ISSN 1982-5994
UFPA • ANo XXXIII • N. 147 • FeVereiro e MarÇo de 2019
Mercado Bolonha: cultura, economia e patrimônio arquitetônico Página 5
Nesta edição • Agrotóxicos contaminam o Baixo Tocantins • Professor usa Whatsapp para ensinar Matemática • A cultura do estupro presente no discurso jurídico
UNiVeRsidade FedeRaL do PaRÁ
JORNAL BEIRA DO RIO cientificoascom@ufpa.br Direção: Prof. Luiz Cezar Silva dos Santos Edição: Rosyane Rodrigues (2.386-DRT/PE) Reportagem: Flávia Rocha, Nicole França e Renan Monteiro (Bolsistas); Walter Pinto (561-DRT/PA). Fotografia: Alexandre de Moraes e Nayana Batista Fotografia da capa: Alexandre de Moraes Charge: Walter Pinto Projeto Beira On-line: TI/ASCOM Atualização Beira On-Line: Rafaela André Revisão: Elielson Nuayed, José dos Anjos Oliveira e Júlia Lopes Projeto gráfico e diagramação: Rafaela André Marca gráfica: Coordenadoria de Marketing e Propaganda CMP/Ascom Impressão: Gráfica UFPA Tiragem: Mil exemplares © UFPA, Fevereiro e Março, 2019
Reitor: Emmanuel Zagury Tourinho Vice-Reitor: Gilmar Pereira da Silva Secretário-Geral do Gabinete: Marcelo Galvão Pró-Reitor de Ensino de Graduação: Edmar Tavares da Costa Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: Maria Iracilda da Cunha Sampaio Pró-Reitor de Extensão: Nelson José de Souza Jr. Pró-Reitora de Relações Internacionais: Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira Pró-Reitor de Administração: João Cauby de Almeida Jr. Pró-Reitora de Planejamento e Desenvolvimento Institucional: Raquel Trindade Borges Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Raimundo da Costa Almeida Prefeito Multicampi: Eliomar Azevedo do Carmo Assessoria de Comunicação Institucional – ASCOM/ UFPA Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa. N.1 – Prédio da Reitoria – Térreo CEP: 66075-110 – Guamá – Belém – Pará Tel. (91) 3201-8036 www.ufpa.br
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Mercado de Carne, em Belém, faz parte do Complexo do Ver-o-Peso, porém não é tão visitado. Inaugurado em 1867 e remodelado pelo engenheiro Francisco Bolonha em 1908, o mercado traz as marcas da Belle Époque. Mas o arquiteto Luiz Henrique Rabelo da Silva foi além das formas e analisou os valores culturais e econômicos atribuídos ao mercado. Os resultados estão na dissertação apresentada ao PPGAU/ITEC/UFPA e você pode conferir na reportagem assinada por Flávia Rocha. Cada vez mais presente em nosso dia a dia, o celular também chegou à sala de aula. O professor de Matemática Michel Silva dos Reis decidiu transformar o aparelho em aliado e transformou o aplicativo de mensagens Whatsapp em ambiente de aprendizagem. Com a motivação extra, os alunos da Educação de Jovens e Adultos tiraram dúvidas, aproximaram o conteúdo das suas realidades, demonstrando autonomia e interesse. Leia também: a análise feita por Mailô de Menezes Vieira Andrade do discurso do sistema penal sobre o estupro; projeto de extensão da Faculdade de Turismo da UFPA garante visita monitorada ao Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi; águas das sub-bacias do Baixo Tocantins estão contaminadas por agrotóxicos.
