Lunar Maria

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ ESCOLA DE BELAS ARTES - EBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS POÉTICAS INTERDISCIPLINARES

B E AT R I Z V I A N N A R E I S

LUNAR MARIA

Rio de Janeiro Outubro de 2016



B E AT R I Z V I A N N A R E I S

LUNAR MARIA Dissetação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Artes Visuais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito para a obtenção do grau de mestre. Orientador

Prof. Dr. Leonardo Ventapane

Banca Prof. Dra. Malu Fatorelli (PPGARTES UERJ)

Prof. Dr. Carlos Murad (PPGAV UFRJ)



AGRADECIMENTOS À minha mãe, meu pai e meu irmão, pelo amor, companheirismo e apoio incondicional agora e sempre. Nada me falta quando vocês estão por perto. Ao Leo, pelas aventuras até aqui e pelas aventuras daqui pra frente. Cabras, queijos, potes e pinturas ou o que mais quisermos inventar juntos. Às três joias. Que elas nunca se separem do fluxo mental dos seres.



A thing is a hole in a thing it is not. Carl Andre



RESUMO Lunar Maria é uma cosmologia onírica onde os trabalhos e o texto da dissertação desenham uma cosmogonia poética a partir das relações sensíveis entre os gestos do homem e os gestos do universo. No entanto, as escalas e tamanhos desta investigação não são compreendidas em unidades (metros, milhas, anos-luz); são medidas de sensibilidade, inclinação (no sentindo de tender à) e influência, que parecem permear todos os diferentes tecidos do espaço-tempo. Em minha prática, essas medidas revelam-se na busca por afinações e ressonâncias entre materiais que passam, em maior ou menor grau, do disforme à forma, e vice-versa, através de ciclos de energia. Para isso, me aproprio da imagem fabular dos Mares Lunares (Lunar Maria) que dizem de todas as coisas cujo tempo de formação é muito estendido. Através de uma ideia de impressão por contato, que pode se dar no âmbito do tato, da retina, dos ouvidos, da cognição e mesmo do espaço vazio, insinuo outros universos/mares.

PA L AV R A S - C H AV E Lunar Maria, Mares Lunares, Lua, impressão por contato, cosmogonia, poética, escultura.



ABSTRACT Lunar Maria is a dreamt cosmology. Both work and text draw a poetic cosmogony from the sensitive relations between the gestures of man and the gestures of the universe. Here, the scales and sizes are not understood in units (meters, miles, light years); they are sensitivity measures that permeates all different tissues of space & time. In my practice, I work with materials that pass from a shapeless state to form, through energy cycles. The image of the Moon Seas (Lunar Maria) stands for all those things whose shaping time is very extended. Through the technique of imprint by contact, understood in a broad sense, I insinuate other universes / seas.

KEY WORDS Lunar Maria, Moon Seas, Moon, imprint by contact, cosmogony, poetic, sculpture.



I N T R O D U Ç Ã O 1 5 I. A P O L L O 1. M A R E C R A T E R 2 3 2. COSMOGONIA DA PÉROLA 35 3. R E G O L I T O 4 5 4. N A V E 5 5 II. Ó R B I T A 6 7 C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S 7 5 R E F E R Ê N C I A S 8 4 A P Ê N D I C E R O S E T T A 8 7



INTRODUÇÃO Quando os astrônomos nomearam as planícies da Lua, aquelas de tom levemente mais escuro do que outras partes de sua superfície, de Lunar Maria – Mares Lunares –, tinham a impressão de que elas, as planícies, eram feitas da mesma matéria mole de que são feitos os nossos mares. Não sei ao certo quando e como descobriram que os mares da Lua são feitos de pedra e que tiveram origem em erupções vulcânicas, onde o magma desses já extintos vulcões preencheu crateras feitas por meteoros há milhões de anos atrás, mas o nome permaneceu. A coincidência dos nomes, no entanto, revela mais do que a ingenuidade dos astrônomos. Desenha, em contornos muito fluidos, uma relação sutil e de proximidade com o satélite, como se os espelhos dos telescópios enxergassem, lá longe, um duplo da própria Terra, desvanecida apenas pela distância. Planícies, vales, montanhas e mares, um reflexo de nossa própria topologia e geografia, mas tudo um tanto desbotado. Terra em preto e branco, de tão velha que já perdeu até as cores. Lunar Maria é um ensaio sobre uma cosmologia onírica. Por mais que a Lua dê nome à dissertação e, transversalmente, aos trabalhos, ela não é entendida como assunto e nem vista como um corpo celeste que desperta sentimentos de melancolia, romantismo, feminilidade. O satélite não é utilizado como metáfora dos meus gestos e nem explica os experimentos visuais realizados ao longo do mestrado. Não há qualquer importância no fato de sua imagem, já beirando o banal, não aparecer

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aqui, pois há algo de lunar em todos os meus trabalhos. O ensaio poético-visual recebe esse título porque me utilizo de procedimentos que encontram ressonâncias na própria origem dos Mares Lunares e da Lua, que, por sua vez, repetem em escala o que acontece através de todo o universo. A dissertação está dividida em dois capítulos: Apollo e Órbita. No primeiro, que recebe este nome por causa das missões lunares realizadas pela NASA nas décadas de 1960 e 1970, discorro sobre cada um dos experimentos realizados – Mare Crater, Cosmogonia da Pérola, Regolito e Nave –, iluminando aspectos relevantes e apontando intersecções / atravessamentos entre eles. Nesse sentido, proponho um diálogo entre minha prática e aquela de companheiros poéticos, entre os quais, Leticia Ramos, Celeida Tostes, Antony Gormley, Nuno Ramos, Bachelard, Didi-Hubermann, Deleuze, Greene e Cauquelin. Parto de meus trabalhos para a elaboração do texto de dissertação justamente porque é nos experimentos visuais que nascem as questões que dão margem à pesquisa. Dessa perspectiva, a escrita torna-se trabalho, enriquecendo a prática na medida em que se entende como gesto artístico – e não apenas discursivo ou crítico. No segundo capítulo, falo com profundidade de um trabalho sonoro que considero germinal, Música das Esferas, uma vitrola com 8 agulhas que sintoniza os sons do Sistema Solar. Primeiro experimento realizado durante o mestrado, penso que sintetiza os temas abordados aqui, pois foi através dele que me deparei com a impressão por contato e o gesto de dobrar-se. Afinal de contas, o disco também é

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uma superfície gravada, onde o som nasce da fricção da agulha com o revelo em miniatura do vinil. Utilizo todo um aparato técnico – que acaba por sumir, deixando apenas o som como vestígio –, para tratar de questões poéticas que permeiam todas as obras. Assim, Música das Esferas costura uma linha narrativa entre todas as obras, inserindo-as em uma paisagem lunar que é inesperadamente sonora. O som é tratado como aquilo que ativa o espaço expositivo e também os trabalhos, criando entre eles um campo de vibração que não cessa de fazer dialogar aquilo que estava, aparentemente, separado. É justamente a lonjura que faz com que seja possível a vibração, a influência, a ressonância – apenas dois corpos distantes e finamente equilibrados podem entrar em órbita. Nas considerações finais, abordo questões referentes à exposição, que terá lugar na antiga fábrica de meu pai. A montagem termina por se configurar como um novo trabalho, não só porque envolveu a escolha, reforma e organização do espaço, mas porque me fez perceber as relações que se davam entre as obras, revelando ainda outros aspectos em meus gestos. O modo como os astrônomos nomearam as planícies da Lua indica duas coisas. Uma delas é certa tendência de criar paralelos entre tudo o que vive, como se a existência de tudo o que existe apontasse para um mesmo começo. É o que acontece quando se diz que somos todos poeira de estrelas: o fato faz com que nos percebamos parte do cosmos e, de certa forma, capazes de experimentar em nosso corpo aquilo que está acontecendo muito longe. Em Lunar Maria, esse pensamento se reflete em minha vontade de tomar meu corpo como medida sensível do cosmos. Ou seja,


sabendo que estou inserida nessa complexa rede de relações e fenômenos, como não acreditar que entre aquilo que acontece em um aglomerado de estrelas e o modo como meus cabelos se comportam ao acordar não há uma ligação qualquer? De forma objetiva: quais são estes gestos que realizo que de alguma forma se repetem, em outra escala, cosmos afora? Outra, é a origem geológica dos Mares Lunares, apontando para a impressão por contato, assunto sobre o qual me debruço na dissertação. Didi-Hubermann dedicou todo um livro para tratar do tema (2008), amplamente discutido sob diversas e distintas perspectivas. Em minha prática, o interesse por este procedimento surgiu quando comecei a imprimir o formato de algumas pedras em nacos de barro ainda mole. O gesto simples me revelou uma infinidade de questões que envolviam o molde, a coisa que molda, o espaço que existe entre essas duas instâncias, o sonho de se estar nessa cratera em miniatura, o contato íntimo que se dá entre dois corpos que se pressionam mutuamente, etc. Cada um dos experimentos visuais aqui desenvolvidos abordam o tema por um aspecto, pondo em evidência que a impressão por contato não está restrita ao tato, mas pode se dar na retina, nos ouvidos. Esses eixos de pensamento e processo evidenciaram-se conforme dois gestos começaram a aparecer e repetir-se em meus trabalhos. O primeiro deles é o dobrarse, que fala de algo que precisa ser visto / conhecido de muito perto; uma íntima investigação. Surgiu em Música das Esferas, onde era preciso se dobrar sobre a vitrola para ouvir o som dos planetas – som muito pequeno que dizia, na verdade, dos sons cósmicos (muito grandes, porém inaudíveis). O equipamento, sem amplificação, instigava uma aproximação bem marcada, pois só assim se conseguia ouvir plenamente o ruído que nascia do disco. Logo ficou claro que não era o cosmos que estava ali, pequeno, mas era eu que, enorme, podia segurar o universo com as mãos. Essa nova medida das coisas possibilitava que eu me colocasse em paralelo sensível com um outro tempo, que é o tempo estendido das coisas muito antigas. Foi esse primeiro movimento que me fez perceber que meus gestos pequenos, inseridos na escala humana, podem influenciar / exercer alguma influência sobre o cosmos. O segundo, foi o da impressão por contato, quando repeti, em outra escala, o impacto do meteoro sobre a superfície lunar. O gesto era muito simples e me parecia primitivo ou infantil. No entanto, é resultado de uma técnica completa e complexa; um processo anacrônico (pois faz dialogar materiais e existências distintos) que é repetido desde a pré-história, mas que de modo algum remete àquela época. (didihubermann, 2008) O fato de ser um gesto anacrônico despertou meu interesse, pois ao tratar dessas inversões constantes de escala, eu também falava no tempo dos materiais, tempos do gesto, tempos do cosmos, que não obedece aos relógios (tempo cronológico). Ao contrário, vem e volta – é circular –, apontando para transformações químicas e físicas, expansões e retrações, explosões e colapsos, inícios e fins. Ambos os procedimentos adotados indicavam que minha prática artística não se inseria em um continuum de gestos humanos, mas cada movimento nessa escala reduzida se afinava com algum acontecimento cósmico; cada exercício encontrava

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ressonâncias no universo, como se meus gestos acontecessem em consonância com aqueles outros (e vice-versa). Conforme fui realizando os experimentos, percebi que meus interesses giravam em torno de materiais que passavam do disforme à forma através de algum ciclo de energia, tais como o barro, o gesso, a parafina. Todos materiais nos / com os quais poderia realizar impressões por contato. Os Mares Lunares apareceram, então, como pressuposto fabular: o modo como surgiram / nasceram envolvia tanto a impressão por contato quanto esse tomar forma com o qual trabalhava. Depois que os meteoros imprimiam a forma de seus corpos e forças na superfície da Lua, o magma de um vulcão em atividade completava as crateras, assumindo sua forma e endurecendo lentamente. Todos esses materiais, portanto, eram matérias formadoras e repetiam, em diferentes tempos, aqueles processos cósmicos nos quais estava interessada. Era curioso me inserir na escala do muito estendido, vendo a olhos nus o gesso endurecer numa velocidade, a parafina noutra, o barro noutra ainda. Nesse sentido, a Lua atuou como uma espécie de laboratório cósmico à distância. É importante ressaltar que esse afastamento natural é necessário, pois é aquilo que se chama de vácuo, espaço ou substância intangível que permite a existência das coisas, visto que de outro modo elas “não saberiam onde ficar nem através do que se mover” (cauquelin, 2011, p. 41). A lonjura possibilita e revela as influências e ressonâncias entre os corpos. É, portanto, um espaço de vibração, uma lacuna sensível que parece adensar uma falta, como exemplifica Rabiqueau, quando postula

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que as estrelas seriam nossos raios visuais encontrando bolhas de ar na atmosfera e a Lua, “um mero reflexo do fogo solar na abóboda celeste”. (bachelard, 1996, p. 35) Ao desaparecer com os astros, dando à visão o poder de materializar corpos, o cientista cria um espaço denso, tátil e vazio, de onde brotam – desse olhar que o percorre e escrutina – estrelas, luas, planetas. É também essa distância que encurta o vão entre leveza e violência e faz com que meus gestos muito sutis (dobrar sobre uma vitrola, acariciar uma fotografia, imprimir uma pedra em barro) sejam equivalentes àqueles dos meteoros, dos vulcões, dos estratos em atrito, etc. O afastamento distorce as escalas, fazendo do pequeno, grande e vice-versa; quando se olha de uma certa distância, tudo parece caber na palma das mãos. Em Mare Crater, o que se vê é um corpo de forma indefinida, acinzentado como a Lua, que se desfaz lentamente sobre um fundo negro. Talvez, essa imagem se insira em uma coleção mental de imagens do cosmos, mas ela não é um retrato lunar ou de qualquer outro corpo celeste. Fala, de forma sutil, sobre os processos de erosão e esfarelamento porque passam todos os corpos, revelando de forma poética esse ciclo no qual tudo se insere, onde se está preso entre inícios e fins, nascimentos e decrepitudes. O vídeo em loop também aponta para um tempo circular e anacrônico que conversa com o próprio gesto que deu origem ao objeto que aparece na imagem, gesto que se repete desde a pré-história, entre os homens, e há tempos incontáveis, desde o início do universo.


A investigação continua em Cosmogonia da Pérola, onde crio um duplo de meu rosto e o cubro com inúmeras camadas de parafina. O rosto feito de gesso (que já é fruto de uma série de procedimentos de impressão por contato, de uma longa produção de pares positivo / negativo) se torna matriz para outra coisa: embrião de uma forma mais arredondada, que ainda lembra um rosto, mas indiferenciado. Aqui, a Lua se faz ver no branco do objeto, que é o mesmo branco da pérola, mas também nesse crescimento que se dá por camadas (os Mares Lunares nasceram assim), pelo acúmulo de matéria sobre uma superfície. Esse acúmulo também conta uma história – é uma condensação de tempo que pode ser perscrutado se ali se cava um buraco, como as camadas de núcleo de gelo no Ártico ou os estratos geológicos à mostra nas falésias, ao mesmo tempo que as camadas inferiores ainda trabalham. E para se observar em detalhes as pequenas bolhas e rachaduras que se incrustaram entre uma camada e outra, é preciso ainda aproximar-se do objeto, retomando o gesto da dobra. O que engatilhou este experimento visual foi um exercício no torno, onde um pequeno grão de areia ou pedrisco modificava / ditava a forma do objeto final quando impunha uma variação de pressão de meus dedos sobre o barro. Já aí, tratava disso que continua a trabalhar desde dentro, influenciando ainda as camadas mais superiores do corpo, como placas tectónicas que alteram constantemente a forma e a altura das montanhas (o Everest se moveu 3 centímetros para o sudoeste depois do último grande terremoto no Nepal, em 2015). Estes primeiros trabalhos se configuram como contatos iniciais com essa matéria que toma forma a partir de uma força. Talvez tímidos, eles estão na origem de questões que apareceram durante o mestrado e que permanecem sem resposta. No entanto, Regolito, o terceiro experimento de que falo aqui, surgiu antes desses dois. Comecei a interferir em um livro com imagens das obras de Rodin em agosto de 2014, no primeiro mês de aulas, a partir de uma provocação em sala, mas demorei mais de um ano para retomar o trabalho, com a importância que lhe devia. Foi uma felicidade quando consegui alinhar os discursos e poéticas, pois percebi que o gesto dourado era também impressão por contato. Com a mão cheia de cola, eu tocava a imagem como se tocasse o objeto esculpido representado na fotografia; não procurando seus contornos, desenhando suas formas, mas tentando igualar meu gesto com o gesto do escultor, cujas mãos se imprimiram de forma tão marcante sobre quase todas suas esculturas. Quando cobria a superfície com a folha de ouro, ela obedecia a cada reentrância e saliência deixadas pela cola, dando a ver, por vezes, minhas impressões digitais. O conceito do infrafino, forjado por Duchamp, tornou-se importante, aparecendo como o espaço do contato entre minhas mãos e a superfície do papel – e entre minhas mãos e outros materiais, nos trabalhos realizados – e, de forma poética, entre meus gestos e os gestos do artista, entre meus gestos e os gestos do cosmos. Tomei a liberdade de utilizar essa palavra de forma aberta e imprevista: proponho que se todas as coisas nascem de processos de impressão por contato e se o que separa duas coisas advindas de um mesmo molde é um infrafino, então ainda guardo com o universo esse mesmo espaço de distância.

