando vai a um evento de suplementos em Itaquaquecetuba. Gosta muito dela, já que desperta um interesse nele diferente das outras. Quando se encontram outras vezes por acaso, ele puxa assunto, sempre mostrando interesse, até que começam a namorar. Faz sua primeira tatuagem ainda menor de idade, com dezessete anos. Uma simbologia oriental, o Yin e o Yang, o equilíbrio. Dentro do crime representa também dois lados: o lado correto, de fazer tudo com disciplina dentro do crime organizado, e o lado negro, de quando deve fazer algo relativo a matar ou a cobrança.

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Agora, maior de idade, o único momento de tranquilidade no seu dia é durante os treinos, quando se desliga do seu mundo e de tudo o que faz. Como se lembra, “eu conseguia focar no treino e parecia voltar a conseguir ter um sonho. Dentro de tudo aquilo eu conseguia ser novamente um humano.” Um pouco mais velho, ele se recorda de sua infância: “Eu pensava: já que eu não tenho saída e tenho que roubar, vou roubar mesmo; sou ladrão, sou bandido, é isso que sou, e não me escondo por nada nem por ninguém, já que não tenho ninguém por mim, faço isso e dou minhas caras. Aquilo pra mim era o certo. Pro moleque que vive na periferia que rouba e está dentro do tráfico, não existe a alternativa de você chegar pra ele e falar pra estudar, fazer uma faculdade, porque se você não tiver uma concepção pra mostrar pra ele o que ele é, onde ele está e onde ele pode chegar, não vai adiantar. A tendência era essa, está ruim e só vai piorar. Os meninos crescem com cada vez mais apetite de roubar e as meninas são mães cada vez mais cedo, já que você se espelha em quem está mais próximo.” Com dezenove anos, o relacionamento chega ao fim de maneira amigável, no qual ambos decidem terminar porque têm perspectivas e planos diferentes. O fruto dos três anos de namoro é uma filha – hoje com três anos – que é muito apegada ao pai. Sempre que pode a visita, e fala feliz: “A mãe dela é especial; Apesar de eu e ela não ter dado certo, não tenho nada contra ela e torço muito por ela, que é uma

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grande mulher e uma ótima mãe. Eu tenho um amor ali de querer sempre o bem das duas.” Ele chega a faltar às vezes em treinos para passar um tempo com a filha. Agora apelidado de Chicano, o antigo Cobra hoje é baixo, de cabelo raspado, magro e com diversas tatuagens. É professor de muay thai e apaixonado pelo boxe. Possui sete tatuagens que foram sendo feitas de acordo com diferentes momentos e épocas de sua vida: dragão, que representa a filosofia oriental de força; rânias, que são como se fossem demônios chineses; flor de lótus, que indica prosperidade; samurai representando força, honra, foco e determinação de nunca se entregar; santa cruz, uma simbologia de dentro da cadeia, de fé, confiança, poder e de não “abrir a boca” para entregar algum parceiro e a frase “Glória a Deus”. Não consegue apagar as memórias de sua infância. Foram tantos assaltos que não se lembra nem de uma quantidade aproximada. “Com a pouca idade que eu tinha, eu já tinha vivido mais que muito homem que tem idade hoje para ser meu pai, por várias situações que já passei, desde ser independente até quase morrer. Já se passaram alguns anos, mas eu durmo e sonho, é uma coisa que vai me perseguir pro resto da vida.”

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A SUPER


RAÇÃO


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A SUPERAÇÃO

Edinalva. Feirante e comerciante. “Pretendo correr até quando Deus me permitir.” Após realizar seu sonho de participar de uma São Silvestre, Edinalva não desiste do esporte. Começa a se inspirar e admirar as maratonistas como Cleusa Maria Irineu e Maria Severina Baldaia, cortadora de cana que já venceu a São Silvestre. Deixa o karatê e se dedica totalmente às corridas, dando início a uma série de competições. Não opta por continuar o karatê porque quando vencia as competições não ganhava dinheiro, diferente de corridas; além de achar um esporte violento. Em vários treinos chegou a desmaiar com os golpes e resolveu desistir de vez. Em competições comuns de corrida ganha em torno de R$800,00 e em corridas de rua da prefeitura, antes ganhava tênis, mas hoje apenas troféus. Já ganhou, ao todo, quatorzes pares, sendo que todos ela vende.

# Pela São Silvestre larga durante seis anos, desde 1996, com as pessoas comuns, até ser convidada a participar do pelotão de elite, no qual a maioria das atletas são quenianas. Três anos alternados não participa por ter se machucado em outras competições ou por ter perdido o prazo de inscrição.

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De 2005 até 2013 participa do pelotão de elite. “Para competir no pelotão de elite é muito difícil de conseguir. Você precisa passar por diversas provas que eles analisam e, dependendo dos resultados, eles te colocam.” – Edinalva fala, sorridente. Começa a correr no meio das pessoas comuns, na multidão e, como foi vai destacando, a convidam para os testes do pelotão de elite. Corre na Maratona de São Paulo, meia maratona do Rio de Janeiro, Curitiba, Espírito Santo, Londrina, entre outros, para provar o merecimento de uma vaga no pelotão. Com uma vaga conquistada após meses de competições, no ano de 2005 larga no pelotão de elite. Para ela, “não tem preço estar entre as 50 melhores do mundo.” Participa de competições durante o ano inteiro, mas, quando chega o dia da São Silvestre, para ela, sempre é sagrado. Sempre parece ser a primeira vez. Em certa competição, erram seu número e ela tem que largar com as pessoas comuns. Se lembra até hoje: ela cai com todo o alvoroço e empurrões da multidão e todos os outros vão passando por cima, mas isso não a impede de ultrapassar todos à sua frente. Chega nessa corrida em 30º. Conclui as corridas sempre com tempos semelhantes, mas cada vez menores. Termina com 1h02, 1h01, até conseguir seu menor tempo, de 59m06, quando chega em 22º no geral feminino, aos 42 anos. Nessa São Silvestre, vinte e sete países competiam. Consegue subir no pódio da São Silvestre por faixa etária ganhando, ao todo, cinco troféus. Por faixa

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A SUPERAÇÃO


A COMPETIÇÃO

etária, conta os cinquenta primeiros que largam na frente, e mais as pessoas comuns, ou seja, as milhares de pessoas que largam depois. EDINALVA se diz satisfeita com as corridas que participa. “Eu corro porque eu gosto, faz bem pra minha saúde, pro meu corpo e meu bem estar. Através da minha corrida eu posso incentivar outras pessoas a fazerem o mesmo, ainda mais pela minha idade, que muita gente quando descobre não acredita que eu ainda consiga correr”. Ela se lembra, rindo: “Fico feliz pela minha idade. As pessoas me admiram muito e tem gente que fala que quer ser como eu. Me animam quando me veem subindo no pódio, elas chegam até mim e me parabenizam. É sempre uma sensação única. Muitas ficam com vergonha de perguntar minha idade, ficam curiosas, e muitas vezes, eu mesma pergunto se elas sabem quantos anos eu tenho, e a pessoa fica sem jeito, mas ainda mostra curiosidade. Eu sempre respondo, e a reação continua a ser a mesma depois de anos: “nossa, você com essa idade correndo desse jeito, não querendo te chamar de velha”, e eu sempre sorrio.” Um grande fã de Edinalva é um de seus irmãos, João, que também é maratonista. Ele se orgulha muito dela, e sempre diz: “nunca ganhei da minha irmã, ela é muito esforçada, corajosa. Minha irmã é minha mãezona.” Outro irmão, Narcísio, assiste a algumas competições que Edinalva participa. Em uma delas, a Rede Globo está presente, e é clara a admiração que ele mostra pela irmã.

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A SUPERAÇÃO

# Na primeira segunda-feira de março de 2015, dia 2, Edinalva e o rapaz a quem promete ajuda, abrigando-o em sua casa, saem pela porta rapidamente, com destino à Guarulhos, para a internação dele, que sai de ônibus até chegar em Sete Lagoas, Minas Gerais. Chega na estação, e tem uma pessoa esperando por ele, que foi avisada previamente. Edinalva paga a passagem e o preço da internação, os meses seguintes são valores menores, para manutenção do lugar. Mantêm contato com a sobrinha Michele, hoje casada e com dois filhos, que mora em Guapiara, com a avó. Em Uberlândia ficam apenas três irmãs, todas casadas. Helena hoje é cristã, trabalha para a irmã no brechó, e ganha o valor de R$1200,00 por mês. Há aproximadamente um ano Edinalva consegue dar em torno de R$2.000,00 por mês para o dízimo da igreja, um desejo que sente que deve retribuir. Lucra mais com a feira do que com o brechó, mas não desiste. “O dia que eu não vendo na feira, eu recebo. Mesmo que eu não faça nenhuma venda no dia, sempre tem alguém que vem pagar, isso que me ajuda.” Pretende terminar a reforma da casa, que deve ficar pronta no meio de 2016, comprar uma van para continuar a realizar o trabalho missionário, já que ajuda os mendigos e leva comida a eles, mas também para poder se locomover para outros bairros. “O que eu faço hoje quero fazer com mais gente,

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A SUPERAÇÃO

não só com um ou outro, quero ajudar o máximo de pessoas que puder. Com a van quero mais pessoas trabalhando comigo, todas serão bem vindas. Esse é um sonho meu, ajudar os mendigos e levar as pessoas que usam drogas a encontrarem seu caminho; levá-los para a internação.” Conhece diversos lugares através de competições, como Curitiba, Londrina, Espírito Santo, Paraná, Vitória, e Belo Horizonte. Tem a oportunidade de participar de uma competição em Nova York, ganha uma passagem, mas não vai porque está com o joelho machucado. Dentre as diversas competições, não se esquece de uma, a Maratona de Curitiba, em que resolve correr com um tênis novo. No quilômetro oito seus pés doem demais. No quilômetro 15 sente bolhas no pé, e a dor já está insuportável, mas continua. Corre todos os 42 km. Chega em 11º no geral feminino, mas em 1º por faixa etária. Tira o tênis, vê os pés inchados, com bolhas e sangrando. Sobe no pódio feliz, e descalça.

# Edinalva lista quais foram as corridas de rua da Prefeitura - sua competição preferida - que já participou, no qual o pódio vai até quinto lugar. Ao todo, possui 235 troféus - somente com as corridas da Prefeitura. 2010: competiu apenas nove vezes em circuitos, e todas subiu no pódio, em primeiro ou segundo lugar.

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2011: firam 25 competições; participou de todas, subiu no pódio 24 vezes, com 10 vezes campeã, 13 em segundo e um em terceiro. 2012: Frustrada pelo ano passado, queria subir no pódio todas as vezes esse ano. Foram 31 corridas, conseguiu ir para o pódio todas as vezes, com 11 vezes em primeiro lugar, oito em segundo, 10 em terceiro, e duas em quarto lugar. 2013: Com o joelho machucado, competiu pouquíssimas vezes. Fez tratamento no joelho, que teve cisto, parando de correr por um tempo. Voltou somente no ano seguinte. 2014: Com a Copa do Mundo, os circuitos começaram no meio do ano, o que a desanimou. Participou de poucos. 2015: A primeira competição do ano não participou, na segunda chegou em segundo lugar, já iniciando a contagem de suas conquistas. “Para todas as pessoas eu aconselho a sair de manhã e fazer uma caminhada, seja em um parque ou na rua mesmo. Isso faz muito bem pra pessoa. O esporte ajuda em tudo, na mente e na saúde”, afirma a atleta. Até hoje, depois de anos de competições, minutos antes da largada ela continua a ficar nervosa, e treme. Dada a largada, o nervosismo passa.

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A SUPERAÇÃO


A SUPERAÇÃO

Messias. Diretor técnico da Federação Paulista de Boxe de São Paulo, diretor do Centro Olímpico, professor de educação física e técnico de boxe. “Sempre digo que um ser humano sem sonhos é um morto ambulante.” Com 17 anos conhece o boxe. No bairro de Itaquera, na Sociedade Amigos da Vila Corberi, é o local onde Messias pisa pela primeira vez quando sabe que tem boxe envolvido. Vê dois homens treinando no pequeno ringue, um deles apanha muito, até sangrar, e Messias não gosta, vai falar com o professor que aquele rapaz que está sangrando não é homem suficiente, por isso apanha tanto. Ele não entende nada sobre esportes, acha que apenas ter coragem basta. O professor então o convida a subir no ringue e lutar. Ele tira a camisa, enrola sua calça boca de sino, coloca as luvas e o protetor bucal. O rapaz que o espera já tem mais de dez anos de experiência no boxe, e bate muito, mas muito em Messias. Quando o professor separa os dois, o iniciante está suado, vermelho e com o rosto inchado. O professor o convida a participar dos treinos regularmente e Messias aceita, pega o gosto por aquele esporte, porque apesar de ter perdido, gosta da adrenalina momentânea.

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Em competições entre academias, a dele sempre é a menos preparada, ou, como outros dizem: a mais pobre dentre todas. Nos treinos, cordas são amarradas entre quatro postes ou madeiras, transformando o espaço em um ringue. Sem despertador, acorda às 4h diariamente. Não abandona o gosto pela corrida. Espera sentado o dia amanhecer para correr no Parque do Carmo. Como não tem roupa apropriada para treinar, pega sempre um saco plástico, coloca por cima da roupa, e depois, mais uma camada de roupa por cima, para poder suar, porque é frio, mas também porque sua briga maior - na época - é com a balança. Precisa perder peso, mas não tem instrução para tal. Quando vê que o sol começa a ficar mais alto, volta para casa. 7h é o horário de entrar no trabalho, e nunca chega atrasado. “Quando tinha folga no trabalho chegava a treinar três vezes por dia.” - Ele fala, orgulhoso de si.