Rosyane Rodrigues Editora
Nesta Edição Relacionamentos em aplicativos ........................................4 O primo pouco conhecido ................................................5 Conhecer para preservar ................................................6 Reinventando a sala de aula ............................................. 7 “Ela não mereceu ser estuprada” . .....................................8 Internacionalização de sul a sul ....................................... 10 Moderna, mas nem tanto ............................................... 12 Baixo Tocantins em risco . ............................................. 14 Encontros com Clarice Lispector ..................................... 16 Oito décadas de eleições paraenses .................................. 18
Foto Alexandre de Moraes
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FOTOS NAYANA BATISTA
Opinião
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Relacionamentos em aplicativos
ara ir à busca de um relacionamento, hoje em dia, é preciso entender como os rituais se modificaram. Os antropólogos Victor Turner e Richard Schechner, em suas obras, apontam seus conceitos sobre ritual como um momento separado do cotidiano. Podemos associar os rituais como parte da esfera das relações sociais, pois se modificam com o reflexo do sujeito imerso no social. Então, pedir a mão da menina em namoro formalmente pode não fazer parte da intencionalidade do sujeito, como estar presente nos aplicativos de relacionamento pode ser intenção da pessoa ou vice-versa. Por isso a sociedade contemporânea está experimentando as dinâmicas dos relacionamentos, e os recursos tecnológicos fazem parte disto. Os novos mecanismos e produtos de relacionamento fazem com que tanto o indivíduo quanto as suas relações sejam transformados nesse processo. Por conta disso, os smartphones são utilizados como ferramentas de acesso e interações. Raquel Recuero, comunicóloga e pesquisadora das trocas conversacionais no ambiente digital, aponta que as relações sociais digitais foram percebidas quando houve um crescimento de pessoas interagindo nas redes sociais e nos aplicativos (comumente chamados “apps”). Segundo dados da 2018 Globo Digital, We are Social e Hootsuite, o Brasil está entre os três países em que as pessoas passam, em média, 9 horas do dia navegando na internet e gastam 3 horas e meia acessando as redes sociais, quesitos acima da média. Essa teia social se baseia nas trocas de informações, no consumo, no entretenimento e nas experiências sociais em novos cenários midiáticos. Então, o que fazia parte do ritual, antigamente, se transformou e, hoje, os relacionamentos não são mais comumente arranjados ou controlados, em sua maioria. A sociedade moderna fragmentou a experiência afetiva, mostrando novas formas de ressaltar as relações amorosas, matrimoniais, entre outras. O sociólogo Zygmunt Bauman aponta a incerteza em suas discussões, especialmente na sua obra Amor Líquido, ressaltando a “cultura do passageiro”, pois o “não se envolver” mostra-se uma opção mais atraente. Nesse sentido, relaciona-se o crescimento de MARCELO SILVA / FREE IMAGES
downloads dos chamados aplicativos de relacionamento. No Brasil, por exemplo, o número de usuários da Plataforma Tinder só perde para os Estados Unidos e o Reino Unido. A plataforma afirmou que já foi responsável por 1,6 bilhões de “deslizes” por dia e 20 bilhões de combinações. A plataforma criada em 2012, nos EUA, está ativa em 190 países, segundo o site CanalTech. Para quem não conhece, o aplicativo faz o cruzamento de informações pessoais e exibe outros usuários para combinar (o famoso match) seus interesses e iniciar algum diálogo. Existe, além do Tinder, uma série de aplicativos com a mesma finalidade, como Hornet, Adote um Cara, Bumble, Grindr, How about we, Badoo, Date me, LOVOO, Par Perfeito, entre outros. Os aplicativos de relacionamentos são criados com a finalidade de encontros, amizades e sexo. Até para quem procura um relacionamento abençoado e cristão, o aplicativo Divino Amor tem esse intuito. A partir dessa construção, a sociabilidade em cada App é pautada pelo objetivo do usuário, partindo do que Raquel Recuero aponta como uma construção do sujeito em rede. Em sua maioria, as fotos são pontes de visibilidade, e os corpos expostos tendem a determinar o início e o desenvolvimento de uma conversa. Esses corpos podem “performar” com fotos bem editadas, com ângulos favoráveis, perfis criativos etc. A empresa Match Group LatAm, detentora das marcas de aplicativos de relacionamento Tinder, ParPerfeito, SingleParentMeet, Divino Amor, Divina Palavra, Fresh e G Encontros, realizou o Estudo dos Solteiros, em 2018, no Brasil, com mais de 5 mil solteiros on-line, sendo 92% dos entrevistados acima dos 30 anos. A pesquisa ainda considera que mais 72% dos usuários acreditam que não existe mais preconceito sobre o uso desses tipos de apps, constatando o quanto essas plataformas já estão imersas nos comportamentos de pessoas que não usaram e/ou não conheciam essa nova prática de relação. A empresa também criou, em 2016, o site de relacionamento OurTime, voltado para pessoas com mais de 50 anos que buscam uma relação duradora. Segundo pesquisa realizada pelo site de relacionamentos eHarmony, 70% dos casais terão se conhecido por meio dos aplicativos de relacionamento nos próximos anos. Desse modo, propomos novas discussões que visem reforçar e aprimorar os estudos centrados no consumo de Apps e questões de gênero no grupo de pesquisa Comunicação, Consumo e Identidade do Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia. Manuela Corral – Doutora em Antropologia pelo PPGA/ UFPA e professora na Faculdade de Comunicação (FACOM). Líder do Grupo de Pesquisa Comunicação, Consumo e Identidade (CONSIA). E-mail: mcorral@ufpa.br Elson Santos – Mestrando no PPGCom/UFPA e membro do Grupo de Pesquisa Comunicação, Consumo, Identidade e Amazônia (CONSIA). E-mail: elsonsnts1@gmail.com
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Patrimônio
O primo pouco conhecido Mercado de Carne está no Ver-o-Peso, mas não é tão valorizado Flávia Rocha
