insólita coisa alguma

Page 1









TEOREMA DA INCOMPLETUDE DE GÖDEL

Em 1931, o matemático Kurt Gödel provou seu famoso teorema da incompletude sobre a natureza da matemática. O teorema afirma que, dentro de qualquer sistema formal de axiomas, como a matemática atual, sempre persistem questões que não podem ser provadas nem refutadas com base nos axiomas que definem o sistema. Em outras palavras, Gödel mostrou que há problemas que não podem ser resolvidos por nenhum conjunto de regras ou procedimentos. O un i v erso n u ma c a s c a d e no z , S T EP HEN HAW K I N G





A P R ESENTAÇ ÃO Creio ser de suma importância que eu lhes tome algum tempo (e acrescente à narrativa algumas poucas páginas) para esclarecer as circunstâncias que envolvem a publicação desta obra. A verdade é que, enquanto editor, tive pouquíssimas oportunidades como esta: a de publicar algo que me parece realmente digno de conhecimento, se não por suas qualidades estéticas e literárias – de fato, pouco relevantes –, por seu caráter absolutamente desconcertante e misterioso. Aqui, alguma explicação se faz necessária. Há alguns anos, durante uma viagem ao sul da Espanha, encontrei, em uma esquina na cidade de Cádiz, uma cigana esquisitíssima que prometia adivinhar meu futuro em troca de algum dinheiro. Já tarde da noite, bêbado e com medo de ser roubado, pensei que não seria de todo mal ouvir algumas baboseiras e seguir para o hotel, em paz. Segurando minhas mãos com as palmas viradas para cima, todas as linhas e montes bem visíveis apesar da pouca iluminação, ela se pôs a descrever amores que eu ainda viveria e de viagens que, em breve, faria. Falou sobre somas de dinheiro achadas e depois perdidas. Narrou feitos quase homérico onde eu, escravo de meu próprio destino, por pouco não morreria em um acidente horrível, sobrevivendo no fim das contas. Sou cético o bastante para que, na hora, nada tenha me chamado a atenção ou despertado minha curiosidade ou medo, mas, dias depois (por razões que esclarecerei no próximo parágrafo), lembrei-me de uma de suas frases. Ela me disse que algo de muito estranho apareceria em minha vida e era eu quem deveria decidir seu destino. Bem sei que esta é uma daquelas frases vagas demais, que se encaixam em qualquer situação, mas é assim, afinal, que ciganas charlatãs ganham seu dinheiro: abusando da ausência de sentido das palavras. Eu apenas não sabia que este “algo muito estranho” apareceria tão depressa. O que é? É este mesmo livro que você, leitor, agora tem em mãos. Qualquer tentativa de explicar como este diário chegou até mim soará forçada demais. Como o encontrei – como, por acaso, o vi perdido no fundo de um armário que por razão nenhuma vasculhava – realmente não importa. O que há de mais relevante no ocorrido é o tempo que passei tentando (quase inutilmente) fazer com que a narrativa se encaixasse de alguma forma. Ao achado, seguiram-se muitas pesquisas infrutíferas e tentativas fracassadas de verificar a veracidade dos

7


fatos narrados. Se chamo este objeto de “diário” é porque ainda creio, por algum motivo, que as descrições e personagens são, de certo modo, reais e se deram, realmente, em algum lugar no passado. Além disso, não encontro outro substantivo que melhor o defina (“livro” ou “romance” não parecem ser o caso). É a estranha impossibilidade de tudo que faz deste objeto algo sórdido, pois até o mais irreal encontro me parece verossímil. Nem a ausência de sentido enfraquece meu sentimento (ou crença) de que tudo aqui descrito é mesmo real. Cada um que tire suas próprias conclusões sobre a narrativa a seguir. Devo acrescentar que as notas que acompanham os relatos são frutos de meus infindáveis questionamentos e investigações. Com elas, busco auxiliar o leitor em relação à ordem dos fatos ocorridos, peculiaridades da narrativa, possíveis interpretações para determinadas passagens e tentativas de recuperar qualquer trecho particularmente danificado no original. Busquei, nesta publicação, transpor a narrativa do diário para este formato que mais se assemelha a um livro da forma que me pareceu mais conveniente para cada situação específica. Preservei a ordem dos escritos¹ e das imagens, mas não pude guardar qualquer aspecto gráfico do objeto genuíno. Além disso, ressalto que não foi possível publicar todos os textos presentes no diário, pois muitos estavam enormemente danificados. O que lhe apresento, caro leitor, são fragmentos de algo maior, mas para sempre perdido. De todo modo, também as lacunas contam histórias. Estando, você, leitor a par de tudo isso, encerro esta apresentação e deixo que cada um, por conta própria, descubra o que se encerra (Ou o que se entrevê? Ou o que começa a abrir-se?) nesta perturbadora narrativa.

B.P. 2014

1 Com exceção do capítulo “Elena”. Enquanto, no original, estes anexos encontravam-se dispersos, aqui, decidi reuni-los todos.

8










Os títulos, com exceção do capítulo “Irmãs Estranhas”, foram atribuídos posteriormente. No diário, o texto segue mais ou menos sem interrupções claras, mas para o bem da publicação (em nível de organização), julguei pertinente dividir a narrativa em capítulos. Apesar de minhas pesquisas, não encontrei nenhum jornal publicado sob este nome. Desconfio que seja um dos muitos nomes fictícios presentes na obra, atribuídos, acredito eu, pelo autor. Não entendo o que o motivou a utilizar tantos nomes inventados em seu diário. É provável que desejasse romantizar sua vida ou proteger-se de alguma coisa. Como não consegui identificar a fonte onde foi publicada a nota, tornou-se impossível checar sua veracidade.

As referências geográficas fornecidas pelo autor deixaram-me mais perdido do que se ele nada houvesse dito. Não encontro qualquer referência a nenhum rio “Hugget”. Penso que ele deve ter mudado o nome do rio por conta própria, como fez com o jornal. Sabendo disso, e tendo em vista que as descrições que faz no restante da narrativa indicam que viveu em uma cidade grande, listei as principais cidades cortadas por rios. São elas: Amsterdam, Belgrado, Berlin, Bonn, Bruxelas, Budapeste, Colônia, Florença, Glasgow, Londres, Moscou, Paris, Porto, Praga, Roma, Varsóvia, Verona e Viena. Algumas cidades foram previamente eliminadas e já não constam nessa lista por não atenderem todos os requisitos. É lastimável que o autor não tenha guardado a foto de Rita. Será uma personagem sem rosto, ao contrário de outros aqui presentes. Novamente, sem qualquer referência espacial, é impossível saber a origem do autor do diário. Cabe dizer que o original estava escrito em inglês e francês, que alternavam-se aleatoriamente.

C. aparece continuamente durante a narrativa, mas jamais fica claro que tipo de relação mantém com o autor. Depois de ler repetidas vezes o diário, concluo com alguma certeza que os dois são irmãos. Mas não descarto outras possibilidades.

RI TA

Ontem à noite, Rita, a mulher que estampa as capas de quase todos os jornais matutinos publicados hoje, desapareceu. No “Tempo Agora” sua fotografia figura ao lado de uma pequena nota de dez ou doze linhas: Está desaparecida, desde a noite de ontem, vinte e sete de setembro, Rita W., filha de T.W. (…) As circunstâncias de seu desaparecimento ainda não foram esclarecidas. Segundo L., delegado responsável pelo caso, as informações levantadas são contraditórias: “Um rapaz diz que viu uma mulher com as mesmas características de Rita vagando às margens do Hugget; seu pai garante que a moça estava em um evento de caridade (…), do outro lado da cidade.”

Sua família deve ser muito rica, pois este é o tipo de notícia que não costuma aparecer nas capas dos jornais a não ser que gente muito importante (e certa quantia de dinheiro) esteja envolvida. Desde que vi seu retrato reproduzido em centenas de milhares de exemplares do “Tempo Agora”, penso ver seu rosto em todos os outros rostos.Vi Rita subindo em um ônibus na …, quase esquina com a …; e também sentada em um banco, na Praça …, por onde passei indo para o escritório de papai; Rita almoçou ao meu lado no … e depois a vi saindo de braços dados com um homem muito velho, tão curvado que a angulação de sua coluna lembroume a de uma montanha; fez o mesmo caminho que eu (alguns metros à frente e do outro lado da rua) quase até em casa, quando virou à direita, na …; olhou-me de cima da lareira, de onde deveria estar o porta-retratos com a fotografia de C. (mas era Rita quem estava lá); e deu-me “bom dia” enquanto descia as escadas do prédio. Alguns jornais comentam a possibilidade de um sequestro ou mesmo suicídio. O problema de contarmos 9


com um rio atravessando e cortando a cidade é que ele logo se transforma no melhor lugar para esta última situação. Qualquer um ficaria impressionado com o número de garotas, como Rita, que decidem jogar-se da Ponte … depois de uma briga com algum namorado.Tantas que os jornais já não as mencionam. Mas Rita?… Não tenho certeza. Ela não me parece o tipo de pessoa que decide jogar-se de pontes para resolver conflitos emocionais. Ao menos, não a minha Rita. O que me incomoda em seu desaparecimento é a sensação de que, agora que Rita não está em lugar algum, está, também, em todos os lugares. De inexistente (ao menos no que me diz respeito), Rita passou a uma existência muito densa, incontestável, que se afirma em mim e em cada rosto seu que moldo, em qualquer mulher levemente semelhante a ela. Não, Rita não está morta. Na verdade, é agora que vive, pois é agora que reconheço sua permanência. É agora que sua vida, em contato com a minha, faz-se realmente vida, pois, para vivermos, precisamos deste reflexo constante no outro, de um espelho que seja capaz não só de nos refletir, mas de garantir que, um dia, passamos a existir.

GUER R A

A verdade é que não me sinto vivendo uma guerra. Minha fantasia se difere em muito desta realidade insípida. É uma pena que o presente seja sempre tão vazio, pois, veja bem, esta guerra não faz de meus dias menos tediosos ou despropositados. Pelo contrário, saber que é em dias assim que deveria sentir certa solidez – alguma certeza ou importância, qualquer coisa menos fluida – me faz crer que tudo continuará com o mesmo matiz irreal de sempre. Não se percebe qualquer conflito; não há aviões sobrevoando a cidade ou soldados desfilando na rua; não 10

O leitor poderia pensar que, uma vez que acidentes do tipo são pouco divulgados, ficaria fácil descobrir quem era Rita, mas não encontrei qualquer coisa parecida nos jornais de Londres, Paris, Glasgow ou Bruxelas. No “The Guardian”, até então “The Manchester Guardian”, encontrei uma menção a uma princesa desaparecida em Londres, ano de 1943, mas as informações não coincidem.

As fotos e cartas encontradas e as datas citadas durante a narrativa são inconclusivas: parecem abranger ao menos a primeira metade do século XX, sem qualquer lógica cronológica aparente; por isso, tenho dificuldade em precisar a que guerra se refere o autor. Não se trata de uma guerra civil, pois há referências (vagas, é verdade) de outros países envolvidos no conflito. Minhas pesquisas indicam que o mais provável é que se trate da Segunda Guerra Mundial (1935 – 1945). Ao que tudo indica, o autor não foi convocado para a guerra. Talvez estivesse na reserva. É curioso o fato de não mencionar a possibilidade de receber o documento de convocação. Não consigo deixar de considerar a possibilidade de algo que o impedisse de lutar. Será que ele tinha algum obstáculo psicofísico que não o permitia ser convocado? Ou será que seu pai, talvez influente, o tivesse livrado desta pena?




Quando primeiro li este trecho, pensei ser possível que seu país ainda não estivesse em guerra (ou sequer tenha participado do conflito). Não é difícil imaginar que a hostilidade próxima aflija mesmo os que dela não participam. Mas não creio que tenha sido este o caso. Há evidências, em capítulos subsequentes, que indicam a participação do país do autor na guerra. Além disso, é provável que não seja a França e Paris o país e a cidade onde vive o autor, pois a capital francesa sofreu bastante durante a Segunda Grande Guerra (fato, eu creio, que acabaria sendo mencionado pelo autor). Acho estranho o modo como percebo que o autor, com frequência, parece dirigir-se a um possível leitor. Se este achado é mesmo um diário, que tem como premissa sua não-leitura por outrem, por que me parece que não invado a privacidade do autor quando leio esta obra, mas que, de certa forma, realizo sua vontade?

1 : anotem este número. Estou enumerando as criaturas que me parecem absurdas. A conclusão, não surpreendentemente, se dá no fim. Peço um pouco de paciência. O texto aparece bastante danificado no original e isto foi o que consegui recuperar. As frases em cinza são suposições minhas, tentei ler o que estava escrito da melhor forma que pude e preencher as lacunas com o que me pareceu correto. Acho suspeito que o autor tenha se esquecido do nome de Rita. Ela o havia marcado de tal forma... De todo mundo, lhe garanto que foi isso mesmo o que li.

