Saramago: Realismo

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SARAMAGO

realismo

Machado de Assis/ Gustave Flaubert/ Eรงa de Queirรณs



“OS FATOS EXPLICARÃO MELHOR OS SENTIMENTOS: OS FATOS SÃO TUDO.” – Machado de Assis


5 Introdução

NOTA DAS EDITORAS

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A revista Saramago foi idealizada por um grupo de alunas do Colégio T. Parthenon com o propósito de utilizar o exercício da escrita como forma de difundir o conhecimento acerca das escolas Realista e Naturalista, num espaço que ainda é restrito no que tange ao aspecto linguístico. Com esse projeto, visamos a auxiliar indivíduos interessados em promover sua formação literária. Esperamos que, a partir desta e de outras composições provindas dos corpos discente e docente, se possa promover a expansão do pensamento crítico, indo além do conteúdo formal trabalhado no Ensino Médio.


S U M ร R I O

AUTORES E OBRAS: Eรงa de Queirรณs

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AUTORES E OBRAS:

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AUTORES E OBRAS:

Machado de Assis

Gustave Flaubert

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BIBLIOGRAFIA

ORIGENS DO REALISMO

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ROMANTISMO E REALISMO


EM SEUS O SE LHARES RAHLO INDIFERENTES FLUTUAVA QUIETUDE DE PAIXÕES C ET OTIDIANAMENTE NEMANAIDITOC SACIADAS; E, ATRAVÉS DE SEUS MODOS DELICADOS TRANSPARECIA AQUELA E ADILATURB DE BD RUTALIDADE PARTÍCULAS COMUNICAD PELA O DOMINAÇÃO ÃÇANIMOD DAS COISAS MEIO FÁCEIS, NAS QUAIS A FORÇA SE EXERC EAIDADE DADIAV BRINCA, O MA AV DOS CAVALOS DE RAÇA E


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Origens do Realismo omsilaeR “O Realismo é a crítica ao homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa sociedade” – Eça de Queirós

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Realismo surgiu em um

período de transformação no modo de pensar e agir da sociedade. O romance do escritor francês Gustave Flaubert, Madame Bovary, foi publicado em 1857 e marcou o início da escola realista na França. Em 1881, o Realismo fez sua primeira manifestação no Brasil, com o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, escrito por Machado de Assis. No Realismo, os autores se desprenderam de normas estéticas antes empregadas, aproximando assim a escrita da realidade de leitores desafortunados. Sua origem está interligada ao desenvolvimento industrial e consequente ascensão da

burguesia. No que diz respeito à criação artística e literária, o movimento é regido pela busca pela verdade, adotando a reprodução da realidade como programa estético. No tocante aos integrantes do movimento literário, desprezava-se a artificialidade do Classicismo e imaginação exacerbada do Romantismo. Em contrapartida, havia a proposta de retratar aspectos até então ignorados pela sociedade. Dentre as influências sofridas pelo Realismo, cabe ressaltar o positivismo de Comte, corrente filosófica que tinha como objetivo a observação e crítica da realidade. Ademais, vale citar o movimento alemão antirromântico, que enfocava o homem comum como objetivo da obra de arte.



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AUTORES E OBRAS

Machado sissA ed o de daAssis hcaM Machado de Assis é nome central em qualquer análise que aborde questões relacionadas à literatura brasileira. Seja pelo estilo único, pela ironia ou pela amplitude de temas, ele está sempre em destaque. Machado era escritor poderoso, que revestia seus livros com a cútis do respeito humano e das boas maneiras para poder, debaixo dela, desmascarar, investigar, testar, explorar o mundo da alma, rir da sociedade e expor algumas das componentes mais obscuras da personalidade. Em antagonismo à sua prosa elegante e discreta e ao seu tom sarcástico e simultaneamente acadêmico, sobressaem ao leitor atento as mais desmedidas surpresas. A sua atualidade vem da fascinação quase intemporal do seu estilo e desse universo oculto que sugere os abismos prezados pela literatura do século XX. Apesar de ser escritor de estatura internacional, Machado, naquele momento, se manteve pouco conhecido em outros países. Tal circunstância torna-se um paradoxo aparente quando observamos que seus contos e romances traziam à tona temas representantes da literatura fantástica do século XX, que só viriam a se desenvolver no modernismo. Como Antônio Cândido, podemos dizer que das línguas ocidentais, o português é a menos conhecida, fazendo com que países falantes da língua portuguesa representem muito menos no jogo político mundial, sobretudo no século XIX. Por isso houve uma marginalização de quem nela escrevia e representava tanto quanto os maiores que então escreviam, como foi o caso de Machado.