# Quando chega a maioridade, Messias deixa o emprego para se dedicar totalmente ao boxe e aos estudos. Quer ganhar o mesmo dinheiro, mas agora lutando. Está confiante. “Eu batia para machucar o adversário.” Não sente que é mais aquele garoto inexperiente do ano anterior. Passa a se sentir mais responsável. Todas as técnicas que ele sabe, passa aos meninos mais novos que ele, e diz para os mesmos: “ninguém sabe tão pouco que não possa passar algo para as pessoas.”

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Em uma das primeiras lutas que perde, um dos treinadores fala que ele não serve para lutar porque ele é pequeno. Messias dá risada, mas fica com raiva e sua vontade naquela hora é de bater nele. Respira fundo e pensa consigo mesmo “um dia vou lutar com um atleta seu e você vai me ver ganhar.” Com seu dinheiro guardado, compra uma das coisas que sempre quis: uma bicicleta, que usa como meio de transporte para seu novo trabalho, em uma firma de marcenaria como auxiliar, chamada Numancia. Fica poucos meses e também se demite. Uma luta de Messias é marcada. Ele, com 19 anos, o adversário na mesma faixa etária, porém, mais experiente. Pouco antes de subir no ringue descobre que seu adversário é um dos atletas daquele treinador que não vê potencial nele. Sua sede de vitória só cresce no momento. O adversário apanha muito, até que desiste de bater, e leva Messias a ganhar. Aquele homem que desacreditou em Messias vai parabenizá-lo e ele ri, enquanto agradece humildemente e satisfeito.

# Conhece o Centro Olímpico depois de participar da semifinal do torneio Estímulo Kid Jofre aos vinte anos, onde fica em primeiro lugar e é chamado para conhecer o local. Inicia seus treinos em um lugar melhor. Começa a receber patrocínio e, com o dinheiro, aproveita e volta a estudar. Passa no vestibular e é aprovado para cursar educação física. Dá início às aulas, mas como não tem como pagar, não conclui.

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Osasco, ginásio Independência. Finalmente sua estreia como um atleta, aos 21 anos, agora representando o Centro Olímpico. Luta como amador. Depois dessa competição, não quer parar mais. É preciso ser o melhor em quatro situações: ataque, defesa, eficiência e técnica. Antes mesmo de subir no ringue já se sente preparado e mais confiante do que nas outras vezes. Apanha no início, mas depois bate ainda mais, levando-o à vitória. Messias sempre com o mesmo pensamento: “Competir é para os derrotados, a meta é sempre vencer. No estudo, no trabalho, no esporte e na vida. Não somente no ringue.”

# Um ano depois, todas as suas noites se tornam cansativas. Consegue um novo trabalho, agora no mercado municipal, o qual trabalha durante oito meses carregando caixas. A última vez em que compete como amador é com 25 anos. Quer ser profissional e ganhar dinheiro lutando, mas vê que não é fácil. Quer disputar o título brasileiro, para depois ganhar um título mundial, até que um empresário pergunta a Messias quanto ele tem para oferecer, para que ele possa construir sua carreira. Messias fica indignado, pois quer ganhar dinheiro através do boxe, e não ter que precisar pagar para competir. Aquilo não faz o menor sentido na sua cabeça. Pior ainda, é ver aqueles que fecham contrato com os empresários, e diante de cada luta, o empresário ganha a maior parte do dinheiro, não

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sobra praticamente nada para o atleta, sendo que na maioria das vezes o atleta nem sabe quanto vai ganhar, e nem sabe quanto o seu próprio empresário ganha. Como Messias não tem muitos contatos, fica difícil arranjar um jeito de ganhar dinheiro com a luta, e volta a trabalhar. “O dinheiro é necessário, preciso para poder comer, mas não preciso dele para ser feliz”, ele pensa. Com o segundo grau completo, sabe que ainda é difícil de arranjar emprego, mas não desiste. Pergunta para todos que conhece se precisam de alguém para trabalhar e todos negam. Resolve então vender todos os seus troféus e medalhas conquistados, mas ninguém se interessa. Depois de muita procura, finalmente consegue um emprego justamente naquilo que mais gosta: no esporte. Convence o diretor de que é realmente bom no que faz e começa a dar aulas de boxe no Centro Educacional do Tatuapé. Teve que provar, lutando e explicando cada técnica usada. Logo conhece o diretor do Centro Olímpico, que o vê dando aulas e o convida para fazer o mesmo. Ele aceita.

# Começa a dar aulas no Centro Olímpico, mas interrompe sua nova rotina durante dois anos, que fica no Rio de Janeiro, em Ipanema. Messias vai para a realização de um trabalho voluntário com meninos que treinam boxe, no morro do Cantagalo. Vai com outro colega, para dar aulas de boxe e ensinar tudo o que sabem.

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Perde o patrocínio porque passa para o boxe profissional aos 28 anos, depois de muitos treinos e competições. Segundo ele, “todos os prêmios são importantes porque todos levam muito sacrifício, empenho, suor e sonhos, então todos são uma realização. Cada um deles é importante.” Conhece uma moça em uma reunião de bairro, em Itaquera mesmo, e depois de um ano de relacionamento, decidem se casar. O fruto do relacionamento é uma filha. O supervisor técnico Oscar vai se aposentar e não tem dúvidas para quem deve passar o seu cargo. Messias então, agora com 32 anos, decide parar de competir e se dedicar ao cargo por completo. Com 35 anos entra para a segunda faculdade, mas também não termina. Aos 40, o fim do seu casamento acontece. Dura pouco devido suas constantes e longas viagens por causa do boxe. Muitas competições no interior distancia os dois. “Terminamos, para não ter mais problemas já que eu também não gosto de discutir.”

# Quatro anos depois, deixa a zona leste da cidade e vai para a zona sul e, dois anos mais tarde, após conhecer uma mulher que namorou alguns meses, se casa novamente. Com 48 anos chega ao fim o segundo casamento e passa a morar com a nora e seu filho, que Messias considera como seu fosse seu próprio.

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Sempre que o filho de criação faz aniversário, Messias o presenteia com flores e ele reclama. Sorrindo, Messias fala: “Não adianta eu dar flores pra ele depois que ele morrer, jogar no túmulo. Flor eu acho delicado e de coração; pra todos que eu amo eu dou flores e não presentes. Às vezes mando buquê, mando várias vermelhas com uma branca no meio, depende da situação. A gente nunca sabe o dia de amanhã, o importante é ser feliz quando tá vivo e bem de saúde, que dá pra fazer o que tiver vontade. Eu quero morrer sadio, e não doente.” Aprovado pela terceira vez em uma faculdade, aos 54 anos consegue pagar e concluir seus estudos. Apaixonado pelo que faz desde criança, escolhe como tema para seu trabalho de conclusão de curso a história do boxe no Brasil. Feliz e orgulhoso, ele se lembra de como todo o esforço valeu a pena: “Devemos sempre almejar algo. Olhe em volta, a gente sempre reclama, mas tem muita gente sem nada. Não podemos reclamar que nosso tênis está velho, porque tem gente que não tem nem pé para calçar um.” “Me inspiro no Joe Frazier, gosto do estilo dele, mas o primeiro ídolo mesmo foi o Bruce Lee, assisti quase todos os filmes dele. Tinha até um quadro com uma foto gigante dele, sempre achei ele demais, muito rápido e inteligente, era uma atleta completo. Se ele lutasse hoje, ganharia fácil de todo mundo”, conta Messias, que hoje assiste lutas para ver as táticas, falhas, erros e acertos dos lutadores, passou

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A SUPERAÇÃO

a enxergar o boxe de maneira diferente de quando criança, que só via dois homens brigando em meio a vários socos. “O esporte abre portas, te leva a se superar na vida, no social, na parte física de cada um. É o caminho certo para a disciplina e educação.” Conquista o cargo de diretor técnico da Federação Paulista de Boxe com 56 anos. Devido aos seus resultados como professor e como aluno, por seu conhecimento, esforço e por ter acesso a todos os treinadores, que sempre lhe ajudam e ele tenta retribuir como pode, cobrindo aulas, por exemplo. Também em relação à competições, se destaca por se impor em momentos em que vê algo errado, como irregularidades em campeonatos. Ele passa a ser um coordenador dos treinadores. Diante de todos os seus feitos de anos, a Federação lhe oferece o cargo, e ele aceita. A presidente da Federação, antes de assumir esse cargo, já conhece Messias, que sempre a aconselha e a ajuda, o que também é bom para ele. “Ela é uma ótima pessoa, uma grande amiga. Esse é o esporte que escolhi, esse é meu trabalho, ninguém precisa ser igual a mim, mas pelo menos fazer as coisas certas. O boxe ainda não cresceu, só aparece de vez em quando e precisa de mais espaço.” - Messias afirma. Depois de anos se dedicando ao esporte, conhece outros países durante campeonatos através do boxe, como França, México, EUA, Alemanha, Costa Rica, Espanha, Roma, Itália, Portugal, Argentina, Uruguai, Paraguai, Cuba, China e Inglaterra.

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Descobre no Centro Olímpico o Krav Magá, um sistema de defesa pessoal originada em Israel. É como o karatê, que possui várias faixas. Treina de segunda, quarta e sábado, desde agosto de 2014. De terça e quinta, alterna entre musculação e caminhada, chegando em casa por volta das 22h, diariamente.

# No dia 18 de Setembro de 2014, Messias é homenageado na Câmara Municipal de São Paulo. Homenagem formada por professores, alunos e ex-alunos que o indicam por seu trabalho realizado até hoje relacionado ao boxe de projetos feitos em comunidades, sendo que as principais são a de Carapicuíba e a de Guarulhos. Nessas reuniões dá algumas aulas rápidas, passa filmes, conversa com as crianças e incentiva ao máximo todos estudarem para que não se envolvam com drogas e bebidas, já que possuem acesso fácil. Ele se emociona: “Me senti muito feliz, vi que o trabalho está fluindo, não pela homenagem, mas pelo conhecimento e pelo retorno que é conseguir que os meninos estudem. Temos que dar o pouco que nós temos para o próximo sempre, sinto a necessidade de contribuir com isso. O que adianta a gente saber tantas coisas e não passar adiante? Eu gosto disso.” Ele ganha um diploma, mas infelizmente não dá tempo para discursar. Já ganhou homenagem da federação paulista, e de outros lugares de resultados de competições, mas homenagem deste tipo, sem relações com o Centro Olímpico, foi a primeira.

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# Em dezembro de 2013 Messias viaja para ficar uma semana em Belém. Finalmente ele a perdoa. Pela primeira vez passa o Natal com sua mãe biológica. Com cinco irmãs, nunca teve muito contato com nenhuma. Segundo filho mais velho, quatro delas também vivem em Belém e somente uma se muda para São Paulo mais tarde. A mais velha das irmãs também é dada para outra mulher. Todos os filhos conforme vão nascendo, após alguns meses, a mãe dá para alguém. Messias chega a conhecer todas as irmãs quando pequenas um dia que volta para visitar todas, e, ao menos uma das irmãs, a mais nova, consegue trazê-la para São Paulo com ele, para ela estudar e ter uma vida melhor, graças à Messias, que a convence antes que fosse entregue nas mãos de outra pessoa, assim como aconteceu ele. As outras irmãs ele só vê aquela vez e não as encontra mais. “Família tem dois problemas né, quando você tem, te enchem o saco daqui e dali, te cobram sempre, mas quando você não tem, é o que você mais quer na vida”. Naquela semana ele conhece suas outras quatro irmãs, agora adultas. Um menino alto cumprimenta Messias, que fala: “bênção, tio”. Ele vê o quanto ficou longe da família, e o quanto ela cresceu. Sua família sempre foi os alunos e, agora, ela tinha crescido. Sentados na mesa conversam na noite de Natal, se lembram de uma das únicas vezes que se viram no

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passado: um ladrão entra na casa de sua mãe para roubar uma galinha e ela logo ameaçou cortar seu braço, caso voltasse. Quando a história chega aos ouvidos de Messias, ele compra para a mãe um facão. Os dois riem ao se lembrar do episódio. Messias percebe de quem havia puxado esse lado briguento e valente. Mantém contato com todas as irmãs e a mãe, sempre uns ligam para os outros, mandam notícias e contam as novidades. Hoje, sua mãe biológica mora sozinha em Belém, de frente para a praia, e sai toda manhã para caminhar, aos seus 83 anos.

# As férias de Messias são do dia 19 de Dezembro até 2 de Janeiro e vai para Manaus, sozinho. Aquela moça que acolhe Messias como seu próprio filho e sempre o tratou bem, mora em Pirassununga com a filha, e ela, agora está com seus 103 anos de vida. Sempre que pode, ele vai visitá-la. “Ela trabalhava lavando roupa dos outros, e eu sempre tinha que carregar muitas roupas e ficava nervoso, porque tínhamos que andar, às vezes, até mais de 20 km a pé. Só eu e ela, a noite. Quando chovia então, a roupa ficava toda molhada e mais pesada ainda.” - Ele se recorda, agora rindo do passado. Quando se lembra de seus alunos, ele fala, com um sorriso aparente: “Quando vejo os meninos que começam a lutar no Centro Olímpico serem vencedores

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no esporte e na vida, fico até sem palavras, pois eles pensam que é impossível vencer um campeonato ou entrar em uma faculdade, e como eu vim de periferia eu sei como é a cabeça de um menino, sei o que se passa na cabeça deles, e me esforço ao máximo para incentivar todos. Quando conseguem, eu dou risada junto com eles, porque tudo é difícil, mas temos que ir atrás sempre. Os problemas são nossos desafios, temos que encarar e vencer todos os dias.” Sua filha está com 26 anos hoje. Viúva, é muito apegada ao pai. O casamento dela dura quase dois anos, até seu marido ter um enfarte, há cinco anos. Por sempre receber incentivo do pai, sua filha treina judô, assim como seu neto, de 6 anos, e Messias quer muito que ele continue no esporte quando crescer. Ambos moram hoje com a mãe, ex-esposa de Messias. Todos os alunos consideram Messias como um pai, porque ele não dá somente aulas, mas também aconselha e, quando precisa, até briga para não largarem os estudos e o esporte. Seus alunos reclama, mas sabem a importância dos estudos e da prática esportiva. Pelo Centro Olímpico, o boxe já conquistou diversos prêmios, como no Campeonato Paulista e no Brasileiro. A equipe de boxe no Campeonato Brasileiro consiste 50% só em atletas do Centro Olímpico, que sempre fica pelo menos entre os três primeiros colocados em competições de São Paulo. A demanda

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tem aumentado com os anos e, hoje, 28 atletas já saíram do Centro Olímpico e foram para a Confederação Brasileira de boxe. “O boxe no Brasil ainda é um esporte muito carente, tem pouco apoio e pouquíssimos recursos. O esporte ajuda muito as pessoas, educa muito. As pessoas veem na televisão o boxe e acham que é só violência. Mas a violência está nas pessoas e não no esporte.” - Convicto, Messias vê que no esporte as pessoas se superam de alguma forma. “Aprendi que a minha realização e a minha felicidade não depende da felicidade dos outros. Eu tenho que primeiro ser feliz comigo. Eu não vou fazer ninguém feliz, mas eu posso contribuir; eu não posso ajudar uma pessoa se ela própria não se ajuda. Ninguém vai me ajudar se primeiro eu não me ajudar. Você tem que estar preparado para as oportunidades. O boxe é minha paixão. Foram muitos momentos felizes daquela época, quando eu ganhava uma luta era coisa de outro mundo.” Competiu em torno de 60 lutas e, pelo que se lembra, venceu 56. Sorridente, ele diz: “a vida é uma aprendizagem, o esporte, seja ele qual for, não é violento.”