Talvez sua “estranheza” coincida com o desaparecimento de Rita ou com a guerra. Não há como saber. Há a chance de que quem esteja “estranha” seja Elena e que ele seja o mesmo.

há nada. Como sempre, nada. E há quem vá dizer que é a guerra que está causando esta angústia absurda que parece permear todas as coisas; mas a causa da angústia nunca foi outra senão este mesmo nada que é nada agora como antes já o era. Em alguns anos, pensarão que é sorte viver em tempos de paz e que, durante a guerra, todos éramos infelizes e miseráveis; mas nada terá mudado realmente, pois não somos mais ou menos miseráveis agora. Ao menos, serviremos para lhes alegrar; terão a impressão de que suas vidas são mais toleráveis. A angústia, porém, continuará latente, pois este sentimento de insuportável normalidade, de mediocridade, é quase sinônimo de presente.

ESFINGE

Era noite e eu andava infinitamente. Não sei ao certo o que me levou às margens do Hugget em uma madrugada tão fria.Talvez tenha sido aquela reportagem que li no jornal, há alguns dias. Dizia que uma mulher havia desaparecido e que um rapaz a tinha visto por ali. Rita, se não me falha a memória. Ouvia meus passos e também o som das águas do rio, correndo paralelo a mim, comigo. Eu já não pensava no desastre que havia sido aquele dia: Elena, que depois de nossa última discussão, não olhava mais em meus olhos e, sempre que podia, deixava claro que minha presença a incomodava. Ela me disse que nós dois não temos mais muito em comum. Disse, também, que talvez fosse melhor deixarmos de nos ver por algum tempo, até que ela esteja certa de seus sentimentos. Disse que estou “estranho”; que não sou mais o mesmo. A cada expiração, a névoa branca que saía de meus pulmões me cegava por um ou dois segundos. De trás de uma das árvores, aparece a esfinge: 11






PR O B LEM AS

Mal entrei em casa e C. veio me dizer que uma carta havia chegado da editora. Eu passei a semana inteira esperando uma palavra deles. Hoje, quando estou estressado, resolvem mandar-me uma carta. Não vão publicar meu livro e mal precisei terminar de ler o primeiro parágrafo para entender que jamais mudarão de ideia. Estou estressado, pois resolvi que precisava de ar fresco depois de tanto tempo em casa, ouvindo aquele telefone tocar incessantemente. pouquíssimas pessoas sabem o meu número; não tenho inclinações sociais. Recebo, portanto, duas ou três ligações por semana (o que já é suficiente para me deixar exausto de tanto falar), mas acontece que ontem, apenas ontem, o telefone tocou três vezes. Cada ligação não atendida fez o aparelho soar oito vezes, o que, fazendo as contas, equivale a vinte e quatro toques absurdamente irritantes. Não atendi porque estava escrevendo e, quando chegava ao fim de uma frase, parágrafo, ideia, e levantava-me para atender, quem quer que fosse desistia da ligação. Então decidi caminhar um pouco e tentar esquecer-me do telefone, dos livros, de ser escritor. ••• Pensei ter visto Elena uma ou duas vezes durante minha caminhada até aquela livraria, no centro. Entrei depressa no primeiro café que encontrei e esperei que ela não me visse. Quando a moça se aproximou, vi que não era Elena; na verdade, nem mesmo se parecia com ela. Enfim, bastou pensar ter visto seu rosto para tomar o dia como arruinado.Voltei para casa imediatamente. Ontem jantei com o papai e fiquei surpreso ao saber que as coisas não vão bem em seu escritório. Ele me diz que a causa de tanta instabilidade é a guerra iminente. Eu não estou muito preocupado; acho que não entraremos 14

Então ele é escritor. Saber de sua ocupação me deixa ainda mais inseguro em relação à narrativa. Será possível que alguma parte deste relato seja deliberadamente ficcional?

De fato, durante este percurso narrativo, o autor quase não cita amigos ou conhecidos; festas ou reuniões. A não ser por Elena, C. e N., mais ninguém parece lhe agradar. Nem mesmo seu pai parece amigável. E Rita... bem, Rita é um outro caso.

É provável que o autor mantivesse outros cadernos ou escrevesse em uma máquina de escrever. Tenho certeza de que não havia qualquer outro escrito seu no armário onde encontrei este aqui. Pergunto-me como foi parar lá... Será possível que ele mesmo o tenha esquecido? Ou isto já passou pelas mãos de outras pessoas?

Essas interrupções marcam páginas muito deterioradas. Avisarei, constantemente, onde encontrei outras páginas assim, para que você, leitor, perceba onde estão as lacunas da história. Neste caso, três páginas dividem os dois relatos. Impossível saber o que os dividia, mas parecem continuar um mesmo assunto, por isso pertencem a um mesmo capítulo.

Este parece ser o motivo pelo qual o autor disse estar estressado Não compreendo. A guerra havia começado há alguns capítulos (Dias, semanas, meses, não sei. Não há uma data sequer neste diário) e, agora, é iminente. Talvez a ordem dos escritos não seja exatamente cronológica.


em guerra, realmente. Papai teme os racionamentos de comida e outros suprimentos.Tudo é uma grande bobagem, ele se preocupa sem motivos.

Não sei até que ponto isso é mesmo possível ou se é continuação de um sonho. O autor fala de Rita como se a conhecesse, mas ela está desaparecida. Isso é fato. Mais uma página completamente perdida.

Curioso observar como seus sonhos se caracterizam como impossibilidade. Há sempre algo de muito inalcançável, que o autor não consegue realizar por conta própria.

Esta noite sonhei com Rita. Estávamos em um jardim, sentados na grama. Conversávamos e a temperatura era muito agradável. Logo ficou tão claro que mal conseguia enxergar seu rosto; parecíamos estar envoltos por névoa ou algo do tipo, pois tudo era branco. Rita era mais uma silhueta em meio a tanta claridade. Eu movimentava o meu rosto para tentar enxergá-la melhor; tentava fazer com que a luz incidisse sobre sua face, pois, do modo como estávamos, parecia que o sol estava atrás dela, ocultandolhe os detalhes da fisionomia; ou melhor, parecia que o sol era ela, e, iluminando todo o resto, ofuscava-se. Segurei seu rosto com ambas as mãos e movi minha cabeça; não adiantou, não consegui distinguir sua boca, nariz, olhos. Quis ligar para Rita e dizer que a amava. ••• Sonhei que estava no escritório de papai, mas o lugar era muito maior do que é na realidade; tão grande que me sentia oprimido. As paredes eram todas de madeira escura, mogno, talvez, e os móveis eram muito antigos, também de mogno. A paisagem era completamente monocromática, muito esquisita mesmo. Eu estava sentado em uma cadeira muito desconfortável, esperando por C., quando ouvi, vindo como que por trás das paredes, a voz de papai. Ele dizia que precisava comprar mais enlatados e que não sairia mais de seu esconderijo. Eu percebia, então, que segurava um machado e começava a quebrar a parede para libertá-lo, mas meus esforços eram inúteis, pois a madeira era duríssima e não parecia sofrer com os meus golpes. Ele gritava, “traga mais enlatados!”. Eu descia para o térreo através de escadas cujos mecanismos complexos eu desconhecia; descer os degraus não era suficiente para que 15


se chegasse ao andar inferior. Era preciso apertar alguns botões e realizar alguns movimentos estranhos. Recebi um telegrama de N., dizendo que estaria na cidade pelos próximos dias e que gostaria de conversar comigo. Ele é um bom conselheiro no que diz respeito à literatura. Costuma me recomendar bons livros e sempre faz ótimos comentários sobre meus escritos.

Não há muitas informações acerca de N., mas acredito que também seja escritor. Imagino-o jovem, por volta de trinta e cinco anos, mas, ainda assim, mais velho do que o autor do diário. Parece extrovertido, talentoso, confiante. Bastante diferente de quem escreve o caderno.

TUD O MU I T O E S T R A N H O

Ouvi dizer que um dos aviões amigos sumiu quando cruzava a fronteira norte do país. Isso mesmo, sumiu. A princípio, parecia que ele havia desaparecido dos radares por alguma falha operacional, mas, como o tempo passava e ele não reaparecia, uma equipe de busca foi enviada ao local, contando que ele tivesse sido abatido (ou que tivesse caído de um jeito ou de outro). Mas não encontraram restos da aeronave em qualquer lugar próximo ao desaparecimento. Desconfio que seja esse estado de enorme tensão o responsável por me fazer enxergar todas as coisas de modo muito estranho. Hoje mesmo algo muito insólito me aconteceu. Um homem que, eu juro, nunca havia visto antes, me para na rua e diz que me conhece. Nada extraordinário, pois pessoas já me confundiram com outros antes. Mas este homem – este louco! – insistia, dizendo, inclusive... Bem, transcrevo o diálogo, antes que as palavras corretas escapem da memória: — Bom dia, jovem rapaz. Será que pode me dar um minuto? Serei breve, prometo. — disse o homem, olhando para mim. Esperei, então, que ele dissesse mais alguma coisa: — Lembra-se de mim? — me perguntou. — Não senhor. Creio nunca ter te visto antes. — Ah, mas o senhor deve estar enganado! Pois me 16

O avião que some ao cruzar a fronteira confirma minhas suspeitas de que o conflito envolve outros países.

Acredito que ele esteja se referindo à guerra (iminente ou presente, pouco importa).

Este é um dos diálogos mais estranhos! Acho difícil acreditar que as coisas tenham se passado desse modo. A transcrição é muito extensa e detalhada; sorte que o autor tenha uma memória assim, tão boa. Nada explica, no entanto, o tom de voz desse senhor. Bastante rude para alguém que, deliberadamente, impede que o outro siga seu caminho.

Este é o número 2. Continue contando, caro leitor.




lembro com perfeição do dia em que nos conhecemos, nesta mesma rua.

Aqui percebe-se certa ingenuidade por parte do autor. Ao menos um diálogo tiveram: este que você, leitor, lê no momento.

— Não, o senhor deve estar me confundindo com outra pessoa. Na verdade, eu raramente passo por esta rua e, sem dúvida, não nos conhecemos (aqui ou em qualquer outro lugar). — disse eu, já um pouco impaciente — E, me desculpe, mas se é só, creio que... — Não! — disse o homem, colocando-se em minha frente, para que eu não continuasse meu caminho. — Precisa se lembrar! Encontramo-nos nesta rua, em um dia de sol como este e a primeira frase que eu lhe disse foi esta: “Bom dia, jovem rapaz. Será que pode me dar um minuto? Serei breve, prometo”. Lembra-se agora? — O senhor deve estar de brincadeira comigo! Esta foi a frase que o senhor me disse agora mesmo, quando nos conhecemos! — Então o senhor se lembra! Que maravilha! — ele me disse, esboçando um sorriso enorme. — Desculpe-me, senhor, mas estou incomodado com esta conversa. — disse, rispidamente. — Preciso ir imediatamente. — Não vá! Preciso lhe fazer apenas mais uma pergunta. Já tivemos este diálogo, não é mesmo? — O senhor está louco! Até a pouco, eu nunca havia lhe visto em minha vida e agora o senhor me pergunta se já tivemos este diálogo? Não, senhor, não tivemos diálogo nenhum! — É este! É este o diálogo que tivemos no dia que nos conhecemos! Lembro-me perfeitamente deste trecho: “O senhor está louco!” — disse, rindo bastante da situação — Como você é engraçado! Fico feliz que esteja se lembrando daquele dia. O tempo estava lindo, como hoje. — Isso é um absurdo! E se já tivemos este diálogo – não tivemos, pois é impossível, mas se... – então você sabe exatamente o que deve dizer para repeti-lo, como no dia 17


em que primeiro conversamos. É você quem está fazendo deste diálogo o mesmo de outrora, conduzindo minhas respostas a seu bel-prazer! Além disso, o senhor pode muito bem estar louco, inventando que já tivemos este diálogo e que se lembra das minhas frases. — Caro rapaz, isso seria impossível e jamais seria tão pérfido. Acredite que, se pudesse evitar, não o incomodaria novamente com estas palavras. — disse o homem. — Prove-me, então, que já tivemos este diálogo e que o senhor não brinca comigo! Se essa conversa já aconteceu, então sabe o que vou dizer em seguida, não é mesmo? — É claro que sei. — Hoje sonhei que um leão da montanha me dizia para nunca comer as astromélias do jardim. — disse eu. E o homem repetiu comigo, quase ao mesmo tempo: — Hoje sonhei que um leão da montanha me dizia para nunca comer as astromélias do jardim. — Não é possível! — exclamei, assustado. — Rapaz, deve ser possível, uma vez que está acontecendo! — E o senhor, sabendo o rumo da conversa, não pode mudá-la? Não pode alterar o que vai dizer agora, em seguida? Eu, obviamente, não posso, pois não me lembro do dia em que nos conhecemos e nem do que lhe disse então. Tudo o que eu digo, pareço dizer pela primeira vez. — Sinto muito. Mesmo que eu tente mudar o que digo, direi exatamente o que deveria dizer.Toda alteração é prevista, toda subversão é esperada. Mas não se preocupe, pois o diálogo corre bem, exatamente como da primeira vez. — disse ele. — Que fatalidade terrível! Tenho a impressão de ter controle sobre minhas palavras, mas, ao contrário, são elas que me governam. Elas já foram ditas e minha voz não foi nem mesmo necessária! 18

Não creio que seja tarefa fácil conduzir uma conversa de modo que o outro diga exatamente o que se quer (no caso, exatamente o que disse antes). Deve haver outra explicação: pensei que passado, presente e futuro não constituem uma linha contínua; que não deve ser imperativo que futuro suceda ao presente e presente ao passado. Mesmo assim, ainda sinto que caminho em uma só direção, o que faria de minha hipótese um absurdo. Se voltássemos – ou avançássemos – no tempo, algo deveria preencher as lacunas. Em todo caso, há explicações que, por serem impossíveis, tornamse desnecessárias. “Deve ser possível, uma vez que está acontecendo!”