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Nave foi o último experimento visual que realizei no contexto do mestrado e ainda está em fase de projeto. A princípio, era uma investigação do “estar de pé”, algo que marca a existência humana e a diferencia de todos os outros seres vivos. O objeto era feito de concreto em um molde de madeira e tinha a minha estatura e o meu peso, apesar da forma geométrica, que em nada se assemelhava à humana. Logo comecei a me interessar mais pelo fazer e pelo processo de modelar diferentes materiais do que pela forma do objeto. Percebi que a impressão por contato estava presente em dois sentidos: primeiro, no próprio fazer, que ou envolvia preencher um molde ou modelar o barro com as mãos; segundo, na ideia de que aquele objeto seria uma impressão por contato de mim, quando decidi utilizar as medidas de meu corpo como referência para a forma. Nesse ponto, já havia percebido que ao utilizar minha aparência como modelo, queria dizer de algo que é comum aos homens. A mesma indiferenciação alcançada em Cosmogonia da Pérola é vista aqui. A ideia de criar um objeto cuja forma se assemelhasse à humana, que encontra ressonâncias no conto bíblico de Adão, ganhou força quando migrei do concreto para a argila. Richard Serra diz que quando se tenta fazer o mesmo feitio com diferentes materiais, logo se percebe que o que predomina não é a forma, mas a “matéria da matéria, o material da matéria”. (ims, 2014) O barro me proporcionou uma proximidade maior com a tomada de forma, uma vez que eu poderia modelar aquilo nas minhas mãos, conforme desejasse. De algum modo, me aproximou de meu próprio discurso, mesmo que a ideia de molde

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e impressão por contato aqui não fossem tão óbvias. O projeto desenhado para Nave envolve também a construção de um forno capaz de acolher aquele objeto (que é grande demais para fornos cerâmicos convencionais). O fogo, nesse contexto, vem dizer da centelha que dá vida aos materiais inorgânicos,

* Golem é um ser mítico, associado à tradição judaica. No folclore judaico, o Golem é um ser animado feito de material inanimado, muitas vezes de barro, trazido à vida através de um processo mágico.

como no mito judaico do Golem, * e das trocas de energia que acontecem através do espaço-tempo cósmico. Toda mudança de estado se dá por meio de um ciclo energético e isso fica claro quando o barro vai ao forno, para ser devolvido à pedra que era. Por fim, como um apêndice à dissertação, escrevi sobre a sonda Rosetta, objeto que esteve comigo durante todo o mestrado, mas de cuja existência só me dei conta nos últimos meses de pesquisa. Construída pela ESA (European Space Agency), tinha como missão acompanhar e examinar o cometa 67P / Churyumov-Gerasimenko, que orbita o Sol, caminhando entre Júpiter e a Terra. Foi lançada em 2004, mas alcançou o corpo celeste no dia 6 de agosto de 2014, mesmo dia em que comecei minhas aulas de mestrado. A missão terminou com uma colisão planejada e bemsucedida, no dia 30 de setembro de 2016, pouco antes de minha defesa. Uma vez que se observa as imagens daquele corpo estranho, de forma e escala indefinidas, percebe-se que fazem parte de uma mesma coleção imagética / imaginária destas produzidas em Lunar Maria. Conforme se avizinhavam ao sol, Rosetta estudava os efeitos do calor da estrela sobre as camadas de gelo na superfície do cometa, aproximando-se, poeticamente, de minhas próprias fabulações e devaneios do esfarelamento, da crosta, do desgaste. O impacto final se configurou


como uma impressão por contato mesmo que o resultado produzido permaneça eternamente desconhecido, lembrando do buraco em Mare Crater, do molde em Cosmogonia da Pérola e dos gestos realizados em Regolito e Nave. Por certo, Rosetta seria um título igualmente apropriado para a dissertação, caso tivesse encontrado a estória em outro momento. Lunar Maria poderia ter também recebido o nome de um aglomerado de estrelas, de uma galáxia longínqua, de um buraco negro, de uma partícula quântica ainda não descoberta, de um inseto cuja existência Darwin previu a partir de uma flor, de um fenômeno óptico banal. No entanto, isto apenas aponta para aquilo o fato de que todos os corpos parecem se originar da mesma maneira, de procedimentos que se repetem através do universo, do continuum de dimensões e escalas. Portanto, Lunar Maria é um conjunto de experimentos visuais / textuais / gestuais que investiga, a partir de um viés sensível, as relações entre os corpos neste espaço cósmico, vazio e denso, pleno de possibilidades.

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I. APOLLO M A R E C R AT E R Um objeto sem escala e de formato indefinido parece desfazer-se aos poucos, contra um fundo negro de profundidade inescrutável. Um olhar atento revela pequenos fragmentos de material acinzentado se desagregando do corpo do objeto, percorrendo uma curta trajetória descendente para, então, se depositar, como que suspensos, em sua periferia. O tempo da queda é estranho aos olhos, que, indecisos, não conseguem decidir-se entre uma matéria muito leve, como pluma, ou um meio muito mais denso. O próprio meio responde, dizendo que há um aspecto tátil na invisibilidade daquele espaço: talvez o preto da imagem aponte para a matéria escura que, apesar de não aparecer aos sentidos e não interagir com a matéria comum, influencia, através da gravidade, as trajetórias de estrelas, galáxias e aglomerados. (tyson, 2015) Parece que os processos cósmicos responsáveis por desmanchar os corpos se repetem ao longo de todo o continuum de tamanhos e dimensões, se fazendo valer na fissão nuclear ou na explosão de uma estrela. O objeto que continuamente se esfarela no vídeo pode ser muito pequeno, e o desfazimento pode estar acontecendo dentro de uma concha, um recipiente, um estômago, mas a sutileza com que se movem os fragmentos e a incerteza de sua forma – rochosa, orgânica, cinzenta – fazem pensar que aquilo pode ser muito grande, como se visto à distância. O objeto permanece sem escala não porque a percepção é incapaz de encaixá-lo no continuum,

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mas porque aquilo que se vê parece puxar as rédeas de todo um resto que permanece invisível. Ao olhar para aquele corpo que se desfaz, o que se imagina é um meteoro distante, um grão de areia num microscópio, os dois ao mesmo tempo. Ver, então, se torna “sentir que algo inelutavelmente nos escapa”, (didi-hubermann, 2010, p. 34) pois ao observar aquele lento e infindável desmanchar, logo se percebe que o que se olha não é tanto aquele objeto, mas alguma outra coisa que se revela naquele volume, algo que também se desfaz, mas que nem está escondido na imagem, nem é alguma coisa que a utiliza como metáfora. Um vazio que o permeia, penetra, invade; algo que faz do objeto um vazio, como um recipiente capaz de acolher tudo o que se insere na sequência de dimensões – ao mesmo tempo, agora. Se “a experiência familiar do que vemos parece na maioria das vezes dar ensejo a um ter”, aqui o volume não pode ser completamente apreendido / tomado pelo olhar, pois há algo ali que não se insere nesse âmbito. O volume mostrador de vazio apenas indica que quando se olha para a imagem, o que se vê não está ali: parece que ela é ressonância de alguma coisa mais distante, revelando uma espécie de influência entre o lento desfazer do objeto e o cosmos como um todo. É nesse sentido, de que algo da imagem nos escapa, que “ver é perder”. (didihubermann, 2010, p. 34) A existência / vida das pedras, pontuada de uma violência sem tamanho dadas as inúmeras colisões que sofre, desperta em mim um devaneio do esfarelamento. Durante sua vida milenar, a matéria vai perdendo corpo: a montanha de cume anguloso, depois de eras de intempéries, torna-se monte arredondado; a pedra que rola barranco abaixo se transforma, em um instante, num aglomerado de pequenas pedrinhas, para se desfazer, em mais um ou dois movimentos, em pedras ainda menores. O contato do tempo trata de reduzir ainda mais o fragmento mineral, que de pedra vai a seixo, cascalho, areia, silite e barro, depois de 400 mil anos de desagregamento continuado. E o que acontece com este material rochoso, submetido às condições atmosféricas terrestres, é um relevo – um grifo – do que acontece com o universo. Toda a matéria, em atrito com o espaço, se desagrega (em períodos mais ou menos longos) para então agregar-se novamente, agora em outra configuração. Em Mare Crater, as partículas desprendem-se infinitamente. Apesar do desfazimento contínuo, nada se modifica: a coisa permanece a mesma, inalterada apesar desse processo de transformação. O devir suspendeu-se, está suspenso nele mesmo: nem devir meteorito, nem devir poeira de estrela, mas preso a meio caminho. Transmutação que não teve início e nem terá fim, que não nasceu e não cessa. E por não se interromper ou se encaminhar para um final, é também desprovida de sentido. Quase invisível, visto que permanece; que atravessa (“per”) o tempo e fica (“manere”) como um mantra que se deixa de ouvir, depois de tantas repetições. O ritmo em que caem os fragmentos é quase sonoro, um som perfeito que por ter nascido antes de qualquer ouvido, não pode ser escutado ou entendido. (schafer, 2011) Movimento perpétuo, o cair perde seu propósito: a trajetória das partículas já não informa / dá forma a coisa alguma.

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No centro deste objeto que se desfaz no presente, o que se vê é uma cratera, um vestígio de algo que já não está mais ali, como a marca aberta no substrato pelo impacto de um meteoro ou a contra-forma de um fóssil retirado do solo. Este buraco é também um vazio que aponta para outro momento, para fora do tempo circular que o loop inaugura, para a existência e desaparição do corpo que o ocupava. Se constitui, portanto, como uma segunda camada de desfazimento, uma lacuna de tempo, dizendo daquilo que veio antes, cuja existência se revela numa falta, num não-ser. A cratera é, ao mesmo tempo, indício dos gestos e processos cósmicos que lhe deram origem – e parecem criar rupturas no tempo, abrindo vãos que continuarão guardando a forma e força do meteoro desaparecido – e emanação desse corpo ausente. Pois um vestígio não é necessariamente um vazio, mas um vazio é quase invariavelmente um vestígio, visto que só se sabe vazio aquele que já foi ocupado, que ainda o será ou que, ao menos, poderia ter sido preenchido. Os mares lunares são resultado de impactos de corpos celestes sobre a superfície da Lua. As crateras não são o negativo da pedra que lhes atingiu, mas de uma estrutura que deve ser entendida como algo que não se limita a sua extensão física, englobando também sua força de impacto: o meteoro. A cratera, portanto, é imagem e contra-forma desse campo de forças meteórico, de um corpo que existe no tempo, de uma partícula de universo definida por seu tamanho e peso, sua velocidade e trajetória. Em Estudo para Holografia (2015), Leticia Ramos constrói uma pequena caixa

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de acrílico transparente onde projeta a imagem tridimensional de um meteoro. O que os olhos percebem é uma ilusão de ótica; um objeto sem corpo, translúcido, encerrado naquela redoma vitrificada. As pedras lunares, quando trazidas para a Terra, são preservadas em pirâmides de resina transparente, para que não entrem em contato com o ar, a gordura das mãos, a poeira. A aparente semelhança entre estes objetos mostra que tanto o meteoro de Leticia Ramos quanto as pedras recolhidas pela NASA são preciosos, intocáveis. Estas, apesar de possuírem corpo, são volumes mostradores de vazios no sentido de que revelam aos olhos o mesmo aspecto inelutável de que se falava anteriormente; são vestígios que apontam para o caráter inacessível e misterioso da Lua. Aquele, o meteoro holográfico da artista, é também vestígio, mas marca de um corpo que jamais esteve realmente ali: aquela imagem ocupa um lugar no tempo, mas não no espaço. No espaço entre as quatro placas transparentes de acrílico, o que resta é um vazio que nunca se deu conta da existência do meteoro. Parece que o meteoro holográfico de Leticia Ramos trata, portanto, desse mesmo aspecto inelutável das pedras lunares. Quando se olha para um fragmento celeste, seja ele um vestígio de meteoro ou de pedra lunar, não se está vendo aquele objeto que, por vezes, é muito desinteressante. Novamente, olhase para algo que apenas aponta para alguma outra coisa, pois ver é mesmo perder. Em outra obra da artista, Nós sempre teremos Marte / Meteorito I (2014), o meteoro também aparece como um vazio: na série de fotografias, uma mancha branca, cujo formato anguloso e irregular lembra o de uma pedra, parece rasgar o fundo negro. O que suscita a imagem do meteoro não é apenas a sua forma ou


Estudo para Holografia (2015), Letícia Ramos.

Amostra de pedra lunar, recolhida durante a missão Apollo 7.

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Nós sempre teremos Marte / Meteorito 1 (2014), Letícia Ramos.


o brilho, mas a ideia de que sua passagem feriu a película do filme, abrindo uma cratera na fotografia. O vazio, portanto, é vestígio da trajetória e força de um corpo e o próprio corpo. De fato, parece que os meteoros existem nesse estranho limite / lacuna / gap) entre o vestígio do corpo – pedra de aparência corriqueira – e o vestígio do tempo – cratera que é a contra-forma de um campo de intensidades. Tanto em Mare Crater quando nas obras de Letícia Ramos, o meteoro aparece apenas enquanto vestígio de si. O que se vê, de fato, é apenas sua ausência; uma falta com a forma de um meteoro. Aqui, a cratera é um indício de cada gesto, cada força, cada corpo, nos vazios que permeiam esse volume estranho. Se o desfazimento incessante desenhado no vídeo não é retrato acurado de nada específico, visto que tudo se insere numa flecha de tempo, inexorável, talvez o loop diga de um delicado equilíbrio de forças, daquilo que dança entre inícios e fins, gêneses e degenerescências, numa fina alquimia onde é preciso começos constantes, fins constantes. Alguns físicos acreditam que o ritmo de expansão do universo está decrescendo, indicando que, quando sua energia se esgotar, ele encolherá até se tornar novamente uma singularidade, como no momento do Big Bang. Então, uma nova explosão dará início a um novo universo, que existirá por bilhões de anos até se extinguir novamente. (gleiser, 2006) O fluxo de energia acontece, como se o cosmos inteiro respirasse, mas o gesto cíclico não aponta para o futuro: diz das coisas que são permanentes em sua constante mutação – a única coisa que permanece é a impermanência.

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O loop indica uma circularidade possível, mas é apenas no próprio trabalho que o observador apreende um tempo que, além de circular, é também denso porque se percebe que o que se vê é um acúmulo de instantes passados, presentes, futuros. Se aquilo que se desenrola ainda o fará infinitas vezes, então a noção de repetição dá lugar a sensação de que todos eles estão sempre presentes. É, portanto, o próprio trabalho que coloca os gestos – tanto os cósmicos quanto os meus – em uma sequência de outros gestos que se recusa a traçar um caminho que vai em direção a qualquer coisa, mas que se acumula verticalmente. Assim como a repetição parece apagar o passar do tempo, ela também embaça a relação de causalidade que os gestos sugerem, colocando-os, todos, sempre no agora – onde vetores, forças e impactos continuam atuando, dando forma àquilo que, lentamente, volta a assumir o que era. Portanto, o objeto que parece se desfazer na imagem é anacrônico. Ele é um “presente reminiscente, visual e tátil de um passado que não cessa de trabalhar”, (didi-hubermann, 2008, p. 13) recusando-se, de várias formas, a inserir-se na cronologia habitual. O gesto que lhe deu origem é também anacrônico. Moldar o barro com as palmas das mãos e, então, produzir uma marca pela pressão de um corpo sobre uma superfície, não é reproduzir em um contexto contemporâneo um gesto primordial, originário, mesmo que ele, de fato, remonte ao período préhistórico. A impressão por contato não é primitiva, mesmo que simples de ser produzida. Utilizar essa técnica é colocar para trabalhar uma complexidade de tempos que não diz respeito apenas a sobrevivência processual da coisa através dos séculos, mas às especificidades dos materiais e dos gestos – continuamente


justapostos, interferindo-se mutuamente. Também não é repetir um gesto que se deu há milhares de anos, atualizando a prática com conhecimento de causa, mas surpreender-se quando um aspecto imemorial “encontra uma prática atual” (Ibid., p. 14), revelando que o pensamento criador é e está sempre novo. Na série Ferramentas (1981), Celeida Tostes cria objetos que se assemelham com instrumentos pré-históricos, como pontas de lanças e outros corpos afiados. Mesmo que se pareçam com aqueles antigos, são inegavelmente contemporâneos. Também o gesto da artista é contemporâneo e talvez seja justamente ele que aproxima sua obra dos utensílios primitivos, mais ainda do que suas formas. Celeida se coloca num lugar de ingenuidade, de quem aprende ludicamente através do tato, fazendo colidir o antigamente com o agora, criando, portanto, um anacronismo. Em Mare Crater, aprendo com as mãos as forças e formas da superfície lunar e dos meteoros; é o tato, ou aquilo que vê através dele, que me coloca em paralelo com um outro tempo – muito mais antigo e lento – com uma outra escala – enorme, quase inimaginável. Através desse aspecto anacrônico que o permeia em âmbitos diversos, Mare Crater coloca em jogo dinâmicas de sobrevivência que deixam de dizer do objeto para dizer das relações cósmicas entre todos os corpos. Os planetas, os meteoritos, os pedriscos, os grãos de areia, o barro, guardam, no fogo de seus íntimos, histórias de dilapidações violentas estendidas ao longo de eras geológicas inteiras, aproximando cada fragmento mineral de um fluxo infinito de existência. Uma rocha, seja qual for seu tamanho, é acúmulo de sobrevivências – a dela própria, em seus processos de fragmentação, e a de todos os seres que lhe alteraram os rumos, marcando a superfície mineral com sinais permanentes de tempos que correm em velocidades distintas. A impressão por contato “é antes de tudo a experiência de uma relação” que sobrevive no objeto. (Ibid., p. 33) Ela diz de um instante no tempo que se eterniza no desgaste, seja através de uma linhagem de gestos suaves que adquirem violência por sua constância – um gesto brisa que é capaz de marcar a superfície, um sopro de cada vez, como aquele que apagou os dedos dos pés de São Pedro, na Basílica do Vaticano – ou através de um gesto único, grave, que grava a superfície de forma indelével, como um meteoro que atinge a Lua, alterando sua forma e existência em um curto intervalo de tempo. A marca que se imprime sobre a superfície do objeto no vídeo não é, então, diferente dos pés do santo ou da colisão de um meteoro, pois todas apontam para a relação do substrato com uma matéria dura por conta de uma força imposta. Duchamp forjou o conceito do infrafino para falar da lacuna que se faz ver nos jogos de impressão por contato. Entre o molde e a coisa modelada, o espaço que existe é infrafino, permitindo que um informe / dê forma ao outro, numa relação que beira o íntimo. Esse intervalo é infrafino no sentido de que passa quase despercebido, mas é ele o responsável por produzir a diferença que existe entre dois objetos nascidos do mesmo molde, que é talvez das mais sutis – ainda assim, eles são “dois indivíduos que, apesar de muito semelhantes, serão afetados por um valor de lacuna, de uma diferença infrafina”. (Ibid., p. 281)

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Ferramentas (1981), Celeida Tostes.