Memórias Póstumas de Brás Cubas Capítulo 2 Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro […] Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro antihipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória. Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição. Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.


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MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS O ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista brasileira acha-se na ficção de Machado de Assis. Alfredo Bosi

O nascimento do Realismo é pontuado pela publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra machadiana que introduz, com olhar crítico, a análise do modo de vida burguês a partir de reflexões acerca da natureza intrínseca ao homem. Na obra, além dos acontecimentos que parecem se organizar a partir de uma espécie de feitiço, vale se atentar para o julgamento dos conflitos intra e interpessoais do ser humano, recoberto pelo tom de neutralidade que guarda críticas sobre os privilégios da elite, a escravatura, a política do favor e cooptação e tantos outros temas abordados.

O livro é marcado por ironia e digressões: em vez da narração linear, há a adoção da forma livre. O aspecto temporal é decisivo em Memórias Póstumas, sendo este um consenso entre os principais críticos machadianos, como Antônio Cândido, Roberto Schwarcz e Guilherme Merquior. Isso pode ser percebido pelos saltos temporais e insistência do narrador em lembrar o leitor sobre a transitoriedade do homem e das coisas no tempo: “E agora vejam, com que arte faço eu a maior transição deste livro.” Como enfatiza Merquior, há a consciência de Machado em construir uma narrativa literária


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explicitamente artificial, sem p r e t e n s õ e s d e “ f i n g i r- s e ” v e rd a d e i r a a o l e i t o r. E s s a consciência do escritor em relação à artificialidade da literatura aproxima a linguagem machadiana do moderno definido por Baudelaire: “A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é metade da arte, sendo a outra metade o eterno e imutável.” Na descrição de suas memórias, Brás Cubas deixa os efeitos do tempo explícitos desde a dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver.” O verme foi responsável pelo apodrecimento do corpo, mas não interferiu no corpo no qual o narrador se transformou após sua morte. A partir desta, Brás Cubas passa a habitar o atemporal, circunstância que promove as ironias e críticas à sociedade, posto que Cubas não está mais sujeito às normas sociais. No que tange à condição social dos indivíduos, os comentários mais férteis parecem ser a respeito das personagens femininas. Roberto Schwarz, por exemplo, se detém

no episódio em que Brás lamenta o fato de Eugenia, sua possível pretendente, ser, além de bastarda e sem posses, coxa; e diz “Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?” Schwarz nota que o defuntoautor despeja sobre a deformidade os maus sentimentos que lhe inspira o desnível de classe. Noutras palavras, como diz Roberto, “se o universo fosse ordenado razoavelmente, moças coxas (pobres) não seriam bonitas, e moças bonitas não seriam coxas (pobres)”. Cabe ressaltar o aspecto duvidoso percebido por José Saramago em Memórias Póstumas: o fato de Denis Diderot, autor da Enciclopédia do século XVIII, não receber sequer uma menção no livro, ao passo que escritores menos conhecidos foram amplamente citados e abordados. “Dir-me-ão que se Brás Cubas não fala de Diderot é simplesmente porque não o teria lido. É possível. Mas então ninguém me tirará da cabeça que foi Diderot quem leu a Brás Cubas…"