Peço para que se lembre, caro leitor, da peça “Irmãs Estranhas”, apresentada no início da narrativa. As Moiras tecem o fio da vida e determinam o destino de cada um. Não há como alterá-lo; nem mesmo Zeus foge de suas vontades. Só o que nos resta é amá-lo (ou odiálo, que seja). Nesse caso, também eu, editor, faço parte dessa narrativa, tendo-a encontrado e publicado. O fio de minha vida cruzou-se com o do autor deste diário e, agora, cruza com o seu, o do leitor.


— Tudo já aconteceu. O tempo nos devora e o destino devora o tempo. Ele sim é soberano. — Por que conversamos agora? Por que ter a mesma conversa duas vezes? Se já disse tudo isso uma vez, precisarei repeti-lo? Mas, se eu me calar, também meu silêncio terá sido uma repetição de outro silêncio, anterior. Quantas vezes já tivemos esta conversa? Infinitas? — Caro, jamais pude lhe responder estas perguntas. Dói o coração pensar que você já as fez tantas vezes e ainda deverá fazê-las outras tantas e não encontrará resposta. De todo modo, assim primeiro terminou nosso diálogo! Não disse que já o havíamos tido antes? Exatamente do mesmo modo... Curioso, não? Dê-me licença. — disse o homem, contornando-me e sumindo à esquerda, na primeira esquina.

••• E LE N A O seguinte capítulo apresenta ao leitor uma coleção de objetos – fotografias, desenhos, cartas – encontrados em anexo ao diário. Ao que me parece, todos fazem referência à Elena. É interessante observá-los como um enorme e complexo conjunto de memórias; um verdadeiro e detalhado relatório afetivo sobre duas pessoas, das quais só nos restam vestígios. A importância desta moça é revelada pela quantidade de material encontrado. É uma pena que só tenhamos acesso às cartas que foram enviadas por ela (e que todas estejam tão danificadas por conta dessas “interrupções” causadas, imagino eu, pelo autor), pois a narrativa se tornaria muitíssimo mais rica caso a estória estivesse completa. Como seria impossível adivinhar o conteúdo apagado nas cartas, decidi mostrá-las no original.

19































Entre este capítulo e o anterior há uma série de páginas arrancadas. Contei 6 ou 7. Foram cortadas bem rente à lombada e, por isso, não há qualquer indício do que abrigavam. “Este livro”? Não “aquele” ou “esse”, mas “este”. Será que ele, o autor, escrevia seu livro neste caderno? Será que as páginas arrancadas eram parte de sua obra? Nesse caso, também o que restou pode revelar qualquer coisa de seu livro não publicado. Enfim, não há como saber. Aqui, faço apenas especulações. Em todo caso, como diferencia “livro” e “diário”, como se fossem dois objetos diversos, talvez não seja necessário nos preocuparmos com o que, daqui, é ficção ou realidade. Parece que isto é mesmo um diário, portanto, tudo ganha certo grau de veracidade.

Por causa das páginas arrancadas, não consigo saber se Elena passou algum tempo ausente durante o desenvolvimento da narrativa. Pode ser que tenha escrito as cartas antes deste relato começar. Ressalto que os dois já não estão mais brigados. Demorei um longo tempo para descobrir de quem era essa música: é um instrumental para piano, por Colin Patterson-Smith, de 1929. Belíssima melodia. Confirmo minhas suposições: o caderno encontrado não é o único registro de seus escritos. Gostaria de saber onde procurar pelos próximos. Inclino-me a pensar que o autor morava em Londres, mas é apenas intuição minha.

I M P O RTA N T E

Já faz alguns dias que estou tendo uma dificuldade enorme para escrever. Eu esperava terminar este livro até o próximo mês, mas no ritmo que estou, será bem difícil. Há três dias estou de cama, tão fraco que mal consigo sentar-me. Escrevo neste diário na esperança de não esquecer como articular algumas poucas frases; desse modo, posso continuar o trabalho assim que conseguir ficar de pé. C. me diz que é um medo muito bobo, esse de achar que vou esquecer como devo escrever, durante meus dias inúteis. Ela está me ajudando muito, eu a adoro. Elena também costuma me visitar. Ela traz biscoitos e passamos a tarde lendo alguma coisa – um livro de poemas, o jornal ou as inúmeras cartas que ela me enviava durante sua estadia em … Sempre me diz que, assim que me sentir melhor, iremos novamente ao clube, dançar “Togheter”. Outro dia tive um sentimento engraçado. Sentado em frente à máquina de escrever, concentrado em um parágrafo qualquer, de repente vi-me de fora. Não faz mesmo qualquer sentido, parecia um sonho, mas era como se eu não fosse mais eu e estivesse ao lado daquele corpo que datilografava, e eu o via (me via) assim, de fora, com uma clareza estranha. Imaginei meu rosto muito ensimesmado, minhas sobrancelhas crispadas e olhos atentos, em minha frente. Achei engraçadíssimo como meu rosto estava sério. Percebi meus dedos agilíssimos sobre as teclas, realizando movimentos que me eram alheios. Não aguentei e comecei a rir de minha própria seriedade. Tinha algo de muito cômico (e trágico) no modo como eu agia. Tudo aquilo me pareceu tão ridículo e sem propósito... De onde tirei ser tão importante? Não pareço tão importante agora, deitado em uma cama, sem poder nem mesmo me sentar. Ri de mim mesmo como quem ri de alguém que tropeça na rua: um riso que leva consigo um 47


bocado de pena. Estranhei também o riso e nele não me reconheci, como antes também não havia me reconhecido, e ele sumiu de meus lábios, pois perdeu o sentido de ser. Também eu devia ter sumido, pois já não achava o meu sentido de ser. Até que entendi que a ausência de sentido era mesmo eu e que, talvez, continuasse a achar graça disso tudo e continuasse a rir dessa minha pouca importância. Naquele momento senti que alguma pequena parte em mim morria. Pois se estava me vendo assim, de fora, então o que eu enxergava não era eu, mas um corpo apenas, vazio.

Começo a desconfiar que o autor seja louco. Acha que é outro, para enxergar-se assim, de fora e esse sentimento o acompanha por toda a narrativa. Ao mesmo tempo, quando leio suas palavras, sinto que o completo, de alguma forma. Dou-lhe substância com minha própria existência, com minhas próprias palavras. Enfim, divago...

P ERSEGUI Ç Ã O, N º 1

Ontem, tarde: Estava almoçando com meu pai, naquele restaurante ao lado do escritório. Conversávamos sobre um processo complicado. A comida não estava ruim, mas não possuía nada de particular. Um casal discutia a altos brados. Quando movi meus olhos em direção aos dois, eu a vi. Era ela quem, sentada, ouvia o homem gritar. Hoje, às 9 horas e 14 minutos: Ao abrir a porta do elevador de meu prédio, eu a vejo de relance, fechando a porta que dá para a rua, atrás de si. Não acredito que, mais uma vez, eu a encontrei. Decido segui-la. 9 horas e 17 minutos: Ela veste um casaco bege, daqueles que vão até o joelho, abotoado e amarrado na parte da frente. Por baixo, acho que está de vestido preto, ou uma blusa e uma saia, não tenho certeza. Usa sapatos de salto baixo, vinho como a cor das luvas e da bolsa. Ela virou à esquerda, na Rua …

9 horas e 25 minutos: Ela continua andando pela Rua … Caminha devagar, olhando as vitrines de todas as lojas. Tenho medo que ela perceba alguma coisa, pois não consigo disfarçar o entusiasmo. Agora ela para em frente à … Pareceu-me que iria entrar, mas olhou o relógio e seguiu. 48

Não sei lhe dizer, caro leitor, quem é “ela”. Desconfio que seja Rita, mas posso estar enganado. Imagino que o autor esteja fazendo anotações enquanto caminha, pois sua letra está praticamente ilegível, como se não houvesse apoio onde escrever. Além disso, escreve no presente.


9 horas e 42 minutos: Já viramos à direita, novamente à direita e mais uma vez à esquerda. Aproximamo-nos da Praça … 9 horas e 45 minutos: Ela sentou-se em um banco. Deve estar esperando alguém.Tira da bolsa um livro. De longe não enxergo o título.Tento me aproximar. Consigo sentar em outro banco, afastado cinco ou seis metros do que ela se encontra. Ela lê “As Flores do Mal”, de Baudelaire. 9 horas e 50 minutos: Ela não consegue se concentrar na leitura. Olha o relógio à todo momento. Deve mesmo estar esperando alguém. 9 horas e 57 minutos: É claro. É aquele mesmo homem da primeira vez que a vi. Ele chega e ela lhe sorri, mas o sorriso me parece apreensivo. Ficarei aqui, observando. Ela pode precisar de minha ajuda, caso ele decida agredi-la (não sei que tipo de homem ele pode ser). 10 horas e 25 minutos: Eles dois conversam. Não escuto nada, é claro. Estou longe demais. 10 horas e 34 minutos: Eles se abraçam e ela se levanta. Ele não a acompanha e ela vira na Rua … Levanto-me rapidamente para não a perder de vista. 10 horas e 45 minutos: Ela entra em um prédio, na esquina da Rua … com a Avenida … Decido esperar em um café logo em frente, pois preciso descobrir quem ela é. 11 horas e 45 minutos: Estou a sessenta minutos sentado neste café. Nada ainda. 12 horas e 15 minutos: Já estou na terceira xícara de café. Ela ainda não saiu do prédio. Começo a pensar que o lugar pode ter alguma outra saída e que ela já pode ter até mesmo ido embora. Saio do café e entro do prédio. Falo com o porteiro, mas ele me garante que todos devem sair pela mesma porta por que entraram, pois é a única. 49


12 horas e 22 minutos:Volto ao café. 13 horas e 11 minutos: Ela saiu do prédio segurando uma sacola enorme. Paguei a conta e continuei meu caminho; aliás, continuei seu caminho, que me levava para não sei onde. Ela virou na … e depois na … 13 horas e 30 minutos: Perdi-a de vista! Não acredito. Ela estava logo ali, quase na minha frente! Depois de ter dobrado na …, virou à esquerda duas vezes e depois à direita mais duas vezes. Seguia pela … quando sumiu. Estou voltando para casa. 13 horas e 46 minutos: Quando já estava quase na rua de casa, ela passou por mim.Tudo aconteceu tão rápido que fiquei sem ter certeza se havia sido mesmo ela. Quando me virei – pois ela ia em sentido contrário –, constatei que sim, era ela.Voltei a segui-la. 13 horas e 48 minutos: Ela percebeu! Tenho certeza que ela sabe que estou andando atrás dela. Ela olhou para mim e sorriu. Sem mais nem menos, um sorriso. Minha expressão deve ter ficado ridícula. Estava assustado! Decidi voltar para casa. 14 horas e 03 minutos: Acabo de chegar. Não sei se será possível tirá-la da cabeça. Ontem eu a vi e hoje novamente. Quais são as chances? « TO GHETE R »

Ontem tive uma conversa com Elena. Ela me disse que irá se mudar em breve e que não sabe se voltará para a cidade. Seu pai não gosta da ideia de tê-la aqui durante a guerra. Decidimos nos despedir ontem mesmo. Fomos até o clube onde costumamos passar as noites de sábado e dançamos “Together”, depois andamos pelas margens do Hugget até o café onde gostamos de comer Apfelstrudel. 50

Desconfio que não devo confiar plenamente no que ele diz. Seu discurso pode ter sido influenciado por suas vontades ou medos; é provável que ela não o tenha visto, que tenha sido uma ilusão. Não sei. Acho assustador o modo como ele é capaz de seguir alguém que desconhece. Na verdade, nada garante que eles não se conhecem. Pode mesmo ser Elena e os dois estarem brigados; não seria novidade. Já não bastasse a fixação com Rita. Em pensar que perdeu toda uma manhã nessa perseguição inútil. Rita? Elena? Alguma outra?

Tenho a impressão de que algumas das cartas foram escritas nessa época, quando Elena estava ausente.


Não conseguia soltar sua mão e a sensação de vê-la partir, quando finalmente eu a deixei em casa, foi terrível. Eu sempre tive uma enorme dificuldade de lidar com situações que exijam qualquer tipo de atitude um pouco mais racional.Vê-la fechar a porta atrás de si, sabendo que ela também se sentia triste, foi quase impossível. Eu sabia, é claro, que não tínhamos escolha – Elena vive com os pais e eu não posso tirá-la de lá, não teria meios para sustentar a nós dois – mas minha vontade era abraçá-la e não deixá-la ir. Acho interessante o modo como o autor reveza discursos altamente pessoais ou poéticos, como este, com diálogos e passagens tão distante de si, como se tentasse se enxergar no outro, não sei. Eu, de toda maneira, compartilho de seus sentimentos, mas me decepciono com os escritos, pois estas passagens não me aproximam das explicações, da verdade.