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Objetos com incisĂľes em forma de conchas e objetos naturais recolhidos pelos homens de Lascaux.

Imagens produzidas pela sonda Rosetta e, no meio, um frame do vĂ­deo Mare Crater.


Dentro da caverna de Lascaux, na França, foi encontrada uma coleção de conchas pertencentes aos homens do período neolítico. Os arqueólogos perceberam que em meio às conchas recolhidas da natureza (objetos retirados do ambiente / readymades) misturavam-se impressões por contato (fósseis, impressões realizadas pelo tempo geológico) e formas esculpidas (objetos de arte). Colocar todos esses objetos numa só coleção, apesar das características visuais que os diferenciam, aponta para o fato de que entre eles há aspectos indissociáveis. O espaço entre a concha real e aquela esculpida está no nível do infrafino, pois a impressão por contato, nesse nível bem mais sutil, diz mais da visão e do gesto do colecionador do que propriamente da técnica utilizada. Ele escolheu esses dois objetos distintos para fazer um “relevo” da mesma coisa, no real. Portanto, é como se eles fossem fruto de um mesmo molde e o que os diferenciasse fosse aquele mesmo espaço infrafino de que Duchamp tanto falava. Da mesma forma, as imagens produzidas para Mare Crater se inserem numa coleção de imagens do cosmos. Quando o vídeo já estava pronto, encontrei algumas fotografias realizadas pela sonda Rosetta, * que foi construída e lançada pela ESA com

* Ver Apêndice.

a missão de fazer um estudo detalhado do cometa 67P / Churyumov-Gerasimenko. O objeto retratado é, assim como este, em meu trabalho, sem escala e de forma indefinida. A qualidade estética das imagens é muito semelhante à do vídeo – preto e branco, alto contraste, baixa resolução – e é também essa qualidade “espacial” que coloca ambas, como os objetos encontrados em Lascaux, numa mesma coleção. Portanto, isto que se desfaz na imagem não é diferente de um corpo celeste. Na verdade, o que os separa é um espaço infrafino e a distância que se coloca entre essas duas dimensões / escalas é, mais do que uma medida em quilômetros, um espaço sensível. Um espaço que trabalha aqui e lá e que trata de fazê-los tocarem-se através do tecido do espaço-tempo, revelando que dançam entrelaçados e influenciam-se apesar da distância. Se as coisas se inserem em processos continuados de moldar e serem moldadas, separando-se umas das outras por lacunas quase inexistentes – que crescem conforme os procedimentos de impressão se multiplicam –, então a diferença entre elas deve permanecer infrafina, mesmo que apenas neste âmbito sensível, revelando um senso de unidade entre tudo o que há no cosmos. O espaço que existe entre a experiência da relação do meteoro sobre a superfície lunar e da pedra sobre um tanto de barro é, na verdade, infrafino. A Lua e o meteoro acariciam – carinho que é resultado de um contato sutil, íntimo – o objeto que se desfaz em Mare Crater, transcendendo escalas e dimensões; uma espécie de influência entre os corpos. Quando o objeto moldado no bojo minhas mãos desaparece para dar lugar a sua imagem, o resultado não é um simples retrato planificado daquele corpo tridimensional, mas algo novo. Ele tem sua existência (re)condicionada pelo meio e pode existir no tempo de forma diversa (como sugere o loop). Isto que aparece / nasce no vídeo foi moldado pelo objeto tridimensional (que, por sua vez, foi moldado pelas minhas mãos, pela pedra, pelo tempo geográfico). Então, o que separa essas duas instâncias é também um espaço no nível do infrafino. No entanto, é preciso lembrar que a impressão por contato sempre dá origem a um oposto, a uma nova

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superfície que ainda carrega as características da matriz, mas às avessas. Esse oposto não diz apenas da forma e da contra-forma, mas também atua na esfera do sentido e da linguagem. A imagem bidimensional garante ao objeto uma indefinição de escala que se opõe a sua existência tridimensional, definida sempre em comparação a outros corpos. Além disso, coloca em jogo uma nova superfície – não mais aquela que pode ser moldada com os dedos –, a superfície da tela, do vídeo, da película, do filme. Tal superfície também é maleável, mas molda-se com o tempo, na edição. Pode-se mesmo pensar o infrafino no plano temporal, no sentido de que um objeto “não permanece o mesmo após um segundo de intervalo”. (didi-hubermann, 2008, p. 280) Isso aponta para o fato de que os corpos estão sempre afastados de si mesmos, pois suas existências são constituídas de instantes – inúmeras lacunas que se acumulam. Enfim, parece que é mesmo o tempo que dá rumo ao (e molda o) trabalho. O período que o vídeo leva para ser compreendido também entra nessa contagem, pois aqui ele, o tempo, “não se trata mais de um complemento facultativo (...), mas de um instrumento indispensável para quem queira apreender algo que não está [na obra]”. (cauquelin, 2008, p. 91) A expressão que dá título ao trabalho, “Mar Cratera”, faz referência à nomenclatura dos mares lunares, mas aponta também para um espaço recipiente, o substrato côncavo – vazio – capaz de acolher uma enorme massa d’água. Volume em promessa, capaz de se configurar pela justaposição de tempos e gestos cósmicos / sísmicos, de corrente e maré, de forças que viajam, trocam, permeiam. Portanto,

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Mare Crater é um espaço de possibilidade, pois se “não fosse aquilo que chamamos de vácuo e espaço e substância intangível, os corpos não saberiam onde ficar nem através do que se mover” (Diógenes Laércio, Vies doctrines et sentences des philosophes ilustre, in cauquelin, 2011, p. 41). Sob o Mare Tranquillitatis, onde pousou o Módulo Lunar Eagle, da Missão Apollo 11, havia um Mare Crater. Sob o Mare Serenitatis, um Mare Crater. Sob o Mare Cognitum, um Mare Crater. Mar primordial, ele também se esconde sob os mares da Terra, como se para que houvesse um mar, fosse preciso um outro ainda, anterior, original. Na superfície da massa d’água dentro da qual se desfazia o objeto, surgiu uma forma feita de bolhas de ar e minúsculos fragmentos flutuantes de barro que se assemelhava àquela que se desmanchava no fundo. O barro seco e cru volta a ser matéria mole se posto na água. Aquele meio líquido, portanto, também moldava o objeto, mas às avessas – a matéria mole dava forma à matéria dura através de um desgaste. Ao mesmo tempo em que algo acontecia no fundo do recipiente, alguma coisa se dava na superfície: a experiência da relação entre água e barro tornava-se visível a quem visse apenas a camada mais superior do líquido, revelando a influência do meio. Em contato com a água, o Mar Cratera, objeto enrijecido, recipiente de um mar em promessa, reencontra a flexibilidade da massa. A água devolve à pedra seu aspecto maleável, funcionando como aglutinante e emoliente. Quando os devaneios da água e da terra, do que amalgama e do que desfaz / erode, se fundem nos sonhos da mão que amassa, Mare Crater se realiza em plenitude.


Lençol d’água impresso pelo objeto que se desfazia no fundo.

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COSMOGONIA DA PÉROLA

Os Mares Lunares se constituem de inúmeras camadas de magma solidificado acumulados em milhões de anos, dadas as sucessivas erupções vulcânicas. Toda vez que a matéria mole e incandescente jorrava, cobria finamente a camada de matéria dura que jazia ali, represando-se dentro de uma cratera. As camadas de basalto em dois estados diversos de sensibilidade – a lava e a rocha vulcânica – apontavam para uma paciência da sedimentação que parece existir em tudo aquilo que se acumula. Tal como os estratos geológicos da Terra ou as camadas em um núcleo de gelo ártico ou os anéis concêntricos de um tronco de árvore, os depósitos de magma contam – enumeram e narram – o tempo. Cada um diz de uma quantidade de anos, de uma qualidade de existência e de uma essência de vida. Dentro da concha, um grão de areia minúsculo dá origem a uma pérola. Ela cresce a partir de camadas concêntricas que envolvem o ser estranho: estratos finos e lisos de bicarbonato de cálcio que se acumulam para formar uma esfera brilhante. Em escala quase microscópica, a pérola reproduz os Mares Lunares, trazendo para a ponta dos dedos e para a dimensão humana um processo que lá se deu durante milhões de anos. Esta Lua em miniatura (que repete até seu brilho) permite que nos dobremos sobre este nascer que se dá lentamente, neste sonho de sobreposições, influências e sedimentos. Cosmogonia da Pérola, este objeto de um branco leitoso e de formas suaves, divide com os Mares Lunares e com a pérola o seu nascimento em camadas. Do

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mesmo modo, ele também cresceu desde o centro para fora, a partir de uma forma que, conforme coberta sucessivamente de parafina, acabou por se perder. No entanto, aquele objeto que caminha para o redondo ainda leva em seu âmago aquilo que lhe deu origem. No interior daquela enorme pérola branca ainda se encontra o meu próprio rosto, e ele ainda trabalha em cada nova camada de parafina, como um núcleo ou um ovo, revelando-se na superfície ao mesmo tempo em que a molda, deixando adivinhar seu aspecto original no que agora é pura topografia. Este rosto embrião (promessa de uma outra coisa) é “matéria intensa e não formada (...) a matriz intensiva (...) o ovo intenso que se define por eixos e vetores...” (deleuze & guattari, 1997, p. 12) Não são as camadas de nácar que dão forma à pérola, mas o grão de areia: o âmago informa o aspecto externo, através dessa intensidade intrínseca que não diminui conforme crescem as camadas. Meu rosto, portanto, não se limita à superfície onde está gravado o meu aspecto. É, ao contrário, um campo vivo de intensidades, que parece se expandir conforme é coberto pela matéria mole. O rosto que serve de molde, imprimindo por contato a cera que lhe acaricia, vibra ainda na superfície branca do objeto, me revelando uma topografia íntima e distante. Ele se esvai conforme assume um aspecto quase lunar. Transformado numa pérola, afasta-se lentamente daquilo que era, desaparece conforme dá origem a este pequeno satélite. A Lua também se distancia lentamente da Terra, para um dia sair de sua órbita. Para realizar esse trabalho, precisei criar um molde de gesso de meu rosto, procedimento que envolveu uma série de impressões por contato, resultando em incontáveis pares positivo / negativo, cheio / vazio, certo / oposto, forma / contraforma. Primeiramente, foi preciso cobrir meu rosto com gaze gessada de secagem rápida, para a obtenção de um molde em negativo de minha face. Já nesse exercício, pude ver os processos cósmicos daquilo que nasce em camadas, pois meu rosto perdia lentamente os contornos conforme colocava os pedaços de tecido molhado sobre ele. O rosto coberto tornou-se outra coisa; nem mais face, nem tanto topografia, nem tanto máscara. Quando passava a mão sobre a gaze, tentando assentá-la sobre a minha pele, sentia a forma que estava ali embaixo e me surpreendia com o toque. Mais do que um procedimento corriqueiro, senti que aquele era um exercício de aprendizagem do meu próprio corpo, no que diz respeito às suas formas. Também compreendia minha própria respiração, quando ela, ao movimentar sutilmente os músculos de minha fronte, deslocava o gesso seco, fazendo com que aprendesse (e apreendesse) o ritmo de minhas inspirações e expirações. Conforme continuava a preencher os espaços com a gaze, a impressão tornavase duplamente cega. Em primeiro lugar, porque meus olhos ficavam cobertos e era preciso destreza para continuar a pegar uma tira de pano, molha-la e coloca-la sobre o rosto. Depois, porque a impressão por contato é sempre surpreendente, dando origem a alguma coisa imprevista, justamente por ser fruto de um contato – entre molde e coisa modelada – que é escondido aos olhos. Didi-Hubermann (2008) propõe que talvez fosse preciso entrar dentro do molde para se experimentar aquele ganhar forma, mas a verdade é que o processo permanece imprevisível –

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“problemático, inesperado, instável, aberto” (Ibid., p. 33) – mesmo quando o molde é o próprio rosto. Ainda que a matéria mole tenha endurecido sobre minha face, ainda tenho a sensação de que o instante em que ela tomou forma foi perdido, me escapou, que não o soube perceber. No entanto, não há modo mais íntimo de se experimentar o espaço infrafino que existe entre molde e coisa modelada. Ele se dava a ver nas bolhas de ar que se criavam quando me movimentava, mesmo que sutilmente, ou então no vazio que sentia entre minha pele e a gaze, quando esta já havia enrijecido e já não se moldava mais às saliências que subiam e desciam com a respiração. Quando esse espaço se ensaia no próprio corpo, percebe-se que o infrafino, na verdade, é enorme. Aquele intervalo finíssimo, que não tem mais do que alguns milímetros de espessura, fazia eu me lembrar da minha própria pele, dessa superfície que está sempre em contato com o ar (contato que a molda, que nela imprime), mas que não é, por si só, sentida. Se nos procedimentos de impressão por contato está presente “uma capacidade particular de impor à função um tipo de inconsciente técnico”, (didi-hubermann, 2008, p. 35) a técnica aplicada ao rosto, por outro lado, tornou-me muito consciente de minha superfície. A partir do negativo em gaze gessada, criei um duplo em gesso de minha face. O resultado foi um objeto realmente mórbido. Aquele rosto completamente branco, com os olhos fechados e sem qualquer vestígio de sobrancelhas ou cílios parecia uma máscara mortuária. Nunca havia visto uma representação tridimensional de

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meu rosto e aquela aparência sequer parecia com aquilo que estava acostumada a associar comigo. Com alguma surpresa, vi que aquela forma se assemelhava muito ao rosto de minha avó materna, Ieda. Eu já sabia que nos parecíamos, mas foi realmente estranho ter uma comprovação tridimensional do fato. Ieda, 1949.