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Mercado de Carne ou Mercado Bolonha foi inaugurado no Complexo do Ver-o-Peso em 1867, seguindo os padrões dos mercados europeus da época. Construído em alvenaria e tijolos, a estrutura inicial do mercado não conseguia mais comportar a quantidade de mercadores e clientes que o frequentavam, tornando o local insalubre. Em 1908, o engenheiro Francisco Bolonha remodelou o Mercado com novas estruturas de ferro,
usando uma arquitetura claramente reconhecível como do período da Belle Époque. “O Mercado de Carne faz parte do Complexo, mas não é tão famoso quanto o Mercado de Peixe, então, quando as pessoas entram no prédio, se surpreendem com a estrutura”, afirma o pesquisador Luiz Henrique Rabelo da Silva. Atualmente, o Mercado de Carne é considerado um patrimônio da cidade de Belém e é responsável por uma rede de interação entre os cidadãos que lá convivem, criando um
rico segmento da cultura paraense. Buscando analisar os valores culturais e econômicos atribuídos ao Mercado, o pesquisador Luiz Henrique Rabelo da Silva escreveu a dissertação Mercado Bolonha: Patrimônio Arquitetônico e locus de práticas culturais comerciais em Belém do Pará, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/ITEC), com orientação da professora Cybelle Salvador Miranda. “É importante estarmos atentos para os bens patrimo-
niais existentes em nossa sociedade, o que eles representam culturalmente, e destacar as pessoas que usufruem desses bens”, afirma Luiz Rabelo. Em sua dissertação, ele busca ressaltar a relevância social de locais como o Mercado de Carne, que vai além da rentabilidade econômica do prédio. “É preciso fomentar uma nova visão de patrimônio, que ainda é emergente no Pará. Precisamos desconstruir essa concepção de que, se o prédio estiver em pé e intacto, está tudo bem. Mas, e quanto ao uso?”, questiona.
Em 2011, o Mercado de Carne passou pela sua última grande reforma e foi reinaugurado. “Após essa restauração, vários investimentos privados foram atraídos para o local, alguns com valor turístico. No decorrer da pesquisa, em conversa com os frequentadores, observei que muitos deles acreditam que, caso o Mercado sofra um tipo de intervenção mais voltada para o turismo, será melhor para eles. A questão é que, quando essas intervenções ocorrem, há grande chance de apropriação do espaço, obrigando a saída daqueles que trabalham e vivem lá. Isso se chama gentrificação comercial”, explica Luiz Rabelo da Silva. De acordo com o arquiteto, algumas mudanças ocorreram logo após a reabertura do Mercado de Carne, em 2011, nem todas positivas. “A pesquisa comprova que a quantidade de boxes de açougueiros - a carne é a grande identidade do mercado - foi diminuindo. A intervenção durou cinco anos e, nesse período, o mercado foi fechado. Os fregueses de então acabaram indo para outros lugares e alguns comerciantes decidiram abrir seu negócio em casa ou foram
para outros segmentos. Foi algo muito brusco”, avalia o autor da pesquisa. O pesquisador afirma que é necessário valorizar o Mercado de Carne como patrimônio material, começando pela valorização de quem trabalha no local. “Manter as redes de práticas sociais é fundamental para garantir o funcionamento ideal do mercado, sem excluir o turismo. Promover experiências em que as pessoas conhecessem a história do mercado e seus trabalhadores, para evitar que ocorra gentrificação”, sugere Luiz Rabelo. Uma das referências bibliográficas da pesquisa é o historiador Ulpiano Meneses, o qual diz que a valorização, isto é, o valor econômico de um local é visto como mais importante que o seu valor cultural (valorização). Portanto faz-se necessário estudar os fatores que contribuem para determinar como cada objeto/monumento patrimonial será utilizado. “Se as complexas redes de práticas construídas ao longo de muitas décadas forem menosprezadas, a nova imagem do Mercado de Carne pode representar uma ameaça à identidade, à memória e à história da cidade”, conclui o pesquisador.
ACERVO DO PESQUISADOR
Mudanças após a reforma não foram todas positivas
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Turismo
Conhecer para preservar Projeto promove visitas monitoradas ao Museu Emílio Goeldi Nicole França
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er conhecimento sobre a Amazônia é fundamental para que as pessoas compreendam os problemas ambientais presentes na região e desenvolvam uma consciência de conservação e preservação dos recursos naturais existentes aqui. Pensando nessa conscientização, a Faculdade de Turismo (FACTUR) desenvolveu o Projeto de Extensão Visitação em Parque Zoológico: educação ambiental, ecologia e zoologia na
Amazônia (VPZ), coordenado pelo professor Fabrício Lemos de Siqueira Mendes. O projeto de extensão busca desenvolver as noções de Educação Ambiental com base no incentivo à prática de visitas monitoradas em parques zoológicos, durante as quais ocorre a articulação entre as áreas do ecoturismo, da ecologia e da zoologia, mostrando a importância da preservação e da conservação da natureza amazônica. O Projeto Visitação em Parque Zoológico (VPZ) surgiu
em 2016 e atende somente ao Museu Paraense Emílio Goeldi. Para a realização das visitas, foram selecionados 15 alunos do curso de Turismo, para atuar como monitores. Os estudantes são capacitados pelo coordenador do projeto e pela equipe técnica do Museu Goeldi, para receber os visitantes (locais e turistas) e elaborar dinâmicas, atividades e materiais didáticos que auxiliam nas visitações. As visitas podem ser agendadas no próprio Museu Goeldi. “É muito gratificante ver o impacto que o projeto
tem causado. Após as visitações, os monitores relatam que as pessoas parabenizam o projeto pela visita diferenciada, que instrui e educa. Nós oferecemos roteiros que contemplam apenas os animais presentes no Museu, os vegetais, os monumentos históricos ou ainda visitas voltadas para a educação ambiental. O visitante que participa de uma visita monitorada tende a voltar, pois sempre haverá uma novidade esperando por ele”, explica o coordenador Fabrício de Siqueira Mendes.