Às vezes é tão difícil entender o presente que só o futuro me traz algum conforto: penso que, em alguns anos, olharei para trás e verei que o caminho não poderia ter sido outro, por mais que eu quisesse; que as coisas se passaram exatamente do modo como deveriam e que eu não tenho nem nunca tive qualquer poder sobre o destino. Minha sorte é amar o destino e enxergar esses pequenos desvios – cada separação, perda ou dor – não como pedras, mas um pouco como degraus, que se fazem necessários para que se alcance um lugar mais alto. Tudo parece fazer parte de um truque de mágica: todos os fatos, todas as pessoas, todos os pensamentos, tudo é distração para que você não consiga entender o que está por trás do truque, ou melhor, para que você nem mesmo perceba que é um truque, no fim das contas. A mágica só se realiza; a magia só se mantém, nessa desatenção intencional. O mago precisa que seu público queira ser enganado, mas que acredite, também, que o truque não é uma mentira, um embuste. Em suma, todas as coisas acontecem para que, ao final do truque, você acredite na ilusão e a ilusão, é claro, só pode ser a vida. Não sei se foi a iminência da partida de Elena, mas algo me fez lembrar de Rita, a mulher que desapareceu há alguns meses. Nunca a encontraram. Nos dias que se seguiram ao desaparecimento, não consegui 51


tirá-la da cabeça. Ela era lindíssima, lembro bem de sua foto.Tinha a mesma doçura de Elena, mas seus olhos eram bem mais tristes. Na época, não consegui acreditar na hipótese do suicídio, mas com olhos como aqueles, não é impossível que tenha mesmo se atirado de alguma ponte. Que seja. Espero esquecê-la novamente; não gosto de pensar que Rita e Elena sejam parecidas em qualquer aspecto, pois sinto que Elena, bem como Rita, também pode desaparecer. Por outro lado, Rita não desapareceu por completo. Na verdade, só passou a existir depois de seu sumiço. Foi por causa de seu desaparecimento que ela entrou em minha vida e só porque continuou desaparecida que me fez acreditar que poderia vê-la a qualquer momento. Talvez eu sinta o mesmo quando Elena for embora; talvez eu a sinta ainda mais perto, como sinto Rita.

Às vezes, parece que Rita e Elena poderiam ser a mesma pessoa ou ocupar o mesmo papel: dois fantasmas que o autor parece enxergar em todos os rostos; de quem está sempre fugindo ao passo que corre de encontro. Esqueço-me que isso não é uma peça de teatro e que se trata de duas mulheres diferentes... mas há alguma coisa que une todas as personagens da trama: parecem muito fluidos, diáfanos. Ou são todos como uma sombra do autor, ou é ele quem não se percebe um espírito sem corpo.

B I B LI O TECA

Precisei ir à biblioteca pesquisar alguns códigos civis antigos. Estamos envolvidos em um caso complicado no escritório de papai. Se provarmos que há, de fato, uma discrepância entre aquelas duas leis aprovadas com uma década de diferença, então é provável que ganhemos o caso.Tudo isso é extremamente desinteressante. Falta-me apenas coragem para dizer ao papai que já não consigo; que preciso dedicar-me às minhas paixões; fazer o que realmente gosto: escrever. Como ia dizendo, ontem fui à biblioteca. Cheguei às nove horas da manhã e o plano era ficar até o meio-dia, pois havia combinado de almoçar com Elena; seria a última vez que nos veríamos antes de sua viagem. Ela é a doçura em pessoa e sempre temos as conversas mais agradáveis, mas não consegui chegar a tempo para o almoço e já explico o porquê. É claro que ela ficou bastante chateada, mas depois que lhe relatei o 52

Elena assume as características de Rita. A “doçura” de que fala o autor não condiz com aquela Elena que já não sabe se os dois devem continuar juntos. Talvez a iminência de parte tenha lhe garantido alguma suavidade; talvez o autor prefira imaginá-la assim, doce (ou do outro modo e seja esta a verdadeira Elena).




No entanto, não consigo esconder que Rita me encanta muito mais; gostaria que Rita fosse Elena.

Número 3. Aliás, não posso deixar de registrar minha felicidade ao ver que o autor conseguiu registrar todas essas “personagens” em fotografias! Que riqueza garantiu à narrativa com uma máquina fotográfica...

episódio, ela parecia mais preocupada do que triste. Disse que eu evitaria muitos aborrecimentos se não conversasse com estranhos. Não posso evitar.

O S Á B I O OU O P OETA

— O que está procurando, senhor? — perguntou o menino. — Alguns códigos civis antigos, mas não será difícil encontrá-los, obrigado. — Ah, bem sei. — disse ele, dando uma risadinha presa, daquelas bem infantis. — Qual é o problema? — perguntei, já imaginando que teria sido melhor calar-me. — Acho curioso como vocês acreditam nessas coisas. — E que coisas seriam estas? — Você sabe. Os códigos, as leis, os sentidos por trás dessas coisas. — disse ele. — Não é nada curioso.Tudo tem um significado, não é questão de crença. E as leis são bem importantes, é claro, pois nos permitem a convivência. — Leis! Sim, segundo o vosso dicionário, “preceito emanado de alguma autoridade soberana”! Ou “prescrição do poder legislativo” (esta me parece apropriada!). “Regra ou norma de vida”, que bela definição! Veja esta: “relação constante e necessária entre fenômenos ou entre causas e efeitos”. Ah, causas e efeitos, não falemos disso ou ficarei irritadíssimo! — falou, ainda com a mesma risadinha infantil nos lábios — Continuemos! — sua voz ficava cada vez mais alta e aguda — Leis: “obrigações impostas; preceito ou norma de direito, moral etc; religião fundada em um livro” (está é belíssima, não é mesmo?). E a última: “boa qualidade”. — Não entendo onde você quer chegar com isso... — disse eu. 53


— Chegar? Ó, não. Eu não quero chegar. Eu quero ir. — Você deve gostar mesmo de ler, não é? — perguntei, tentando mudar o rumo da conversa. — Mas ainda é bem pequeno para ler um livro tão grande quanto esse. — apontei para o livro que estava em suas mãos, que parecia ter quinhentas páginas ou mais. — Quanta ingenuidade! — disse ele, ignorando completamente a minha pergunta. Olhava para um ponto qualquer a sua frente, como se estivesse concentrado em seus próprios pensamentos: — Se já não bastasse acharem que existe um sentido na palavra, buscam dentro de cada uma delas um sentido para a própria vida! Aquele garoto tinha os olhos muito abertos, atentos, mas não eu esperava que fosse realmente inteligente. Aquela frase me deixou incomodado e realmente desconcertado. — E onde mais buscaríamos o sentido, senão dentro da palavra? Ou melhor, não é a palavra um meio para o sentido? Uma forma de conformar um sentido que antes, estava solto? — perguntei. — Você sabe. A palavra não é o sentido da palavra. A palavra é a palavra. Ela é profunda e múltipla em si mesma; não é espelho do mundo ou reservatório de coisa alguma! Ao contrário, ela abertura.Você vê, a palavra é imagem. O sentido é outra coisa. Ele virou as costas para mim e passou os olhos pela estante que estava em sua frente. Continuou com o livro que segurava em suas mãos. Parecia que a conversa tinha terminado e que eu poderia ir embora, mas a curiosidade foi maior: — E onde está o sentido, então? — Ah, o sentido! Ele não está na palavra, isso eu lhe garanto. É mais provável que você o encontre dentro do si. — E a palavra, o que é senão o sentido? 54




— Já lhe disse! A palavra é a palavra. Não é qualquer outra coisa que não ela mesma e jamais se contradirá. — disse o garoto. — E o sentido, o que é? — Sentido é como fica aquele que sentiu.

Caro leitor, não duvides das palavras! Tudo o que aqui se cala é a verdade: acreditar no livro é crer que toda palavra carrega consigo um pouco de ficção. Se o leitor duvida do que digo, ainda assim confia na palavra, pois crê que a falácia está no sentido.

V E RDA D E

A conversa foi interrompida por um silencio estranho, quase constrangedor. Minha vontade era sair de lá imediatamente, mas a sordidez da situação impediu que eu me movesse. Mais uma vez, fui eu quem retomou o diálogo: — O que é isto que você segura? Segurei o objeto em minhas mãos. O exterior era de couro, branquíssimo, imaculado, sem qualquer coisa escrita. Se fizesse um movimento específico, a capa – parte mais rígida – dava lugar à outra, mais flexível: um amontoado de papéis finíssimos, todos do mesmo tamanho, unidos pela lateral esquerda, de modo que jamais pudessem trocar a ordem em que se apresentavam para mim. O interior do objeto era caótico. Em cada uma das folhas de papel, em ambos os lados, estavam impressos em tinta preta uma enormidade de pequenos desenhos que se repetiam de forma aleatória, ocupando boa parte das páginas retangulares (mais altas do que largas, numa proporção de 1:1,333). Esses pequenos desenhos se agrupavam, de certo modo, em unidades que possuíam de dois à dezesseis símbolos, podendo, eventualmente, serem maiores ou menores. Um espaço em branco dividia os grupos, que eram sempre dispostos na horizontal, ocupando linhas que iam de um lado a outro do papel. Cerrando um pouco os olhos, aquela multiplicidade de símbolos parecia se unir em uma enorme mancha negra. De vez em quando, dois ou três desses grupos eram apresentados 55


em maior tamanho, como se tivessem mais importância (ou obedecendo aos caprichos de alguém). Mas então a sequencia recomeçava: grupos em tamanho pequeno e espaços em branco voltavam a alternar-se infinitamente. Ele me disse, “aqui está a verdade”.

M AYA

— Lembre-se: quem sente é o senhor. É o senhor que dá sentido às palavras. Elas não carregam nada consigo a não ser o peso delas mesmas. A palavra é a única verdade, pois não teme assumir-se ilusão. É uma verdade que não se opõe à mentira, pois não encontra em lugar algum um duplo que a contradiga. É a única verdade, e é verdade, pois é única. O que realmente importa é que o senhor entenda: o significado é apenas superfície; uma espécie de máscara – ou um tapete que cobre os arranhões do piso – que esconde o que é a palavra: ela é, afinal, imagem.

Mais algumas páginas destruídas precedem este capítulo. Em algumas passagens, consigo enxergar o nome de C. e de Rita, mas as circunstâncias foram apagadas pelo tempo. Não vejo alusões à Elena. Identifiquei, também, algumas referências a um livro que estava sendo escrito; a descrição (bastante deteriorada para ser completamente compreendida) falava de um homem que caminhava.

P ERSEGUI Ç Ã O, N º 2

Hoje, 7 horas e 14 minutos: Estou no aeroporto, embarcando para … O voo fará uma escala em …, por isso está cheio. O avião decola em quarenta minutos e a fila de embarque cresce a cada instante. Poucos metros atrás de mim, ela. 7 horas e 16 minutos:Veste o mesmo casaco bege, mas, por baixo, o vestido é azul claro. Eu não posso virar-me para trás ou ela pode perceber que eu estou olhando para ela. 7 horas e 35 minutos: O portão de embarque ainda não abriu. Continuamos na fila. Creio que ela está viajando sozinha. Quais são as chances de estarmos pegando o mesmo avião? Coincidência assustadora. 56

Sem dúvidas se trata da mesma mulher descrita na primeira perseguição. A coincidência é mesmo incrível, mas nada é realmente impossível.


7 horas e 42 minutos:Vieram nos avisar que o avião está com um problema no abastecimento. Nada grave, segundo dizem. Devemos embarcar em alguns minutos. 7 horas e 44 minutos: Não consigo deixar de pensar que sua aparição aqui é um presságio. Sinto-me desconfortável em aviões e ela aparece assim, vinda de lugar nenhum. Receio que algo de ruim aconteça. Estou louco? 7 horas e 47 minutos: Ela olha o relógio toda hora. Por que será que está sempre com tanta pressa? Avisaram que o voo atrasará mais quarenta minutos. 7 horas e 56 minutos: Reparei que ela usa as mesmas luvas, sapatos e bolsa. Será que também o vestido é o mesmo e eu que não me lembro do que ela usava naquele dia? 8 horas e 02 minutos: Algumas pessoas saíram da fila, mas ela continua atrás de mim. Duas ou três pessoas nos separam. Eu olho para trás o tempo todo e o homem que está logo atrás de mim está claramente incomodado com minha inquietação. 8 horas e 15 minutos: Avisaram que o embarque será daqui a dez minutos. A fila volta a crescer. Ela segura alguns papéis na mão direita. Devem ser documentos.Tentei enxergar seu nome em algum deles, mas é impossível. 8 horas e 25 minutos: Começou o embarque. A fila anda lentamente. 8 horas e 32 minutos: Acabei de entrar no avião. Estou sentado mais ao fundo e não a vejo em lugar algum. 14 horas e 46 minutos: Acabamos de pousar em ... e tudo correu bem.