Capa do DVD do filme Memórias Póstumas de Brás Cubas, de André Klotzel



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Gustave trebualFlaubert F evatsuG O francês Gustave Flaubert não gostava de críticos, tampouco de ser classificado em escolas literárias, aversão registrada em carta a Louise Colet, sua amante entre 1846 e 1855. Ainda assim, aplicando as características que regem o movimento realista à obra de Flaubert, não nos surpreende o fato do autor ser tachado de realista pelos críticos; percebe-se, através de sua própria escrita, que o real é seu campo de pesquisa literário e que a realidade se funde nele. Importante prosador, Flaubert marcou a literatura francesa a partir de suas análises psicológicas, de seu senso de realidade e de seu estilo marcante. Todavia, em cartas a Colet, o escritor declara que o processo de criação lhe desgasta e lhe toma muito tempo, além das dificuldades sentidas para escrever: “Comecei o meu romance na noite passada. Agora posso ver as dificuldades de estilo que me aterrorizam. Não é fácil ser simples. Tenho medo de ser como Paul de Kock ou de fazer um Balzac chateaubrianisado.” “Nunca escrevi nada na minha vida mais difícil do que o que estou fazendo [...] É preciso ter um estilo de escrita comum como falam as pessoas comuns.” Apesar de temer a semelhança com outros autores, Flaubert não escapou das comparações. Bart, por exemplo, equiparou Madame Bovary à Comédia Humana, de Balzac. Com o romance publicado em 1857, o francês foi acusado pelo governo de ter escrito “uma obra execrável sob o ponto de vista moral.” Em seu julgamento, Flaubert proferiu a célebre frase: “Madame Bovary sou eu.” O escritor foi absolvido pelo tribunal.


Madame Bovary Capítulo 23 Emma pensava no dia do seu casamento; e via-se lá longe, no meio dos trigos, seguindo pela vereda, a caminho da igreja. Porque não tinha ela então, como aquela, resistido, suplicado? Pelo contrário, sentira-se contente, sem reparar no abismo onde se precipitava... Ah! se, na frescura da sua beleza, antes da conspurcação do casamento e da desilusão do adultério, pudesse ter entregue a sua vida a algum coração grande e sólido, então, com a virtude, a ternura, as volúpias e o dever confundindo-se numa coisa só, nunca teria descido de tão alta felicidade. Mas essa felicidade, sem dúvida, era uma mentira inventada para causar o desespero de todo o desejo. Ela conhecia agora a mesquinhez das paixões que a arte exagerava. Portanto, esforçando-se por desviar dela o pensamento, Emma queria apenas ver naquela reprodução das suas dores uma fantasia plástica boa para entreter a vista.


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MADAME BOVARY Madame Bovary foi o precursor de todos os romances psicológicos – do monólogo interior de Joyce às memórias involuntárias de Proust. Helio Gurovitz

M adame

Bovary, obra publicada em 1857, é hoje considerada a obra seminal do Realismo e um dos marcos da literatura mundial. Em termos gerais, a narrativa aborda o adultério, enfocando a insatisfação feminina com a sua condição de submissão doméstica inexorável na sociedade europeia do século XIX. Emma Bovary é uma jovem que mora com o pai e se vê insatisfeita com a sua situação. Ela anseia por uma existência fascinante, que pensa estar somente na mudança, na novidade, no que a liberte da mediocridade da vida comum e transmute a realidade num mundo de grandes paixões. Tal ânsia provém da constante

leitura de romances, com os quais se deparou durante sua vida. Emma encontra a possibilidade da mudança em Charles, aquele que acabou sendo seu marido e símbolo de suas frustrações com a impossibilidade de encontrar uma satisfação definitiva. Casam-se, mas Emma não sente paixão, o que intensifica o desejo de mudança em sua vida. A obra constitui uma forte crítica aos valores burgueses e à educação feminina fragilizada pelo pouco desenvolvimento intelectual. Emma nutre-se de anseios por uma vida romanesca e se depara com o enorme abismo que separa o sonho da realidade. A crítica pode ser relacionada ao pensamento de Mary