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Lucimar. Supervisora técnica e treinadora de luta olímpica. “O esporte nos ensina a lutar, não com os outros, e sim com nós mesmos.” “Quando as outras crianças da escola descobriram que eu havia começado a praticar lutas, passaram a não me agredir mais. Depois que coloquei meu quimono e amarrei minha faixa, nunca mais ninguém me provocou; parecia que eu que queria provocar, mas esses problemas foram desaparecendo. Foi uma mudança positiva brusca.” - Lucimar sorri. “Todos acharam que eu treinava somente por diversão, mas o esporte acabou se tornando meu lazer, meu trabalho e minha vida. Escolhi o esporte certo, não me arrependo de nada; se tivesse que começar o esporte eu começaria tudo de novo, talvez não passaria pelas outras modalidades e fosse direto para lutas”, ela diz, rindo. O rumo da vida de Lucimar se transforma com o esporte porque além de ter passado a ser uma pessoa mais tranquila, agora sabe lidar melhor com as situações da vida, aproveita melhor as oportunidades. Acreditava que luta era somente brigar, mas foi se direcionando para competições, pelas quais pôde conhecer muitas pessoas, muitos lugares, e fazer vários cursos graças a bolsas que ganhava como atleta, que foi justamente como conseguiu sua formação

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em educação física, tanto licenciatura como bacharel em processamento de dados e, ainda, em enfermagem. “O esporte ajuda na disciplina com horários, com a boa alimentação e principalmente com os estudos: a pessoa começa a ficar mais consciente, consegue realizar suas atividades diárias conciliando horários, passa a ter mais respeito pelo próximo. Qualquer esporte nos ensina a lutar com os nossos sentimentos, a lidar com as nossas emoções, a transformar as energias. Deve ser praticado a todo o momento mesmo que não seja para competir, mas que possa proporcionar muitas coisas boas na vida, seja por lazer ou por saúde.” Por competições, tem a oportunidade de conhecer vários países como Argentina, Chile, Venezuela, México, Alemanha, Roma, Bulgária, Tunísia e Marrocos. “Se eu não escolho o esporte para minha vida eu não teria a chance de conhecer tantos lugares maravilhosos e diferentes. Às vezes não conhecemos nem nosso próprio bairro, não é mesmo?” - Lucimar solta um suspiro seguido de um sorriso. Em julho de 2014, para todos que perguntam o sexo do bebê, ela reafirma todas as vezes com a mesma intensidade de emoção. Coloca a mão na barriga e diz: “é uma menina!” Um mês depois sai para licença maternidade. O último dia no trabalho foi cansativo. Fazer uma longa viagem de ida de volta de sua casa até o trabalho todos os dias por nove meses não é fácil. Ela se despede de todos os colegas de trabalho que encontra e volta para casa.

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Como previsto, em agosto nasce sua primeira filha, Ísis, fruto de seu relacionamento desde os 14 anos de idade. Em setembro já é chamada de volta para seu trabalho e, já que não tem outra pessoa para substituí-la, diminui o número de atletas. Ísis vai todos os dias com a mãe até conseguir uma vaga na creche, o que vai demorar meses. Mesmo exausta, sem comer e dormir direito, Lucimar não deixa de ir ao menos duas vezes por semana, dar aulas.

# Termina a licença maternidade no final do mês de janeiro. Está de volta no dia 27. Sua rotina muda. Acorda todos os dias agora às 5h da manhã, sendo que durante a madrugada diversas vezes é acordada por sua filha. Pela manhã, arruma a bolsa de Ísis, toma café da manhã com o marido e os três saem de Jaraguá às 7h30 com destino à Moema. Fazem o mesmo trajeto com o uso do transporte público até às 10h. Como o marido trabalha perto do Centro Olímpico e tem o horário de trabalho flexível, ao menos duas vezes por dia vai até o local de trabalho da esposa e fica com a filha. Indignada, Lucimar fala: “tem vezes que ela não fica com meu marido, eu estou dando treino e ela quer vir comigo para mamar, então ela fica no meu colo enquanto dou alguma aula”. O número de alunos começa a subir novamente. Lucimar procura um estagiário que a ajude a ministrar

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as aulas e conta sua decisão a todos que conhece para que alguém indique rapidamente uma pessoa. Agora dá aulas de grupos mistos, já que forma novamente as turmas. Em março, um rapaz alto e moreno vai até a sala procurar pela professora. Diz se interessar pelo cargo de estágio para ajudá-la com as aulas de luta olímpica. Passados alguns minutos de testes e conversa, ele conquista sua vaga. O aluno mais novo matriculado tem apenas 10 anos de idade, mas uma gana de vencer que é admirável. O mais velho tem 26 e não pensa em largar o esporte tão cedo. Lucimar chega todos os dias às 10h e volta para casa em torno das 16h, antes do transporte lotar. Com a filha de apenas sete meses de idade, agora adormecida no seu colo, ela fala, sorridente: “Por mim fico o resto da minha vida trabalhando aqui com a luta. Além de ser um ambiente agradável conseguimos graças a Deus atender a todos os tipos de classes sociais e oferecer toda a estrutura necessária aos atletas que muitos lugares não oferecem, como suporte técnico, médico e psicológico.” Diariamente, agora que tem a ajuda de seu estagiário, ela fica mais tranquila para fazer relatórios, participar de reuniões, ver ações referentes à diretoria, organizar eventos de competições, organizar a matrícula de alunos novos, entre outras tarefas. “Por mais que eu não esteja no tapete trabalhando eu estou fazendo a parte de secretaria e de escritório, sempre tem algo para fazer, seja das aulas, seja de competições”, diz, cansada.

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Animada, Lucimar declara: “O esporte vale muito a pena, seja ele de qualquer modalidade. Claro que sempre vou tentar puxar o esporte para a luta. Infelizmente as pessoas ainda tem muito preconceito quando se fala em lutas porque acham que as pessoas se tornam violentas e agressivas, mas não são as lutas que tornam as pessoas agressivas, muito pelo contrário, as pessoas agressivas que se adaptam ao estilo de luta, ao esporte de contato, e garanto que ele acalma sua alma e seu espírito. Muitos dizem que as pessoas são violentas por causa das lutas, mas na verdade elas são porque essa é a natureza humana.”

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Chicano. Instrutor de muay thai e aluno de boxe. “Graças a Deus, hoje estou fazendo algo que amo.” Enquanto assiste a filmes de luta na televisão da casa de seus pais, o garoto se interessa pelo esporte e procura o boxe pela primeira vez, aos 13 anos. Com as amizades que faz, é mal influenciado e logo para de treinar. Aos 16 anos, quando sai da FEBEM, começa a treinar em uma academia no Tatuapé, na zona leste da cidade. Entra na academia decidido a ter foco total nos treinos de boxe. Conversa com o professor, um senhor chamado Baltazar, que pergunta a Chicano se ele trabalha no momento e a resposta foi “sim, mas não de uma forma tão certa”, e o seu Baltazar logo entende o que ele quer dizer, mas responde sem hesitar: “independente do que você faça, aqui dentro você é igual a todo mundo, porque aqui dentro só treino atleta; quando você passa pela porta você não é mais ladrão, traficante nem nada, aqui dentro você é meu atleta e ninguém daqui vai fazer nada com você... mas daqui pra fora é seu mundo, se você quiser vir treinar, será bem-vindo”, depois de ouvir, ele fica ansioso e mais decidido a treinar. Experimenta a musculação, mas percebe que prefere algo que lhe traga adrenalina, que exploda dentro dele e que depois gere paz. No boxe ele pôde encontrar isso.

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Finalmente, o esporte lhe chama a atenção de verdade. Nos primeiros dias não falta nos treinos, chega na hora certa sem atraso algum e é possível notar sua dedicação. Porém, tudo parece estar voltando a ser o que era antes. Certo dia, quando sai pela porta enquanto volta para casa, seu celular toca. Os outros meninos da periferia cobram ele por causa do tráfico e avisam que eles precisam sair porque estão sem dinheiro e querem a ajuda de Chicano. Ele volta à vida antiga aos poucos, sai à noite para roubar, gasta o dinheiro que consegue com mulheres e só volta no dia seguinte, drogado, para a casa que divide com o amigo. Começa a treinar dois dias bem, mas fica cinco dias sem treinar, e é assim por algumas semanas. O professor Baltazar nota diferença no comportamento de seu novo aluno que não parece ser o mesmo que conversa com ele como antes, quando disse estar pronto para treinar boxe. Vê que ele começa a faltar nos treinos e, quando aparece, está cansado, com olheiras, e sem foco algum. Baltazar fala para Chicano que ele tem uma coisa que metade das pessoas tem, mas que ele tem aflorado, que é uma vontade de viver, de lutar, porque ele tinha passado por muita coisa. Orienta o aluno sobre o quanto ele precisa usar essa raiva e essa gana que tem, dentro das quatro cordas, tentando abrir sua consciência. Chicano mente, inventa histórias que vem à cabeça na hora, mas seu Baltazar percebe em seus olhos que nada do que ele lhe diz é verdade e fala que, se ele continuar nessa vida, vai morrer logo.

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O professor de boxe passa a aconselhar Chicano. Em outro dia de treino, quando ele aparece todo cansado, diz a ele que se ele treinar com determinação, o boxe poder levá-lo a ser alguém através do esporte. Chicano sabe que tudo o que seu professor fala é pura verdade, mas não consegue se desligar por inteiro de sua antiga vida. Chicano começa a ouvir o que Baltazar diz, não o ignora como faz com todos; sente que ele o entende, que sabe conversar. “Aquele senhor sempre me aconselhava, conversava muito comigo, falava pra eu treinar, me matinha focado dentro dos treinos e então comecei a pegar gosto por aquilo; era uma pessoa que me ajudou, eu passei a escutar o que ele falava e, quando eu estava sem dinheiro, quando passava a loucura da droga, às vezes, pensava comigo mesmo, sentado no sofá de casa com a arma na mão, “Caralho, tô sem grana”; eu não tinha com quem contar, era eu, meus pensamentos e Deus. Não tinha ninguém por mim. Eu sempre fui muito pensativo e parecia que o pensamento ia me deixar louco de tanta coisa que passava pela minha cabeça. A única coisa que ainda me dava forças e me livrava da tensão que eu tinha era o boxe, porque ocupava minha cabeça e meu tempo.” Passado alguns meses desde que começa a treinar, se dá conta de que o esporte é o melhor para si; tem ajudado Chicano a melhorar como pessoa, e os conselhos de Seu Baltazar fazem cada vez mais sentido e sabe que precisa escutá-lo mais. “Eu tinha uma coisa que não se comprava. Eu poderia roubar um carro forte e mesmo assim não

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conseguiria, que era ter paz. O pensamento que me vinha à cabeça costumava ser o mesmo todas as noites: um dia, se eu envelhecer, se não morrer antes... o que eu fiz da minha vida e o que eu tirei dela? Eu roubava, tinha dinheiro, tinha carro, tinha casa e depois eu morro e pra quem fica tudo isso? Vou ser só mais um. E isso ficava na minha cabeça, eu pensava que eu realmente queria ser alguém; queria usar os conselhos que o senhor Baltazar me dava e poder dar para alguém também, porque se um dia eu tiver um filho eu vou saber como conversar, como educar. Que não é cortar a asa da pessoa e sim deixar que a pessoa possa voar livre, porque o que é seu, é bom e é de coração, você deixa livre, porque sabe que vai voltar. Sempre tive isso na minha cabeça. Não adianta você falar pra quem está errado que aquilo é errado e não presta... você tem que dosar, saber conversar e formar uma ideia dentro da cabeça; plantar positividade, porque a pessoa pode estar ruim, mas quando tudo apertar e tomar conta da pessoa, ela vai se tocar. Eu via muito cara que tinha dinheiro, tinha mulher, tinha carro, tinha tudo, mas eram todos loucos.” Com 17 anos consegue seu primeiro emprego, inesperado, em uma linha de produção. Um coreano também treina com seu Baltazar, e em um dos treinos, comenta com o professor que está precisando de um ajudante, e logo, Chicano é indicado. Brás: 22h começa seu expediente. O coreano mostra rapidamente como se faz estamparia na

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parte de produção. Ele aprende rapidamente, e faz sempre o mesmo serviço até às 4h da manhã, todos os dias. Naquela pequena sala lotada de roupas trabalha só os dois e seu mais novo chefe começa a pagar comida para ambos. Vê que o jovem de apenas 17 anos trabalha muito e fala pouco, e tenta puxar assunto com sua nova companhia várias vezes, até desistir depois de só receber respostas curtas e rápidas. Chicano percebe que fica muito cansado com os treinos e o trabalho, mas sente, depois de muitos anos, um pouco de paz espiritual. Seu salário é pouco, mas tem mais utilidade agora, já que é um dinheiro merecido de um trabalho digno. Passados cinco meses, sai do trabalho. Quer procurar outros que não o faça se cansar tanto e não desiste, fica com algo que seu professor Baltazar lhe diz várias vezes: “quem não conseguiu algo na vida, que teve uma grande frustração, vai passar para outras pessoas que aquilo não vai dar certo, ou seja, se os outros não conseguiram, não quer dizer que você também não vai.” Após alguns meses a procura, trabalha em venda de lojas, de confecção e de suplementos para atleta. Começa na Nicoboco, depois vai para a TNG, M. Officer e em várias outras, sendo que fica meses em todas. Um rapaz tímido atende os clientes, mas como sempre soube conversar e, principalmente, convencer, se dá bem nas vendas que faz. Começa a levar uma vida mais tranquila, junta dinheiro, sai da casa do

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amigo para ter a sua própria, e consegue conciliar os treinos de boxe com o trabalho. “Eu ia pagando as coisas; pagava aluguel e não sobrava dinheiro pra nada. Queria sair pra beber, pra namorar, não queria que a namorada pagasse as coisas pra mim, mas aí eu já tentava esquecer, tinha que me fortalecer, sabia que estava complicado, mas que no final ia melhorar”, ele fala, orgulhoso.