15 horas e 12 minutos: Peguei minhas bagagens e não a vi chegar.Vou pegar um taxi e ir para o hotel. Ainda não 57


acredito que eu a vi novamente e que, de novo, eu a perdi de vista. Poderia ter procurado por ela no avião, mas não saberia o que falar. Além disso, às vezes é preciso confiar que as coisas acontecem segundo uma espécie de intenção, de ordem pré-definida.

O D EUS D A PE L E A Z U L: UM A I NTER RU PÇ Ã O

Entre a primeira e a segunda vez, passaram-se exatas vinte e três horas e dezesseis minutos. Entre a segunda e a terceira, quarenta e um dias. Nenhum desses valores tem qualquer importância aparente. Nas três vezes, ela vestia roupas quase idênticas: um vestido bastante estampado que ia até o pé – e que deixava a mostra seus braços muito negros – e um pequeno turbante que lhe cobria os cabelos, sempre amarelo. Isso também não é importante. Seu rosto era finíssimo, seus olhos lhe saltavam um pouco e seus lábios não se diferenciavam em cor do resto do rosto, pois eram do mesmo negro impossível das bochechas e tez. Da primeira vez, parece ter se apaixonado por ela. Da segunda, percebeu sua presença como presságio. Da terceira, pensou que não a via de verdade, pois a impossibilidade de reencontrá-la era óbvia; estava certo de que era uma visão, de que estava louco.

“O C AR TO M A N T E ”

1ª carta, representando o passado. A Morte, arcano 13. “Transformação, morte inevitável”. 2ª carta, representando o presente. O Louco, arcano 0 ou 22. “Impulso cego, falta de direção”. 3ª carta, representando o futuro. O Carro, arcano 7. “Triunfo sobre os obstáculos”. 58

O título deste fragmento foi retirado do próprio diário. “O deus da pele azul: Uma interrupção” estava escrito entre parênteses, no fim do texto. Creio que o autor esteja fazendo referência à Khrisna, o oitavo avatar de Vishnu, deus hindu da conservação. É uma pequena prosa poética ficcional que faz alusão ao episódio da perseguição.





P ERSEGUI Ç Ã O, PA R T E 3

Dia 14 de setembro, às 15 horas e 44 minutos: Caminhava pela Avenida … em direção à Livraria … Ouço o barulho de um carro freando bruscamente. Assustado, procuro por vítimas. Não há nenhuma, exceto uma mulher lindíssima, de olhos arregalados, ainda sem entender o que havia acontecido (ela, por pouco, não tinha sido atropelada). Não consigo acreditar: é ela. 15 horas e 52 minutos: Algumas pessoas se aproximaram. Um senhor segurou sua cabeça e olhou seus olhos, testando os reflexos das pupilas. Depois ele se afastou e uma moça aproximou-se. De braços dados, as duas se dirigiram a um Café e sentaram-se. 16 horas em ponto: Estou sentado a algumas mesas de distância. Não pude resistir a tentação de entrar no Café e vê-la por mais alguns minutos. Ela está bebendo um copo de leite e a moça que a acompanhou até aqui parece estar bebendo chá. Eu bebo um café preto. 16 horas e 13 minutos: Ela parece bem mais calma agora. A moça acabou de pedir a conta. Fiz um sinal para que o garçom trouxesse também a minha. Lá vem ele. 16 horas e 17 minutos: Saímos os três ao mesmo tempo. Fiz questão de levantar-me um pouco antes para abrir a porta para as duas. Fiquei tão perto dela que pude sentir seu perfume. 16 horas e 27 minutos: Não tenho certeza se ela percebeu que a estou seguindo. Na hora que saímos do Café ela me olhou nos olhos; viu meu rosto. Agora, ela olha para trás com alguma frequência, vendo se ainda estou por perto. 16 horas e 35 minutos: A perdi de vista há alguns minutos. Tudo aconteceu rapidamente. Ela se virou para trás e nos 60

Novamente, ela! Esta é, sem dúvidas, a terceira vez a que se refere o autor em “O deus da pele azul: Uma interrupção”. Que coincidência magnífica! Decidi lhe atribuir o número 4, pois sua aparição causa em mim uma inquietação tremenda e ela parece fruto de uma magia qualquer.




encaramos novamente, mas, desta vez, ela teve certeza de que eu a seguia. Sorriu maliciosamente. Fechei os olhos, num ato envergonhado e pouco corajoso. Quando os abri, ela não estava mais lá. Continuarei andando pelas redondezas, mas será difícil reencontrá-la.

O que será que ela quis dizer com isso? Será que não é necessário termos um caminho a seguir, que seguiremos mesmo sem ter um caminho definido, que todo caminho é definido uma vez que o seguimos? Ou será que nenhum caminho é certeiro, que nenhum caminho é ausente de pequenos desvios ou curvas, que o fim está longe e devemos seguir por trilhas imprecisas?

19 horas em ponto, minha casa: Os fatos que sucederam minhas últimas notas, às 16 horas e 35 minutos, são incríveis. Coloco tudo em detalhes para que eu jamais esqueça do dia de hoje. Quando decidi continuar a procurá-la apesar de tê-la perdido de vista, pensei que o melhor a fazer seria continuar andando, sempre tomando a direção mais movimentada, pois julguei que teria sido mais fácil fugir (se é que estiva fugindo) misturando-se às outras pessoas. Logo, tomei a primeira direita e depois a esquerda, alguns quarteirões à frente. Já eram quase 17 horas e eu realmente pensava que já não a veria novamente. Parei por um momento, próximo à vitrine da … Quando me virei, lá estava ela. Estava parada, a um ou dois passos de mim, com seus olhos negros me encarando de muito perto. Não parecia nervosa nem amedrontada. Na verdade, exibia um sorriso minúsculo que me lembrou um pouco o de Monalisa. A diferença era a cor da pele: muitíssimo escura, o que fazia do branco do olho um poço de luz, como se eu estivesse vendo uma enorme pérola. Ela vestia o mesmo vestido comprido e o mesmo turbante amarelo. Eu estava tão estupefato que não consegui articular nenhuma frase completa. Ela sorriu e disse: “Um caminho não é preciso”. QU I M E R A

Havia combinado de encontrar N. no Clube ..., mas ele não apareceu. Fiz um enorme esforço para ir até lá, pois logo me sinto entediado nesse tipo de ambiente. No entanto, fui. Não posso dizer que me arrependo, pois 61


acabei tendo uma conversa interessantíssima com uma das dançarinas. Ouvi dizer que o Clube nunca estivera tão cheio quanto agora. Não à toa, é a guerra. Esquecese facilmente dela quando se está lá dentro. Mas como ia dizendo, tive uma conversa bastante interessante com uma das moças que dançavam naquela noite. Não descobri seu nome, mas decidi chamá-la de “Quimera”. Eu estava no bar, bebendo uma dose – a minha quarta ou quinta – quando ela se aproximou. Ela era magnífica, lindíssima. Parecia algum tipo de animal selvagem, dos que, apesar de já estarem em extinção, são sempre os mais abatidos por caçadores gananciosos. Sentou-se e pediu um copo d’água. “Não estou me sentindo muito bem hoje, Alfredo”, disse para o barman.Tenho a impressão de que ela olhava para mim, mas não estou certo; estava bêbado demais para discernir as coisas. Sei que lhe disse que eu poderia levá-la para algum outro lugar e ela aceitou. Quando nos levantamos, percebi que ela mal aguentava o próprio peso e eu a envolvi com os braços. Fomos para seu camarim, na parte de trás do palco (estranhamente silencioso, visto que lá era um dos lugares mais barulhentos da cidade). Pôs-se, então, a falar e não parou até sermos interrompidos, vários minutos mais tarde, pelo gerente do lugar, que a procurava, desesperado. “Estou exausta.Tenho a impressão de que fico muito mais velha a cada dia que passa e num ritmo bem mais veloz do que aquele que dá o compasso para a maioria das pessoas. E se ainda envelhecesse como vocês... Mas não, tinha de ser assim... (“Assim como?” interrompi, não enxergando qualquer sinal de velhice. Ela ignorou minha pergunta.) Fui a um médico que me disse que devo descansar um pouco, tirar alguns dias para visitar minha família ou passar algum tempo em um hotel, longe da cidade. Era uma espécie de clínico geral, muito pouco competente. Eu lhe disse que não era esse o meu problema, 62

O número 5. A Quimera é um ser mitológico tão complexo em suas descrições (cabeça e corpo de leão, com duas cabeças anexas, sendo uma de cabra e outra de serpente ou de dragão; uma cabeça de leão, outra de cabra, corpo de leão e cauda de serpente; cabeça de leão, corpo de cabra, causa de serpente e solta fogo pelas narinas, etc) que tornou-se sinônimo de fantasia, absurdo.


mas ele não entendia.Você vê, o meu problema é outro. Eu estou desaparecendo. Estou ficando transparente, invisível como o ar. Fico cada dia mais ansiosa, pois sei que continuarei sumindo aos poucos, como agora. Ele, o médico, disse que não é possível alguém sumir assim, mas eu lhe respondi que tinha certeza de que estava acontecendo comigo.Você acredita em mim, não é mesmo? (“Eu não... eu não sei..”) Olhe bem para os meus olhos e me diga se não consegue enxergar aquele espelho que está bem atrás de mim. Consegue, não é mesmo? (“Sim, é verdade. Pareço conseguir enxergar...”) Eu lhe disse, estou sumindo! Sei que não é bem aparente agora, mas em breve... ••• Começou há alguns meses. Sim, não faz muito tempo; é por isso que o espelho logo atrás de mim ainda não é bem visível, como você vê. Logo você será capaz de distinguir todas as suas formas, como se eu fosse um espírito ou algum outro ser desse tipo. Há alguns meses, como dizia, comecei a reparar que os olhares do público já não se fixavam em mim. Passavam por mim, como se fossem além, como se me cruzassem, através de mim. Foi horrível, você pode imaginar. Pense em como você se sentiria caso deixasse de ser visto.Talvez se sentisse livre para ser, enfim, o que quiser, ou talvez, como eu, começasse a duvidar da própria existência. Foi só em outro dia – há poucas semanas – que tive certeza de que estava sumindo: um rapaz estava olhando para a dançarina que estava atrás de mim; exatamente atrás de mim. Ele olhava nos meus olhos, lá dentro, mas enxergava aquela lá, a que eu já não cobria, apesar de minha presença. Fiquei muito atordoada, é claro.Você pode imaginar o meu desespero, não é mesmo? Um dia irei sumir de uma vez e terá sido como se nem mesmo tivesse existido. Será tão triste saber que nada disso teve qualquer importância... De que vale 63


viver assim, sabendo que vou em direção ao nada? Mas é sempre assim, não é mesmo? Sumindo aos poucos ou de uma vez, é sempre assim. Pare de olhar para o espelho! Ele já está um pouco mais visível, não está? Olhe para os meus olhos!...” ••• As pesquisas que seguiram a minha primeira leitura foram exaustivas, pois tentava de todo modo encontrar a razão pela qual a Quimera sumia. Queria descobrir a origem de seu mal. Minhas investigações, a princípio, foram em vão; procurei diversos médicos e cientistas, mas todos riam quando eu lhes relatava a história. Diziam que eu estava louco. Não desisti e continuei procurando até que, meses depois, minha força de vontade foi recompensada. Em um livro cujo título agora me foge à memória, li um relato de um homem que temia ser fotografado, pois achava que seu corpo e seu espírito eram, na verdade, infinitas imagens de si, todas “sobrepostas” de modo a constitui-lo tal como era. A fotografia apreenderia uma delas e, se fosse fotografado com frequência, acabaria perdendo imagens demais. A teoria me pareceu plausível e alguns poucos experimentos – que mostro a seguir – provam a veracidade dos temores do homem e da Quimera.

64

Agora que releio meus próprios escritos, venho acrescentar que o homem é Balzac.




















































Todo este capítulo foi reconstituído por mim. Exigiu-me muitos esforços para decifrar o que se escondia atrás dos rabiscos e do mofo, mas creio ter sido bem sucedido.

É possível que estivesse escrito: “Então houve um dia em que me acordaram com a notícia de que, à noite, estaria aqui, como se algo de ruim tivesse acontecido de aguma forma.”

“No fim da tarde, C. telefonou e disse que papai estivera atrás de mim, pois precisava ter uma conversa séria comigo. Parecia urgente, mas eu não sentia sua angústia. Falei que já estava me sentindo bem, mas ela...”

“Marcamos no Clube …”

“Era a voz de uma dançarina que estava próxima de nós, enconstada no bar, rodeada de homens desconhecidos de mim ou de N.”