Aplicativo permitirá que usuário acesse informações O projeto busca, principalmente, o desenvolvimento da Educação Ambiental. “Nós conversamos sobre esse tema em todos os níveis de ensino. Às vezes, as pessoas têm contato com a temática na televisão, na internet e na sala de aula, mas quando são levadas à prática em ambientes onde há o verde e a natureza, o impacto é maior. Quando isso ocorre com pessoas que tiveram a capacitação adequada para falar sobre o assunto, como nossos alunos, é ainda melhor!”, afirma o professor Fabrício Mendes.
Além das visitações no Museu Paraense Emílio Goeldi, o VPZ também realiza reuniões com seu grupo de estudo uma vez por mês. O grupo é aberto ao público interessado e nele são debatidas as questões ambientais que envolvem a Amazônia e o Museu, como a fauna, a botânica e o patrimônio histórico. De acordo com o professor, a cada reunião, um componente do grupo sugere um tema para discussão. Os discentes participantes do Visitação em Parque Zoológico também são responsáveis
pelo levantamento de dados, que visam conhecer o perfil socioambiental dos visitantes e de outros dados que o Museu Goeldi achar necessário. Tal levantamento é fundamental para a produção de artigos científicos e apresentações em congressos nacionais. Em seus dois anos de atividade, o projeto já pôde participar do III Congresso Brasileiro de Estudos do Lazer (Campo Grande/MS), do I Encontro de Uso Público de Áreas Protegidas (SP/SP) e do 8° Congresso Brasileiro de Extensão Universitária (Natal/RN).
Além dos Congressos, o projeto de extensão já apresentou outros resultados, como o desenvolvimento de um aplicativo que será lançado este ano. No aplicativo, o usuário pode acessar um mapa e saber a sua localização exata dentro do Goeldi e um QR Code que, quando apontado para a placa de um determinado recinto ou monumento, exibirá as informações sobre o local. “É uma forma de o visitante fazer a visita sozinho, mas com a informação em mãos”, afirma Fabrício de Siqueira Mendes. ACERVO DO PROJETO
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Educação
Reinventando a sala de aula
ACERVO DA PESQUISA
Professor usa Whatsapp para ensinar Matemática Renan Monteiro
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todo momento e em qualquer lugar, pessoas conectadas em rede podem interagir com facilidade. Mas como utilizar a acelerada interlocução das redes sociais em prol da educação? O professor de Matemática Michel Silva dos Reis desenvolveu uma pesquisa com esse viés. Intitulado O ensino e a aprendizagem de matrizes no contexto da resolução de problemas e da plataforma Whatsapp, o estudo foi defendido no Programa de Pós-Graduação em Docência em Educação em Ciências e Matemáticas (PPGDOC/ IEMCI), com orientação do professor Osvaldo dos Santos Barros. A pesquisa foi elaborada com os alunos da Educação de Jovens e adultos (EJA) do Ensino Médio, no período de junho a agosto de 2016. A turma era composta por
25 alunos da segunda etapa do Ensino Médio (segundo e terceiro anos condensados), moradores do bairro Bengui, com idade entre 22 e 52 anos. “Como os alunos utilizavam muito o Whatsapp e ficavam dispersos em sala de aula, achei pertinente utilizar esse meio de comunicação para discutir Matemática. Então a pergunta da pesquisa seria: como utilizar o Whatsapp como forma de estudar a Matemática (especificamente Matrizes) e dar mais autonomia aos estudantes?”, explica Michel Reis. A escolha do conteúdo Matrizes deu-se pelo interesse dos alunos e pela relevância do estudo. O pesquisador explica que as aulas com turmas da modalidade de aceleração da escolarização não podem ter características de aula comum. É necessária uma motivação diferenciada. Na busca por essa motivação, os elementos encontrados foram
o Whatsapp e o método de Resolução de Problema do teórico George Polya, que propõe quatro passos para resolver os problemas matemáticos. O Método de Resolução de Problemas foi trabalhado em sala de aula. O primeiro passo foi entender o problema, o segundo foi traçar um plano para esse problema, o terceiro foi executá-lo e o último foi fazer um retrospecto. No contexto do Whatsapp o professor era o mediador, “Nós fazíamos uma sala de aula ampliada. As dúvidas e outras discussões eram resolvidas na plataforma Whatsapp. Os alunos trabalharam dialogicamente no grupo virtual desenvolvendo as atividades pedagógicas apresentadas, como num fórum de discussão. Eles interagiram trocando mensagens ou fotos, enviando respostas aos questionamentos propostos, além de fazerem pesquisas”, relata o professor.