De repente, pensei que se aquele rosto nasceu de um molde e se parece tanto comigo quanto com ela, isso deveria dizer que nós duas dividíamos também outra coisa, outro molde ainda. Minha herança genética me moldou à sua imagem e o que nos distancia é um espaço a nível do infrafino, como aquele que senti ao colocar a gaze gessada sobre o rosto. É ele que nos aproxima e é também ele que nos torna dois indivíduos: a mais fina diferença faz cair por terra a sensação de que dois corpos são apenas um. Portanto, apesar das semelhanças, somos diferentes e me custa acreditar que ficarei com sua aparência quando velha, pois nossa face viva ainda vibra e a vida, esse aspecto intensivo presente em cada uma de nós, é o que nos torna distintas. O experimento, no entanto, não deixa de ser uma trajetória sensível em direção às feições de minha avó, sabendo que o rosto dela, mesmo que vivo, também caminha em direção a um tipo de apagamento. Se não houvesse algo de muito íntimo nesse procedimento de impressão de rostos, esta não seria uma prática adotada há milhares de anos, dos homens do neolítico aos nossos contemporâneos da Oceania. Um rosto que é, literalmente, a matriz de seu retrato, só pode dar origem a algo perfeitamente individualizado, tornando-se receptáculo de um jogo dialético aberto sobre a invenção plástica, jogo da contra-forma e da forma, jogo da dessemelhança e da semelhança, da desfiguração e da reconfiguração, jogo da forma que desaparece (...) e da forma em formação. (didi-hubermann, 2008, p. 56) Porém, em Cosmogonia da Pérola, as camadas de parafina derramadas sobre o rosto de gesso não pareciam acentuar qualquer individualização. Em realidade, quanto mais camadas eram vertidas, menos detalhes e minúcias apareciam ali, na superfície. Mesmo os traços mais genéricos que aproximavam minhas feições e as de minha avó, desapareciam conforme eu entornava cera líquida sobre aquele objeto. O retrato, forma perfeita e individualizada de um sujeito, caminhava lentamente para a indiferenciação. Aquele rosto único, gravado pelo molde do DNA, pelo tempo de vida, pelos hábitos e trejeitos, parecia dar lugar a algo menos específico. Uma topografia comum aos homens que apaga sem piedade aquilo que os torna diferentes um dos outros. Quando Antony Gormley decide usar o seu corpo como molde para suas esculturas, realizando moldes de gesso que serão utilizados para a construção dos corpos em bronze, ele não está criando para si um retrato. Sua intenção, ele diz, é investigar essa experiência de vida que se dá a partir de um corpo humano. (bbc, 2015) Para o artista, aquela figura não é uma forma de vida individualizada, mas algo indiferenciado que suscita em seus semelhantes questionamentos e inquietações. Aqui, a forma humana é lentamente perdida e a indiferenciação se dá justamente neste relevo que ainda lembra um rosto. O objeto dá margem para que se imagine o que se esconde embaixo. Qualquer feição cabe ali, sob as sessenta e duas camadas

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de parafina, número que também é a quantidade de anos que me distancia de minha avó. Todas as bilhões de faces humanas produziriam objetos semelhantes, apontando para aquilo que unifica a espécie, apesar das minúcias. Porém, durante a realização do objeto, não era possível ignorar que eu cultivava, regando com cera, o meu rosto. O procedimento era simples e os resultados, lentos e sutis. Derretia alguns nacos de parafina em uma pequena panela e depois vertia seu conteúdo sobre o molde, posicionado horizontalmente sobre um gradeado. Quando derramava a cera sobre aquele rosto, eu ainda podia sentir seu calor emanando daquele objeto, como se ele se originasse do próprio rosto e não da cera. Ao mesmo tempo em que o gesto me afastava da forma original da face, ele fazia com que ela ganhasse uma vivacidade qualquer suscitada por aquela quentura branda e natural de um rosto vivo. Um achado arqueológico proveniente da Síria, datado de 6000 a.C., exibe o crânio de um morto como matriz para que fosse modelado seu retrato. Sobre os ossos, ancestrais colocaram barro, fazendo as vezes da carne que faltava. Por vezes, a ossatura ainda se deixa ver entre um pedaço e outro de argila, revelando não apenas aquilo que dá forma a superfície, mas também um acúmulo de tempo próprio do objeto. A vida daquele que morreu, resumida pelo crânio, é de certa forma continuada através desse procedimento plástico: o lugar do morto não é na memória (como imagem, p.e. a máscara mortuária), mas ainda entre os homens, que o homenagearão devolvendo-lhe o que o tempo fez apodrecer – e o barro,

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matéria muito antiga, cumpre o papel daquilo que é o mais frágil, que logo se vai quando se morre. Tanto o crânio quanto essa nova camada que se deposita sobre ele revelam um desejo de permanência, pois o tempo do osso e o tempo do barro são muito mais alongados do que este da dimensão humana. A sensação é de que esse objeto está “a meia distância de um rosto morto (...) e de uma forma em promessa, fetal, um tipo de embrião anguloso no crânio proeminente.” (didi-hubermann, 2008, p. 57) Retrato de algo que já viveu, mas semente de alguma coisa que nasce no momento mesmo em que o gesto artístico – semelhante ao dos deuses – lhe dá forma, a escultura parece colocar o morto no tempo estendido do mineral, onde sua aparência permanece porque seu âmago – o crânio – está bem protegido. Em Cosmogonia da Pérola, se o rosto parece ganhar vida com o calor da cera, sua forma se distancia cada vez mais daquela de uma face humana. O positivo em gesso não serve de matriz, como o crânio sírio, para dar origem a um retrato mais acurado de minhas feições. No entanto, o objeto divide com o achado arqueológico aquele encavalgamento de tempos, onde o acúmulo de camadas (de matéria) parece evidenciar um procedimento plástico que pode se dar naturalmente ou a partir de uma provocação artística. Em Grande Budha (1985), Nelson Félix posiciona seis garras de latão ao redor de uma muda de mogno, no meio da Floresta Amazônica. Conforme a árvore cresce, processo que se estende por centenas de anos, seu tronco absorve as garras, articulando, como diz o artista, a floresta junto à escala temporal, aliando o vegetal à ideia de tempo e turvando essa escala. (costa, 2014) O tronco, que também


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Acima, crânios provenientes de Ramad (Síria), 6000 a.C. Abaixo, Grande Budha (1985), Nelson Felix.

cresce em camadas, terminará por dizer do gesto do artista, quando seus anéis se revelarem marcados pelo latão. É um devaneio do acúmulo que alinha Cosmogonia da Pérola ao crânio encontrado na Síria e à obra de Félix. Conforme derramo a cera sobre o gesso, percebo que ela se condensa em camadas, na parte inferior do objeto. Cada nova película de parafina se


deposita sobre a anterior, evidenciando o procedimento. Do mesmo modo, conforme os milênios se acumulam, as partículas que estavam na parte mais externa da crosta são empurradas para baixo. Essa gênese muito lenta aponta para o fato de que o solo se forma pela sobreposição de matéria e tempo. Sua superfície é sempre tempo presente, atualizando-se a cada sopro de vento, que vem desorganizar os grãos de areia e depositá-los em outra parte. A camada mais superficial é marcada pelo signo das transferências e das trocas, onde cada minúscula partícula vem individualizar o solo, trazendo consigo uma memória de tempo, de lugar, de clima, etc. Cada grão tem origem em um canto e o solo é uma multiplicidade de lugares, acumulados no presente, naquela extensão do espaço. As correntes movem também as terras: 27 milhões de toneladas de areia do Saara atravessam o Atlântico todos os anos para fertilizar a Floresta Amazônica. (garcia) No entanto, aqui o acúmulo se deu em um tempo muito curto; as camadas de parafina distam uma da outra em mais ou menos um minuto, tempo necessário para recolher o excesso de cera que se depositava no fundo do recipiente, fazer uma breve notação que servia de contagem e, novamente, derramar aquele líquido quente sobre o gesso. Parece que meu gesto estava em escala se comparado aos gestos do cosmos. Porém, ambos dizem da mesma coisa: as diferenças no tom do branco ou as pequenas rachaduras que se fazem ver ou algumas bolhas que se instalaram entre uma camada e outra revelam uma sobreposição de procedimentos que é o mesmo aqui e lá. Cada uma das finas películas de matéria represou qualquer essência desse

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instante em que foi retirada da narração habitual dos segundos, quando uma nova camada de cera lhe cobriu. De lá, só retorna se em contato com grande violência, algo capaz de desarrumar o solo e atualizar aquelas bolhas de tempo, encapsuladas entre os estratos. Nao, personagem do livro “A terra inteira e o céu infinito”, de Ruth Ozeky, ao se lembrar das amostras de núcleo de gelo da “atmosfera arcaica de centenas de milhares ou até mesmo milhões de anos atrás”, diz que, apesar do fascínio, fica triste quando pensa “nesses torrões de gelo derretendo e soltando suas bolhas antigas como suspiros minúsculos no nosso ar poluído do século XXI”. (2014, posição 1038) Esta pérola que se parece com um rosto e com uma montanha muito antiga, forma que caminha lentamente para o redondo, foi feita de parafina. A parafina, por sua vez, é um derivado do petróleo: líquido negro e viscoso que nasce no interior da terra em bacias sedimentares porosas (reservatórios escondidos no subterrâneo), fruto da catagênese de querogênio. (wikipedia) É de larga aceitação entre geólogos que ele derive de substâncias orgânicas, lentamente depositadas sob as camadas superficiais da crosta terrestre. Conforme aumenta a temperatura, as moléculas (dos fósseis) começam a se quebrar. Portanto, o processo, assim como este que dá origem ao trabalho, é marcado pelo acúmulo de matéria e tempo. Quando utilizo a parafina para realizar este objeto, não estou apenas fazendo uso de seu aspecto branco e translúcido, que repete o brilho da Lua e da pérola, característica responsável por revelar – de modo muito sutil – todas as camadas inferiores. Também o faço porque a parafina aponta para esta origem que se dá em camadas: uma cosmogonia da


Cosmogonia da PĂŠrola, lado inverso.

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pérola, no sentido de um embasamento teórico que se ocupa em explicar a origem do universo a partir do nascimento estratificado desse corpo minúsculo. Enfim, a parafina também ensina que aquelas camadas represadas no fundo, que até então pareciam estagnadas, ainda trabalham. O petróleo é produto dessa atividade escondida aos olhos, despertando o sonho de que por debaixo das camadas brancas de parafina, aquele rosto de gesso ainda se modifique, trabalhe com o tempo, alterando lentamente a superfície lisa e intocável dessa pérola disforme. Ao atravessar, para baixo e para o centro, os estratos de um corpo celeste ou de uma pérola, não se percorre um caminho que aponta para o passado. A matéria ainda trabalha; cada camada é uma pluralidade de tempos. Em “Viagem ao centro da Terra” (2016), a personagem de Jules Verne sonha em encontrar, nas profundezas do planeta, a vida – viva – que conhecia dos livros. Esperava que os estratos geológicos não apenas narrassem, através de fósseis incompletos, o que se passou, mas que escondessem, entre uma camada e outra, cápsulas luminosas de tempo passado; hábitats propícios para o desenvolvimento da vida pré-histórica, até que mesmo as plantas desapareceriam, dando lugar a rochas graníticas que, sob a ação de um calor intenso, voltariam ao estado líquido, para fluir como lava pelo interior terrestre. A pérola – e tudo o que surge como ela –, portanto, é um ovo; um olho; um Aleph. (borges, 2008) Seu brilho deixa transparecer a luz de tudo o que vive dentro, todas as coisas que, sem se confundirem, revelam-se aos olhos. Neste único centímetro, todo o espaço cósmico que existe. Tudo ainda / já em

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movimento, trabalhando. Instantes passados, presentes e o brilho sutil daquilo que ainda acontecerá, justapostos e coexistindo. Talvez a pérola seja branca porque é a sobreposição de todos esses instantes lumínicos, de todas as cores. Talvez, por isso, Cosmogonia da Pérola seja branco.


REGOLITO Uma fina camada de ouro cobre a superfície monocromática da imagem. A imagem é uma fotografia de uma escultura, ou seja, uma planificação, um achatamento, de alguma coisa que é, em realidade, tridimensional. O volume, portanto, dá lugar às sombras, aos tons de cinza entre preto e branco que os olhos e a cognição aprenderam a enxergar em perspectiva, dando ao plano as características que existem apenas fora dele. Nos intervalos em que a imagem se revela pela ausência do ouro, se enxerga, portanto, um indício do que poderia ter sido um volume. As diferenças de luz indicam relevos e profundidades; desenham formas que se assemelham a dorsos, olhos, cantos de boca, pernas, braços e dedos. Por vezes, não é possível reconhecer coisa alguma, apenas algo que é ou reentrância ou saliência, a depender da postura mental do observador. Será que aquilo que olho, lá longe, é uma montanha, que cresce para fora e aponta em minha direção, ou é, ao contrário, uma cratera que tomba para dentro de si? Os jogos de luz deixam claro: aquilo é montanha e cratera, saliência e reentrância. Os dois opostos (co)existem no plano. O ouro, ao delimitar as áreas expostas, parece desenhar um mapa (como os mapas lunares, tão difíceis de distinguir o que salta e o que entra), contornar ilhas. É ele que transforma as costas da escultura em desfiladeiro, uma barriga em cadeia rochosa. Dessa forma, o ouro dá volume. Ao mascarar, ele cria ou traz de volta a tridimensionalidade perdida na fotografia. Porém, ele traz de volta o volume de um outro modo ainda: deposita-se sobre a imagem. Mesmo sendo uma fina camada,

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uma película, ele está em outro plano, iluminando um gesto que se deu sobre a figura: adivinha-se nos contornos, entre os claros e escuros da fotografia, um dedo dourado aqui, uma palma (ou quase) ali. O toque dourado, iluminando a imagem com seu poder de Midas, desejava tocar não o papel, mas a escultura; desejava, portanto, colocar em paralelo esse gesto lumínico com o gesto criador de Rodin, que soube tão bem imprimir em suas obras o tamanho e o peso de seus dedos, como quem os usa para olhar. O gesto da mão que passeia pela imagem não é assim tão diferente: também ela sonhava em ver melhor, através do tato, fazendo da imagem uma escultura – e quem sabe não o consiga, uma vez que o toque imprime volume, nos dois sentidos já descritos. O gesto é escultórico na medida em que há um aprendizado volumétrico, de espaço, no toque. Uma escultura quase plana, que exige, aí sim, dos olhos, uma atenção muito plena, cuidadosa: percebe-se, quando se chega perto, que as digitais da mão dourada também foram impressas (esculpidas? Modeladas?), não como imagem ou carimbo, mas como volume. Os veios são tão sutis que quase desaparecem, mas a luz (e novamente ela), em sua dança, quando se movimenta aos olhos, revela aquele volume que é mínimo, infrafino, que diz: a mão esteve aqui. Gravou-se aqui como o tal cavalo perdido do rei, que Zadig (voltaire, 2014) encontrou sem nunca o ter visto antes, pois o bicho imprimiu nos bosques o formato de suas ferraduras e, numa pedra, raspou seus freios de ouro, deixando um risco dourado. O gesto, no entanto, não revela nada. Ao contrário, o ouro vem apagar, em sua

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luz do branco, a imagem que jazia ali embaixo. O toque – dourado – diz apenas às mãos o que é que ele vê; a impressão por contato é cega aos olhos, mas talvez diga mais da escultura representada na imagem, de seus volumes / temperatura / textura / sensação ao toque, do que um simples lampejo do olho. Digo que talvez se veja melhor com os dedos do que com as pupilas e talvez por isso seja permitido tocar todas as obras de Rodin quando no pátio de seu museu, em Paris. Aliás, quando me decido por imagens de suas obras, não o faço por acaso. Em seu processo de trabalho, o escultor moldava partes do corpo de seus modelos – tinha mesmo uma biblioteca de membros –, utilizando a técnica da impressão por contato. Em Lunar Maria, é esse mesmo procedimento que parece costurar todos os trabalhos, aparecendo aqui e ali de formas distintas. No entanto, o que se mostra interessante na prática de Rodin não é essa coincidência processual, mas a forma como o escultor trabalhava com esses fragmentos de corpo. Em suas obras de bronze, as marcas de seus gestos dizem justamente de um tato que enxerga. Suas mãos não apenas davam forma às esculturas, mas informavam aos olhos a aparência daquela figura. Aliás, talvez fosse mais sensato dizer que os olhos também davam forma ao tato, em um diálogo íntimo. Curioso é o fato de que o volume que aparece aos olhos (o da imagem, monocromático, truque do olho e da cognição) é justamente o que se encontra nos vazios da mão, nas reentrâncias da palma, que por serem, elas mesmas, uma multiplicidade de volumes, não encostaram no papel. O volume que se revela nasce da mão que não encostou na imagem, de um tanto de palma que não encontrou o


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mesmo tanto de palma de Rodin. As falhas na superfície dourada, ela mesma um volume, é o que revela este volume de segunda ordem, volume que se imprime na retina como um barro que se molda nas mãos. Então, o que aparece aos olhos não está mais longe do gesto de Rodin, ao moldar e esculpir suas obras; e meu, ao cobrir com ouro a imagem numa tentativa de melhor lhe enxergar. A visão é também tato; a luz também se imprime na retina, queimando o fundo do olho em imagem invertida. O olho também toca a escultura. É, quem sabe, o próprio tato da visão, tato luminoso, quem vem cobrir de ouro a imagem, cegando onde ele toca. O Senhor Palomar imagina um mundo sem olhos e percebe: ele, o mundo, é cego! Mas como um mundo cego, se um raio de luz, ao partir do Sol, parece ter nascido para o olho que o espera, e vice-versa? Pontual, um dardo de luz parte do sol, reflete-se no mar calmo, cintila no tremular da água, e eis que a matéria se torna receptiva à luz, diferencia-se dos tecidos vivos, e de repente um olho, uma multidão de olhos floresce, refloresce... (calvino, 1994, p. 19) Um olhar materializado revelar-se-ia dourado, como ouro. O ouro sobre a imagem, portanto, não é apenas um depósito metálico sobre ela: o metal parece ser matéria que existe para ser penetrado com os olhos. O buraco na imagem, então, não é aquele vazio que revela os volumes da escultura, mas as próprias áreas cobertas de ouro, como se elas entrassem na imagem, corroessem o papel e chegassem, finalmente, à escultura, através de estratos de luz revelados aos olhos, a este tato especial que se chama visão. O brilho do ouro, que por vezes impede que se veja a imagem com clareza, é o que aponta para mais um volume ainda: este que se dá no espaço entre o ouro e o olho. Aquilo que cintila sabe escapar da bidimensionalidade, ocupando o espaço vazio entre quem vê e aquilo que se olha. O brilho dá ao vazio um aspecto tátil, como fosse preciso percorrer alguma coisa até chegar a imagem. Charles Rabiqueau, engenheiro-óptico do Rei da França no século XVIII, postulou que as estrelas “são apenas a fratura estridente de nossos raios visuais sobre diversas bolhas de ar” e também a Lua não existe enquanto um corpo, sendo “um mero reflexo do fogo solar na abóboda celeste”. (bachelard, 1996, p. 35) Suas ideias parecem absurdas aos olhos da física moderna, mas é curioso perceber o poder que o autor atribui ao olhar, sendo ele o responsável por dar corpo a tudo o que existe no universo. E, ao passo que desaparece com os corpos celestes, Rabiqueau cria um espaço denso, tátil e vazio, de onde brotam – desse olhar que o percorre, escrutina – estrelas, luas, planetas. O ouro, no entanto, não revela apenas a luz do olho, mas também a do olho da terra. Há, no solo, uma luminosidade represada, que mesmo depositada sob toneladas de sedimentos, parece guardar ainda uma semelhança com o Sol, com a clara superfície terrestre. O brilho do metal é quase despropositado quando se