C OM E Ç O

Nunca antes escrevi de que modo encontrei Rita, como nos conhecemos. É mais ou menos como se ela sempre tivesse estado aqui; uma espécie de condição primeira de mim mesmo, substratum de quem sou. Porém, existiram dias em que passei sem saber de sua existência, sentindo-me, desde sempre, um tanto vazio. Sem dúvida, existiram muitos desses dias. Então houve um dia em que acordei ainda sem conhecê-la e à noite ela já estava aqui, como se dentro de mim, como se nunca tivesse sido de outra forma. Olhando para trás, vejo que aquele foi o dia mais importante de minha vida. Deu-se assim: Eu deveria ter passado o dia inteiro trabalhando no escritório de papai, mas acordara doente e ele recomendou que eu ficasse em casa. Do dia não me lembro de coisa alguma; devo ter passado horas lendo algum livro ou tentando escrever. No fim da tarde, N. telefonou e disse que estivera atrás de mim, pois precisava ter uma conversa séria comigo. Parecia urgente, sua voz era pura angústia. Falei que não estava me sentindo bem, mas ele insistiu e acabei aceitando encontrá-lo. Marcamos no Café … Não me lembro de uma só palavra do que conversamos, mas que conversa maravilhosa! Não fosse por ela, jamais teria conhecido Rita. Já passava de dez horas quando decidimos ir embora. Dirigíamo-nos para a porta principal quando uma voz feminina chamou por N. Era a voz de uma de suas amigas mais próximas, que estava ali com outras pessoas, também conhecidos de N. Logo nos convidaram para uma taça de vinho. N. aceitou de pronto, mas eu hesitei. Eu estava exausto e precisava descansar. Por fim, ele me convenceu. Sentei-me ao lado de Rita. Tocava “Together”. 113


M UI TO PELO C ON T RÁ RI O!

Parece que estou caminhando infinitamente e que vou sempre na direção certa, apesar de nunca saber exatamente para onde. De qualquer forma, é essa intuição que me deixa tranquilo: estou indo na melhor trilha possível, pois é a única. Não existe um caminho a seguir; existem apenas caminhos já andados. Ainda assim, cada passo é exatamente o que deve ser; cada passo é uma mudança de rumo. Já era tarde quando me vi andando pelos Bosques de ... Decidi cortar caminho por ali, pois precisava chegar à casa de Rita antes das sete da noite. Pensava em tudo o que tinha me acontecido nas últimas semanas e também nela, minha Rita. Enfim, tanto pensei que acabei me perdendo. Continuei caminhando na direção que julgava ser a correta (e não são todas?). Para a minha sorte – ou terrível azar –, encontrei dois homens que discutiam sob a copa de uma árvore. Eram gêmeos e vi que se vestiam de um modo muito engraçado! Ambos usavam calças azuis, blusas listradas em azul e branco e suspensórios vermelhos. Estariam idênticos, não fosse pelos óculos (esquisitíssimos) que um deles usava. Resolvi pedir ajuda: — Sim, trinta e seis! — Nunca catorze! No máximo, sete... — Com licença, caros senhores. — disse, de forma bastante educada. — Será que podem me informar para que lado fica a saída? — perguntei. — É claro! — respondeu o gêmeo dos óculos curiosos. — A saída fica exatamente naquela direção. — apontando com o indicador direito para seu lado esquerdo. — Muito pelo contrário! — interrompeu o outro. — A saída fica exatamente naquela direção! — e apontou com o indicador esquerdo para seu lado direito. Olhei bem para os dois e, com ar confuso, lhes disse: 114

Gostaria de lembrar-lhe, caro leitor, o que foi em relação aos sonhos do autor, na página 15. Quero dizer que, assim como seus sonhos se caracterizam pela impossibilidade de alguma coisa, também o diálogo a seguir parece ter aspecto semelhante. Bem sei que não há indicações de que este capítulo seja um sonho, mas as semelhanças me incomodam. Em todo caso, minhas suposições são inconclusivas.

Estes são o número 6. Se aproximar dos gêmeos Tweedledum e Tweedledee, personagens de Lewis Caroll, em “Alice através do espelho”. Admito que esse diálogo é um tanto longo para ser lembrado (e, posteriormente, escrito) com exatidão, mas o autor já provou ter boa memória, pois já nos apresentou diálogos igualmente complexos em páginas anteriores. Além disso, como negar os fatos tendo as fotografias como provas?


Tenho a impressão de que o autor está sempre andando “infinitamente”, mas quem muda sou eu. Caminho com ele?

— Apenas um de vocês pode estar certo. A saída não pode ser para ambos os lados... — Sim! O senhor está corretíssimo. “A saída não pode ser para ambos os lados”, pois é para um lado apenas: a esquerda! — falou, resoluto, o que usava os óculos. — É verdade que pode ser para a direita, mas então continuaria sendo somente para um dos lados: a direita! — Não! Muito pelo contrário! — disse o outro, ainda mais resoluto do que o primeiro. — A saída é precisamente para os dois lados! A diferença é que se seguir para a esquerda – e decidir não fazer qualquer curva –, então deverá dar a volta ao mundo até que chegue onde deseja. O que muda é o caminho, jamais o destino! — Muito pelo contrário! A saída é mesmo para os dois lados. O que muda, no entanto, é o tempo que leva até que se chegue ao destino. — Impossível! Não muda nem um e nem outro. Mudam os dois: o tempo e o caminho. — Muito pelo contrário! Mudam o tempo, o caminho e muda também aquele que caminha. — Não, não, não! Não muda nem tempo e nem caminho. — disse o gêmeo que não usava os óculos, mudando subitamente de ideia. — Só quem muda é quem caminha! — Muito pelo contrário! Só quem caminha é que muda! — Se não sabem para onde é a saída, então continuarei seguindo o caminho que fazia antes. — gritei, interrompendo a discussão que se iniciava. — Mas nós sabemos para onde é a saída! — disseram em uníssono. — É para lá! — e apontaram cada um para um lado. — Não é possível! Vocês nunca chegarão a um acordo, não é mesmo? — perguntei. — Nós sempre chegamos a um – dois, três, quatro... – a um acordo. E já estamos muito perto de chegar a um deles agora, muito mesmo! — falou o gêmeo sem óculos. 115


— Muito pelo contrário! — replicou o gêmeo que usava óculos. — Nós sempre chegamos a um – dois, três, quatro... – a um acordo, mas só estaríamos próximos de um acordo se nos decidíssemos pela esquerda! — Pois se fossemos para a direita também chegaríamos lá! — Muito pelo contrário!... — Chega! Seguirei meu caminho, não importa para onde. — disse, exasperado. — Até mais ver! — Ó, não! O correto — disse o gêmeo dos óculos curiosos — seria “até nunca mais ver”! Nos encontrar novamente seria impossível! — Muito pelo contrário! A única possibilidade é nunca mais nos encontrar! O certo, portanto, seria “até mais não ver”! ••• Continuei caminhando. O sol baixava depressa e eu não parecia estar mais próximo da saída. Depois de andar por alguns minutos, vi os gêmeos sob a mesma copa de árvore. Percebi que andara em círculos por todo esse tempo. Eles ainda discutiam: — Não! O resultado de um lance de dados nunca é certo! — Muito pelo contrário! Um lance de dados não pode dar um certo resultado. — Vejo que estavam errados. — disse, triunfante. — Parece que eu os encontrei novamente. — Ó, não, isso seria impossível! — falou o que usava óculos. — Nós não somos os mesmos desde a última vez. A cada vez que o senhor nos encontrar, teremos nos transformado um pouco. — Muito pelo contrário! — objetou o outro gêmeo. — Você jamais nos encontrará novamente, pois seremos completamente outros apesar de parecermos os mesmos! — Quando nos encontramos pela primeira vez, por 116

À princípio, o resultado de um lance de dados não obedece ao desejo do jogador. Mesmo que o resultado obedeça ao desejo do jogador, ainda assim os dados não tiveram nada a ver com isso e o jogador deve atribuir o fato à sorte. Se for supersticioso, dirá que teve sorte porque, na hora, segurava um talismã em forma de pata de coelho (Rabo de coelho? Olho de cabra? Rabo de cobra?). Ao mesmo tempo, os dados também não podem dar em um resultado certo: primeiro, porque não há certo ou errado quanto se trata de sorte ou acaso; segundo, porque os resultados são certos apenas para o jogador, jamais para os dados.





exemplo, discutíamos que dois dados lançados, desde que tenham ambos seis lados, só podem resultar em uma de trinta e seis combinações possíveis... — ... E que os dados realmente não conseguiriam resultar em um número inteiro múltiplo de 7 que não o próprio 7. — Agora, por outro lado, falávamos que um lance de dados não pode dar um certo resultado. — Muito pelo contrário! Falávamos que o resultado de um lance de dados não pode ser certo!... — Portanto, somos definitivamente outros, não acha? — Para mim, parecem os mesmo. — respondi. — Estão exatamente no mesmo lugar, vestem as mesmas roupas e continuam discutindo. E eu continuo sem achar a saída deste lugar... — disse, um tanto desapontado em encontrá-los novamente. — Têm certeza de que não sabem qual é o melhor caminho de volta à cidade? — Esta é uma pergunta completamente diferente! Você também é outro, não é mesmo? — perguntou o gêmeo dos óculos, que nesse instante os entregava ao irmão (que os aceitava com prazer). — O “melhor caminho” não é o mesmo que “o lado que fica a saída”. — disse o gêmeo (agora) sem óculos, enquanto esfregava a barriga, como alguém que sabe do que está falando. — o melhor caminho é aquele lá. — e apontou para o meio das árvores, onde não havia caminho algum. — Mas aquilo não é um caminho! — protestei, confuso. — Como não? Se você for por ali, então será um caminho. — Muito pelo contrário! Aquilo será um caminho bem antes de você o seguir.Tudo é caminho desde que se considere a possibilidade. — Então vocês têm certeza? É por ali realmente? — perguntei, apontando para a mesma direção que apontava um dos gêmeos. 118

1x7=7 2 x 7 = 14.

O caminho certo nem sempre é o melhor caminho: há vezes em que é o mais difícil, o pior. Porém, o melhor caminho costuma ser o caminho certo, se é que há um caminho “certo” e outro “errado”. Se caminhos forem como dados, eles não parecem se incomodar com isso.





— Sim, temos certeza absoluta! — respondeu. — É aquele o melhor caminho. — Muito pelo contrário! — falou o outro. — Não temos certeza de absolutamente nada! Mas uma das possibilidades é a de que aquele seja o melhor caminho. É apenas uma questão de probabilidade... ••• Decidi seguir o “caminho” que dava no meio das árvores. Não era fácil andar por ali, pois, por mais que a vegetação não fosse realmente densa, o solo estava úmido por causa da chuva do dia anterior. Andava lentamente, evitando sujar os sapatos e molhar a barra da calça. Quando, finalmente, vi um caminho asfaltado (como o que antes estava seguindo), pensei estar a salvo! Qual não foi minha surpresa ao ver, do lado oposto onde eu me encontrava, os gêmeos ainda ali, discutindo sob a mesma copa de árvore. Estivera, novamente, andando em círculos: — Não, não, não! O acaso está no momento em que se lança os dados! — disse o gêmeo de óculos, que já não dava mais para saber se era ainda o mesmo ou o outro. — Muito pelo contrário! O acaso está no instante em que os dados chegam ao ponto mais alto do arco que define a trajetória. O acaso é o equilíbrio de forças! — “Muito pelo contrário” digo eu! O acaso é o impulso, é o desequilíbrio... — dizia um dos dois no momento em que me viu. — Seja bem-vindo de volta! Ou será que já é outro? Nesse caso, “bem-vindo!” já é suficiente. — Aquele não era o caminho certo! — bradei. — Ó, não, não era mesmo! Aquele era o “melhor caminho”.Você reparou nos jasmins florescendo? São as flores que fazem dele o melhor, sem dúvidas! — Muito pelo contrário! O que faz dele o melhor são as pedrinhas ao lado das árvores. Aposto como você nunca 120

Chance deste ser o melhor caminho: 50%; Chance deste ser o caminho certo: 50%; Chance deste ser o melhor caminho e o caminho certo: 25%.


tinha visto tantas pedrinhas tão perfeitamente redondas quando aquelas lá. As flores, aliás, não me agradam. — Isso não importa! — eu disse. — Preciso achar o caminho certo o mais rápido possível! — Veja como ele é engraçado! — disse o gêmeo dos óculos curiosos ao irmão. — Está mesmo completamente perdido. Devemos ajudá-lo? — Ajudá-lo? Muito pelo contrário! Melhor seria se continuássemos o confundido! Já estava sem paciência. Estava perdido e aqueles homenzinhos ainda faziam pouco caso de mim. Decidi que era hora de seguir qualquer que fosse o caminho, tentando, é claro, não andar em círculos. Dei um passo para a esquerda e depois mais outro; meu objetivo era afastar-me cautelosamente, sem atrair a atenção dos dois. Quando já estava a cinco ou seis passos distante, um dos gêmeos (o dos óculos) me chamou: — Não vá tão depressa! Eu e meu irmão estamos com um problema e não parecemos conseguir resolvê-lo. Pensamos que, talvez, você possa nos ajudar. — Será que vocês não percebem que já estou com problemas o suficiente? — respondi, impaciente. — Nunca se tem problemas o suficiente! E o seu parece simples o bastante... — Muito pelo contrário! É o nosso que é realmente muito complicado, fazendo o seu parecer bem fácil de ser resolvido. Mas três cabeças pensam melhor do que duas. — Muito pelo contrário! — gritou o outro, um tanto sobressaltado. — Uma cabeça pensa melhor do que duas ou três, pois que confuso seria pensar com tantas cabeças! — Certo... — falei. — Digam de uma vez qual é o problema. — Estamos procurando o acaso e não parecemos conseguir achá-lo! Onde ele está quando se joga dados? 121