# De todas as amizades que constrói na periferia e que também estão envolvidos com o tráfico e roubos, um amigo seu que era muito próximo, ainda está vivo – diferente do destino de muitos. Está preso e, pelo que Chicano se lembra, vai ficar por mais oito anos. Muitos se mudam para diferentes lugares da cidade e acabam os contatos entre eles. Dos que ainda o procuram, Chicano deixa claro que quer sair daquela vida. Chicano conhece um amigo de seu irmão antes dele também se tornar traficante. Quando o conhece, o menino não tem nada, só depois que também opta por essa vida que consegue uma casa e todos os seus pertences. Ele é a primeira pessoa a ouvir da boca de Chicano que ele não quer mais aquilo para sua vida. Naquele dia, caminha em direção a casa do amigo, preparando o que vai falar. Está nervoso, mas também seguro de sua decisão. Depois de explicar que quer sair dali, o próprio diz que não vale a pena, que o dinheiro vai acabar e não será suficiente

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para viver. Mas Chicano, a partir do momento em que toma uma decisão, nunca ouve ninguém e não é naquela a hora que passa a ouvir, ainda mais um traficante. Assim como o seu amigo não acha uma boa ideia, todos os seus outros amigos da periferia também dizem que é perda de tempo, que o boxe no Brasil é difícil, que futebol é melhor e, claro, que o dinheiro rápido vai fazer falta. Não é fácil largar tudo como ele fez, mas quem o conhece aceita sua decisão, porque dentro da periferia existem facções e, como Chicano não fecha com nenhuma, com nenhum dos partidos e com nenhuma das siglas existentes, se torna mais fácil de sair daquela vida porque não deve nada a ninguém, já que, na maioria das vezes, sempre preferiu andar sozinho.

# Chicano faz outras amizades, entre elas, com um rapaz que trabalha na Galeria do Rock e, sempre que pode, ele vai conversar com o amigo. Um dia, chega no assunto dos seus treinos de boxe e ele fala de sua vontade de treinar não só por saúde, mas para subir no ringue, sentir uma competição. É justamente esse amigo que o apresenta a Peter Venancio, um atleta olímpico do boxe, e o próprio que apelida o antigo Cobra de Chicano – um povo de origem mexicana que tem cabeça raspada e barba, igual a ele. Simpático e cordial, Venancio convida Chicano para treinar com ele no Parque do Tietê. Animado,

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ele treina dias alternados, dependendo de quando Peter pode ajudar ele, mas acaba durando apenas dois meses, porque o espaço para treinos é fechado. Nesse pouco tempo Peter conhece melhor o rapaz e sente sua forte gana pelos treinos. Como Peter está sempre ocupado, o leva para treinar em outro lugar e apresenta o rapaz ao professor de boxe do Centro Olímpico - Messias Gomes – para treinar com ele. Peter gosta tanto do garoto que o convida a dar aulas de boxe em duas academias como seu auxiliar técnico. As aulas duram dois anos, mas Chicano aprende muito, sendo o tempo necessário para perceber o quanto gosta mesmo daquele esporte. Agora maior de idade, sabe o que quer para o seu futuro: ser campeão. No primeiro dia de treino o professor já foi puxa assunto, mas, ao perceber que seu novo aluno é de poucas palavras, decide contar a sua história a ele e de como o boxe o ajudou. Depois do treino e de ter ouvido a história de Messias, Chicano se sente mais a vontade porque vê que Messias tem um passado com o qual também não se sente à vontade ao se lembrar. Depois de algumas semanas, Chicano resolve contar sobre seu passado e Messias passa a aconselhar e, até mesmo, a brigar com ele quando necessário. Além de aprender a lutar, agora ganha outro conselheiro com o qual ele dá ouvidos e se importa.

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Um ano depois dar início aos seus treinos no Centro Olímpico, agora com seus 19 anos, gosta cada vez mais de lutar e resolve experimentar outro esporte, escolhendo o muay thai. Assiste a alguns treinos e começa a praticar por curiosidade e até por defesa pessoal, que acha importante. Segundo Chicano, o muay thai “é o que alguns chamam de boxe tailandês. Nele, existem as graduações como no karatê, e consequentemente, de acordo com a evolução do aluno, ele vai chegando mais perto do profissional, e então o aluno passa a ser graduado, ou, o aluno pode demonstrar interesse por ser professor, e ao pagar para fazer graduação, depois de treinar muito e fazer muitos testes, ganha um certificado que comprova o quanto a pessoa está apta a dar aulas.” Chicano gosta dos treinos, faz novas amizades e evolui rapidamente, até conquistar o seu certificado. Quando percebe que pode ganhar dinheiro dando aulas de muay thai não desiste do esporte. Começa a gostar da ideia de ter um treino a mais e não somente o boxe. Se interessa pela parte técnica e fica feliz em saber que o muay thai pode ajudá-lo como uma segunda alternativa, que vem depois do boxe, seu esporte preferido. A demanda do muay thai sempre é maior dentro das academias do que a do boxe e, com o seu certificado em mãos, as oportunidades como professor vão surgindo cada vez mais para Chicano. As competições pelo boxe são muitas enquanto que, pelo muay thai são poucas, já que usufrui deste

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segundo esporte como forma de ganhar dinheiro. Comenta de algumas lutas de boxe que se lembra: “Lutei em duas viradas esportivas e ganhei as duas, lutei no campeonato federal e ganhei também. Lutas internas por academia eu sempre ganhava, como na K2 e na Combat. Graças a Deus foram mais vitórias do que derrotas. Nunca quebrei nada, mas tive muitas lesões, já que atleta e esporte devem se acostumar com lesão; a mulher do atleta é a lesão. Meu nariz já está muito ruim. De um lado tenho desvio no septo por casa de pancada e nem sinto cheiro, pretendo fazer uma cirurgia algum dia.” Ainda não chegou a competir fora do Brasil, mas sonha em um dia conseguir, pois, como diria ele, “o propósito é esse, treinar pra tentar chegar longe, se não chegar dentro da seleção vou treinando e focando porque uma hora dá.” “Eu me inspiro no atleta que é determinado, não vou colocar figura à parte, o cara focado já é minha inspiração, porque sempre está buscando o melhor. Falar que quero me inspirar em tal pessoa é fácil, quero ver eu ser ele quando a coisa tá ruim, quando ele teve que se capacitar. Ninguém vai querer ser. Então o cara determinado é o meu espelho, o cara que treina comigo, eu ver o desenvolvimento e o esforço dele, pra mim é meu espelho, meu ídolo”, afirma ele, que deixa claro não se inspirar em nenhum famoso como é o costume de qualquer atleta. “Seu Baltazar infelizmente faleceu, mas foi uma das únicas pessoas que eu ouvia e que me ajudou

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muito. Foi uma renovação, eu saí das cinzas e nasci de novo, tive a chance de recomeçar. Tenho a certeza de que, apesar de tudo que passei, se estou vivo, eu sei que vou longe, e assim espero. O que me tirou daquela vida foi Deus e o esporte, se não fosse o esporte para focar na cabeça alguma coisa para me mostrar o que é melhor pra mim eu não estaria mais aqui.” – Se recorda da primeira pessoa que o ajuda de verdade e de como é praticamente renascer.

# No primeiro colegial larga de vez os estudos. Chicano é um dos meninos da periferia que chega mais longe, porque vários de seus amigos nem terminam o ensino fundamental. Mas hoje, olha para trás e se arrepende do tempo de estudos perdido, diz que quer concluir o ensino médio e talvez até fazer uma faculdade de educação física ou ciência da atividade física e, com o tempo, se aperfeiçoar cada vez mais no boxe; conquistar mais lutas; ter certificados no boxe; se desenvolver como atleta e tentar formar novos atletas. Faz MMA em uma conceituada academia que já formou diversos atletas, onde começaram Wanderlei Silva, Anderson Silva e Fabrício Werdum. As modalidades da academia são o boxe, muay thai, jiu jitsu e wrestling, esse último que ajuda a treinar a parte de queda, mais forte fora do Brasil. Dentro dessas quatro, o aluno costuma se especializar em uma ou

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duas. Chicano já tem prática com o boxe e o muay thai, está aprimorando o jiu jitsu e começa a treinar o wrestling a pedido de seu professor de muay thai e de jiu jitsu – conhecido por todos como Treta – para que no MMA seus alunos não fiquem nulos, ou seja, quando tiverem uma queda, não ficarem vulneráveis no chão e reagirem de forma rápida. Chicano frequenta as aulas e gosta: “Me interessei pelo wrestling; é bom mesmo, ajuda na parte do condicionamento e da força.” Treta, seu professor, possui máxima graduação em duas das quatro modalidades da academia: a corda no braço na cor preta em muay thai e faixa preta em jiu jitsu, e Chicano pretende se igualar à ele. Ele sabe que precisa confiar em si mesmo e que deve pensar positivamente sobre seu próprio futuro, já que fala: “A melhor coisa que a gente tem é a nossa cabeça, porque ela é consequência de tudo que a gente é, ou seja, você é o que você pensa. Se você pensa coisa negativa, atrai coisa negativa, se você pensa positivo por mais que as coisas sejam difíceis, você vai conseguir.” Tudo o que passa na sua infância, agora são apenas más lembranças que tentam ser esquecidas, mas que não saem da sua cabeça. O esporte o ajuda a esquecer dessa fase da infância e adolescência, e hoje, como o homem que se tornou, só pensa em um futuro ligado totalmente ao esporte e a nada mais. “Foi uma grande reviravolta na minha vida, grandiosa mesmo. Eu não era nada, era um gerente

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de boca que vivia dentro do tráfico e roubava; hoje, pra mim, eu tenho currículo, já treinei, já lutei, conheço gente importante dentro da luta, então mudou tudo. Demorou, mas o esporte me levou pra um caminho certo. Hoje é até meio louco de falar, mas se você me perguntar se eu prefiro ter uma vida de amor com uma mulher ou com o esporte, eu prefiro o esporte sem dúvida, porque o esporte foi fiel a mim, não troco nunca, me faz feliz, me faz buscar o que é o melhor pra mim e eu sempre buscar me dedicar mais a ele. O esporte na formação de um moleque que está dentro da periferia e favela é essencial, porque até então ele só tem três opções: ser jogador de futebol, ser ladrão ou sair dali.” - fala, enquanto mostra sua indignação. “Estou firme, graças a Deus e ao boxe, ao que ele é e ao que ele me proporcionou. Antes eu não tinha rotina, nem horários para nada. Como vivia no tráfico, ficava acordado até 6h da manhã drogado, vendendo drogas, chegava a ficar dois dias seguidos sem dormir e, quando podia, dormia durante um dia inteiro. Não tinha pontualidade com nada; eu só tinha pontualidade para trabalhar dentro do tráfico, para fazer meu papel pra não ser cobrado e até ser morto”, ele conta. Chicano não mede esforços para defender o esporte e seus benefícios não só para a saúde, mas para uma vida toda. Ele afirma que “antes de você ter uma opinião formada de qualquer coisa, primeiro faça um teste, porque se o esporte fosse maléfico, as pessoas

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não pagariam para treinar. O esporte vai ocupar a sua cabeça, você vai ter um desenvolvimento profissional melhor porque te ajuda a pensar rápido, vai ter responsabilidade maior com qualquer coisa que você venha a fazer, porque o esporte é isso: determinação, responsabilidade e disciplina. Sua parte espiritual e emocional você solta no treino. Cabeça vazia é oficina do cão, como falam. Quem tiver oportunidade de fazer algum esporte, faça. Por mais que seja cansativo, seu corpo e sua mente agradecem.”

# Hoje só tem dois amigos vivos. Um deles segue uma religião, se converteu; o outro começou a trabalhar e também mudou de vida. “Apesar das mudanças, os dois são como eu, tem nome sujo lá atrás”, Chicano fala. Mantém contato com a família, sempre liga para saber como os pais estão e para dizer que está tudo bem. Pelo menos uma vez por mês os visita para diminuir a saudade. O irmão também saiu de casa e hoje tem um filho, mas os quatro membros da família continuam a morar no mesmo bairro. Solteiro, atualmente mora sozinho em Itaquera, vê sua filha duas vezes na semana e aos fins aulas que dá diariamente. Consegue pagar todas as suas contas com o dinheiro das aulas de muay thai.