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imagina um mundo sem olhos ou quando se pensa nas jazidas jamais descobertas. Porém, se olho e brilho brotam juntos, então o ouro também olha. Bachelard (2009) diz que o olho é um princípio cósmico. O ouro, quando brota do seio da terra, desperta com seu brilho luminoso um tipo qualquer de identificação com nossos próprios olhos, como se ambos dividissem de uma mesma essência. Pois o olho também tem um brilho, que é o mesmo do brilho solar, a “pupila do mundo”, o “Deus visível”. Quando diz que “os planetas giram ao redor de um Olho de luz, e não de um corpo que o atrai pesadamente”, (Ibid., p. 176) o autor organiza o cosmos segundo um princípio não de forças e leis físicas, mas de luminosidade. O brilho imprime nos olhos a dança do universo e os olhos se identificam com todas as coisas que compartilham dessa luz que parece partir de dentro. Não à toa, portanto, algumas máscaras mortuárias pré-históricas, como a máscara funerária encontrada numa tumba em Micenas, datada do século XVI a.C., foram moldadas diretamente sobre o rosto do defunto utilizando uma folha de ouro, “metal ainda mais apropriado [do que o barro] aos cultos fúnebres, que mantém, intacto sob a terra, o brilho de sua própria luz”. (didi-hubermann, 2008, p. 57) Em outra, como a máscara fúnebre encontrada em Varna, na Bulgária, datada de 5000 – 4500 a.C., apenas alguns orifícios do rosto e os olhos são adornados com discos de ouro. Um olho da terra àquele que será enterrado, no sonho de que a terra, por ela mesma, enxergue através desses olhos dourados.

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Assim se traduz no nível cósmico o teorema do devaneio da visão: tudo o que brilha vê e não há no mundo que brilha nada além de um olhar. (bachelard, 2009, p. 178)

Máscara mortuária em ouro, encontrada em Micenas, séc. XVI a.C.


Lamarck acreditava que os elementos da natureza, como os minerais, eram fósseis de formas de vida, como os animais e vegetais. O ouro, por exemplo, “no devaneio mineral do grande naturalista”, seria carne condensada, “sangue ou seiva ultracoaguladas”. (bachelard, 2013b, p. 213) Se pode-se devanear às avessas, então, quem sabe o olho não seja a forma viva do ouro, o ouro sendo uma espécie de semente, que já carrega dentro de si um fogo, um brilho, uma luz que virá iluminar essas células dotadas a ver; quem sabe não foi assim que brotou o olho, no brilho de ouro da luz do sol (que também guardaria essa semente luminosa)?... E os alquimistas, ao sonharem com a possibilidade de transformar todas as coisas em ouro, talvez desejassem enxergar através de todas as criaturas e objetos; plantar a semente da visão luminosa em todo metal menos nobre, dar a todas as coisas aquele brilho que vê, como se o que os cegasse fosse uma opacidade qualquer e fosse então preciso purificar a matéria e purificar a si mesmo para alcançar sua clareza luminosa. Aqui, a alquimia aparece com outro sentido: o que venho construindo em Lunar Maria é uma poética das transformações. Todos os trabalhos se constituem de materiais suscetíveis / sensíveis à temperatura, que vão do maleável ao rígido através de um ciclo de energia. Regolito se alinha a essa temática ao propor um olhar que se molda e molda, um olhar que se imprime, por contato, na imagem. Aqui, a matéria maleável é a própria visão, que tateia superfícies, assumindo suas formas, texturas, cores. “Fechemos os olhos para ver”, propõe Joyce, significando que “ver só se pensa e só se experimenta em última instância numa experiência do tocar.” (didi-hubermann, 2010, p. 31) Significando também que é preciso saber que para enxergar qualquer coisa é necessário um certo comprometimento com o tangível: é preciso tocar com os olhos, “como se o ato de ver acabasse sempre pela experimentação tátil de um obstáculo erguido diante de nós, obstáculo talvez perfurado, feito de vazios”. (Ibid., p. 31) Que feliz coincidência estas imagens serem justamente pontuadas por obstáculos dourados, perfuradas e cheias de vazios; o olho que as toca e vê já não sabe se a imagem é o ouro ou o que ainda se revela das fotografias; não sabe onde repousar, o que atravessar. Então, enxergar se torna uma dança, repleta de invasões e atravessamentos, onde os olhos serpenteiam entre buracos e coisas, cheios e vazios, formas e contra-formas. Afinal, o vazio que existe entre a asa de uma xícara não faz também parte da xícara? Para os olhos, portanto, o vazio, assim como o cheio, também é tátil. Merleau-Ponty coloca “que todo visível é talhado no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visualidade” (Ibid., p. 31). Talvez seja permitido assumir que o aspecto visível das coisas vem antes mesmo dos olhos e que pode, portanto, ser experimentado através de outros sentidos. É a fina camada de ouro sobre a fotografia que promete a escultura à visualidade, pois a imagem bidimensional só se revela aos olhos. E se o ouro não revela ao toque a forma da escultura – e mesmo o oposto, se o gesto não seguiu aquilo que viam os olhos – talvez mostre algo diferente: a luz daquele olhar tateante, que conhece a imagem com os dedos e, ao fazê-lo, produz uma outra coisa ainda. O gesto não diz de uma substituição de sentidos (ao invés de

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ver com os olhos, ver com o tato), mas um encavalgamento, uma justaposição, onde o ver atinge seu ápice no tocar e o tocar se realiza plenamente no ver. Não é à toa, portanto, que o gesto se mostre luminoso, que o olhar se revele tátil. Regolito é o nome que se dá à matéria que se deposita na superfície lunar; é por causa de sua composição que a Lua é um corpo branco e brilhante. Em meio ao branco, áreas mais escuras parecem desenhar formas no satélite, delimitando vazios, buracos para se atravessar com os olhos. A fina camada de pó é marcada pela ação do tempo e das atividades cósmicas – surgem relevos sutis, moldados por forças externas. O olhar – tateante – apontado para a Lua sabe adivinhar suas formas e texturas. Mas ela, corpo brilhante, também vê. Surge clara, como um olho que irradia e toca. A fina camada dourada sobre a fotografia – aquela que se moldou com o meu gesto e é molde de minha mão – também enxerga. Luminosidade e brilho imprimem formas no fundo dos olhos, agora superfícies lisas prometidas * Também chamada de persistência ou resistência retiniana, é um efeito óptico, quando se olha por tanto tempo para alguma coisa que a imagem permanece quando se desvia o olhar do objeto original;

ao toque, dando origem a uma impressão retiniana*, em tudo similar à impressão por contato, pois revela uma experiência de relação, que trabalha. O olho é um sol e uma superfície de impressão, cujo brilho revela marcas daquilo que se viu; como se o visível desgastasse o tato do olho como o barro desgasta as digitais do ceramista. O olho é, portanto, um globo como a Lua, ao mesmo tempo brilhante e reflexivo, liso e profundamente marcado, corpo que orbita o espaço infrafino entre o tátil e o visível.

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55 O que era pedra vira homem E o homem é mais sólido que a maré Milton Nascimento, Saídas & Bandeiras nº 2

O primeiro totem foi feito de concreto (areia, cimento e água) em um molde de madeira que tinha a minha altura. Não tinha a forma humana, propriamente, mas por possuir sua estatura – palavra que por si só dá conta disso de que falo * – dizia daquele tamanho que nos diferencia de tudo o que é pequeno demais e pode ser carregado conosco – ao que se atribui o caráter familiar ou íntimo – e de todo o resto que é, ao contrário, grande demais e é, por isso, tido como ponto de referência na paisagem ou monumento. Nem grande demais, nem pequeno demais, aquele objeto se indiferenciava da paisagem justamente por ser mais ou menos do tamanho de quem olha para ele. Se o totem tivesse olhos, eles estariam na altura da linha do horizonte, como um desenho em perspectiva que, tendo a altura do olho como ponto de referência, coloca todos os outros olhos alinhados; um panorama de olhares luminosos que refletem a altura do observador / desenhista. Parece, portanto, que ter a altura humana confere ao objeto inumano alguma propriedade de visão. Didi-Hubermann (2011) aponta para o mesmo efeito causado pelos cubos de Tony Smith, que causam estranheza justamente por serem desse tamanho: alguém caberia ali dentro, mas o

* “A estatura, caráter essencial das estátuas, é o estado de manter-se de pé (stare), e é algo que se diz primeiramente dos homens vivos, para distingui-los do resto da criação (...) A estatura se diz dos homens vivos, aprumados, e designa, já em latim, seu tamanho de homens: ele se refere, portanto, fundamentalmente, à escala ou à dimensão humana.” (DIDIHUBERMANN, 2010, p. 122)


espaço é muito justo para ser uma casa ou um cômodo. Não há uma casa que seja do tamanho de um corpo. O totem de concreto foi construído deitado. O gesto de preencher o molde onde eu caberia quase inteira era muito estranho, pois deitada a estatura não tem vida; aponta para outro silêncio, que não é aquele de quem nos olha, do que vemos. O silêncio do totem deitado é o do túmulo, do cadáver que jaz sem prumo, sem a capacidade de ficar de pé. E eu, que lhe dava forma, sentia-me como maga ou bruxa a dar vida a um Golem desfigurado. Em pensamento, escrevia “EMET” em sua testa, palavra hebraica que quer dizer matéria-prima, ainda sem forma, corpo sem alma. Do túmulo à estatura numa inversão de tempo: da morte (“MET”) à matéria-informe do feto (“EMET”), prestes a ganhar vida em apenas uma letra. Esse tempo que parece correr para trás, aponta, na verdade, para uma sequência de inícios sem fim, onde a morte, que diria de uma matéria destituída de potência, é o começo de uma outra forma de vida que se perpetua no que é inorgânico. Para Lamarck, algumas substâncias minerais são provenientes de um processo de destruição acentuada dos corpos vivos. Essas carnes fósseis ainda carregam “um pouco do fogo oriundo de uma vida imemorial” (bachelard, 2009, p. 213), como um calor residual que permite à matéria lembrar-se do corpo que era. Conforme mesclava cimento e água, percebia que a mistura se aquecia, liberando uma quentura que parecia surgir de dentro de cada minúsculo fragmento mineral, ativado pelo contato com a água.

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Conforme lidava com as misturas de concreto, dei-me conta de que esbarrava com as mesmas questões apresentadas pela argila, que já conhecia de outras práticas. Aliás, o próprio cimento é composto de um material cerâmico que em contato com a água produz uma reação exotérmica de cristalização. Tendo em vista as relações materiais e gestuais propostas em outros de meus experimentos, decidi que valia a tentativa de construir o mesmo objeto em barro, pois ele me proporcionava os sonhos da terra, da água, do ar e do fogo. No entanto, a mudança de meio transformou por completo meu exercício, colocando em jogo relações de energia e tempo inesperadas. Richard Serra diz que quando se tenta fazer o mesmo feitio com diferentes materiais, logo se percebe que o que predomina não é a forma, mas a “matéria da matéria, o material da matéria”. (ims, 2014) O barro é fruto de um longo processo de erosão, precisando de 400 mil anos de desagregamento continuado para de pedra fazer-se massa maleável. Ao trabalhar com ele, movimentando meus dedos, sentia um calor que se espalhava por minhas mãos. Elas sonhavam como as mãos do alquimista: o fogo está no âmago da matéria, fruto de tudo o que se forma lentamente, como se o barro ainda guardasse, no coração de cada minúsculo grão mineral, a energia dos muitos impactos, e fosse trabalho meu desperta-lo do sono milenar. Na massa, o problema das formas coloca-se em segunda instância e o que vem embalar a atividade do homem que amassa é um sonho disforme. (bachelard, 2013a). Trabalhar com um material que assumia a forma de minhas mãos implicava o abandono do molde de madeira e a elaboração de um objeto diferente, de aparência


orgânica, que nascia já de pé. Matéria que transita entre o mole e o duro, o barro informa aos meus dedos que há uma magia qualquer que opera entre o ser que molda e o ser que é moldado. Em minhas mãos, ele ganhava a forma que eu desejava, mas gravava, contra a minha vontade, minhas digitais e linhas em sua superfície maleável. A argila me diz de um tempo longo, de um acúmulo de tempo maleável, como se ao molda-la, estivesse também amassando e esticando o tecido temporal, colocando em jogo, com as pontas de meus dedos, outras eras geológicas. Minhas mãos conversavam com “um tempo ativo de um trabalho, um tempo que se dialetiza no esforço do trabalhador e na resistência [do material]” (bachelard, 2013b, p. 18). Tempo que se estendia, sempre que me punha a trabalhar, para muito antes e depois de mim, tempo estendido, o qual acessava apenas através da própria resistência da matéria, de uma “matéria-duração”. Como o objeto sonhado era grande demais para ser transportado antes da queima, visto que teria 1,75m de altura, decidi construí-lo no ateliê do Leí, um ceramista de Cunha (SP), que me emprestaria seu forno. Em minha primeira visita ao espaço, conversamos sobre o projeto e ele me apresentou o “chamote”, barro com o qual trabalharia. Misturada ao pó de barro e à água, coloca-se uma porcentagem de cerâmica queimada e moída, que garante à massa mais sustentação, mas a deixa menos maleável. Planejei uma segunda ida à cidade, com a intenção de fazer um protótipo do objeto. Demorei quatro dias para moldar a primeira Nave, que atingiu 1,5m de altura. Utilizei 56 quilos de barro para a construção deste objeto oco. Suas paredes tinham cerca de 2cm de espessura. A Nave foi completamente moldada à mão. Apesar do tamanho reduzido, este objeto já representa um “estar de pé” próprio dos homens, uma estatura. Mesmo que à meio caminho entre um adulto e uma criança, a escultura propõe uma experiência de relação com o espaço. O gesto de moldar algo que é apenas um tanto menor do que o escultor é estranho, uma vez que me garantia domínio da forma e controle do processo – alguma superioridade em comparação àquela figura –, mas me apresentava as dificuldades e o desconforto do que seria construir algo do meu tamanho ou mesmo maior do que eu. Meses antes, havia realizado um pequeno molde do objeto, com não mais do que 20cm de altura. Conforme construía o protótipo, em Cunha, me dei conta de que encontrava os mesmos obstáculos no que dizia respeito à forma. O peso ficou levemente deslocado para trás, dando a impressão de instabilidade; a cabeça não ficou muito bem posicionada; a proporção entre altura e largura não ficou adequada. Ainda me pergunto se este fato diz respeito as minhas inabilidades técnicas ou se revela um desejo inerente à matéria, de se fazer daquela forma através de minhas mãos. Para moldar o objeto, era preciso considerar as forças aplicadas pelos lados externo e interno das paredes de barro. Nave moldou-se igualmente de fora para dentro e de dentro para fora, originando-se de modo único em relação à minha prática: nem fruto de uma impressão por contato, no sentido tradicional do termo, nem fruto de algo que trabalha desde dentro. Minhas mãos moldavam algo que se parecia com um recipiente, um vazio que acolhe, que não é bem vestígio de um impacto, mas de uma relação.

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Desenhos para a realização da Nave.


A palavra inglesa “vessel” se traduz como recipiente ou nave. Em português, os vocábulos soam bastante distintos, visto que um diz respeito a algo que abriga e guarda substâncias e outro faz referência a um meio de transporte (um tipo de veículo espacial ou navio). Nave, no entanto, não deixa de ser ainda um recipiente, algo que guarda os corpos dos tripulantes enquanto se movimentam, um lar temporário para aqueles que se deslocam, um abrigo. Enquanto pensava sobre a forma que assumiria a escultura, me deparei com as imagens dos sarcófagos egípcios, que me parecem dividir desse mesmo sentido de recipiente e meio de transporte. “EMET”, matéria-prima ainda sem forma, corpo sem alma, a Nave que assume a forma de um corpo é ainda um vaso / receptáculo que abriga neste vácuo úmido a mesma atmosfera quente de um forno, fazendo da própria escultura uma outra fornalha ainda, onde o calor dos gestos e do material se acumulam, dando vida à terra inerte. Um dos aspectos que entrou em jogo quando adotei o barro para a criação deste objeto foi o procedimento de queima. Como a peça excedia as medidas dos fornos cerâmicos tradicionais, foi preciso projetar um especial para ela. Ainda em fase de concepção, o forno será construído em um desnível de terreno. Dois orifícios serão cavados na parede do barranco: o superior abrigará parte da peça, que será queimada na vertical, e o inferior guardará a lenha; tubos, conectando ambos os compartimentos, conduzirão o calor até a parte superior do forno; objeto será rodeado por tijolos de barro, garantindo uma queima uniforme. Nave ficará dentro do forno por, no mínimo, 8 horas, até que atinja 800ºC. O forno, portanto, não é um aparato técnico necessário para a realização da obra, mas a própria obra. Nave é a estatura / recipiente moldada pelas minhas mãos e o forno, que também é um recipiente, construído para queimá-la. Os processos envolvidos na construção e destruição do forno são tão escultóricos quanto aqueles que levaram a elaboração do objeto. O fato da atmosfera interna da estatura repetir a atmosfera interna do forno não é coincidência, mas um dado importante na concepção do trabalho.