— Eu acho que está no momento preciso em que se lança os dados para o alto. — disse o gêmeo dos óculos curiosos. — Já meu irmão, ele pensa que está no momento em que os dados atingem o ápice do arco que define a trajetória de cada um. Pensei um pouco e lhes respondi: — Pois eu penso que está no último instante em que os dados estão no ar. Precisamente antes de tocarem o chão. — Que ótima resposta! Sim, é mesmo uma das possibilidades! Talvez devêssemos fazer alguns experimentos. — disse um deles, tirando dos bolsos um par de dados tão curiosos quanto seus óculos. Os dois começaram a lanças os dados para o alto e vê-los cair no chão. Quando caiam, novamente os apanhavam e os jogavam ao alto, ininterruptamente. Estavam tão entretidos que mal me viram indo embora. ••• Decidi tentar retraçar (mas ao contrário) exatamente o mesmo caminho que usei para chegar lá onde estavam os gêmeos pela primeira vez. Achei que estava indo muitíssimo bem, pois reconhecia algumas árvores e pedras que havia reparado anteriormente. Quando já era quase noite, podia jurar que estava bem perto da saída (ou, nesse caso, do lugar por onde entrei). Minha ideia era contornar o bosque depois que conseguisse sair dele. Dobrei à direita depois de um tronco caído e já parcialmente apodrecido e, depois, novamente à direita, após um pequeno canteiro de flores engraçadas (que muito se pareciam com olhos fechados). Então o inesperado aconteceu: bem na minha frente, a pouquíssimos passos de distância, estavam os dois gêmeos, que ainda discutiam. Estavam cada vez mais nervosos; agora jogavam os dados um no rosto do outro: — Já chegaram a um acordo? — perguntei. 122





— Ó, sim! Chegamos a um acordo. — disse o gêmeo dos óculos engraçados, pronto para arremessar os dados na cara do irmão. — Muito pelo contr... — tentou dizer o outro, quando os dados voaram direto em sua boca. Após cuspi-los em uma das mãos, continuou: — Chegamos à, precisamente, dezenove acordos! — E quais são eles? — perguntei. — O primeiro é óbvio: estávamos todos certos. O acaso está no momento em que os dados são lançados, no ponto mais alto do arco que descreve sua trajetória e no último instante antes dos dados caírem no chão. — Muito pelo contrário! — disse um deles. — Óbvio é o segundo: o acaso está, também, em todos os outros momentos. — Não! Óbvio é, então, o terceiro: o acaso não está (absolutamente!) no instante em que os dados estão parados no chão ou na mão de alguém, logo depois de caírem ou esperando para serem lançados. — Então o acaso é escolha de quem joga? — indaguei. — Quero dizer, será preciso escolher o acaso e, assim, lançar os dados? — Muito pelo contrário! Será preciso escolher os dados e lançar o acaso. E, depois dos dados terem resultado em um número qualquer (entre 2 e 12, qualquer uma das 36 possibilidades, contando que 2 e 4 não é o mesmo que 4 e 2), novamente escolher os dados e lançar o acaso. — Ó, sim! O impossível segue o possível e vice-e-versa. Eu olhava estupefato para os dois. Eles falavam tão depressa que eram necessários alguns minutos para que eu entendesse o que diziam. Quando voltaram a jogar os dados um no rosto do outro (e, eventualmente, no meu), percebi que dos dezenove acordos eu só saberia os três primeiros. Precisava ir embora antes que fosse tarde demais. Despedi-me brevemente e caminhei em direção a 124

Para que fique claro ao leitor, pontuo os acordo a seguir. 1º acordo: o acaso está precisamente no começo, no meio e no fim. 2º acordo: o acaso está em todos os momentos entre começo, meio e fim.

3º acordo: O acaso não está antes do começo nem depois do fim.





uma árvore enorme. Ouvi, então, os dois me chamarem. Falaram, ao mesmo tempo: — O melhor caminho (e também o caminho certo) é aquele ali — e apontaram cada um para um lado.

O B J ETO A CH A DO

Na madrugada passada, vinte e cinco de janeiro, o corpo de Rita W. foi encontrado próximo à tubulação 9C, que desagua no rio Hugget. Dois garotos, 9 e 12 anos, que brincavam no local descobriram o corpo parcialmente afundado no lodo. Assustados, procuraram a polícia, que logo identificou a vítima como sendo a filha de T.W., desaparecida desde setembro de … Os laudos apontam suicídio. O caso foi dado como encerrado.

Resta saber como o autor conseguir descobrir o caminho certo (o melhor ele já havia descoberto). É possível que tenha sido bem sucedido (é provável, pois a narrativa continua). O acaso pode ter-lhe ajudado, se é que o acaso ajuda coisa alguma. Poucas páginas separam o último capítulo deste aqui. O nome de Rita aparece muitas vezes, mas parece que, agora que foi encontrada morta, a existência que o autor lhe atribuía deixou de fazer sentido.

Será preciso dizer que também este fragmento de jornal foi impossível localizar?

TUD O M UI TO E S T R A N H O

Ouvi dizer que um dos aviões amigos sumiu quando cruzava a fronteira norte do país. Isso mesmo, sumiu. A princípio, parecia que ele havia desaparecido dos radares por alguma falha operacional, mas, como o tempo passava e ele não reaparecia, uma equipe de busca foi enviada ao local, contando que ele tivesse sido abatido (ou que tivesse caído de um jeito ou de outro). Mas não encontraram restos da aeronave em qualquer lugar próximo ao desaparecimento. Desconfio que seja esse estado de enorme tensão o responsável por me fazer enxergar todas as coisas de modo muito estranho. Hoje mesmo algo muito insólito me aconteceu. Um homem que, eu juro, nunca havia visto antes, me para na rua e diz que me conhece. Nada extraordinário, pois pessoas já me confundiram com outros antes. Mas este homem – este louco! – insistia, dizendo, inclusive... Bem, transcrevo o diálogo, antes que as 126

O avião que some ao cruzar a fronteira confirma minhas suspeitas de que o conflito envolve outros países.

Acredito que ele esteja se referindo à guerra (iminente ou presente, pouco importa).

Este é um dos diálogos mais estranhos! Acho difícil acreditar que as coisas tenham se passado desse modo. A transcrição é muito extensa e


detalhada; sorte que o autor tenha uma memória assim, tão boa. Nada explica, no entanto, o tom de voz desse senhor. Bastante rude para alguém que, deliberadamente, impede que o outro siga seu caminho.

Este é o número 2. Continue contando, caro leitor.

Aqui percebe-se certa ingenuidade por parte do autor. Ao menos um diálogo tiveram: este que você, leitor, lê no momento.

palavras corretas escapem da memória: — Bom dia, jovem rapaz. Será que pode me dar um minuto? Serei breve, prometo. — disse o homem, olhando para mim. Esperei, então, que ele dissesse mais alguma coisa: — Lembra-se de mim? — me perguntou. — Não senhor. Creio nunca ter te visto antes. — Ah, mas o senhor deve estar enganado! Pois me lembro com perfeição do dia em que nos conhecemos, nesta mesma rua. — Não, o senhor deve estar me confundindo com outra pessoa. Na verdade, eu raramente passo por esta rua e, sem dúvida, não nos conhecemos (aqui ou em qualquer outro lugar). — disse eu, já um pouco impaciente — E, me desculpe, mas se é só, creio que... — Não! — disse o homem, colocando-se em minha frente, para que eu não continuasse meu caminho. — Precisa se lembrar! Encontramo-nos nesta rua, em um dia de sol como este e a primeira frase que eu lhe disse foi esta: “Bom dia, jovem rapaz. Será que pode me dar um minuto? Serei breve, prometo”. Lembra-se agora? — O senhor deve estar de brincadeira comigo! Esta foi a frase que o senhor me disse agora mesmo, quando nos conhecemos! — Então o senhor se lembra! Que maravilha! — ele me disse, esboçando um sorriso enorme. — Desculpe-me, senhor, mas estou incomodado com esta conversa. — disse, rispidamente. — Preciso ir imediatamente. — Não vá! Preciso lhe fazer apenas mais uma pergunta. Já tivemos este diálogo, não é mesmo? — O senhor está louco! Até a pouco, eu nunca havia lhe visto em minha vida e agora o senhor me pergunta se já tivemos este diálogo? Não, senhor, não tivemos diálogo nenhum! 127


— É este! É este o diálogo que tivemos no dia que nos conhecemos! Lembro-me perfeitamente deste trecho: “O senhor está louco!” — disse, rindo bastante da situação — Como você é engraçado! Fico feliz que esteja se lembrando daquele dia. O tempo estava lindo, como hoje. — Isso é um absurdo! E se já tivemos este diálogo – não tivemos, pois é impossível, mas se... – então você sabe exatamente o que deve dizer para repeti-lo, como no dia em que primeiro conversamos. É você quem está fazendo deste diálogo o mesmo de outrora, conduzindo minhas respostas a seu bel-prazer! Além disso, o senhor pode muito bem estar louco, inventando que já tivemos este diálogo e que se lembra das minhas frases. — Caro rapaz, isso seria impossível e jamais seria tão pérfido. Acredite que, se pudesse evitar, não o incomodaria novamente com estas palavras. — disse o homem. — Prove-me, então, que já tivemos este diálogo e que o senhor não brinca comigo! Se essa conversa já aconteceu, então sabe o que vou dizer em seguida, não é mesmo? — É claro que sei. — Hoje sonhei que um leão da montanha me dizia para nunca comer as astromélias do jardim. — disse eu. E o homem repetiu comigo, quase ao mesmo tempo: — Hoje sonhei que um leão da montanha me dizia para nunca comer as astromélias do jardim. — Não é possível! — exclamei, assustado. — Rapaz, deve ser possível, uma vez que está acontecendo! — E o senhor, sabendo o rumo da conversa, não pode mudá-la? Não pode alterar o que vai dizer agora, em seguida? Eu, obviamente, não posso, pois não me lembro do dia em que nos conhecemos e nem do que lhe disse então. Tudo o que eu digo, pareço dizer pela primeira vez. 128

Não creio que seja tarefa fácil conduzir uma conversa de modo que o outro diga exatamente o que se quer (no caso, exatamente o que disse antes). Deve haver outra explicação: pensei que passado, presente e futuro não constituem uma linha contínua; que não deve ser imperativo que futuro suceda ao presente e presente ao passado. Mesmo assim, ainda sinto que caminho em uma só direção, o que faria de minha hipótese um absurdo. Se voltássemos – ou avançássemos – no tempo, algo deveria preencher as lacunas. Em todo caso, há explicações que, por serem impossíveis, tornamse desnecessárias. “Deve ser possível, uma vez que está acontecendo!”




Peço para que se lembre, caro leitor, da peça “Irmãs Estranhas”, apresentada no início da narrativa. As Moiras tecem o fio da vida e determinam o destino de cada um. Não há como alterá-lo; nem mesmo Zeus foge de suas vontades. Só o que nos resta é amá-lo (ou odiálo, que seja). Nesse caso, também eu, editor, faço parte dessa narrativa, tendo-a encontrado e publicado. O fio de minha vida cruzou-se com o do autor deste diário e, agora, cruza com o seu, o do leitor.

Elena ainda está ausente, mas as menções a ela são frequentes. Desde que Rita foi encontrada morte, o autor não escreve como antes. Sei que o leitor talvez não perceba, pois não segura em suas mãos o diário que possuo, mas mesmo o modo como o autor escreve está alterado. Muitas páginas foram perdidas, mas a mudança é visível.

— Sinto muito. Mesmo que eu tente mudar o que digo, direi exatamente o que deveria dizer.Toda alteração é prevista, toda subversão é esperada. Mas não se preocupe, pois o diálogo corre bem, exatamente como da primeira vez. — disse ele. — Que fatalidade terrível! Tenho a impressão de ter controle sobre minhas palavras, mas, ao contrário, são elas que me governam. Elas já foram ditas e minha voz não foi nem mesmo necessária! — Tudo já aconteceu. O tempo nos devora e o destino devora o tempo. Ele sim é soberano. — Por que conversamos agora? Por que ter a mesma conversa duas vezes? Se já disse tudo isso uma vez, precisarei repeti-lo? Mas, se eu me calar, também meu silêncio terá sido uma repetição de outro silêncio, anterior. Quantas vezes já tivemos esta conversa? Infinitas? — Caro, jamais pude lhe responder estas perguntas. Dói o coração pensar que você já as fez tantas vezes e ainda deverá fazê-las outras tantas e não encontrará resposta. De todo modo, assim primeiro terminou nosso diálogo! Não disse que já o havíamos tido antes? Exatamente do mesmo modo... Curioso, não? Dê-me licença. — disse o homem, contornando-me e sumindo à esquerda, na primeira esquina.