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A SUPERAÇÃO


A SUPERAÇÃO

As rotinas de seus dias da semana são alternadas. Certo dia, quando acorda disposto às 9h, sai para correr, volta para casa, toma seu café rapidamente, vai treinar boxe no Centro Olímpico, depois dá aulas de muay thai. Faz uma pausa para o horário de almoço e para descanso. Pela tarde, mais treino de boxe e mais aulas a serem dadas. Por volta da meia noite a porta da sua casa é cruzada e, somente às 2h da manhã sua cama é desfeita para, enfim, descansar depois de mais um dia. E é assim durante os cinco dias da semana. Aos finais de semana costuma dormir até 15h para, segundo ele, “tirar o atraso do sono”. Chicano passa seus dias finalmente, com consciência limpa. Em relação a todas as mudanças bruscas, Chicano não se arrepende. “É duro, é cansativo, mas sinto algo que não tinha antes: paz.”

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Um dia



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UM DIA

1 de março de 2015, domingo. O dia de Edinalva começa às 3h30 da manhã. O primeiro ato é ler a bíblia e fazer orações. Depois de uma hora e meia, vai para a cozinha espremer três limões que formam um suco preparado para a corrida e vai para a feira com o carro de sempre, o Palio já lotado de roupas no banco de trás e no porta malas. Quando participa de corridas, como é o dia de hoje, estaciona seu carro no mesmo lugar de todos os domingos e ajuda uma colega a montar sua barraca, enquanto espera um amigo que irá acompanhá-la na competição. Às 5h45 seu amigo alto e moreno, conhecido por Júnior da Equipe Buscapé, que faz suas inscrições para as corridas, vem buscá-la. Ambos se abraçam e entram no Siena vermelho enquanto conversam. Quando chegam ao Parque Ecológico, local da competição, na corrida de rua da etapa Vila Prudente, o relógio marca 6h. Edinalva apenas tira a calça preta que antes estava por cima cima do short e a deixa no guarda-volumes, junto com sua blusa, e fica pronta para correr. Enquanto ela conversa com Júnior, algumas pessoas passam e a cumprimentam. 6h15 ela já começa a se aquecer diante do frio. Com 1.900 pessoas presentes para a corrida e para a caminhada da família, lá está Edinalva, pronta para competir mais uma vez. Enquanto se aquece, abre a garrafa de plástico que carrega na mão e dá o primeiro gole no suco, formado pelos três limões espremidos pela manhã, que toma antes de correr para ajudar na respiração.

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Faltando dez minutos para a corrida começar, ela coloca duas balas Halls na boca – uma de cada lado, como ritual que faz há 15 anos antes de competições – que para ela ajudam a não ressecar sua garganta durante a prova. Sai do parque e se junta a todos os outros participantes da corrida, que vão para debaixo da faixa de largada, bem à frente de uma das entradas do parque, juntando um amontoado de pessoas com várias cores de camisetas diferentes. Edinalva desaparece no meio de tanta gente. Pontualmente às 7h ouve-se o som da buzina e todos disparam para percorrer 5 km. Edinalva aparece no meio de todos, se desvia de quem estiver na sua frente, até que alcança uma posição segura e mais distante dos outros competidores. O primeiro lugar masculino atravessa a faixa de chegada, passados apenas 16 minutos. Os outros quatro lugares no pódio vão sendo determinados conforme os homens cruzam a linha. Aos 19 minutos, a primeira competidora feminina passa a linha de chegada, seguida por Edinalva, que está ofegante e sorridente, aos seus 22 minutos e oito segundos. O pódio está localizado dentro do parque e à sua volta é possível ver muitos competidores que já percorreram os 5 km tomar água, sentados no chão, conversando entre si ou tirando fotos no próprio pódio. Os cinco primeiros nomes masculinos e femininos que atravessaram a faixa de chegada são chamados na ordem pelo microfone. Primeiro, os homens recebem seus troféus, seguidos das mulheres, que recebem gritos e mais palmas conforme os nomes

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são anunciados e conforme o pódio é ocupado. Quando chega a vez da segunda colocada subir no pódio, Edinalva, que antes estava com as duas mãos para trás, sobe no pódio sorrindo e olhando para mais um troféu que recebe. A largada da caminhada é dada às 8h, ao mesmo tempo em que as premiações para a corrida terminam. Edinalva é chamada para tirar várias fotos com amigos e diversos grupos que a parabenizam pela colocação. Júnior a chama, ela se despede de todos, pega sua blusa e veste sua calça por cima dos shorts que estava no guarda-volumes e, no caminho para sair do parque, ainda algumas pessoas correm até ela para tirar uma última foto, até que os dois vão para o carro. Estão de volta à feira às 8h45, momento em que todos já estão aos gritos clamando por clientes. Eles se despedem e a competidora desce do carro de Júnior com o troféu em mãos, mostrando àquela amiga que mais cedo ajudou a montar a barraca. Depois que conversam rapidamente, ela guarda o troféu no carro e começa a tirar pequenas barras de ferro do carro, montando o seu espaço na feira e tirando cuidadosamente todas as roupas de dentro do banco de trás do carro e do porta-malas. Todos que passam por ela acenam, cumprimentam e perguntam como foi a corrida; ela sempre simpática, com a mesma resposta da primeira vez em que lhe foi perguntado: “fiquei em segundo!”. Com o sol agora mais forte, das 9h30, ela termina de colocar as últimas peças de roupas em cima da

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lona e pendura alguns vestidos por último nas barras de ferro. Os primeiros clientes aparecem dez minutos depois de tudo estar pronto. Duas senhoras e uma menina, que a chamam pelo nome, conversam sobre a família das senhoras, e o outro neto de uma delas aparecem. Enquanto conversam, ela mostra muitas roupas para as três, sempre elogiando os modelos. As três saem com algumas sacolas de supermercado em mãos depois de meia hora e depois de seus nomes e o preço de cada peça de roupa ter sido marcado em um pequeno pedaço de papel, que é deixado com elas. Mais clientes fixos e amigos do que clientes avulsos, Edinalva costuma vender fiado, mesmo com muitas pessoas levando meses para pagarem a dívida, sendo que algumas chegam a nem pagar. “Muita gente fica sem me pagar, mas acho melhor vender assim, com a esperança de gente que compra e de gente que me pague um dia. Quem é meu amigo paga pouco a cada semana, mas já ajuda. Aqueles que eu não conheço muito bem deposito minha confiança para que me paguem algum dia. Eu conto com isso, eu preciso porque é uma forma de fazer as pessoas comprarem”, ela diz, esperançosa. Algumas pessoas passam e a cumprimentam de longe, outras fazem questão de dar um aperto de mão ou um abraço. Poucas pessoas param para olhar ou comprar alguma peça de roupa, e as que compram, é fiado. Com o sol ardente do meio dia, ela pega uma garrafa de água de dentro do carro junto com um pacote

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de bolacha. Esse é o almoço de Edinalva. Quando algum cliente se aproxima, ela deixa o pacote e a garrafa no chão rapidamente, e fica pronta para atender. Poucos clientes, mas fiéis. Infelizmente, hoje a venda foi pequena. São poucas as peças de roupas que consegue vender, mas todas para os seus amigos, que sempre frequentam a feira e já conhecem Edinalva. O som da gritaria clamando por clientes vindo de todos os lugares começa a diminuir, até cessar às 14h, quando todos começam a guardar suas vendas para irem embora. Ela pega cuidadosamente cada uma das peças de roupas: vestidos, calças, camisetas, blusas, bermudas, shorts, calcinhas, sutiãs,cuecas e até uma variedade de cintos, e coloca tudo de volta no carro. Com o carro novamente cheio de roupas, Edinalva desmonta sua barraca, tira a grande lona azul, e todos os ferros que antes sustentavam o espaço para vendas. Volta para a feira, pega algumas bananas e outras frutas que encontra em bom estado espalhadas pelo chão, sem timidez, ao mesmo tempo em que cumprimenta praticamente todos os outros feirantes. Com as mãos cheias de frutas, se despede da amiga e entra no carro, a caminho de casa. Estaciona o Palio em frente à sua casa, pega as frutas que consegue na feira, as deixa no chão da cozinha e sai. Entra agora em seu outro carro, um Siena, que está com o banco de trás e o porta-malas livre, em direção a outra feira. Perto de sua casa, essa feira também está terminando. Muitos desmontam as barracas, guardam as caixas de madeira nos caminhões e vão embora. En-

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quanto Edinalva anda, olha para o chão e pega frutas, verduras e legumes em bom estado, equilibrando-se para carregar tudo. Alface, mamão, laranja, coco… Com os feirantes que ainda não estão guardando tudo, consegue desconto com o que vendem, por menos de dois reais, como o limão e o alface. Algumas pessoas a cumprimentam e ela retribui a simpatia. Consegue comprar também outras frutas abaixo de dois reais. Sai da feira com as mãos cheias de sacolas. Uma senhora com uma menina tímida acenam para ela: – – – –

Correu hoje Edinalva? Corri! Fiquei em segundo lugar! Parabéns! Obrigada.

E continua o caminho em direção ao carro. Na escola, aquela menina de 14 anos tinha de escrever uma redação sobre quem você admira, e dentre todas as pessoas, escolheu Edinalva. Quer ser rápida e ágil tal como a atleta de 51 anos. Edinalva não se esquece do dia em que a mãe dela lhe contou. Ficou surpresa, mas muito feliz. Chega em casa, leva todas as comidas para o chão da cozinha, espreme dois limões em um copo de vidro e toma rapidamente enquanto come uma banana madura que encontrou no chão da feira mais cedo. Sai novamente de casa para buscar duas colegas do trabalho missionário, ambas também moradoras da zona norte, para realizarem o estudo bíblico, que começa às 18h30. Como em todos os domingos, às 20h participa do culto da Igreja.

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Às 22h chega finalmente em casa, depois de dar carona para algumas colegas. Toma banho em seu pequeno banheiro sem luz, come o que trouxe mais cedo da feira, conversa um pouco com a filha, conta como foi a corrida e mostra mais um troféu conquistado. Pega o colchão que está encostado na parede junto com um cobertor e o deita no chão. Com a cama pronta, ela se deita e espera o sono chegar, aguardando por mais um longo dia de trabalho. Este é um típico domingo, mas, durante a semana, seus dias também começam cedo, logo às 3h30 da manhã quando lê a Bíblia, faz orações e lê lições da Escola Sabatina, exceto aos sábados. Não importa o tempo, às 5h da manhã sai para correr na rua durante 50 minutos até voltar para casa e ir para a feirinha da madrugada, que sempre compra alguma roupa diferente das outras que já tem para vender na feira ou no brechó. Vai para a feira de domingo à sexta, já que os sábados são voltados somente para a igreja. De segunda a sexta, após voltar da feira, abre o brechó das 14h até 18h30. Edinalva não deixa de frequentar um dia sequer a igreja, todas as noites às 20h, até chegar em casa por volta das 22h. Aos sábados, com o dia todo reservado para a igreja, acorda 7h e vai realizar o trabalho missionário, faz visitas para pessoas que precisam de orações e de doações. Sempre que pode, compra livros para depois, doar. “Sábado é um dia que não é meu, é do Senhor.”

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9 de fevereiro de 2015, segunda-­feira. No ringue, Messias está lutando. O seu corpo já não responde como no começo da competição. Já está cansado e não vê a hora de terminar o round. Ele bate, mas também apanha muito. Ofegante e suado, dá um pulo na cama, olha ao seu redor e tenta acalmar a respiração ao perceber que é apenas um sonho. Não vê o relógio, só olha pela janela e avista a escuridão da madrugada. Ainda agitado, liga a televisão para se distrair e tentar dormir de novo. O canal escolhido é o qual passa sua programação preferida: boxe. Assiste por pouco tempo até cair no sono novamente, sendo acordado dessa vez pelo barulho constante e irritante do despertador, às 5h. Quando se senta na cama, sente que não dormiu nada, mas logo se levanta antes que a preguiça fale mais alto e antes que se atrase. O início da manhã está com um clima agradável. Depois de assistir ao jornal, como faz todas as manhãs, entra no seu Renault Sandero a caminho do trabalho. O espaço da sala de boxe do Centro Olímpico, apesar de ser abaixo das arquibancadas da parte do atletismo, é grande e aconchegante. A sala retangular logo que se entra, é possível ver à esquerda a mesa de Messias, e todos os troféus, medalhas, fotos e pôsteres espalhados em um canto da sala, que enriquecem o lugar e inspira qualquer um que passa pela porta. À direita pendem do alto vários sacos de pancadas, e, ao meio, o lugar favorito de todos ali presentes, o ringue. Há um pequeno banco ao lado do ringue, com várias

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luvas de boxe e algumas toalhas. Existem duas portas na sala, uma em cada grande parede, sendo a principal uma que fica de frente para a mesa de Messias, e a outra, quase de frente para o ringue, que dá para debaixo das arquibancadas. Às 8h, alunos vão saindo dos vestiários masculino e feminino, formam uma roda comandada pelo professor Messias. No total são dez alunos, com apenas três garotas. Todos uniformizados com shorts pretos do Centro Olímpico e coletes laranja, com idades que variam entre 10 e 20 anos, com exceção de uma mulher, aos seus 36. Com um cronômetro em mãos, o professor Messias, mais conhecido como “mestre” tanto por seus alunos quanto por amigos, está com seu tênis adidas preto, calça preta e camiseta branca com a escrita FEBESP Federação de Boxe do Estado de São Paulo. Começa a liderar o aquecimento, que dura meia hora. Ele dita o movimento enquanto todos o fazem e ele observa. Terminado, a mais experiente da turma, Ana Maria, vai para a bicicleta e o resto se alterna entre pular corda, imitar os movimentos do boxe dentro do ringue e jogar uma bola de tênis como se fosse basquete, durante 15 minutos. Sete alunos saem da sala pela porta secundária, que dá para debaixo da arquibancada, usada em competições de atletismo. O sol entra por entre os degraus e bate no rosto das duas meninas e dos meninos, que trocam algumas palavras. Ficam em cima de pneus, e fazem movimentos de luta com as mãos.