Resultado: maior desempenho e autonomia O professor explica que o aplicativo, pelo modo como foi utilizado, consistiu em um instrumento com um alto potencial didático para as aulas de Matemática, pois os diálogos no grupo virtual ampliaram o tempo de estudo dos alunos, além de proporcionar o registro das conversas e as explicações do professor. Neste sentido, o aplicativo Whatsapp tornou-se também um meio de revisão e registro dos assuntos. “Os alunos demonstraram motivação na busca de elementos para o estudo de Matrizes, participaram das resoluções de problemas perante seus colegas, sem inibições,
demonstraram interesse pelo objeto de estudo em questão, além de construírem e solucionarem problemas criados por eles próprios”, comemora Michel Reis. Um aspecto importante era como os alunos trabalhavam com elementos do cotidiano, ao desenvolver suas questões, responder aos questionamentos do professor ou discutir em grupo. Ao explicar o que é uma Matriz Quadrada, por exemplo, os alunos descreviam ou enviavam fotos de objetos do seu ambiente de trabalho ou familiar. Outro aspecto interessante é que eles faziam a reificação dos
conceitos. Aspectos de Matrizes difíceis de memorização, os alunos conceituavam de maneira informal, mas assertiva. Para o pesquisador, isso é indício de autonomia e aprendizagem. Todos os 25 alunos da turma do 2º ano EJA/Médio realizaram testes. Foi analisado o desempenho da mesma turma com e sem o Whatsapp. Nos dois bimestres, sem a mediação do aplicativo, houve queda no desempenho dos alunos nos testes realizados para as primeiras avaliações antes da aplicação do projeto de pesquisa. Já com o apoio pedagógico do ambiente virtual, foi possível melhorar
pontos de dificuldade, de baixo interesse, de não compreensão dos vocabulários matemáticos ou de falta de repertório dos conteúdos. Para Michel Reis, é necessário utilizar, estrategicamente, os meios tecnológicos em prol da educação. “Não estou defendendo a tese de deixar de lado a aula tradicional (presencial e escrita), porque o aluno precisa estar presente em sala, ler e escrever. O Whatsapp vem como auxílio, e nós tivemos um resultado satisfatório, observando maior desempenho, autonomia e interesse dos alunos”, conclui o professor.
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Violência
“Ela não mereceu ser estuprada” Pesquisa analisa discurso jurídico sobre o estupro Nicole França
D Livro com resultados da dissertação foi lançado em novembro.
e acordo com os dados levantados pelo 11º Anuário de Segurança Pública, foram registradas 49.497 ocorrências de estupro em 2016. Tal número representa um aumento de 3,5% em relação ao ano anterior. O anuário, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, considera somente os casos registrados em boletins de ocorrência e, segundo ele, o Estado do Pará é o 9º colocado no ranking dos Estados com as maiores taxas de estupro do País. Tais dados mostram que a problemática dos casos de estupro no Brasil é real e deve ser devidamente tratada. NAYANA BATISTA
Tendo em vista as altas taxas envolvendo esse tipo de crime no País e no Estado, a temática do estupro foi abordada por Mailô de Menezes Vieira Andrade, na dissertação Ela não mereceu ser estuprada: A cultura do estupro, seus mitos e o (não) dito nos casos penais, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/ICJ), com a orientação da professora Ana Cláudia Bastos de Pinho. Na pesquisa, Mailô Andrade buscou identificar de que forma a cultura do estupro está presente nos discursos do sistema penal e, para isso, analisou 46 acórdãos envolvendo o crime de estupro, julgados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará, no ano de 2017, dos quais foram levados em conta somente os casos que envolviam o homem como autor e a mulher como vítima do crime. A análise foi feita com base em leituras criminológicas e feministas sobre o estupro e a cultura do estupro apoiadas na hipótese da violência institucional que as mulheres sofrem ao buscar as agências penais. Nesses casos, indica a existência dessa cultura no Brasil, de forma que ela é constantemente reafirmada e mantida pelo sistema de justiça criminal. “Eu entendo que, nesse tipo de crime, a palavra da vítima é importante e tem especial relevância. Durante o curso das disciplinas e até mesmo na banca de qualificação, eu fechei o meu objeto de estudo como a cultura do estupro e busquei ver em que medida essa cultura se manifestava nos casos penais, para fazer um discurso crítico da atuação do sistema penal nesses casos e tentar combater alguns mitos que são difundidos sobretudo pelo sistema criminal”, afirmou Mailô Andrade.