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Wollstonecraft, que adverte sobre os perigos das leituras românticas, uma vez que tais livros impregnam a ideia de que a felicidade acontece a partir da realização amorosa, o que acarreta, de acordo com a escritora, grandes desilusões, posto que a convivência diária desfaz a fascinação de beleza inicial. Gustave Flaubert foi condenado pelo governo francês, que o acusava de ter escrito “uma obra execrável sob o ponto de vista moral.” Flaubert e Charles Baudelaire enfrentaram o mesmo p ro m o t o r, m a s e n q u a n t o Charles foi obrigado a pagar multa e retirar seis poemas da primeira edição de As flores do mal, Gustave foi absolvido num julgamento que completou 160 anos em fevereiro, mas não sem antes levar uma bronca do juiz, que criticou suas “imagens que o bom gosto reprova”, suas teorias “contrárias aos bons costumes e às instituições” e sua “linguagem severa”, além de pontificar a c e rc a d o s o b j e t i v o s d a literatura. A sentença de 1857

diz que “há limites que a literatura, mesmo a mais ligeira, não deve ultrapassar, de que Gustave Flaubert e seus coinculpados não se deram conta.” Atualmente, quem lê Madame Bovary não se depara com nada que possa ser considerado ofensivo. Longe disso. Na verdade, encontramse práticas comuns ao século XXI. A narrativa de Flaubert, como um espelho da sociedade, denuncia a forma como se trata a mulher: um objeto sem essência, tampouco liberdade. Tal crítica pode ser vinculada ao “eterno feminino” de Simone de Beauvoir, visão que enclausura a mulher dentro de uma condição própria da sociedade patriarcal. Quando se analisa a condição feminina nos dias de hoje, percebe-se a atemporalidade de Madame Bovary; no que tange à vertente da desigualdade de gênero, ainda há muito a ser trabalhado para que se atinja a igualdade.


O IDIOTA DA FAMÍLIA E RTRAS LUASARTRE P-NAEJ JEAN-PAUL O Idiota da Família, livro escrito por Sartre e lançado em três volumes, resgata a vida, o pensamento e a obra de Gustave Flaubert. Segue um trecho inicial do primeiro capítulo, intitulado Um problema:

“Quando o pequeno Gustave Flaubert, perdido, ainda “bestial”, emerge da primeira infância, as técnicas estão à sua espera. E os papéis. O adestramento começa: não sem sucesso, ao que parece; ninguém nos diz, por exemplo, que tenha tido problemas para caminhar. Pelo contrário, sabemos que o futuro escritor tropeçou foi quando se tratou da prova primordial, o aprendizado das palavras. Tentaremos ver, mais adiante, se teve, desde o princípio, dificuldades para falar. O certo é que se saiu mal em outra prova linguística, iniciação e rito de passagem, a alfabetização: uma testemunha conta que o menino aprendeu a ler muito tarde e que seus familiares o tinham então por criança retardada. Caroline Commanville, de sua parte, faz o seguinte relato: 'Minha avó havia ensinado o filho mais velho a ler. Ela quis fazer o mesmo com o segundo e pôs mãos à obra. A pequena Caroline, ao lado de Gustave, aprendeu logo, mas ele não conseguia, e depois de esforçar-se bastante para compreender aqueles signos que nada lhe diziam, chorava muito. No entanto, estava ávido por aprender, e seu cérebro trabalhava... (um pouco mais tarde, o pai Mignot lia para ele) nos incidentes causados pela dificuldade de aprender a ler, o argumento final de Gustave, irrefutável segundo ele, era: ‘Para que aprender, se Papai Mignot lê?’. Mas a idade de ir para a escola se aproximava, era preciso aprender a qualquer preço... Gustave dedicou-se resolutamente e, em alguns meses, alcançou as crianças de sua idade.’ Veremos que essa relação difícil com as palavras determinou sua carreira. Alguns dirão que devemos acreditar na sobrinha de Flaubert. E por que não? Ela vivia na intimidade do tio e da avó: é desta que tira suas informações. Se lhe dermos total crédito, no entanto, seremos desviados pelo falso bom humor do relato. Caroline corta, expurga, suaviza; apesar de, por um lado, o incidente relatado não lhe parecer comprometedor, ela o retoca, abusando da severidade à custa da verdade. Basta uma leitura para encontrar a chave dessas deformações dúplices e opostas: o objetivo é agradar sem perder o tom de boas maneiras. Voltemos à passagem que acabo de citar: não teremos dificuldade alguma em vislumbrar a verdade da ingrata infância de Gustave. Dizem-nos que o menino chorava muito, que estava ávido por aprender e que sua impotência o desolava. Depois, um pouco mais adiante, mostram-nos um preguiçoso fanfarrão, teimoso em sua recusa de aprender: para quê?, o pai Mignot lê para mim. Será o mesmo Gustave? Sim, a primeira atitude é provocada por uma constatação feita por ele mesmo: adversidade das coisas, incapacidade de sua pessoa. O Outro está presente, sem dúvida: é a testemunha, é o meio opressor, é a exigência. Mas este não provoca o pesar do pequeno, relação espontaneamente estabelecida entre os imperativos inanimados do alfabeto e suas próprias possibilidades. “Eu devo mas não posso.” A segunda atitude supõe uma relação agônica entre o filho e seus pais. Caroline Commanville contanos, como que de passagem, que havia incidentes; é o suficiente. Esses incidentes não começaram logo de início. Houve o tempo da paciência, depois o da aflição, por fim o da censura: no início, culpam a natureza, mais tarde acusam o pequeno de má vontade.”