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Outros dois garotos, que parecem os mais velhos dentre todos, com aproximadamente 17 anos, ficam na sala treinando no ringue, e a mulher que antes treinava sozinha, agora está em pé, de frente para o espelho. Messias entra e sai, dando dicas e mostrando as posições corretas para os três que estão dentro da sala e se certificando de que os alunos que estão fora dela não fiquem parados. Às 9h10 acontece o único intervalo da aula, de apenas um minuto. Todos, sem exceção, pingam de suor. Param o que fazem e tentam acalmar a respiração. Uns bebem água, outros se sentam. Fim do intervalo, todos treinam os movimentos do boxe com os braços no ar. Enquanto isso, os dois garotos estão agora no fundo da sala, batendo no saco de pancada, e a mulher ainda treina sozinha, agora com auxílio e total atenção do professor. Após alguns minutos, Messias sobe no ringue, chama o garoto mais novo da turma, que tem apenas 10 anos e pede para que ele coloque a luva. O garoto bate nas mãos do professor, que agora usa uma manopla de soco, uma espécie de luva para treinos, que só recebe socos. O professor vai ajeitando a postura e indica os momentos certos de bater e de se proteger. Depois de alguns minutos, com ar e feição de insatisfação, dispensa o garoto e chama outro, e depois outro. A mais velha da turma se aproxima de uma das meninas e começam a conversar e a rirem alto, até que o professor chama a atenção de ambas e o que se ouve como resposta em uníssono é: “desculpa, mestre.”

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Ainda ao fundo da sala estão os dois rapazes. O nariz de um deles começa a sangrar. O resultado disso foi um leve rastro de sangue no chão, com o qual ninguém parece ficar surpreso. Ele vai ao banheiro e, passados alguns minutos, volta com um algodão dentro do nariz. Parecer ter chego a melhor parte da aula. Messias fala para todos os alunos irem para o fundo da sala, e colocar suas luvas. Animados, todos os alunos seguem rapidamente o pedido do professor, e batem nos sacos de pancada. Todos estão focados, não há um ali presente que desvia o olhar. Messias deixa os alunos concentrados, entra no vestiário masculino e sai com uma grande cesta em mãos. Já sai falando em alto e bom som: “pegar o lanche das crianças”. Logo depois volta com a cesta cheia de caixinhas pequenas com um lanche e um suco. Coloca todos em cima de sua mesa, arrumando um por um em fileira e sai novamente da sala. Uns conversam, outros continuam treinando até que todos estendem tapetes no chão, formam uma roda e fazem abdominais. Às 9h50 os alunos começam a se dispersar, alguns continuam fazendo exercícios no chão, outros conversam, e outros vão em direção à mesa para pegar o lanche. Às 10h o professor encerra a aula. Todos de pé, agora vão em direção aos respectivos vestiários para trocarem de roupa. Messias senta-se em seu lugar, faz algumas ligações rápidas e necessárias a respeito do Campeonato Forja de Campeão, que acontece todas as segundas desde 27 de janeiro e se estende até 11 de maio. Importante para o boxe, é a terceira rodada de quinze, e com

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apenas um aluno representando o Centro Olímpico naquela noite, na categoria juvenil. Ao todo, sete alunos de Messias participam, cada um em uma categoria diferente. As categorias participantes do campeonato são: infantil (dura 1 min.), cadete/juvenil (2 min.), iniciante (2 min.), amador (3 min.), profissional (3 min.) e feminino (2 min.). Se fosse uma segunda comum, ele daria aulas de manhã nesse mesmo horário para iniciantes, depois das 14h às 15h também para iniciantes, das 15h às 17h para atletas comuns, e o treino para veteranos das 17h até 20h. Alunas vêm ao encontro de seu professor para se despedirem dele, com um beijo e um abraço; seguidas dos meninos, que um a um se despede com um aperto de mão, alguns apenas sorriem, outros dizem “tchau mestre”, até que atravessam a porta e vão para casa ou para a escola. Ana Maria, que mais cedo havia treinado sozinha a manhã toda, senta-se ao lado de Messias. Com um tênis e meia branca, calça legging e camiseta preta colada ao corpo escrito Corinthians, logo puxa assunto com seu professor, animada: “sabe, eu nunca gostei de brincadeira de mão, desde pequena não gostava desse tipo de brincadeira, porque se me batiam brincando, eu revidada, mas com força. Quando descobri o boxe não larguei mais, e sempre falo para minha filha e todos que conheço para praticarem algum esporte.” Ele responde que a entende melhor do que ninguém.

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Uma aliança dourada em seu dedo anelar da mão esquerda é simples, mas brilha. No início da manhã está um ar sério, mas agora, parece uma criança contando história. Empolgada, diz que treina boxe desde os vinte, sendo que ainda pratica outros cinco esportes: MMA, jiu jitsu, muay thai, luta livre e wrestling, e o resultado disso foram seis cirurgias em um mesmo joelho. “Eu fazia biomedicina, e comecei a fazer academia também, mas foi lá que encontrei minha paixão. Comecei com o jiu jitsu e não parei mais. Treinando apenas três meses já ia participar de competições, e até os cinco meses de gravidez eu ainda treinava. Larguei a faculdade e a família, cheguei a dormir no tatame da academia, que depois virou minha casa. Quando me convidaram a morar lá eu ganhei um quarto só meu, que pintei de rosa. Nunca me esqueço de quando fui para Londres lutar jiu jitsu, ganhei três páginas em uma revista de lá, eu era tratada como rainha porque lá não tinha faixa preta na Europa. Graças ao esporte parei de fumar, de beber e até de sair todas as noites. É o que eu sempre digo, o caminho é difícil, mas a paisagem vale a pena.” Messias ouve a aluna ao mesmo tempo em que responde a alguns e-mails. Ela se levanta, pega o celular do chão que está sendo carregado ao fundo da sala, e mostra uma matéria do SportTV feita somente sobre ela, a Ana Maria “Índia”, como é conhecida por todos. A academia que se torna sua casa por quatro anos, a que dá aula, treina e mora aparece no visor do celular, segui-

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do por seu quarto todo pintado de rosa. “Tive minha filha com 24 anos, tenho 36 agora, sei que não quero terminar a faculdade, quero mesmo é viver do esporte e depois dar aulas de boxe novamente, apesar da minha família preferir a biomedicina.” O professor, após assistir a partes do vídeo, agora fala enquanto volta sua atenção para o computador, e comenta o quanto se orgulha da paixão que ela mostra pelo boxe, afirmando o quanto ele faz bem, seja qual esporte for. Ao meio dia ele oferece carona a ela até o metrô mais próximo antes de ir almoçar, e os dois desaparecem diante do estacionamento lotado de carros. Às 13h30, volta à sua sala com uma peça de roupa em mãos. Entra no vestiário masculino e logo sai com a mesma calça preta, mas agora com uma camiseta vermelha escrita na frente “Centro Olímpico” e nas costas, “Comissão Técnica”. Entra e sai da sala diversas vezes em direção a seu carro, carregando mochila, sacolas, e uma pequena mala preta. Um adolescente chega, cumprimenta Messias de longe e se senta no banco ao lado do ringue. Passados alguns minutos, chama o rapaz: “Bora pro Pacaembu Lucas”. O garoto se levanta, e sem dizer uma palavra, apenas acena com a cabeça. O sol está forte e ambos caminham rapidamente até o carro preto, o qual o professor fecha o porta-malas e entra, virando a chave para depois ligar o ar condicionado. Seu aluno se senta no banco de trás do carro, atrás dele. O portão do Centro Olímpico é atravessado às 14h e o carro logo se junta aos demais no trânsito das ruas

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e avenidas da cidade. Eles trocam poucas palavras durante o percurso todo, com perguntas rápidas do professor e respostas mais rápidas ainda de seu aluno, e o único som que se ouve na maior parte do tempo é o da rádio. Meia hora depois, eles chegam no Pacaembu. O segurança libera a passagem da entrada após Messias se identificar como professor de boxe do Centro Olímpico e dizer que tem um aluno que vai participar do campeonato da noite. Em menos de um minuto ele estaciona de frente a uma entrada de um ginásio. Sai do carro, olha à sua volta por alguns segundos, até abrir o porta-malas e pegar dentro da mochila preta uma camiseta azul, que está voltada mais para a cor preta do que para a cor real. Lucas continua sentado no banco de trás do carro e conecta seu fone de ouvido ao celular, enquanto Messias entra no ginásio, depois volta, agora com a camiseta azul, guardando a vermelha na mochila preta, e volta para o ginásio. Um grande espaço está escuro e ainda vazio, tomado agora pelo barulho feito por Messias e seu colega que chega minutos antes dele, e carregam várias madeiras do canto do ginásio para o centro dele, jogando-os no chão, para montarem o palco no evento dessa noite: o ringue. Dois homens conversam sentados em uma mesa de plástico de frente para o ringue a ser montado, outro está deitado do outro lado, na arquibancada, e um guarda dá voltas pelo ginásio, enquanto observa todo o movimento do lugar. Mais três homens entram acompanhados de um senhor, que acena para Messias com

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um largo sorriso. Aos poucos, mais atletas com seus professores chegam e se acomodam nas arquibancadas. Lá fora, no típico dia quente de verão, o carro está com todas as janelas abaixadas e o garoto continua no mesmo lugar, ainda com seu fone de ouvido. 16h, Messias sai do ginásio e o chama; que vai para a área de pesagem e o professor volta para a montagem do ringue. Após esperar a sua vez depois de outros competidores, apresentar o RG e pesar, vai agora para a arquibancada e se senta em um dos lugares mais altos, voltando seu olhar para seu professor. O garoto magro, baixinho e moreno veste uma bermuda estilo surfista com estampas em preto e branco de ondas do mar, camiseta e boné na cor vermelha, e tênis preto da DC. Tímido e sério é a primeira vez que participa desse campeonato e já competiu outras vezes representando o Centro Olímpico, com mais vitórias do que derrotas. Morador de Perus, leva 2h para chegar aos treinos que duram 1h, de segunda à sábado, dedicando ao todo, 5h de seus dias somente para o boxe. Desde os 14 anos Lucas treina boxe, seu esporte preferido. Hoje, com 17, luta na categoria 60 kg como juvenil, tem a certeza de que o boxe não é apenas um passatempo em sua vida e pretende chegar até o amador profissional (depois do juvenil passará a iniciante, até chegar no amador). Não quer ser profissional por não querer lutar sem capacete. Após ficar na arquibancada durante dez minutos, volta para o carro, pega sua mochila, e dentro dela um pacote de bolacha e uma banana e, em uma das

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sacolas do porta-malas, pega um lanche embrulhado em papel alumínio, dois sucos de caixinha e uma barra de cereal, retornando em seguida para o mesmo lugar. Volta seu olhar novamente para Messias, que agora está parado encostado em uma das barras de ferro, passando as costas das mãos em sua testa suada. Às 17h, o sol de antes desaparece em meio às nuvens e começa a chover forte, escurecendo ainda mais a pouca luz existente no ginásio. As luzes são acesas e é possível notar o cansaço de Messias, que está ofegante e suado; a camisa azul ficando cada vez mais suja de tanto limpar suas mãos nela após segurar as barras de ferro e as madeiras que sustentam o ringue. Mais pessoas chegam, agora familiares dos competidores também se juntam ao ginásio, antes tomado somente por homens, entre professores e atletas. Entre todos que chegam acompanhados, um rapaz entra sozinho, olha por todo o espaço e, ao avistar Lucas, se senta ao seu lado. Um senhor baixo, magro, vestido inteiramente de preto também chega, permanece sorridente com todos que correm para cumprimentá-lo. Praticamente a cada passo que dá vem alguém puxar assunto e tirar uma foto a seu lado. É Éder Jofre, que já foi um dos melhores atletas no boxe nacional. Os dois apertam as mãos. Magro, loiro, olhos azuis profundos, um pouco mais alto que Lucas, conversam sobre boxe e sobre a presença de Éder Jofre para assistir o campeonato, bem diante deles. Ambos descem a arquibancada em direção ao ídolo e tiram uma foto com ele, assim como todos ali presentes fazem.

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Quando retornam, Lucas abre sua mochila e percebe que está sem uniforme. Vai até o carro correndo para tentar fugir da chuva, e pega de dentro da mala preta de Messias seu uniforme para aquela noite: colete e shorts vermelho com as palavras “Centro Olímpico” e o símbolo do mesmo em ambas as peças. Messias e o amigo terminam de montar o ringue. Cada um vai para um lado, buscar a troca de roupa. Lucas vai para o vestiário às 17h30 com o uniforme e o tênis em mãos, volta uniformizado, mas descalço. Se senta ao lado do amigo e logo puxa assunto com ele, ao mesmo tempo em que coloca rapidamente as longas meias brancas até acima dos joelhos, e seu tênis preto, mas encerra a conversa quando Messias o chama. O aluno coloca suas luvas com a ajuda de Messias, agora novamente vestido com a camiseta vermelha. Lucas se aquece, pula várias vezes e faz movimentos na manopla de soco usada por seu professor. Enquanto isso é possível ouvir os primeiros dois competidores serem chamados pelo microfone a comparecer no ringue. A primeira luta da terceira rodada do campeonato é iniciada às 17h50. Todos os olhares se voltam para o ringue montado há poucos minutos. Os burburinhos de antes terminam e o único som do ginásio todo é o de familiares gritando o nome de um dos atletas, e dos professores de ambos gritando e incentivando: “vai”, “acerta ele”, “embaixo, embaixo”. Após três rounds e segundos para a decisão, por dois votos a um dos jurados, o vencedor da luta logo é anunciado, que passa para a próxima rodada.