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Forno onde foi queimado o protรณtipo de Nave.

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Dois Fornos (1996), Nuno Ramos.


“O cozimento das massas vai complicar ainda mais o estudo dos valores imaginários. Não só um novo elemento, o fogo, vem cooperar para a constituição de uma matéria que já reuniu os sonhos elementares da terra e da água, mas também, com o fogo, é o tempo que vem individualizar fortemente a matéria.” (bachelard, 2013b, p. 69) Na quente atmosfera do forno, a argila se torna pedra, caminhando num tempo às avessas. O fogo, transmutador da matéria, engrandece a magia que fez da água e da terra, massa maleável. Dançam os elementos, desequilibrando-se, um e outro, suavemente, para, em um instante luminoso, um tanto mais de fogo tratar de devolver o barro à pedra que era. Contudo, o tal cozimento pontuado de circunstâncias sutilmente sensibilizadas não se dá apenas dentro do forno, e não diz respeito apenas à massa de argila; acontece nos fornos cósmicos de todo o universo. Em Dois Fornos (1996), Nuno Ramos constrói o que propõe o título de sua obra: duas fornalhas de barro, uma dentro da outra. Ambos os fornos foram acesso durante a vernissage da exposição e, em seguida, abertos para a mostra. Assim como em Nave, Nuno cria dois vazios quentes. A atmosfera interna do primeiro forno repete outra atmosfera ainda, dizendo dessa sequência de queimas, de trocas de energia, de ciclos de construções e destruição, porque passam todos os corpos. O que desperta meu interesse pela obra do artista é a construção de um espaço oco e quente dentro de um outro espaço oco e quente; um útero arquetípico dentro de um outro útero ainda. No cosmos, os elementos se originam de estrelas quentes, que nascem, por sua vez, de aglomerados quentes e plenos de energia. O gesto de colocar um forno dentro de outro aponta para este processo contínuo de nascimentos e mortes, sendo o fogo aquilo que dá vida – sem o qual nada existiria – e aquilo que incinera e destrói por completo a matéria, mas a consumação pelo fogo é aquela da Fênix, que não é propriamente uma morte, mas um nascimento em promessa. Quando estava em Cunha, pude acompanhar a abertura de uma fornada, retirando, inclusive, os primeiros tijolos das portas seladas por barro. Ao colocar a mão naquele buraco, pude sentir ainda o calor que vinha de dentro dele. Um hálito quente, um sopro de vida, atmosfera estranha e úmida capaz de transformar a matéria através do fogo. “Quando a imaginação sonha com a união duradoura da água e do fogo, ela forma uma imagem material mista com um poder singular. É a imagem material da umidade quente. Para muitos devaneios cosmogônicos, é a umidade quente que constitui o princípio fundamental.” (bachelard, 2013, p. 104) Dentro do forno, é essa união entre o fogo e a água que parece garantir à atmosfera uma potência de vida, uma vida em promessa. Durante a feitura do objeto, me dei conta de que criava um outro oco, semelhante aquele experimentado no forno. A visão da parte interior do corpo, conforme ele crescia debaixo para cima, era incômoda, pois em nada se assemelhava a uma pessoa. Devido a espessura do barro, a forma se estreitava de modo inesperado. Aquele vazio começou a me interessar muito, pois vislumbrava as possibilidades que ele colocava. Cheguei a ensaiar algumas falas, preenchendo e moldando o oco com a minha voz, como se enfeitiçasse o objeto, mas nenhuma das ações foi ainda plenamente desenvolvida. No entanto, fico com a fantasia de uma substância etérea,

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alquímica, represada dentro do objeto. Ela vai para o forno e esquenta, ativando qualquer coisa na matéria, ou ativando-se, transformando-se. Moldar de dentro para fora me aproximava, portanto, da alma, como se coubesse a mim modelar também esse aspecto imaterial dos homens. Então, a queima do objeto não é o fim de um processo, mas o início de um novo ciclo, pois o fogo, em união com a água e o éter, reacende aquele calor interno guardado em cada minúsculo fragmento mineral, animando a vida naquilo que, até então, era apenas matéria inerte. É o sopro quente e úmido do criador que anima seus filhotes feitos de barro, e é daí, dessa ambivalência material que já uniu os devaneios da terra, da água, do ar, do fogo e do éter, que nasce Adão, moldado desde seu exterior, à imagem do criador. Em Amazonian Field (1992), Antony Gormley preenche uma enorme sala com aproximadamente 24 mil pequenas figuras de barro, esculpidas a mão por artesãos locais. Segundo o artista, seu gesto propunha uma reflexão a cerca daquelas pessoas sem boca / sem voz, seres esquecidos, deixados à margem do mundo. A escala das figuras implica em certo “endeusamento” do observador, colocando-o em um lugar de superioridade, mas também de desconforto. Afinal, é impossível esquecer-se ou deixar de ver a força humana que moldou aquelas imagens, pois a terra e a mão são muito presentes. Em Nave, utilizo o mesmo material para moldar a estatura, mas o que me interessa no trabalho de Gormley é a experiência de relação com uma figura que é quase

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humana e que revela, por isso, o gesto humano que lhe deu forma. A impressão por contato que dá origem àquela pequena figura revela um espaço infrafino não só entre a mão e o barro, mas entre quem molda e o objeto feito de matéria da terra. Se as esculturas de Gormley não são autorretratos do escultor, mas imagem daquilo que é semelhante aos homens, Amazonian Field propõe justamente o oposto: o gesto sempre produz uma forma individualizada e cada um daqueles milhares de corpos é retrato de quem o produziu. Portanto, quando moldo minha estatura, mesmo que ela diga desse aspecto que unifica a espécie, crio para mim um duplo.

Amazonian Field (1992), Antony Gormley.


Conforme moldava o corpo de barro, percebia que quanto mais alto estivesse, mais vida parecia ter. Era o “estar de pé” / o stare / a estatura que lhe garantia a qualidade viva, a fagulha cintilante própria dos corpos animados. A forma vertical, essa que se assemelha ao que há em nós de mais humano, nossa postura, me suscitou uma outra imagem, a do menir. Pedra alongada, seu erguimento representa a primeira ação humana de transformação física da paisagem: uma grande pedra estirada horizontalmente sobre o solo é ainda apenas uma simples pedra sem conotações simbólicas, mas sua rotação em noventa graus e o seu fincamento na terra transformamna em uma nova presença que detém o tempo e o espaço: institui um tempo zero que se prolonga na eternidade e um novo sistema de relações com os elementos da paisagem circundante. (careri, 2013, p. 52) O primeiro marco humano na paisagem é algo que se assemelha ao próprio homem no que diz de sua postura - sem dúvida, característica mais humana ainda do que sua pegada, marca deixada sem propósitos simbólicos por outros animais. A pedra de pé evidencia também o gesto e o esforço, por vezes coletivo, dessa intenção (quase) poética e bastante complexa. Ao colocar a pedra de pé, o homem parece criar um duplo de si, para si. Duplo inanimado, achado pelo caminho, o menir é também um marco, uma abertura no tempo e um tipo de permanência, indicando aos futuros nômades que por ali passarem que eles não são os primeiros. Heidegger propunha que não seria possível percorrer uma sala sem que não se fosse aquele que já está do outro lado. “Nunca estou somente aqui como um corpo encapsulado, mas estou lá, ou seja, tendo sobre mim o espaço. É somente assim que posso percorrer um espaço.” (1954, p. 8) De modo inverso, pode pensar que o menir sugere que não se pode ser aquele que foi, que já percorreu o espaço, sem ainda ser aquele que permanece. Portanto, o menir, como escultura, articula não só os homens, mas também o tempo (justapondo, de algum modo, o passado e o futuro, sendo o presente o breve instante do gesto) e o entorno da paisagem. Ao colocar de pé a pedra achada, toda a paisagem se altera. Do mesmo modo, a Nave modifica o ambiente em que se encontra, colocando em jogo uma existência ou uma medida sensível de existência com a qual é preciso se defrontar. Aqui, o objeto só é realmente ativado se posto em escala, isto é, se se sabe que ele é do tamanho da humanidade. Ou seja, é preciso que haja uma experiência de relação para que o trabalho se constitua como tal. O entorno, portanto, é também escultura no sentido de que a escultura precisa de alguém com que se ter o tamanho comparado; é preciso comprovar / provar sua dimensão, entende-la semelhante à humana, para então notar, não sem certa surpresa, que o corpo é algo “sem tamanho”. Então sua dessemelhança aparente – o fato de que sua forma não é propriamente humana – “nos olha (...) porque

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ela agita algo que gostaríamos de chamar, com Mallarmé, uma arrière-ressemblance [semelhança de fundo]”. (didi-hubermann, 2010, p. 127) Aquele objeto estrangeiro, um simples corpo de barro, nos fala, nos espelha... E então, este duplo de todo / qualquer homem se revela vazio, visto que nele se pode entrar e sair, visto que ele todo nos olha. Duas de minhas referências formais para a construção da Nave foram as múmias e sarcófagos egípcios. Ao contrário dos túmulos contemporâneos, são muitas vezes contemplados na vertical, como símbolo de uma existência que permanece. Por terem sido seres com vida ou por servirem de abrigo aos tais corpos embalsamados, parecem evidenciar a mesma semelhança de fundo que se percebe em tudo aquilo que possui a estatura humana. Com efeito, os procedimentos de mumificação devem ter influenciado a escultura da época. Sobre a prática do Antigo Egito, Gormley coloca que “definiram uma linguagem escultórica que nunca foi superada. Para mim, a coisa mais maravilhosa em relação às esculturas egípcias é o fato que não tentavam fazer a coisa se mover. Eles aceitavam o fato de que a escultura era imóvel, estável, que apenas ficava lá, que simplesmente era.” (cross street films, 2007). Bem como as múmias e sarcófagos, as esculturas egípcias eram menires na paisagem. Nave possui a mesma qualidade imóvel e estável, apontando para esse aspecto essencialmente escultórico ao mesmo tempo que se configura como marco de tempo e gesto no espaço expositivo. No entanto, este objeto que surge do contato da mão com o barro é, mais do que estatura ou monumento, fruto de uma relação de

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intimidade. Afinal, é o conjunto de ações que realizo sobre a argila que me coloca em consonância com a matéria mole. Quando não sinto mais a distinção entre minha mão e o barro, quando esqueço, com alegria, do espaço infrafino que me separa da massa maleável, perdida em um devaneio das substâncias, me dou conta de que ao moldar aquele corpo oco / recipiente / veículo, moldo a mim mesma. Nesse contexto, o infrafino reaparece como o limite necessário do contato. Segundo as leis do eletromagnetismo, dois corpos jamais se encostam; ambos são carregados negativamente e, por isso, se repelem com cada vez mais força, quanto mais próximos ficam. No entanto, o espaço infrafino é indispensável para que eles possam experimentar esse vetor de intensidade que os afasta, pois só assim é que sensação do toque acontece. Apesar disso, parece que é também o infrafino que os permite experimentar um resíduo contatual, uma ligação que perdura mesmo após a separação, algo que não diz respeito à forma, mas à essência. O contato, mesmo que impossível, dá origem a uma relação que permanece, perpetuando-se em ambos os corpos. Por fim, se é preciso “compreender que a mão, assim como o olhar, tem seus devaneios e sua poesia” (bachelard, 2013b, p. 66), então é apenas através desses procedimentos táteis, que beiram os limites do contato, que consigo escrever meus poemas do tato, os poemas da mão que amassa.


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Protótipo de Nave, ainda no ateliê. Esculturas egípcias, 2350 a.C.


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Recomenda-se ler este trecho ouvindo a Música das Esferas, disponível em < https://soundcloud.com/reisbeatriz/musica-das-esferas >

I I . Ó R B I TA Uma onda descreve ao redor de seu ponto de origem um círculo crescente. As ondas de rádio emitidas da Terra descrevem ao seu redor um círculo / campo que faz com que o planeta cresça virtualmente, na velocidade da luz – para todos os lados. Até que encontrem um anteparo, essas ondulações continuarão viajando em linha reta e, se fosse possível olhar para elas através de um telescópio, essas frequências, bem como a luz, apontariam para outro tempo. As ondas imprimem no vácuo cósmico as marcas de um tempo / de um gesto / de um planeta; camadas que se acumulam como estratos geológicos. A primeira transmissão feita pelo homem ainda viaja... agora. Ouço qualquer coisa – um som, um barulho indefinível. Circular, parece repetir-se a cada 2,5 segundos, mas a cada nova repetição, nasce e finda de um modo sutilmente diferente. Como repete-se, em loop quase perfeito, deve ter tido origem em algo igualmente circular, como se meus ouvidos, por ouvir um som redondo, pudessem enxergar a forma igualmente redonda de onde aquela música surgiu. Será que é o som que tem a forma da coisa ou é a coisa que, a partir dele, tomou forma? E esta música que toca, em loop, será ela sempre igual ou a cada vez uma nova música, separada de suas irmãs (a que veio logo antes, a que virá logo em seguida, a primordial, a última e todas as que se inserem no meio) por um espaço infrafino? Tal qual onda, que ao propagar-se, ressonando aqui e ali, parece ativar o espaço por onde passa, fazendo do vazio um local de possibilidade / de memória, a Música

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* “Dizia-se que cada um dos planetas e estrelas fazia música enquanto viajava pelos céus. Pitágoras, que havia elaborado as razões entre as várias harmonias de cada corda sonante, descobriu que havia uma correspondência matemática perfeita entre eles e, como também estava interessado nos céus, notou que esses, do mesmo modo, se moviam de maneira ordenada, conjeturou que as duas coisas eram aspectos da mesma lei matemática perfeita, que governava o universo. Se fosse assim, (...) os planetas e as estrelas deveriam fazer sons perfeitos ao se mover, exatamente do mesmo modo que a vibração da corda produzia harmônicos perfeitos.” (SCHAFER, 2011, p. 151)

das Esferas, * esse ruído indiferenciado captado pela audição, também ativa o espaço expositivo. Seis pequenos autofalantes reproduzem continuamente esta melodia estranha dentro da sala de exposição. As frequências sonoras vão de encontro e ressoam em cada uma das obras – e as obras, então, ressoam umas nas outras, entram em consonância. Por causa desta camada sonora, algo se revela no espaço, como um tecido vibratório que liga / congloba os corpos. O som não dá ao cenário apenas um aspecto cósmico, atribuindo-lhes a música que emana de planetas e estrelas; a vibração faz do vácuo um vazio que trabalha. Música das Esferas ganha forma a partir de um objeto que é circular, mas o som não parece ser fruto de um atrito, produto de uma erosão ou desgaste, mas uma força “lapidante”, que molda a matéria à sua imagem. Segundo a teoria das supercordas (greene, 2001), toda partícula é constituída de uma minúscula (jamais vista, de tão microscópica) corda que é, por sua vez, energia. A frequência com que vibra a corda determina que partícula ela será. Se o som também é vibração, corda em outra escala, se é também energia, inserido que está nesse continuum de frequências, então ele deve moldar a matéria ao seu redor; e se o som informa, também é capaz de tocar. Portanto, todas as coisas, mesmo aquelas prometidas ao tato, são paradoxal e essencialmente onda. Cabe aos ouvidos captar um certo range de frequência, traduzindo-o nisso a que se dá o nome de som; cabe aos olhos captar outra faixa, tornando possível que se experimente a visão. Cabe ao tato outro range ainda, que