TUDO O QUE INVENTAMOS É VERDADE “Tudo o que inventamos é verdade; podes ter a certeza. A poesia é uma matéria tão objetiva quanto a geometria… A minha pobre Bovary está sem dúvida a chorar e sofrer agora mesmo em vinte aldeias da França” Carta de Flaubert a Louise Colet, 14 de agosto de 1853

Q

uando Flaubert mostrou

seus escritos a um grupo de amigos, foi aconselhado a desistir da literatura e queimar as páginas, pois estas se mostravam excessivamente líricas. Uma vez que o lirismo se manifestava de maneira tão clara em seu texto, Gustave se propôs a encontrar uma temática em que sua tendência lírica fosse bloqueada, para que assim pudesse reinventar sua escrita. Foi lhe sugerido que se dedicasse aos temas terre à terre, como um banal incidente doméstico da vida burguesa.


O francês se inspirou, então, na história de um médico provinciano que se casou com uma mulher que o desprezava por ser um homem entediante. Apesar do marido lhe oferecer uma adoração constante, ela dedicou seu tempo a inúmeras aventuras, como o adultério. Perseguida por credores e abandonada pelos amantes, a moça acabou por cometer suicídio. A mulher deixou ao marido uma filha, mas o homem, cercado de dívidas e arruinado, decidiu também se matar. Flaubert passou cinco anos trabalhando no romance, que foi publicado em seis fascículos na Revue de Paris. Quando, em janeiro de 1857, iniciou-se seu julgamento, Flaubert estava convencido de que a sua obra não serviria de pretexto para demolir a Revue de Paris, numa França em que o autoritarismo estava de volta ao poder. Absolvido por falta de provas, Flaubert tornou-se famoso a partir da aura de escândalos criada pelo julgamento, que promoveu o sucesso de vendas de Madame Bovary. Um ano mais tarde, o livro é de tal forma conhecido que, em Hamburgo, podem ser alugadas carruagens intituladas Bovarys para fins sexuais, numa clara alusão à cena da obra em que o amante de Emma a seduz num fiacre.