Mas o que seria a “cultura do estupro”? De acordo com a pesquisadora, o termo “cultura do estupro” surge com o pensamento feminista norte-americano para mostrar que a sociedade possui uma cultura que incita, promove e, de certa forma, perdoa o estupro. Essa concepção pode ser aplicada ao Brasil. “O estupro é aceito e até mesmo estimulado. Então essa cultura culpabiliza e responsabiliza as mulheres pela violência sofrida, existindo vários instrumentos, inclusive institucionais, que tornam a cultura do estupro retroalimentável. Mas é importante ter noção de que a expressão ‘cultura’ dentro do pensamento feminista é atribuído a algo que pode ser modificado, que não é natural, não é inato. Assim, a ‘cultura do estupro’ traz consigo um caráter mobilizador, carrega uma mensagem de que esse cenário pode ser modificado”, explica Mailô Andrade.
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A dissertação pôde constatar que a cultura do estupro se dá no Brasil com o reforço aos mitos e estereótipos que envolvem esse tipo de violência. Para Mailô Andrade, tais mitos fazem referência a suposições de que a mulher provocou
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dessa violência, o caso não é compreendido como um estupro, mas como uma relação sexual consentida. Então, são vários mecanismos que se engrenam justamente para inviabilizar a responsabilização dos agressores”, analisa Mailô Andrade.
tal situação ou que a mulher não apresentou resistência suficiente. “A cultura do estupro se manifesta por meio dessa constante dúvida que é posta na narrativa das vítimas. Se não há resquícios de violência, se não há prova física
Narrativa da vítima é colocada sob suspeita Na pesquisa, Mailô Andrade pôde perceber que não é qualquer caso de estupro que é reconhecido efetivamente como estupro e não é qualquer caso que acarreta sentença condenatória. “Existe uma expectativa de que haja violência física, de que a vítima resista de alguma maneira, inclusive colocando a sua vida em risco. Também se entende que essas vítimas seguem padrões de comportamento, de fragilidade, de domesticação. Tais ideias são racializadas e dizem respeito ao estereótipo da mulher branca, a única vítima reconhecida pelo sistema penal. À mulher negra, resta o estigma da desonestidade, reforçando pensamentos como o de que ela deve ter permitido ou provocado”, revela a pesquisadora.
de estupro conjugal ou estupro marital), não houve nenhum caso como esse no período analisado pela pesquisa. Para Mailô, tal fato reforça a ideia de que muitas situações de estupro não estão sendo reconhecidas pela Justiça Criminal como estupro. Mailô Andrade entende que o caminho para solucionar o problema é expor a cultura do estupro. “Essa é uma estrutura que envolve as relações de gênero instituídas histórica e culturalmente. O primeiro passo é reconhecer o problema e nomeá-lo para que possamos discuti-lo e enfrentá-lo. No momento, é muito importante continuar lutando para que essas vítimas sejam respeitadas como cidadãs pelo sistema de justiça criminal”, conclui.
Além disso, Mailô Andrade ressalta que “as vítimas também são violentadas institucionalmente cada vez que têm a sua narrativa colocada sob suspeita, cada vez que são questionadas. É importante ressaltar que elas não são questionadas pela defesa do acusado, mas pelos próprios agentes estatais (delegado, escrivão, juiz e representante do Ministério Público). Elas são questionadas sobre a roupa que usavam, se resistiram e a razão pela qual demoram a denunciar. Isso tudo tem relação com os mitos expostos na pesquisa”, afirma. Embora exista uma estimativa de que de 8% a 12% dos estupros sejam cometidos por parceiros ou ex-parceiros (o que é denominado
BoLetiNs de oCoRRÊNCia PoLiCiaL No estado do PaRÁ (PoLÍCia CiViL) Crime
2013
2014
2015
2016
2017
TOTAL
Estupro
935
899
806
847
984
4.471
1
33
16
50
2304
2607
2767
12.511
1
2
4
7
Estupro Qualificado Estupro de vulnerável
2435
2398
Estupro de vulnerável qualificado
FONTE: MAILÔ ANDRADE, 2018
saiBa Mais O processo de pesquisa e seus resultados foram publicados em forma de livro pela Editora Lumen
Relacionamento entre acusado(s) e
Juris, em novembro de 2018. O livro intitulado Ela não mereceu ser estuprada: a cultura do estupro nos casos
penais conta com prefácio escrito pela professora e antropóloga Jane Felipe Beltrão.