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ativa as sensações de toque. Pois se já se sabe que nada realmente se encosta – sendo a sensação de toque causada por campos eletromagnéticos que se repelem –, talvez o corpo não seja mais do que frequência materializada. As ondas penetram os ouvidos, fazendo cada pequeno osso e cartilagem trabalhar. Imprimem, por contato, a superfície interna do órgão com uma música que parece ter nascido há incontáveis anos luz de distância. “Somos todos poeira de estrelas”, ressoando ainda suas frequências cósmicas. O som penetra também o barro, a parafina, o ouro, agitando cada elétron, átomo, molécula. Se a partícula é definida pela frequência com que vibra a corda, os materiais têm suas existências determinadas pela vibração intrínseca que os diferencia. O som individualiza a matéria e cada meio é por ele ativado de modo particular, íntimo. Se ele põe o espaço para trabalhar, então as obras também trabalham. Em Mare Crater, talvez seja a estranha vibração permeando o espaço que faça com que o objeto se desfaça aos poucos, mas fique sempre a meio caminho, porque o som é também circular. Já em Cosmogonia da Pérola, o âmago daquela forma branca e leitosa talvez se modifique lentamente, ativado pela suave sonância que chega até lá, fazendo as partículas vibrarem e se aquecerem, alterando a aparência externa do objeto. O gesto luminoso sobre a fotografia, em Regolito, é perpetuado / continuado, pois ainda vibra, como se aquela topografia em miniatura sofresse dos efeitos sísmicos provocados pela música dos planetas. E a Nave, que jaz ali, de pé, talvez precisasse de uma frequência mais alta, de um impulso mais vigoroso, para tornar à vida, mas se anima nessa dança que se dá a nível quântico, se lembrando daquela


vibração quente experimentada dentro do forno. Por fim, Música das Esferas – som desprovido de uma fonte, de um corpo, que nasce em toda a parte – ressoa nos olhos, nos ouvidos e nas extremidades nervosas de quem experimenta aquela paisagem cósmica / sísmica. Esta melodia nasceu de uma vitrola de 8 agulhas que sintonizava os sons do universo. Para ouvi-la, era preciso aproximar-se até quase encostar os ouvidos na superfície marcada do vinil, pois o aparelho não possuía amplificação. A música que tocava, a 6ª Sinfonia de Beethoven, foi perdida porque as agulhas não se movimentavam de acordo com os veios, permanecendo sempre no mesmo ponto. O ruído que chegava aos ouvidos de quem se dobrava para escutá-lo parecia ter sido moldado pelas órbitas dos planetas ao mesmo tempo que desenhava essas mesmas órbitas sobre o disco que rodava na vitrola. Essa estranha sintonia aponta para o fato de que é o som que dá forma à matéria: a música circular, que tanto se assemelha aos sons captados pela NASA, molda na superfície do disco órbitas muito semelhantes àquelas percorridas pelos planetas, em outra escala. Toda cópia nascida de um procedimento de impressão é sutilmente diferente da que veio logo antes, da que virá logo depois, justamente porque se preserva, apesar da intimidade, um espaço mínimo, infrafino. Em Música das Esferas, a experiência de relação entre agulha e disco produz uma melodia redonda que insiste em não tornar mais ao mesmo ponto. Era um contato fino e insistente que marcava a superfície do disco e produzia o som. O sutil afastamento – sonoro e temporal – entre as camadas melódicas é indício de algo que desconfia de seu fim. A discrepância microscópica entre uma volta e outra mostra que, se continuar girando, a agulha apagará por completo as informações impressas na superfície do vinil. A vitrola alterada que deu origem ao ruído que se escuta não está à vista e não há vestígios dela. Ela não está escondida: quebrou e foi desmantelada. O som é sua única imagem. Este é o primeiro e mais evidente indício de um abandono, mas o mesmo aconteceu em outros de meus trabalhos: o objeto no vídeo, em Mare Crater, realmente se desfez, não existe mais; o molde do rosto, em Cosmogonia da Pérola, foi destruído na feitura de seu positivo; os livros de onde saíram as fotografias, em Regolito, foram completamente depenados; em Nave, o barro, uma vez queimado, não volta mais a seu estado maleável. Essa sequência de desaparecimentos é manifestação de algo que permeia toda minha prática: gestos que suscitam transformações e desfazimentos, que carregam / arrastam toda forma existente para o fim, e depois para o começo. Também a 6ª Sinfonia de Beethoven parece ter sumido por inteiro, mas ainda se revela, em essência, em qualquer nota mais grave ou mais aguda que se vislumbra na modulação do ruído resultante. Talvez o que se escute não seja o disco ou a fricção, mas algo que ressoa do próprio cosmos, a própria música das esferas sonhada por Pitágoras e tantos outros que julgavam impossível que os planetas girassem, em suas trajetórias magníficas, sem com isso produzir qualquer som. (schafer, 2011) Se o fazem, e estas ondas, por sua vez, viajam através do cosmos (mesmo que as leis da física digam o contrário) como um tipo qualquer de influência a tocar todas as

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coisas, então havia de dar para crer, como diria Palomar, que qualquer condensação de um amontoado globular na nebulosa de Andrômeda influenciaria, sem dúvida, o funcionamento dos toca-discos. (calvino, 1994) A questão não se resolve no âmbito da física, mas no da sensibilidade: o sonho é de que o som viaje não tanto como onda, mas como influência, palavra que aqui assume importante papel. Segundo o dicionário, significa “capacidade de ocasionar um resultado sobre algo ou alguém; ação que uma coisa exerce sobre outra”. A música dos planetas brota de um gesto cósmico que acontece longe, mas se resolve / revela na vitrola de 8 agulhas que traduz a estranha melodia em frequência apropriada aos ouvidos humanos. Em sua trajetória, ela acende e ascende em todos os corpos, que vibram, consoando com o universo e preenchendo o espaço. Em Música das Esferas, o som brota do gesto que deu origem ao objeto sonoro. O toca-discos retransmite os sons cósmicos ao mesmo tempo em que faz vibrar o tecido do espaço, a matéria das obras e os ouvidos. Se o objeto sofre influência do universo, ele também influencia os corpos que existem no espaço expositivo, como se cumprisse, em outra escala, o mesmo papel dos corpos celestes, realizandose plenamente ao ativar-se na – e ativar a – galeria. Mesmo o espaço vazio entre as obras está atravessado por vetores sonoros e táteis; o vazio é dotado de volume – não no sentido de “altura” ou “intensidade” do som, mas no sentido de corpo, consistência, matéria. Na performance I am sitting in a room, de Alvin Lucier (1969), o artista, sobre

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um palco de uma sala de concertos, lê um texto em um microfone. Há um gravador, que registra o que ele diz e também os ruídos do ambiente em que se encontra. Quando Lucier termina a leitura, a gravação é reproduzida neste mesmo lugar, para ser novamente gravada (e reproduzida e gravada e reproduzida...), enquanto o artista permanece em silêncio, ouvindo a própria voz se modificar a cada repetição, dada a perda de qualidade acarretada pelo gravador. O que se escuta, por fim, é um ruído sem conteúdo verbal (uma vez que a fala foi sendo desfeita / desmanchada aos poucos) que revela, no entanto, a forma do vazio da sala onde foram feitas as gravações. I’m sitting in a room different from the one you are in now. I am recording the sound of my speaking voice and I am going to play it back into the room again and again until the resonant frequencies of the room reinforce themselves so that any semblance of my speech, with perhaps the exception of rhythm, is destroyed. What you will hear, then, are the natural resonant frequencies of the room articulated by speech. I regard this activity not so much as a demonstration of a physical fact, but more as a way to smooth any irregularities my speech might have. Por mais que Lucier diga que seu exercício serve mais para apagar / amenizar qualquer irregularidade que seu discurso possa ter (ele é, ironicamente, apagado


por completo), não se pode ignorar o fato de que cada ambiente apresentará seu próprio conjunto de ressonâncias. (kelly, 2011) Em I am sitting in a room, o volume do vazio molda o som e o som, por sua vez, desenha uma outra experiência com o espaço, traçada pelas distâncias entre paredes, teto, chão, objetos, pessoas... O artista permanece como um menir nessa paisagem sonora, uma marcação no espaço e no tempo, ecoando uma voz cada vez mais distante e incompreensível. Em Lunar Maria, a Lua é sonhada à distância: afinal, foi por causa dessa lonjura, que não é superada através dos telescópios (ao contrário, é possível que ainda cresça), que os astrônomos nomearam as planícies do satélite de Mares Lunares. Parece que apenas a distância sabe evidenciar um sentir do espaço e do tempo. Em Música das Esferas, o som percorre e preenche o vazio entre os corpos, ativando e moldando a matéria através desse tecido fluido e intangível que é o espaço. Os devaneios sonoros só são possíveis na distância. E se a lonjura nos aparece, não seria este aparecer já “um modo de aproximar-se ao dar-se à nossa vista?” (didi-hubermann, 2010, p. 148) Susan Philipsz, na instalação The Distant Sound (2014), transmite e reproduz uma série de vinhetas radiofônicas datadas dos anos 1920 e 1930 ao longo de toda a costa da Noruega e da Suécia. “Sound”, palavra que dá título ao trabalho, significa tanto “som” quanto “um canal de água entre duas massas de terra”, formação geológica predominante nos litorais nórdicos. A melodia, que pode ser ouvida na extensão das praias, cumpre o papel de aproximar vastas regiões da costa que de outro modo permaneceriam distantes. Através de uma frequência que preenche uma lonjura, a distância revela-se aos ouvidos, tornando-se magicamente menor. Assim como propõe Música das Esferas, o vazio é um espaçamento trabalhado / que trabalha, algo que implica numa trama construída no espaço e no tempo. Quando os astronautas da missão Apollo 10 estavam orbitando o lado escuro da Lua, perderam o contato com Houston, na Terra, e passaram a ouvir um som, um ruído, que vinha de lugar desconhecido. Eles descreveram o som como “sideral” e a tal frequência os acompanhou por um longo tempo, até que, sem explicação, silenciou-se. O caso foi arquivado sem investigações mais profundas, até que o áudio foi disponibilizado para o público em 2008, no site da NASA, dando margem a diversas teorias de vida extraterrestre. Os ruídos que chegavam aos ouvidos da tripulação pareciam dar forma – no sentido de dar existência, nascimento – ao espaço que os separava de todo o resto de vida no universo. Se a medida entre os corpos celestes é vazia, resta-se perguntar, “o que é um volume portador, mostrador de vazio? Como mostrar um vazio?” (didi-hubermann, 2010, p. 35) Este som que brotava do espaço cósmico era uma imagem do vácuo, o negativo de todo um conjunto de corpos “cheios”, assim como aquele que resulta da performance de Lucier. Um mapeamento sonoro do ambiente inóspito onde foi produzido. Antes ainda de chegar aos ouvidos, o som molda o ar por onde passa – cria um molde de ar no formato de uma frequência ou vibração. O que se escuta é a imagem de um espaço densamente preenchido; uma cartografia a ser compreendida e desvendada por este tato muito especial, a audição. Aqui, o som é mais do que uma

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intensidade sonora: é um volume. Ele não dá a ver somente o vazio que percorre e preenche, mas revela, através de sua forma intangível, o gesto que lhe deu origem e os corpos molda em sua trajetória redonda. Enfim, Música das Esferas é imagem de um cosmos que se origina e organiza a partir de frequências sonoras; que cresce desde o centro para fora, em camadas concêntricas e circulares; que é fruto de um fino equilíbrio de forças e distâncias. Assim, a suave melodia (que nasce não se sabe se do cosmos ou de uma velha vitrola) revela aquela sutil influência que coloca os todos corpos em órbita.

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MĂşsica das Esferas, no Museu da Cidade de Aveiro, Portugal, 2015.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS M O N TA G E M Em Lunar Maria, o gesto criador que deu origem aos trabalhos encontrou continuidade no processo de montagem realizada para a defesa de dissertação de mestrado, que envolveu a escolha do lugar, a reforma do espaço, a organização dos objetos que já estavam ali e o posicionamento dos trabalhos por mim desenvolvidos. É apenas em uma situação expositiva que o acúmulo (de trabalhos, que não deixa de ser acúmulo de tempos processuais, materiais, gestuais) se faz ver com clareza, apontando para relações imprevistas que não se limitam ao corpo artístico da pesquisa, mas que envolvem questões espaciais, afetivas, etc. A exposição será na fábrica de meu pai, localizada em Maria da Graça. Um mês depois de meu nascimento, em março de 1991, ele aceitou a proposta dos antigos donos do lugar, uma empresa japonesa de materiais elétricos, e comprou o enorme espaço, inaugurando a Line Materiais do Brasil ltda. Em agosto daquele ano, ele e meu avô viajaram ao Japão para fechar negócio. A fábrica funcionou durante vários anos, mas, abandonada após uma série de reveses, começou a se deteriorar. Em 2006, meu pai decidiu alugar as salas e galpões para pessoas que quisessem manter e utilizar as dependências. Em auge produtivo, a fábrica possuía uma vasta coleção de instrumentos, incluindo alguns aparelhos que produziam raios, câmeras fotográficas capazes de capta-los, transformadores, amperímetros, voltímetros, fornos cerâmicos para a produção de equipamento elétrico, entre outros. Produziam

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para-raios e o trabalho envolvia justamente a transformação de materiais, que, a partir de um ciclo de energia, passavam de um estado a outro, sendo o próprio raio (ou energia elétrica) o ponto culminante de todo o processo. A escolha do local, portanto, se deu tanto pelo fator afetivo quanto pela coincidência técnica. Afinal, uma das questões que norteiam minha prática envolve materiais capazes de passar do disforme à forma, matérias que mudam de estado através do calor, do meio, do tempo. Apesar de trabalhar com materiais diferentes daqueles que meu pai utilizava e com uma finalidade bastante diversa, creio que esse diálogo com o espaço adiciona mais uma camada de sentido aos meus experimentos visuais. Na verdade, esta é uma primeira aproximação em relação a este lugar com o qual não tenho muita intimidade. Eu conhecia a fábrica de minha infância e alguns móveis da minha casa vieram de lá, mas poucas vezes visitei o local. Durante o mestrado, meu pai me mostrou seu escritório (já vazio, empoeirado, cheio de teias de aranha), pouco antes deste se tornar uma pequena gráfica. Também conheci seus laboratórios, já inutilizados (logo antes de um grande roubo, no Natal de 2015, que terminou de destruir todos os equipamentos que ali estavam). O que me chamava a atenção não era apenas a deterioração, que me agradava esteticamente, mas o fato daqueles ambientes parecerem um cenário de um filme de ficção científica. Sem dúvida, não poderia deixar de pensar no meu interesse pelo espaço, pela física e cosmologia, ao olhar para todos aqueles equipamentos com ares futuristas.

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De certa forma, o gesto de interferir num ambiente tão grande foi arriscado e talvez um pouco desmedido. O exercício de visão / imaginação que entrou em jogo não está nem um pouco afastado dos procedimentos artísticos que fizeram surgir os cinco trabalhos que apresentei como parte de minha dissertação de mestrado. O desafio era entender até onde cabia minha interferência, respeitando o que o espaço e o tempo me haviam dado. Escolhi uma sala bem ampla e iluminada, no primeiro pavimento, com uma das paredes abertas para um depósito, nos fundos de um galpão, para abrigar minha exposição, transformando e espaço em uma pequena galeria. Para se chegar lá, é preciso caminhar por uma área escura, já apinhada de objetos encontrados no lixo, pelo Luiz, que coordena os trabalhos de uma equipe de coletores de resíduos recicláveis. Ele é o responsável por esta primeira curadoria, mas me deu liberdade para movimentar os objetos e propor novas configurações. Seu senso estético se diferencia de tudo o mais que se encontra por ali, pois o que se vê não são equipamentos antigos, mas frascos de perfume, marionetes, quadros, mobiliário desmontado, etc. Toda uma sorte de quinquilharia que, de um jeito estranho, encontra sentido naquele ambiente. O exercício foi desafiador e muito interessante, porque se já não bastasse articular o discurso que envolvia os trabalhos desenvolvidos especialmente sob o contexto dos Lunar Maria, foi preciso abordar este outro tema e encaixa-lo em minha poética. Mais do que isso, foi preciso entender que todas as coisas entram em diálogo naturalmente e sem esforço e que cabe ao visitante (e não só a mim) criar essas interlocuções e metáforas possíveis.


José Augusto em negociação com os japoneses.

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Concentrei minha atenção na galeria por questões práticas, mas o caminho até lá não poderia ser deixado de lado. A estratégia adotada foi a seguinte: junto aos objetos encontrados, eu colocaria alguns experimentos que realizei ao longo do mestrado. A ideia era afinar a paisagem de fora (encontrada) com a paisagem de dentro (criada por mim). Do lado de fora, o espectador encontra indícios de um gesto, pistas para o que vai encontrar dentro, objetos um tanto fora de lugar que apontam para outras coisas e causam algum estranhamento. Além disso, o visitante também escuta, de forma muito sutil, o som de Música das Esferas e algumas gravações feitas pela NASA, na época das missões Apollo e capturados mais tarde, em outras expedições. Nesse ambiente que beira o caos, um verdadeiro cosmos, alguns objetos parecem emitir um som estranho e muito pequeno. Para se ouvir plenamente, é preciso dobrar-se, aproximar-se muito daquilo que emite o ruído. Mesmo assim, o que os ouvidos escutam não é plenamente distinguível. Não é música, não é voz, está fora de contexto. Porém, o som é importantíssimo, pois articula estes objetos tão díspares (tanto uns dos outros quanto de meus trabalhos). Todo aquele ambiente faz às vezes de um cenário cósmico, um espaço interestelar. Aquele ambiente de fora, o caminho que leva até a galeria, é um espaço fluido, utilizado por muitas pessoas, cada qual com sua própria intenção. Não tenho total controle sobre os objetos que vão parar ali e cada semana me deparo com um local distinto. Porém, é com essa ausência de ordem e rotina que precisei lidar, durante a

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montagem da exposição. Na ocasião da 13ª Documenta de Kassel, Ana Maria Maiolino escolheu uma casa de jardineiro, quase em frente aonde moraram os irmãos Grimm, para ocupar com sua obra Here & There (2012). A instalação compreendia diversas peças em argila, vozes e cheiros, interligando os espaços internos e externos da casa. O trabalho envolveu a ocupação da habitação como ela estava: poucos móveis mudaram de lugar. A ideia era que cada um lidasse com aqueles objetos da forma que preferisse, pois o mesmo corpo de argila, com aquele aspecto úmido e maleável, suscitava imagens diversas a depender do lugar onde estava e de quem o via. Sua intenção era a de criar um “espaço a ser tomado poeticamente a favor da vida”. Ali, ela lidava também com o fato da casa estar próxima a um antigo campo de concentração. Através das esculturas, dos sons e imagens que pontuavam a paisagem, Maiolino falava do embrião, do “ovo como símbolo arquétipo por excelência da vida”. (albuquerque) Da mesma forma, em Lunar Maria, cada pequeno fragmento – tanto aqueles que já se encontravam no ambiente e que passaram por uma sutil curadoria, tanto os que pontuam a paisagem dizendo dos meus experimentos ao longo desses dois anos, quanto os trabalhos que se configuram como obras em processo ou finalizadas – existe como um corpo celeste caído, um pequeno meteoro ou rocha lunar encontrada em solo terrestre, carregando uma magia qualquer, um tempo outro, um poder embrionário, fetal. Olhar para aquela paisagem caótica configurada pelo caminho, é sentir-se um explorador, como quem vagueia pelo deserto do Saara em busca de fragmentos de meteoritos que não medem mais do que o tamanho de um punho.