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Eça sórde ieuQueirós Q ed açE E

ça de Queirós é considerado um dos nomes mais

marcantes do Realismo português. Sua obra se destaca pela descrição minuciosa. O escritor julgava a literatura romântica algo marcado por um sentimentalismo alienado, alheio à realidade circundante; em sua concepção, a produção literária deveria estar articulada ao exame da sociedade, dos temperamentos e dos costumes. Por outro lado, Queirós admitia encontrar relevância de conteúdo nas criações românticas, a exemplo de Victor Hugo, Lamartine e da poesia byroniana. Todavia, apesar de enaltecer as qualidades dos poetas, o português parecia fazer uma leitura embasada numa busca por expressões de pensamentos e angústias representantes de um contexto social. Faz-se ainda necessário apresentar um breve panorama histórico, que pode auxiliar na compreensão das informações que caracterizam a produção realista de Eça. Na metade do século XIX, enquanto o continente europeu se modernizava, Portugal permanecia ligada às glórias do passado, vivendo centrado numa rotina sem perspectivas. Tal fato desencadeou, nos anos seguintes a 1860, o enfraquecimento do Romantismo, que sofreu ataques de uma massa estudantil bradando pela implementação do Realismo nas terras lusitanas. Em 1861, a Sociedade do Raio foi fundada, espécie de associação secreta que congregava estudantes de Coimbra. A Sociedade foi responsável por ações revolucionárias do período, ocasionando o surgimento da Questão Coimbra, que definiu a crise cultural que introduziu o Realismo em Portugal. Os jovens estudantes saíram vitoriosos, mas só voltaram a se reunir em 1868, e, posteriormente, em 1871, nas Conferências Democráticas do Cassino Lisboense, ciclo de palestras com o objetivo de pôr em discussão questões de cunho ideológico. Coube a Eça de Queirós proferir uma conferência sob o título “A literatura nova – o realismo como nova expressão da arte.” Ele criticou enfaticamente o Romantismo e defendeu o caráter social da literatura.


O Primo Basílio Capítulo 6 Luísa, na cama, tinha lido, relido o bilhete de Basílio: Não pudera — escrevia ele — estar mais tempo sem lhe dizer que a adorava. Mal dormira! se de manhã muito cedo para lhe jurar que estava louco, e que punha a sua vida aos pés dela. […] E terminava, exclamando: — "Que outros desejem a fortuna, a glória as honras, eu desejo-te a ti! Só a ti, minha pomba, porque tu és o único laço que me prende à vida, e se amanhã perdesse o teu amor, jurote que punha um termo, com uma boa bala, a esta existência inútil!" — Pedira mais cerveja, e levara a carta para a fechar em casa, num envelope com o seu monograma, porque sempre fazia mais efeito. E Luísa tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saia delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!


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O PRIMO BASÍLIO

Pode-se afirmar que da pena de Eça de Queirós saíram a técnica e os modelos estilísticos da moderna prosa portuguesa. A língua de Portugal, na verdade, como instrumento de arte, como estilo literário, pode dividir-se em dois períodos muito opostos: antes e depois de sua arte. Fidelino de Figueiredo

Embora

o título do livro enfatize uma personagem masculina e destaque o donjuanismo, é Luísa a protagonista que permanece em primeiro plano durante a narração. Luísa é uma moça sonhadora, leitora assídua de romances românticos, que possui uma relação extraconjugal com seu primo, Basílio. Tal envolvimento é visto pela jovem como a oportunidade de viver as aventuras amorosas que o casamento não lhe proporcionou. A intensificação da relação clandestina ocorre

através de cartas, que contêm detalhes íntimos sobre as personagens. Pelo fato de guardar registros tão pessoais, as correspondências acabam por motivar os conflitos pelos quais passou Luísa ao ter seus escritos violados pela criada, Juliana, que desafia as limitações de sua classe na sociedade e encontra a oportunidade de ascensão social na chantagem. O adultério, que antes era revestido pela cutícula romântica, ganha contornos realistas. Basílio, ao ouvir o pedido de socorro de Luísa, se distancia da figura heróica, recusando-se a fugir com sua