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O nome Lucas Nascimento é anunciado, seguido por Rafael. Messias apoia sua mão no ombro de seu aluno e lhe deseja sorte. O garoto sobe no ringue e o professor se ajeita na pequena escada abaixo de um dos quatro cantos do ringue, com um banquinho vermelho em uma das mãos, uma garrafa de água em outra e uma toalha vermelha em seu ombro. O adversário não dá sinal de aparição. O senhor com o microfone na mão anuncia que, se em um minuto Rafael não aparecer, Lucas será considerado o vencedor da luta. Alguns segundos depois um garoto sai correndo do banheiro masculino em direção ao ringue, e todos os olhares o acompanham a cada passo que dá. O adversário sobe e troca algumas palavras com o senhor que segura o microfone, impaciente. Em seguida, ele pergunta em alto e bom som se alguém tem um calção para emprestar à Rafael. Um homem tira um calção da mochila e empresta para o atleta, que troca outras palavras com o senhor. Este, que logo depois fala mais uma vez no microfone, e pede agora um protetor bucal para o rapaz, que vai competir totalmente despreparado e, segundo as palavras do próprio senhor, agora irritado: “Alguém tem gente? Porque ele não trouxe nada!”. Depois de um outro competidor emprestar o seu próprio protetor, finalmente é dado o início do primeiro round. A torcida de Lucas não é tão grande como a de outros competidores, que trazem suas famílias. Nenhum membro da família de Lucas vai assisti-lo. Na verdade, nunca assistiram, já que ninguém apoia sua decisão. Além de Messias, alguns poucos amigos gritam para

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incentivá-lo e aquele amigo que antes estava sentado a seu lado, agora está perto do ringue, filmando tudo e gritando repetidas vezes “vamo, Lucas, vamo!”. Messias grita pouquíssimas vezes se comparado ao outro treinador. Observa cada movimento que Lucas faz. Seu aluno apanha pouco e acerta o rosto do adversário várias vezes, que recua. Depois de dois minutos, é encerrado o primeiro round. Cada um para um lado oposto do ringue e se sentam nos bancos rapidamente posicionados pelos seus professores. Messias alonga os braços de seu aluno, dá agua para ele, abana seu rosto com a pequena toalha vermelha e dá alguns rápidos conselhos, enquanto Lucas só concorda com a cabeça. O segundo round se inicia. Lucas bate, mas logo recua quando o adversário parece enfim, ter acordado para a competição. Terminado o segundo round as mesmas ações que se repetem entre competidor e treinador, até que no terceiro e último round, Lucas acerta o rosto de Rafael, que quase cai para trás. O tom dos gritos só aumenta até que o minuto restante termina. O resultado demora mais que o primeiro a sair. Por unanimidade, Lucas Nascimento é o vencedor da segunda luta da noite. Rafael logo desce do ringue, enquanto o braço do vencedor é erguido. Lucas solta um ar de alívio seguido por um sorriso, que troca com Messias. Feliz por passar para a próxima rodada, desce do ringue e recebe os parabéns e o abraço de Messias, e de muitos ali presentes, enquanto vai em direção ao vestiário masculino trocar de roupa.

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Os dois próximos competidores são anunciados. Todas as lutas seguintes se repetem com altas conversas durante uma luta e outra e com os gritos de incentivo dos familiares e professores por seus competidores. Messias vai para a arquibancada, acompanhado do amigo de Lucas e os dois se sentam, esperando-o retornar. Os três ficam quietos na maior parte do tempo, assistem a todas as lutas, e comentam sobre as técnicas de alguns. A última luta termina 20h30. O ginásio está se esvaziando, e os poucos que permanecem até o fim começam a se levantar e sair para o estacionamento. Messias se despede de quem o conhece, comenta com alguns sobre como o campeonato, e leva Lucas e seu amigo até o metrô. Às 21h, o ginásio está ainda mais vazio. Ele entra no vestiário e troca novamente com a camiseta azul de antes. Com a ajuda do mesmo colega que monta o ringue naquela tarde, ambos começam a desmontá-lo. Meia noite e meia, na primeira hora de terça-feira, as últimas madeiras são colocadas fora da área da quadra do ginásio, no mesmo canto que antes estavam. Ambos trocam de roupa, se despedem, vão para seus respectivos carros, e o guarda apaga as luzes do ginásio, em silêncio.

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18 de março de 2015, quarta-­feira. O dia de Lucimar começa oficialmente às 5h, já que diversas vezes acorda durante a madrugada para alimentar sua filha, Ísis de apenas sete meses. Toma café com o marido, pega alguns potes de papinha comprados no mercado para a filha, prepara sua marmita, arruma a bolsa da mesma com fraldas e trocas de roupas e se arruma apressadamente com uma calça preta, camiseta vermelha do Centro Olímpico e tênis branco. O casal sai de casa a caminho do trabalho quando o relógio marca 7h30, e com o uso do transporte público, Lucimar sai com a filha nos braços enquanto o marido carrega o carrinho e os pertences dos três. Somente às 10h ela chega ao Centro Olímpico com a filha, e se despede do marido que vai para o seu trabalho, no mesmo bairro. Os seguranças e os professores que passam por ela desejam um bom dia, sorrindo e acariciando Ísis. Na sala dos professores deixa a filha no carrinho e rapidamente se senta na primeira cadeira que encontra. Começa a fazer um relatório sobre uma competição que teve na semana anterior. Finalizado, agora faz um relatório para solicitar materiais de competições e treinos. Dá continuidade a um projeto que começa no final de semana, sobre um curso do comitê olímpico, mas é interrompida pelo choro da filha.

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Lucimar a pega no colo, vai para o espaço da cozinha, e dá a papinha para Ísis. Aproveita e pega a comida que traz de casa para esquentar. Almoça ao mesmo tempo em que distrai sua filha que está no carrinho. De volta à sala dos professores, solicita bilhete único para os poucos atletas matriculados, e vai até o departamento médico para ver a situação de cada um de seus alunos, já que gosta de acompanhar de perto. Volta para a sala dos professores às 13h30, em uma reunião convocada de última hora para a mudança na grade dos horários das aulas de todos os professores. Pede para seu estagiário dar início à aula do dia, que começa 14h30. Liga para o marido, que deveria ter chego 12h para ficar com Ísis. Ele não atende, e ela leva a filha junto para a reunião. Finalizada a reunião duas horas depois, já com dores nos braços, vai em direção ao espaço que acontecem os treinos de luta olímpica. Chegando mais perto, vê seu marido e uma mãe com um filho de 10 anos. Dá um beijo no marido, que pega a filha no colo. A mãe pede informações sobre as aulas. Os três sobem a escada que dá acesso à sala de treino e encontram seis alunos treinando, sob instruções do estagiário. Os alunos estão em três duplas, golpeando uns aos outros. O espaço não é muito grande, mas suficiente para os treinos. Assim que se termina de subir a escada, já é possível ver todo o espaço, já que duas

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das paredes são cobertas de janelas. Ao passar pela porta, a parede ao fundo é branca, assim como a outra, que possui um comprido banco de madeira. Os três se sentam no banco, e Lucimar explica como funcionam as aulas para os dois. O garoto se mostra cada vez mais interessado, e fica combinado que dará início às aulas na terça-feira seguinte. Assim que se despedem, a professora tira os sapatos, e de meia, entra no tatame, cumprimenta um por um, e pedem para formarem uma roda em volta dela, que passa um exercício. Depois de todos praticarem o movimento antes passado pela professora, agora ela forma duas duplas, e faz uma simulação de competição, explicando passo a passo em alto e bom som. “Pra quem usa aparelho, precisa de protetor. O uso de botinhas agora é obrigatório. No dia, eles vão revistar todos vocês para verem se não estão usando cremes, ou alguma coisa que machuque o adversário.” Ela chama dois rapazes, e os outros alunos se sentam em um canto. Ela apita, e começa o round. Depois de dois rounds, ela apita novamente para encerrar, segura o braço dos dois, e levanta apenas de um. O marido aparece na janela com a filha, e ficam assistindo a aula. Faz o mesmo processo com a dupla seguinte. Dois de seus alunos não vão competir em breve como os outros, já que não possuem a idade mínima para competir na categoria cadete, de 16 e 17 anos, então nem participam da simulação.

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Lucimar finaliza a aula às 16h. Dois fisioterapeutas entram na sala e se sentam no banco de madeira. Todos se sentam de frente para ela, que começa a falar do campeonato, o qual seus alunos vão competir na categoria cadete. “Vamos fazer essa simulação nas próximas aulas, como se fosse no dia da luta mesmo. No começo é muita pressão, eu sei, ainda mais se você for participar da luta que vai abrir o campeonato. Por isso que vamos fazer isso mais vezes, para vocês irem se acostumando. Gente, hoje demorei porque tive uma reunião, mas nas próximas aulas vamos pegar pesado.” Seu marido entra na sala e se senta no banco. Uma de suas aulas se levanta e senta perto deles, sorrindo para Ísis. Ela termina de conversar com os alunos, e chama os dois fisioterapeutas, que tiram seus sapatos, entram de meia no tatame e começam a dar exercícios de alongamento para todos. A professora conversa com seu estagiário. Meia hora depois, os alunos são liberados pelos dois profissionais. Um por um se despede dos fisioterapeutas, de Lucimar, e do mais novo professor deles. Todos calçam seus chinelos ou tênis, e descem a escada com suas mochilas para se trocarem nos respectivos vestiários. Lucimar agradece aos dois, que calçam seus sapatos e também saem da sala. Terminada a conversa com o estagiário, ela se despede. O casal e a filha,

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agora no colo da mãe, descem as escadas. O marido se despede para voltar ao trabalho, e as duas voltam para a sala dos professores. Lucimar alimenta novamente a filha, tenta adiantar o relatório na sala dos professores, mas não consegue, está cansada. Se despede dos poucos professores presentes também na sala, pega sua bolsa, coloca a filha no carrinho, e decide ir embora para tentar fazer o que precisa em casa. Às 17h, para perto da segurança, que puxa assunto. Conversam pouco tempo, até Lucimar mostrar cansaço e se despedir. Chega em casa somente três horas depois. Finaliza o relatório, o envia por e-mail, dá o jantar para Ísis, espera ela dormir, e come o que encontra na geladeira. Agora basta esperar o marido chegar para relaxar no banho e poder dormir sossegada, e claro, esperar por mais um dia de trabalho. Com a televisão ligada no mudo, ela adormece no sofá com o controle na mão.

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17 de março de 2015, terça-­feira. O despertador do celular de Chicano dispara às 10h da manhã. Apesar do volume alto, ele coloca no modo soneca e dorme uns minutos a mais, até se levantar. Toma café da manhã enquanto assiste televisão, troca de roupa e arruma sua mala preta de sempre colocando algumas roupas dentro, bem como seus suplementos. Às 11h30 a porta da sua casa é trancada. Pega um ônibus até o metrô Itaquera, para depois fazer baldeação até a estação Praça da Árvore e encontrar seu professor de muay thai e jiu jitsu, conhecido por todos como Treta. Ele chega na saída da estação às 13h20 e vê o carro de seu professor estacionado. Cumprimentam-se e vão em direção à academia. Chicano deu início às aulas de wrestling no começo de março, que acontecem de terça e quinta-feira, às 13h30. Seis homens começam a se aquecer pelos comandos do professor, que depois ensina uma sequência de movimentos que devem ser repetidos em duplas por alguns minutos até todos conseguirem realizar. Passados dez minutos do início da aula, o professor Treta estaciona seu carro em frente a academia. Na parte de baixo fica a academia, e em cima, são duas salas, uma pequena com um ringue, e outra maior com um tatame. Esta segunda é pouco iluminada, as paredes possuem uma tintura branca desgastada pelo tempo, uma delas é coberta por janelas e outra possui um comprido banco baixo de madeira. Chicano deixa a

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mala preta no chão e se desculpa com o professor pelo atraso. De shorts preto, troca apenas a camiseta preta por uma vermelha, e fica descalço. Chicano e Treta entram no tatame, se aquecem em um canto, prestam atenção quando o professor repassa o exercício e as duplas são novamente formadas, de acordo com o peso e força de cada um. Treta faz dupla com um homem tão alto e forte quanto ele, e Chicano, com um rapaz mais baixo como ele, só que mais forte. O professor usa cada vez um dos alunos para demonstrar o exercício, depois as duplas o repetem. O professor agora participa da aula, e faz dupla com um homem que chega atrasado. São movimentos bruscos e cansativos. Diferente de outras modalidades, usam o corpo todo, fazem movimentos que necessitam de extrema força, como o de um usar o corpo do outro para se apoiar. Agora quatro duplas ocupam todo o espaço. Diversas vezes muitos deles caem e demonstram dor, mas prosseguem. O professor anda entre os alunos, estimulando os que desistem. Aquele que antes fazia dupla com ele, se senta para descansar. Em um dos exercícios, Chicano o chama, faz o movimento para que ele corrija sua postura e depois de algumas tentativas, o parabeniza. A aula termina 15h. Começam a conversar, até que formam uma roda e vão se sentando, um por

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um. Após meia hora, um deles se levanta, e todos fazem o mesmo, começam a arrumar as malas e a trocarem de roupa. Se despedem, e Chicano e Treta voltam para o carro. Chegam em outra academia às 16h, a que Chicano faz musculação e dá aulas de muay thai. Ele agradece a carona a seu professor e atravessa a rua em direção a uma pequena lanchonete. Almoça enquanto assiste ao jornal que passa na televisão. O lugar pequeno com poucas mesas está vazio, a não ser por ele e por mais dois funcionários, um no caixa e outro que varre o chão. Depois de comer, atravessa a rua e entra na academia. Sorri para a secretária, sobe as escadas e vai para o banheiro. Sai de lá agora com uma camiseta preta, o mesmo shorts preto, e tênis branco. Toma dois comprimidos, enche sua garrafa de água no bebedouro, deixa sua mala na parte de dentro do balcão que fica o instrutor que tira dúvidas dos alunos, e começa seu treino de musculação, com o fone nos ouvidos e celular em mãos. Aos que vão chegando, sorriem para ele, que sempre retribui. Os equipamentos de academia ficam espalhados pelo grande espaço do salão bem iluminado e ventilado. Poucas pessoas estão presentes, e o lugar vai enchendo conforme a noite se aproxima. Ele não tira os fones para falar com ninguém, a não ser por uma jovem alta, magra de longos cabelos pretos, que, ao se aproximar dele, tira os fones e