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Acima, espaço expositivo durante a reforma. Abaixo, caminho atÊ a galeria.

Here & There (2012), Anna Maria Maiolino.


Depois, quando se penetra a galeria branca, iluminada e quase vazia, têm-se a sensação de que se entrou dentro daquele gesto de dobrar-se realizado enquanto se estava do lado de fora, onde era preciso se aproximar para ouvir o som ou para ver melhor um objeto interessante. O som de Música das Esferas agora se escuta alto, embalando os trabalhos e dando ao espaço características lunares, numa paisagem que é inesperadamente sonora. As obras ali dispostas já não são mais indícios de coisa alguma, mas o próprio assunto. Aquela multiplicidade de objetos (espalhados caoticamente do lado de fora) conversam com os experimentos visuais de um modo íntimo e imprevisto. Vislumbrar aquele cenário muito claro e vazio, em contraste com a pluralidade sombria do lado de fora, é o mesmo que esmiuçar uma pequena faixa de céu, através de uma luneta. O som trata de ativar o espaço e os trabalhos, revelando uma energia que ainda vibra na matéria. Ele cria uma atmosfera quase palpável / tátil, dando a ver um aspecto espacial / cósmico comum a todos eles. As obras, umas de frente para as outras, também se ativam mutuamente, propondo novas camadas de sentido àquilo que parecia estabelecido. A matéria que se desfaz, em Mare Crater, conversa com o material de que é feita a Nave: barro em dois estados de sensibilidade, devem compartilhar de qualquer calor interno, mas um deles passa por um acelerado processo de erosão, enquanto o outro experimenta a estabilidade da pedra, como se em dois tempos distintos, convivendo. A moleza que se vê no vídeo também se experimenta com os olhos

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em Cosmogonia da Pérola, que parece pronto para derreter, cumprindo-se, assim, o destino da parafina. Aquele rosto indiferenciado, uma forma quase humana, encontra um duplo sensível na estatura de Nave: ambos apontam para o corpo e dialogam com dois fragmentos de um busto encontrado no local. O gesto suave e luminoso que deu origem às imagens de Regolito encontra seu avesso em Nave, cuja violência é mais marcada e intensa. Em todo caso, é interessante perceber que ambos os experimentos revelam aproximações em relação à forma humana. Em um primeiro momento, toco a escultura de um grande artista, mas através de uma fotografia: tento encontrar seu toque enquanto aprendo que há um aspecto tátil em tudo o que é prometido à visibilidade. No segundo exercício, experimento sobre um material realmente escultórico, investigando as mesmas formas que apareciam nas fotografias, aprendendo com o toque algo que apenas a visão não pode me ensinar. Sem dúvida, estas são apenas algumas das aproximações possíveis entre as obras. Ao coloca-las no espaço expositivo, algo de minha prática se perde e elas passam a falar por si mesmas. Neste espaço aparentemente vazio, um vácuo preenchido por gestos e sons, por uma potência que faz a matéria vibrar, os experimentos visuais pontuam o cenário com novas questões, ainda sem resposta. O desaparecimento de escalas, formas, imagens, melodias, evidencia um desejo latente por indiferenciação. Meus gestos passados ainda trabalham ativados pela Música das Esferas e pelas experiências de relação entre os trabalhos, mas eles não são mais os mesmos. Influenciam uns aos outros, sofrem influências de outros corpos, tempos, modificam-se. Tornam-se também indiferenciados.


DESDOBRAMENTOS Durante os dois anos que investiguei meus interesses pelas paisagens cósmicas (e o que elas tinham de relação comigo e meus gestos), experimentei diversos meios e mídias. Foi apenas nos últimos meses de mestrado que um interesse por uma prática escultórica começou a surgir de forma mais marcante, com o projeto e a realização de Nave e, antes, com a elaboração de pequenos objetos para o Mare Crater e outros experimentos em cerâmica. De fato, se olho para trás, parece óbvio que o toque e esse aprendizado que se dá com as mãos (que Bachelard chama de “poemas do tato”) acabariam por ganhar importância. Afinal, como falar dos gestos do cosmos, sempre marcados por uma grande violência (os impactos dos meteoros, as colisões entre planetas, a explosão de estrelas, os buracos negros), sem experimentar com minhas próprias mãos uma força que os repete, mesmo que em escala? Quando comecei a trabalhar com cerâmica, percebi que minhas mãos precisam perder o medo de modelar. Trabalhar com o barro exigia uma força que me era muito estranha e só depois de vários meses comecei a entender que ele demandava (e aguentava) carinhos muito intensos. Era preciso amassar, bater, moldar, apertar, com grande firmeza. A verdade é que este relacionamento com a matéria mole, ainda disforme, se tornou muito mais interessante do que a busca por uma forma. Trabalhar no torno, por exemplo, era muito prazeroso, e alcançar a forma desejada era, portanto, o fim da brincadeira. Logo percebi que estes prazeres não me tornavam uma ceramista. Eu encontrava as mesmas questões em outros materiais (por exemplo no vídeo e na fotografia, como mostram Mare Crater e Regolito). O que estava me interessando, me dei conta, era o diálogo que acontecia quando minhas mãos / meu corpo entrava em contato com algum material, qualquer que ele fosse. Me interessava pelo gesto, pelas marcas que meus gestos conseguiam produzir, pela quantidade de força aplicada (do muito sutil e controlado, como o toque em Regolito ou a construção do objeto que deu origem ao Música das Esferas, ao muito violento, como aquele de amassar e modelar o barro, em Nave). Percebia que trabalhava com materiais que já haviam passado por incontáveis processos de erosão, desagregamento, sedimentação, esfarelamento. Minhas mãos, através de meus gestos plásticos, entravam em contato com um tempo antigo; faziam parte da história mineral de tudo aquilo que tocava, lhe alterando os rumos. Eu nem mesmo precisava buscar formas que se assemelhavam a corpos celestes, pois meus gestos já se inseriam nesse contexto mais amplo, onde tudo o que existe conta uma história que remonta há muitos milhares ou milhões de anos. Eles eram intrinsicamente cósmicos. Mesmo o som, que parece ser um desvio disso que descobri ser meu tema de interesse, também entra nesse processo de transformação, sendo por mim considerado uma matéria que toma forma através de um processe de modelagem (Música das Esferas é um som redondo porque o objeto que o produz é redondo). De modo inverso, comecei a pensar que o som me interessava porque ele podia dar forma aos corpos, um pouco como propõe a teoria das supercordas, que ainda

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aguarda embasamento teórico no campo da física. Encontrei no som um meio gestual, que, assim como minhas mãos, também modela o seu redor. Enquanto realizava meus experimentos, percebi um interesse grande por tudo aquilo que ainda guardava a forma do meu corpo, a forma humana. O ser humano começou a ser utilizado como medida, mas não como algo que se coloca em escala em relação a alguma coisa, mas como medida sensível, de sensibilidade. Penso que não tive muito tempo para desenvolver o assunto e que este seria um tema que gostaria de continuar esmiuçando no futuro, pois muito me interessa investigar, como diz Antony Gormley, essa experiência da vida que se dá a partir de um corpo humano. Esse interesse pelo corpo, que ainda está em estágio embrionário e é visível em Nave, trabalho que é ainda um projeto, se fez cada vez mais presente conforme comecei a utilizar técnicas de impressão por contato para obter moldes e matrizes para a realização dos trabalhos. Esse aspecto anacrônico da técnica, que me coloca em paralelo com os homens da pré-história, sabendo que não estou repetindo um gesto antigo ou primordial, mas ainda me surpreendendo com os resultados imprevisíveis da prática, ainda me coloca muitos questionamentos. Há um campo muito vasto de pesquisa no que diz respeito ao assunto: diálogo entre materiais, memória, processos cósmicos. Já nos últimos meses de pesquisa, pude me dar conta de que as muitas possibilidades de impressão por contato, que se davam no âmbito do tato, da

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audição, da visão, do cosmos, apontavam para uma mistura / um atravessamento de sentidos. Fiquei receosa de que meu interesse por trabalhos sonoros fosse divergente do aspecto mais gestual que aparecia em minha prática, mas percebi que o som também imprime, moldando a matéria através da frequência. Por fim, creio que estes trabalhos, por mais prontos que parecem estar, são embriões para alguma outra coisa. A relação com o espaço expositivo, que só se deu no final da pesquisa, ainda não foi devidamente explorada. Isso deveria ser um começo, a partir de onde poderia desenvolver ainda outros trabalhos e aprender, ainda em outra escala, quais são as relações sensíveis que podem acontecer entre o espaço expositivo, meu corpo, o cosmos. Afinal de contas, se o que me guiou durante o mestrado foi uma inclinação crescente por um pensamento escultórico, então precisaria entender que o entorno da escultura também é escultura. Termino estes dois anos de mestrado com uma vontade enorme de continuar trabalhando nesse lugar / vazio recém-descoberto (que está na fábrica do meu pai e em mim também), me aprofundando em questões específicas suscitadas pelo exercício da escultura, sem perder de vista o fato de que posso tratar de aspectos escultóricas a partir de diversos meios. O devaneio, no entanto, permanece o mesmo. Sonhadora de universo, me inclino em direção a outros planetas, estrelas, corpos celestes, buscando o mesmo brilho fantasmático que enxerguei nos mares lunares. Que estes outros corpos sejam tão generosos quanto foram estes mares de pedra.


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PA L O M A R O B S E R VA O U N I V E R S O

R O S E T TA A paisagem estelar é propícia a devaneios. Enquanto observa o céu, sentado em sua poltrona, na varanda de casa, o senhor Palomar revisita, em sua mente, o canard aux épices acompanhado de batatas assadas que almoçou mais cedo, as ervas daninhas que insistem em crescer no jardim e os sapatos desencontrados que comprou em uma viagem ao Marrocos, vários anos atrás. De repente, os olhos, como que pousados no azul escuro, captam um brilho fugaz. Algo desenha um traço luminoso na abóboda celeste, coisa que não dura mais do que um breve instante. O fato fugidio, no entanto, tem grande efeito sobre Palomar. Ele se põe a pensar em trajetórias, colisões, órbitas. Abre seu caderno de notas, a procura do que havia escrito sobre uma tal sonda chamada Rosetta. Rosetta é uma caixa de alumínio, pesando cerca de 3000kg. Mede 2,8 x 2,1 x 2m. Possui dois painéis solares configurados como um par de asas. Sua envergadura, por causa das placas, chega a 32m. Ela é a primeira sonda a depender somente de suas células solares na produção de energia. Seus equipamentos examinam como se dá a formação da cauda do cometa; a interação dos químicos; a influência que exercem a radiação e os ventos solares; sua composição e atmosfera. Foi lançada no dia 2 de agosto de 2004, pela ESA (European Space Agency), dando início a uma jornada de 12 anos rumo ao Cometa 67P / Churyumov-Gerasimenko. O tal cometa foi primeiro observado em 1969, pelos astrônomos Klim Churyumov e Svetlana Gerasimenko, em Kiev, na Ucrânia. Ele possui 3km de largura e 5km de comprimento. Orbita o Sol a cada 6,5 anos, entre os percursos da Terra e de Júpiter. Deve ter sido originado no Cinturão de Kuiper – região além da órbita de Netuno – e arremessado em direção ao Sol, ficando preso na órbita de Júpiter, devido ao enorme empuxo gravitacional exercido pelo planeta. No dia 6 de agosto de 2014, 10 anos desde seu lançamento, a sonda Rosetta finalmente alcançou o Cometa 67P, entrando em sua órbita. Ela encerrou sua missão no dia 30 de setembro de 2016, com uma colisão planejada e bem sucedida. O senhor Palomar se surpreende! Nesse mesmo dia, dois anos atrás, o homem lembravase de ter dado início a uma série de experimentos artísticos! Enquanto a sonda realizava milhares de fotografias em alta resolução do corpo celeste, fazendo mesmo algumas

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* A água encontrada no cometa é diferente da achada na Terra, sugerindo que asteroides, ou ao menos cometas diferentes do 67P, devem ter trazido a maior parte da água de nosso planeta. O time Rosetta também encontrou compostos orgânicos, os blocos construtivos da vida, sobre o corpo celeste, além de ter esmiuçado as transformações porque passavam a superfície do cometa conforme se aproximava e afastava do Sol.

descobertas importantes, * e desenhava sua trajetória elíptica ao redor do Sol, Palomar traçava seus próprios caminhos – tortuosos! Parecia ao senhor Palomar impossível pensar que, nesse cosmos onde tudo se interliga, seus gestos (muito) humanos não tenham influenciado e sofrido as influências destes corpos no espaço. Enquanto Palomar moldava um tanto de argila, Rosetta registrava a superfície gelada, marcada por incontáveis milênios de impressões por contato. Conforme Palomar deliciava-se com a parafina, sonhando com eras geológicas inteiras entre uma camada e outra de cera, Rosetta investigava as camadas de gelo que derretiam e se formavam, conforme o cometa se aproximava do Sol. Enquanto Palomar se surpreendia com o brilho tátil, o gesto luminoso que parecia dar origem à visão, Rosetta capturava em imagens a luz quase impossível daquele gelo cósmico iluminado por um olho primordial. Ao passo que Palomar brincava com uma antiga vitrola, ouvindo nela os sons do universo, Rosetta desenhava um caminho quase circular ao redor do Sol, semelhante aos veios do disco que produziam a música que chegava a seus ouvidos. No instante em que Palomar sonhava com atmosferas quentes que transmutavam a matéria, Rosetta experimentava temperaturas extremas em seu próprio corpo. Em todo esse tempo, o senhor Palomar não desconfiava que seus gestos eram repetidos e ressoados neste corpo distante! Cada movimento seu estava em consonância com os gestos cósmicos realizados por aquele objeto – viajando através do universo. Através dessa relação sensível, o senhor Palomar atravessava todo o Sistema Solar! Palomar, que agora olha, com renovado brilho, para aquele azul pontuado de

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estrelas – apesar de uma nuvem escura que se aproxima, apagando o Cruzeiro do Sul quase todo – percorre com a imaginação aquela trajetória elegante desenhada pela Rosetta. Rabisca em seu caderno a forma que pensa ter desenhado ao longo desse tempo, conforme percorria as ruas de sua cidade, país, planeta. Se dá conta de que vive em um cosmos miniaturizado! Percebe a complexidade de seus itinerários e, com certa tristeza, vê que não soube ser tão sofisticado quanto um cometa, que não precisa fazer curvas, desvios, frenagens.


Agora a nuvem que cobria parcialmente o céu multiplicou-se de tal forma que nenhuma estrela está à vista. O senhor Palomar sente uma gota que o acerta dentro do olho, em cheio. Levanta-se da poltrona com certo desconforto e pensa que o caminho até seu quarto é todo barreiras. Então, novamente, ilumina-se! Ele pensa no canard aux épices que está na geladeira, lhe esperando até o jantar, e se dá conta de que o Cometa 67P / Churyumov-Gerasimenko e a sonda Rosetta continuam em sua trajetória elegante. Ao menos algo se move de maneira decente neste universo caótico. Nesta breve meia hora que passou devaneando, o corpo celeste moveu-se 165 mil quilômetros em relação a Terra, arrastando consigo aqueles aparatos tecnológicos, poéticos. Secretamente, o senhor Palomar deseja que seus gestos reencontrem aqueles do corpo celeste, distante. Não desconfia, no entanto, que cada movimento seu já está em consonância com os tantos outros, através do universo. [Conto livremente inspirado pelo livro Palomar (1994), de Italo Calvino. Homenagem à sonda Rosetta, que me acompanhou durante o mestrado, tendo alcançado a órbita do Cometa 67P no dia 6 de agosto de 2014 – mesmo dia em que comecei as aulas – e colidido com ele no dia 30 de setembro de 2016 – um mês antes de minha defesa de dissertação.]

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