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amante. A partir desse instante, a moça passa a ser massacrada pela realidade, que não dá espaço ao romanesco. Nota-se um ponto de contato entre Luísa e Juliana: ambas rompem as limitações dos papeis sociais que lhes é imposto. Luísa não é capaz de distinguir a realidade da ficção, enquanto a criada assume os riscos de forçar ingresso numa camada social que nunca a pertenceu, mas que conheceu através de suas leituras. Dos elementos que as diferenciam, vale ressaltar o fato da leitura de Luísa não conter quaisquer posicionamentos críticos, ao passo que Juliana fazia leituras perspicazes no que tange ao pensamento crítico acerca da sociedade burguesa e da própria patroa.

ilustração: Edmund Rodrigues


oRomantismo msitnamoR oX msRealismo ilaeR X

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“O Romantismo foi a apoteose do sentimento. O Realismo é a anatomia do caráter.” – Eça de Queirós

A

frase de Eça de Queirós é

capaz de traduzir a oposição que há entre os dois movimentos literários. Enquanto um, marcado pela subjetividade e idealização, enaltece sentimentos e emoções, o outro analisa e faz críticas diretas ao comportamento do homem na sociedade. O início do Realismo representa o momento em que se desfaz o castelo fantasioso construído pelo autor romântico e se inicia o período em que a realidade factual se apresenta como objeto da produção literária. O realismo, na literatura, se manifesta principalmente por meio da prosa. O romance – social, psicológico e de tese – constitui a forma de expressão mais importante. O gênero

passou por uma transformação, deixando de ser mera distração e tornando-se veículo de críticas a instituições. Os temas passaram a ser tratados com linguagem acessível, clara e objetiva. Na transição do Romantismo para o Realismo, os aspectos de ambos os movimentos se misturaram. Honoré de Balzac é representante desta passagem, sendo excessivamente romântico, ao mesmo tempo em que representa, perfeitamente, os tipos medíocres e vulgares, os hábitos burgueses e populares, a materialidade e a sensibilidade, condizendo com a arte realista francesa.


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BIBLIOGRAFIA MERQUIOR, José Guilherme. Gênero e estilo das Memórias póstumas de Brás Cubas. In: COLÓQUIO LETRAS, 8., 1972. Lisboa. BAUDELAIRE, Charles. O pintor na vida moderna. In: Charles Baudelaire — Poesia e Prosa. Org. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. DUMONT, Ágata Cristina Kaiser. A Flecha de Dois Gumes: o tempo redimensionado em Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. p. 10-15, dez. 2012. SCOTTI, S. A estrutura da histeria em Madame Bovary. São Paulo: EDUSP, 2003. COMMANVILLE, C. Souvenirs sur Gustave Flaubert. Lexington: University of California Libraries, 2005. DORD-CROUSLÉ, S. Les deux bibliothèques religieuses de Madame Bovary. In: REY, P.-L. & SÉGINGER, G. (orgs.) Madame Bovary et les savoirs. Paris: Presses Sorbonne Nouvelle, 2009, p. 147-155. VATAN, F. Emma Bovary: parfaite hystérique ou ‘poète hystérique? In: REY, P.-L. & SÉGINGER, G. (orgs.) Madame Bovary et les savoirs. Paris: Presses Sorbonne Nouvelle, 2009, p. 219-229. MELLO, Renata Aiala de. Flaubert, Madame Bovary e Emma Bovary: ecos de ethos. 2012. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012. MENEZES, Lucianne Michelle de. LEITURA E SOCIEDADE: um estudo de O primo Basílio, de Eça de Queirós. 2010. 121 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2010. DANTAS, Francisco Jose Costa. A mulher no romance de Eça de Queirós. São Cristóvão: Ed. UFS, 1999. SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Ed. 34, 2000. CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970. GERMANO, Emanuel Ricardo. O pensamento dos limites: contingência e engajamento em Albert Camus. Tese de Doutorado Filosofia, USP, 2008 GUROVITZ, Helio. Quem tem direito de julgar o que é arte? Revista Época, 2017. Capa: JÚNIOR, Almeida. Caipira picando fumo. 1893. Óleo sobre tela, 202 cm x 141 cm. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil.


“Aos quinze anos, tudo é infinito.”


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