O FI M (? )

Ontem, recebi mais uma carta de Elena. Ela reclama que eu mando poucas notícias, mas não tenho me sentido bem e evito alarmá-la. Depois que descobriram o corpo de Rita, parece que perdi um pouco de mim mesmo. Seus pais, é claro, ficaram aliviados, mas eu preferiria que não a tivessem encontrado. Ficam sempre com as certezas, ao invés das belas possibilidades... Eu opto pela ficção, pois também ela é realização de alguma coisa, 129


mas eles preferem a “verdade”. Agora que Rita está definitivamente morta, já não consigo enxergar seu rosto em tantos outros rostos quando caminho às margens do Hugget. Sentirei sua falta. De todo modo, me forçarei a escrever à Elena. Apesar da distância, eu a amo. •

130




— Posso sentir que o que ainda resta de espaço em branco nesse caderno diminui numa velocidade assustadora a cada palavra escrita. Eu preferia não escrever em um objeto cujo princípio é o fim, pois, ao me aproximar do que deveria ser o final, as palavras começam a multiplicar-se (há vezes em que cessam por completo e as últimas páginas permanecem vazias, mas não é este o caso) e preciso apertá-las todas, para que caibam. — Isso não aconteceria se decidisse escrever em páginas soltas, brancas; poderia escrever infinitamente, de modo que o fim tivesse que se dar de outra forma; não nessa melancolia de tudo terminado!... Escreveria até que se esgotassem as palavras – ou os sentidos –, não as páginas, pois ainda que fins não tenham sentido, em objetos como este, o sentido é o fim.

— De todo modo, talvez seja assim a vida, ou talvez seja assim que a entendamos — “pois ela não pode ser coisa alguma”, eu disse. — também ela tem um fim, e também é o fim que a define; que faz dela vida. – Porém, me desviei do assunto sobre o qual gostaria de escrever quando primeiro abri este caderno... — Quando decidiu escrever este diário, sua motivação primeira, ou quando pensou em escrever este trecho, neste dia?

— Na última semana, encontrei uma caixa enorme, repleta de objetos pessoais de meu avô, embaixo daquele armário de mogno que fica no antigo quarto de hóspedes aqui de casa. Entre cartas, pequenos bibelôs, lembranças de viagens que fez (mapas, ingressos, passagens de trem), um fragmento de jornal, uma pequena caixinha com um dente de leite (que acredito ser de papai), uma foto de uma atriz já morta, encontrei uma série de fotografias curiosíssimas. As fotos parecem retratar o casamento de alguém, mas meu avô, estranhamente, decidiu cobrir o rosto de todos os convidados, exceto um ou outro que olhavam justamente para a câmera.


— O que havia de tão sórdido nisso tudo? Alguma coisa o incomodou naqueles olhares e, sinceramente, me inquietam também.

— Veja só como olham para o fotógrafo (Ou para a câmera? Mas por que se sentem tão acossados?); como os olhares invadem as lentes e gravam-se no filme. O que viam, afinal? O fotógrafo por trás daquele objeto tenebroso, eu diria. Veja bem: observe o modo como olham para ele, e como parecem olhar também para fora, para mim, que enxergo a fotografia. Eles também me veem. Jamais havia me percebido desta forma: um ser possuidor de olhos que enxerga ao mesmo tempo em que é visto; que só é metade de si se não é visto, pois, enxergando apenas, é sujeito e nada mais. – Logo me veio à cabeça todas as fotografias que tirei – de Elena, de meu pai, de N., do passeio que fiz com C. até o Balneário, nas últimas férias. Não apareço em foto alguma, mas todas são fotografias de mim mesmo, pois se já não bastasse serem todas meus olhos congelados, capturam o momento preciso em que, enquanto eu registrava o mundo, o mundo também me registrava. Na tentativa de capturar a tudo, de capturá-los todos, de romper com a linearidade que me leva de ontem à hoje, de hoje à amanhã, de amanhã à morte; na tentativa de fixar qualquer coisa instantânea, de evitar que sejamos todos levados pelo turbilhão de tempo que é a realidade; de arquivar o passado em caixas; também eu fui visto e capturado (e talvez esta tivesse sido sempre minha intenção, pois, assim, também eu escapo do tempo, da vida). — Cada olhar que ultrapassa a fotografia revela também o fotógrafo e não só. Revela algo de muito mais horrível...

— Eu estava lá e não me via; eu era, para mim, um par de olhos. Mas para os outros, quem eu era? Eu era um corpo inteiro. Não apenas todos me enxergavam melhor, como eram os únicos que poderiam me ver. Nesse fragmento


de passado, nesse vestígio de memória, não existo; não estive lá, pois “estar lá” é “ser visto” e não “ver”. Eram os olhares alheios, que não o meu próprio, que garantiam minha existência. O meu garantia a existência de todo o resto, mas não a minha. — Quem vive? Afinal de contas, quem pode dizer que vive, realmente? Qual dos dois está mais vivo: quem observa, vê, entende, registra, interpreta, ou aquele que é visto?

— Quem vive sou eu ou você? — Você, leitor, deve estar lembrado da passagem, na peça “Irmãs Estranhas”, onde Láquesis chama o personagem para o qual tecem o fio de “ser imaginário”. Pois bem, começo a desconfiar de que falavam dele, digo, do autor do diário.

— Tudo o que importa é que vivo. — Talvez “imaginário” não deva ser entendido como aquilo que é real, mas como aquilo que é apenas imagem, na medida em que não pode enxergar-se, não se conhece. É imagem na medida em que só é visto.

— Algo me garante que vivo. — Obviamente, nada prova a existência do ser que escreveu estes registros, podendo ser mesmo irreal, ilusório; embuste de alguém que, para divertir-se, decidiu escreveu neste caderno que, agora, tenho em mãos.

— Sei que existo, pois, enquanto escrevo, ouço a voz de uma mulher, talvez aquela que está ali, na mesa em frente, ouço sua voz muito aguda, que se torna cada vez mais aguda quanto mais ela se esquece que vê e na medida em que também se esquece que é vista. Comigo se dá o mesmo: só vivo quando esqueço que sou e que sou visto sendo. Quando esqueço que meu rosto, às vezes, se movimenta de um jeito esquisito e que minha boca realiza pequenos movimentos alheios a minha vontade. Só vivo quando perco o controle de meus músculos e deixo que os outros me vejam, estranho, torto sobre uma folha de papel, escrevendo tão rápido quanto posso, na tentativa de


fixar tudo o que vêm a mim, tudo o que vejo e que, por enxergar, deixo que exista. Só vivo quando me entrego aos olhos do outro, sem medo de envergonhar-me, sem medo de que enxerguem em mim algo que eu mesmo não enxergo (pois isto é inevitável, uma vez que eu não me enxergo de todo). Só vivo quando compreendo que não posso ser “um” apenas, que para cada um sou diferente e que minha existência é justamente a multiplicidade de imagens de mim mesmo. — De todo modo, seria um contrassenso pensar que a peça “Irmãs Estranhas” justifica, dá origem ou explica a narrativa apresentada a posteriori. Creio que são, a peça e este caderno, dois objetos diversos cuja proximidade foi responsável pelo que há de insólito.

— Vendo ao mesmo tempo em que sou visto, pois a vida está nesse duplo movimento e em nenhum outro lugar. — Além disso, destaco a fala de Láquesis sobre as “nove criaturas imaginárias” que cruzariam o caminho de tal ser imaginário. No diário, conto sete (e agora entendem os números).

— A vida só pode ser esse sem sentido, – “1. Esfinge” – essa ausência de unidade que nos une a todos, – “2. O senhor que pensa já ter tido aquele diálogo” – que é esquecimento e lembrança de si, – “3. O garoto que encontra na biblioteca; 4. A misteriosa mulher que o autor persegue” – simbiose entre dois corpos eternamente

separados, que não podem enxergar-se a si, sob pena de deixarem de existir, e vivem apenas no outro. – “5. O cartomante; 6. Quimera; 7. Os estranhos gêmeos que ele encontra no bosque.” – Eu é sempre outro. – “Tenho minhas desconfianças de que Rita possa ser o oitavo, mas, ainda assim, quem seria o último?” – Minha voz é minha

e também é a voz de outro, meu rosto é meu, mas vive no outro e não em mim, as palavras que escrevo são minhas, mas também de quem lê. Não há contradição,




apenas sobreposição. Não, a vida não é contraditória; contraditório é que o queremos que a vida seja. Eu não sou um contrassenso, pois talvez não seja coisa alguma. Talvez eu seja sempre outra coisa, sempre alguma outra coisa inalcançável que, ao tentar enxergar-se, já é outra. A vida é o que está fora; é o que tocamos com a nossa visão, como se dela fizéssemos tato. — Caro leitor, minha narrativa se encerra bem aqui, antes do fim.

— Pensei que poderia escrever sobre isso e, então, escrevi, mas não foi suficiente. — Isso se dá por um motivo apenas: não chego a qualquer conclusão a respeito deste objeto, apesar de minhas pesquisas.

— Abro os olhos e, novamente, sinto-me surpreendido pelo mundo, não consigo entender porque as coisas são como são, porque tudo deve obedecer a uma ordem já tão antiga. — Também minha busca é inalcançável e, no fim, acabo me assemelhando a própria estória. Termino por fazer um pouco parte dela.

— Quem foi que me ensinou que as coisas devem obedecer a uma ordem qualquer? Quem foi que me ensinou a confiar nos meus olhos? Então, sei que deverei escrever ainda muito mais. — Sugiro que preencham as lacunas como bem entenderem; talvez sejam mais bem sucedidos do que eu (ou, possivelmente, não seja questão de ser bem sucedido, mas de continuar caminhando).

— Assim que vi as fotos, tive a ideia para um romance. Não sei se será um bom romance, pois não tenho costume de escrever coisas longas. Gosto quando bastam poucas palavras; gosto quando a impressão é breve.Talvez não seja um romance, portanto, mas vou escrever.Talvez ainda nesse caderno, talvez num próximo. — “Talvez toda tentativa seja fracassada e seja assim o final do livro”,


eu disse. — Não que escrever resolva coisa alguma; de

fato, há vezes em que escrever só piora todo o resto. — Há os que vão se irritar, mas estes são os que buscam respostas. Eu não posso lhe dar uma resposta, caro leitor.

— Para não esquecer, escreverei a ideia que tive para o romance: será sobre um homem que encontra seu duplo, um ser idêntico a si. — Posso continuar fazendo suposições e dizer que desconfio quem seja a última criatura, mas isto o senhor, leitor, também pode fazer.

— Ou talvez encontre outra criatura, igualmente absurda. Ainda não sei como será o início, mas tive uma boa ideia para o fim. — Chego ao fim com a mesma conclusão que chega o autor: não me importa se não fizer sentido, pois não há nada que o faça.

— O resto não importa, já tenho o mais importante. Sabendo o fim, ficarei mais tranquilo para escrever o começo. E não me importa se não fizer sentido, pois não há nada que o faça. Aproveito que este caderno está chegando ao fim para deixá-lo de vez. Ou voltar a ele, sendo outro. •


— Quem vive sou eu ou você? — Os dois, cada um vive no outro; jamais em si. — E alguém pode viver fora de si? — Não é mesmo só fora que se vive? Pois não sabes que vive justamente quando se enxerga no outro e pelo outro é visto? — E o “Conhece-te a ti mesmo”? — Conhece-te a ti mesmo se enxerga teu reflexo no outro. Só assim pode conhecer-te. Conhece-te através do duplo. (...) “Desconhece-te a ti mesmo” me parece mais adequado. Ele para de repente. Eu viro e o encaro de frente, como se lhe perguntasse: “não me acompanhas?” — Tens pressa até que chega. — Mas não fomos até o final -... — Não tenho paciência para finais. •



O universo não tem finalidade, não existe finalidade a esperar, assim como não há causas a conhecer, é esta a certeza para jogar bem. G ILL ES D EL EUZE

E nada mais era verdade, já que coisa nenhuma era em si verdadeira. Cada um por sua conta a assumia como tal, apropriando-se dela para preencher a própria solidão e dar à sua vida uma consistência qualquer, dia a dia. LU I GI P I R AND ELLO



© B.P. , 2014

Esta é uma obra anônima e apócrifa. Os comentários do editor visam elucidar os textos e imagens encontrados no objeto original, mas não asseguram sua autenticidade. O diário se encontra sob a posse de B.P., em local desconhecido. coordenação editorial, tradução & revisão B.P.


Este livro foi composto em Bembo, família tipográfica editada pela Monotype, em 1929, com base em uma gravação de Francesco Griffo, de 1495 e em Scala Sans, tipo humanista de Martin Majoor, editada em 1949 pela FontShop, Berlin. Foi impresso em papel Color Plus Marfim 120 g/m², Alva Alvura 120 g/m²,Vegetal Branco 92,5 g/m²,Vegetal Vermelho 100g/m² e Couchê 90 e 150 g/m². Sua proporção – de 1:1,333... – coincide com uma das mais adotadas na Idade Média. A primeira e única tiragem foi impressa no mais quente verão de todos os tempos, no Rio de Janeiro, em 2014.




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.