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começam a conversar, faltando quinze minutos para a aula de muay thai começar. Ela de shorts preto, camiseta branca larga e descalça, pronta para a aula. A conversa dura até ele se levantar do equipamento em que estava e ir até sua mala, beber a água que encheu antes, e ela vai para o banheiro. A apenas alguns passos do grande salão de equipamentos de academia, também no andar de cima do estabelecimento, há uma pequena sala espelhada em uma das paredes, com um tatame cobrindo todo o chão. Ele entra na sala, deixa sua mala preta em um canto, vai para o banheiro e volta com outra camiseta vermelha, shorts vermelho escrito na cor amarela “muay thai”. Tira o tênis e a meia, e fica descalço como seus alunos já presentes. A garota que antes conversava com Chicano é sua aluna, e trocam novamente algumas palavras enquanto outros alunos chegam e tiram seus calçados. Ele amarra uma corda nas cores azul escuro e preto no seu braço esquerdo, e ajuda um de seus alunos a amarrar uma branca em seu braço. Um homem ao mesmo tempo amarra uma branca e vermelha. Os três são os únicos que usam a corda no braço que indica a graduação. Os outros ou preferem não usar, ou ainda não possuem. A graduação de Chicano é a de instrutor, o penúltimo grau. Na ordem, iniciantes usam a cor branca (grau 1), vermelho e branco (grau 2) e vermelho (grau


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3). Intermediário usa vermelho e azul claro (grau 4), azul claro (grau 5), azul claro e azul escuro (grau 6). Instrutor auxiliar usa azul escuro (grau 7), instrutor usa corda nas cores azul escuro e preto (grau 8), e professor usa somente a cor preta (grau 9). Às 19h, Chicano inicia a aula de muay thai. Corre em círculos, enquanto todos o seguem. De frente para o espelho, o professor faz diversos movimentos e todos repetem. Durante o aquecimento vários alunos chegam atrasados, retiram os calçados e se juntam aos outros, ao fundo da sala. Os 18 alunos entre 15 e 48 anos fazem uma roda em volta do professor, que mostra uma sequência de movimentos a serem seguidos. Duplas são formadas, luvas são colocadas e todos fazem o mesmo que lhes foi passado, até as duplas inverterem os papéis entre quem ataca e quem se defende. A cada nova sequência, Chicano cronometra 3 minutos e 20 segundos em seu celular. Às 20h20 todos retiram as luvas, fazem novamente uma roda, seguida por flexões e por outros diversos exercícios que fazem juntamente com o professor. Dez minutos depois, se levantam. Com os alunos agora em fileira no fundo da sala, diante do espelho e de Chicano, ele agradece a presença de todos em mais uma aula e, ofegante, fala apontando com o dedo indicador: “nunca desistam, só pode pensar em desistir de desistir”. Alguns sorriem, outros concordam

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com a cabeça. Todos começam a se despedir. Fazem uma fila, a qual um por um se despede dos outros. Chega ao fim mais uma aula. Quando Chicano sai do banheiro, um de seus alunos lhe oferece carona até o metrô da linha vermelha e descem as escadas juntos até o carro. Conversam sobre o esporte e sobre a aula cansativa do dia. No caminho, seu aluno para em uma faculdade para buscar a namorada, que entra no carro cumprimentando ambos. Ela já conhece Chicano por ele sempre pegar carona com o mesmo aluno. Depois de descer na estação da linha vermelha, chega em casa por volta das 23h, toma banho, cozinha algo rápido para o jantar, e come enquanto assiste televisão. Ao se deitar, mexe no celular como de costume, até cair no sono.

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Edinalva Cristiane, a filha de 26 anos é formada em ciências da computação e quer fazer pós-graduação na área ou começar o curso de biologia. A mãe pretende pagar os estudos, seja qual for sua escolha. “O meu sonho é ver ela sempre bem, eu sempre fiz tudo por ela. Até hoje não deixei trabalhar porque eu já sofri muito na vida e não queria vê-la passar pelo mesmo. Hoje eu sinto que estou estragando a vida dela, sei que ela precisa trabalhar e ter experiências, mas quero poupar ela ao máximo.” Edinalva pretende acabar de reformar a casa para viver com a filha e sonha em pagar uma viagem de estudos a ela. “Não quero morrer e deixar tudo como está. A casa desse jeito, ela não ia conseguir terminar, não ia saber como. Essa casa é dela, deixarei pra ela.” A van que sonha em comprar para realizar trabalhos missionários será da filha. “Se ela quiser se envolver com a igreja para o resto da vida, eu apoio”, ela diz sorridente, já que se dedica todos os dias à igreja. Cristiane frequenta toda a semana e gosta, e isso a deixa satisfeita. “Eu sei o que é passar fome, é duro. Não quero que ela passe pelo que passei, nem que fale que eu a deixei na rua da amargura, porque eu posso dizer que o que a minha mãe não fez por mim, eu faço pela minha filha, eu faço de tudo. Sou simples, humilde, não faço questão de nada, não tenho luxo nenhum; só olhar pra mim, não tenho nada de especial, mas a minha filha, quero ver ela bem. Enquanto eu viver quero lutar por ela.” Ela diz, enquanto lágrimas escorrem de seu rosto.

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Messias Fevereiro de 2014. Após ter a oportunidade de conhecer tantos lugares, queria partilhar sua trajetória somada ao esporte, e, ao receber tantos elogios pelos colegas de trabalho e por seus alunos, decide escrever um livro sobre a metodologia do boxe. Além de seu em educação física ter sido a respeito desse esporte em especial, ele queria mais. Messias quer passar adiante todo o conhecimento adquirido em vida para as próximas gerações. Sem pressa, pretende terminar seu livro, uma didática de treinamento para crianças, para o boxe infantil. Essa é a ideia inicial, mas pode ser que no futuro ele decida aprofundar. Ele fala, animado: “O livro que estou escrevendo será direcionado para a iniciação de boxe. Existe um mundo no esporte que as pessoas desconhecem: a essência de cada esporte; e quero deixar algum legado para os jovens de hoje, algum conhecimento técnico, mesmo que pequeno, mas que seja pedagógico para as crianças. Sei que será bem aproveitado.” O plano é terminá-lo no final do ano que vem, e Messias já tem bastante material que usou para seu trabalho de conclusão de curso na faculdade. O livro terá um pouco de sua história antes de focar para o esporte. Pretende contratar alguém para desenhar e, depois, o mais rápido possível, publicar.

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Escreve quando se sente inspirado, pensando no que quer deixar para os futuros treinadores que também escolherão o mesmo esporte que ele escolheu para o resto de sua vida. Dezembro de 2014. Sozinho, usa suas férias de 23 dias de dezembro a janeiro e vai para Manaus com o objetivo de conhecer o Centro Olímpico de lá para dar continuidade a seu livro. 2015: Solteiro, com uma filha, pretende dar aulas de boxe o máximo que puder, pois quer se dedicar ao esporte como pode. O boxe mudou sua vida. Sempre incentiva seu neto de seis anos a praticar esportes. Ele treina judô e Messias pretende colocá-lo nas aulas de natação. Aos domingos o leva para andar de bicicleta e sempre brincam, até mesmo de lutar boxe. “Eu me ajoelho para ficar do tamanho ele, e a gente fica brincando, um batendo o outro”, ele diz, rindo. Seu neto estudava em uma escola municipal até Messias começar a pagar uma particular. “Sempre digo, que todos devem respeitar os idosos e amar as crianças. Quero o melhor para o meu neto.” Ele já passou por muitas dificuldades, mas sabe que um de seus sonhos não é a riqueza e sim ver o boxe ganhar força no Brasil, bem como espera que seu livro ajude as próximas gerações no esporte. “Tudo gira em torno do dinheiro, mas existem coisas que o dinheiro não compra que é a sua paz, a sua felicidade, a sua alegria, e satisfação. Eu me pergunto às vezes quantos tem dinheiro e não dorme direito? Dinheiro é bom, mas traz problemas junto.”

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Lucimar Apesar de sua filha estar na fila da creche e não ter previsão para conseguir uma vaga, apesar de ter perdido muitos alunos desde sua saída para a licença maternidade, apesar de ter que levar a filha no trabalho todos os dias, apesar de não dormir direito e passar a maior parte do dia estressada, Lucimar não mudaria nada. A filha é fruto do relacionamento com o homem que mais ama e a luta olímpica é sua paixão. Sabe que vai demorar em recuperar a quantidade de alunos que tinha antes, porém, não desanima. “No final, tudo vai valer a pena. Quero dar aulas de luta olímpica para sempre. O esporte acabou se tornando tudo o que eu mais preciso. Posso dizer que é minha diversão e ao mesmo tempo, o meu trabalho”, diz ela, satisfeita. Depois de treinar atletismo, kung fu e judô quando criança, acaba conhecendo o esporte que realmente ama somente na fase adulta. Demora, mas vale a pena, porque apesar de tudo que já passou, seu esporte preferido acaba entrando em sua vida quando já não buscava mais a prática esporte algum. Pretende incentivar sua filha a praticar algum esporte, começando pela luta olímpica, claro. Mas quando Ísis crescer, a mãe vai apoiar qualquer esporte que ela escolha, independente da modalidade, dizendo: “Não vou privar ela de treinar nada. O que ela gostar, vou gostar também.” A luta olímpica muda a vida de Lucimar, que fala convicta: “O esporte é minha paixão, é minha vida, não largo por nada.”

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Chicano Chicano não se arrepende em momento algum de ter entrado para o mundo esportivo. “É puxado, mas é benéfico. Vejo meu rendimento crescer e fico feliz em ver o que eu passo ajuda as pessoas. Busco sempre a minha evolução e a dos meus alunos. Pretendo dar aulas até o final da minha vida, aprender sempre, formar novos atletas e formar pessoas com melhor qualidade de vida, porque o esporte me mudou e tenho fé que através dele vou conseguir muito mais.” Para sua filha, ainda não tem planos, só sabe que vai apoiá-la e ficar ao seu lado sempre. “Vou deixar que seja natural. Sei que ela gosta muito de lutas, essas coisas, mas vou esperar ela crescer e ver o que é melhor pra ela. Com certeza vou sempre incentivar ela em algum esporte, porque eu sei que com ela estudando e praticando algum esporte, a cabeça dela vai ser outra, vai ser uma pessoa melhor e mais saudável.” Quer comprar uma casa própria, já que mora em uma alugada, em Itaquera. Pretende fazer concurso público e entrar para a Polícia Civil e não para a Militar, por conta das tatuagens, para preservá-las por ser perigoso, já que pode ser reconhecido pelos bandidos através delas. Depois de entrar para a Polícia Civil, pretende começar a faculdade de educação física. Ele fala: “Se conseguir entrar agora para a Polícia, sem estar na faculdade, será em um cargo baixo, mas depois que eu estiver estudando, posso prestar para um cargo melhor, como investigador.”

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RELATO DA AUTORA

Este livro foi feito com a intenção de inspirar pessoas a praticarem esportes, mas confesso que chegou até mesmo a me inspirar, algo que eu não esperava. Receosa desde o início, passei por alguns imprevistos, como era de se esperar. Fontes não responderam, bibliografias não eram encontradas, mas, principalmente, tive de lidar com a personalidade de cada entrevistado, sabendo guiar a entrevista e cedendo o espaço suficiente para cada um contar o que achasse conveniente, além de sempre tentar puxar algo mais profundo das histórias contadas, entre outros casos, mas que ao final tudo deu certo. A teoria do trabalho, apesar de cansativa e nada convidativa, foi indispensável para sua realização. A prática, o momento mais esperado, foi mais longo e me fez passar mais noites em claro do que o imaginado, mas posso dizer que me proporcionou uma experiência nova e incrível. Cada história trouxe uma parte importante do trabalho, pois cada um dos personagens passou por dificuldades totalmente diferentes, mas todas interligadas da mesma forma: a superação. Pude perceber a cada passo do trabalho que o jornalismo vai muito além de uma simples entrevista. Poder conhecer melhor cada entrevistado, vivenciar um dia da rotina deles, imaginar como eram antes pelas histórias contadas, ver a pessoa que cada um se tornou e como hoje influenciam outras, só me fez enxergar o quanto estou na profissão certa, pois, a cada parte feita do trabalho, a satisfação

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somente crescia. Além de personagens para o livro, conquistei também amigos. Aprendi a pensar e olhar mais positivamente para tudo que me cerca. Cheguei a conclusão de que pessoas podem chegar a não ter nada, mas podem dar a volta por cima de uma forma admirável. Cada um dos personagens se encontrou em situações difíceis de serem encaradas, mas todos aprenderam que existe uma segunda chance, basta procurá-la. A finalização deste trabalho foi uma superação para mim, que me tornou uma jornalista melhor. Comecei e terminei com opiniões distintas, porque de onde eu parti, sem apreciar o esporte, e onde cheguei como pessoa, com o relatório e livro finalizados, fizeram meus pensamentos e ideias que tinha sobre o mundo esportivo mudarem totalmente. Constatei que, para muitos, o que antes eu acreditava ser uma escolha para a saúde ou um simples hobby, é uma válvula de escape para os problemas da vida. Agora aconselho a todos buscarem qualquer prática esportiva que seja porque, apesar de serem distintas, são todas benéficas. Serei eternamente grata aos personagens desse livro que dedicaram um tempo de suas vidas para me ajudar da melhor maneira possível, abriram suas portas e seus corações para mim, confiando histórias que até mesmo muitos de seus próprios amigos não conhecem.

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RELATO DA AUTORA



Este livro conta a história de quatro pessoas que já passaram por diversas dificuldades, mas que se superaram através do esporte. Edinalva, Messias, Lucimar e Chicano mostram que a prática esportiva pode beneficiar não somente seu corpo, mas também sua mente. Suas histórias de vida servem como inspiração a todos, sem restrições de idade, muito menos de modalidade. Os personagens deste livro nasceram de novo, e espero que todos os leitores renasçam com ele.


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