sobrevivente(s)
50% Desconhecidos: 36,95% Não consta informação: 13,04% Conhecidos:
FONTE: MAILÔ ANDRADE, 2018
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ALEXANDRE DE MORAES
Internacionalização de sul a sul Para Varela, UFPA só tem a ganhar na cooperação com países africanos Walter Pinto
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ascido em Cabo Verde, o professor Odair Barros Varela esteve em Belém realizando cursos nos campi de Cametá e Castanhal. Professor do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade de Cabo Verde, ele é licenciado em Relações Internacionais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra e pós-doutor pela Université du Québec à Montreal. Sua carreira acadêmica soma publicações em livros e revistas e participações em conferências nacionais e internacionais, principalmente sobre os temas pós-colonialismo na África, poder e conhecimento,
Estado moderno, governança e migrações internacionais. Nesta entrevista, ele fala sobre alguns desses temas e chama atenção para a virada diplomática brasileira e possíveis consequências para as universidades públicas.
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa Apesar de Portugal ter tomado a iniciativa de criar uma comunidade lusófona, considerando como padrão linguístico o português de Portugal, paulatinamente o Brasil passou a dominar o processo de acordo ortográfico por possuir uma população de mais de 200 milhões de pessoas e um
mercado livreiro mais forte. A CPLP surgiu de um ímpeto muito mais linguístico do que qualquer outro. No fundo, tentou-se criar uma literatura lusófona baseada apenas em uma categoria hereditária, a língua. Então alguns povos africanos, como Angola e Moçambique, começaram a reclamar de pertencerem à comunidade somente por esse viés, apesar de ligarem-se a outras culturas não lusófonas. A questão da conciliação diplomática, um dos principais objetivos da comunidade, não funciona quando há grandes crises internacionais. Após o atentado de 11 de setembro, por exemplo, a CPLP não firmou uma posição própria, cada país
membro tomou uma posição. Portugal ficou ao lado dos Estados Unidos, da França e da Grã-Bretanha O Brasil ficou contra. Outro exemplo: a entrada da Guiné Equatorial na CPLP, um país de língua oficial não portuguesa, foi aceita, mas com críticas ao regime autoritário. Nesse caso, pesou mais o interesse comercial ditado pela questão da indústria petrolífera da Guiné. No caso do Brasil, a forma autoritária como ocorreu o afastamento da presidente Dilma não teve nenhuma repercussão na Comunidade. A CPLP continua sendo uma reunião de líderes, de primeiros-ministros e de presidentes, não desce às massas. As pessoas não sabem
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o seu significado. Penso que, para ela ser uma comunidade de fato, deve colocar em prática a conciliação diplomática e identificar-se com os anseios da população em questões como livre circulação de pessoas, bens de capital, isenção de vistos entre países, entre outras.
Pan-Africanismo O Pan-Africanismo é uma teoria de integração de nível continental, com origem na diáspora africana, a partir da independência de Gana, em 1957, liderada pelo presidente Kwame Kkrumah. A ideia era estabelecer a união do continente por meio da criação dos Estados Unidos da África, algo semelhante aos Estados Unidos da América do Norte, em que houvesse a integração do mercado, com união aduaneira pra superar as consequências do
Estudos Pós-Coloniais Fiz graduação em Relações Internacionais, em Coimbra, mestrado em Sociologia e Ciência Política e doutorado nas três áreas. Durante o doutorado, entrei em contato com os estudos pós-coloniais. Comecei a me interessar por esse campo de estudo que permite que você tenha uma visão crítica sobre seu próprio campo de atuação, como ver as Ciências Humanas como saberes eurocêntricos, coloniais, criados para ajudar as potências no projeto colonial. A Ciência Política como ferramenta de Estado para implementar o sistema de colonização, a Antropologia para ajudar a estudar e a controlar as populações. Então, basicamente, aquilo que comecei a pesquisar desde 2004 são as continuidades coloniais em Cabo Verde, na África. Aproveitei também para estudar
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Entrevista
Odair Barros Varela processo de colonização. Infelizmente houve muitos obstáculos e não se conseguiu implementar essa teoria integracionista, nem como teoria política, nem como sistema político. Entre os fatores do insucesso, está o neocolonialismo, sobre o qual Krumah havia alertado. As potências criaram muitos problemas para as lideranças africanas, incentivaram golpes de Estado e até patrocinaram o assassinato de líderes políticos. Mais de 80 deles morreram, o mais emblemático foi Patrice Lumumba, primeiro ministro do Congo. Outro fator foi a Guerra Fria. O confronto entre os blocos estadunidense e soviético e a procura por zonas de influência fizeram com que golpes de Estado ocorressem na África. Os EUA não aceitaram que as colônias caíssem em mãos soviéticas. Outro fator foi a autocracia das lideranças, as quais, no poder, tornaram-se ditadoras. Eu costumo dizer que foi um conjunto de fatores externos e internos que não permitiu o avanço do pan-africanismo.
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outras realidades da Ásia. Os estudos pós-coloniais observam as continuidades coloniais, com uma perspectiva analítica, não historiográfica, nem cronológica. Do ponto de vista historiográfico, já não há mais colonialismo na África, mas subsistem continuidades coloniais de saber e poder. Então há essa semelhança entre América Latina e África, que é a persistência da colonialidade. O mesmo acontece com as populações ameríndias e afro-americanas nos Estados Unidos e no Canadá. Em relação ao poder, conseguimos a independência política, mas, em termos econômicos e sociais, ainda há continuidades neocolonialistas. Como estudioso dos estudos pós-coloniais na África, consigo comparar o peso dos autores africanos nesse campo, com o peso dos autores europeus, americanos e asiáticos. Apesar das contribuições dos autores africanos a partir de 2005, os autores anglo-saxões ainda dominam essa escrita. Então, defendo de forma paradoxal, e até curiosa, a necessidade de descolonizar os próprios estudos descoloniais.
UFPA-Universidade de Cabo Verde Fui convidado para falar sobre as experiências dos estudos pós-coloniais na África e suas relações com a América Latina nos Campi universitários de Cametá e Castanhal, como parte de um convênio entre a UFPA e a Universidade de Cabo Verde, o qual é desenvolvido pelos professores do Instituto de Ciências da Educação da UFPA. Em 2017, vim pela primeira vez ao Pará. Estive em Abaetetuba, por meio do Programa de Pós-Graduação em Cultura. Tem sido sempre uma experiência muito rica, muito diversa, porque, comparando as realidades destas cidades com as africanas, percebo muito mais semelhanças do que diferenças. Elas pertencem a países que estão na semiperiferia da ciência, segundo o mundo acadêmico
ocidental do Norte, que ainda domina a produção de conhecimento acadêmico. Muitas vezes, por estarmos nessa periferia, por sermos originários de países que foram colônias europeias, ocorre a tendência de olhar somente para as cidades do Norte. Temos que inverter essa lógica. A via da internacionalização tem que passar pelo Sul. Isso não significa deixar de lado as pesquisas do Norte, mas é preciso reforçar a cooperação Sul-Sul. A UFPA teria muito a ganhar numa cooperação com os países africanos de língua portuguesa, como Cabo Verde, Angola e Moçambique.
Política externa e universidades O Brasil estava inserido numa lógica internacional interessante, com apoio às questões ambientais, à proposta de criação de um banco dos BRICS, uma espécie de substituto ao FMI, e lutando por mais democracia no Conselho de Segurança da ONU, com aumento no número de membros e participação de países africanos. A política externa havia dado um salto. Mas, se seguir a linha de Donald Trump, fará opção pelo protecionismo, voltará para si próprio e não olhará mais o mundo. Se você não olha o mundo, ele cai em sua cabeça. Em relação à pesquisa científica, a preocupação é grande, porque há possibilidade de as universidades públicas serem privatizadas. As federais e as estaduais poderão sofrer cortes orçamentários. Os programas vão passar por dificuldades, inclusive os de intercâmbio internacional. O Brasil é uma grande potência mundial, porque possui universidades públicas. É uma grande conquista brasileira, não pode ser ameaçada. Se você coloca a sociedade a serviço das empresas e privatiza tudo ao sabor de quem tem ações, escraviza completamente a sociedade. A consequência imediata dessa ação é o fim da soberania nacional.
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História
Moderna, mas nem tanto Caricaturas satirizam contradições da cidade de Belém nos anos 1920 Walter Pinto
O
campo da história social da Arte está em franco crescimento dentro dos estudos historiográficos na Universidade Federal do Pará. Em dezembro passado, um seminário deu mostra disso ao apresentar onze estudos em andamento, entre monografias, dissertações e teses, no Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (PPGHist/IFCH). A maior parte desses trabalhos centra o olhar sobre a obra de artistas plásticos ligados à pintura. Mas a caricatura também vem interessando aos pesquisadores, como fonte possível para apreensão do vivido. Um desses trabalhos buscou ler nas imagens produzidas pelo caricaturista Andrelino Cotta a expressão de Belém na década de 1920. Cotta foi um dos maiores nomes da caricatura paraense da primeira metade do século XX. Coube ao historiador Raimundo Nonato Castro estudá-lo em tese defendida
no PPGHist, em novembro passado, sob orientação do professor Aldrin Moura de Figueiredo. O artista, que nasceu em Cametá e fez carreira na imprensa da capital, era também pintor, compositor e músico. Tendo por título O lápis endiabrado: Andrelino Cotta e a caricatura do Pará nos anos 1920, a tese, além de discutir as representações sobre a cidade de Belém, volta-se para outras questões, entre as quais o próprio espaço midiático no qual as caricaturas de Cotta estão inseridas. Seu primeiro emprego como caricaturista foi na Revista A Semana, depois publicou charges no Jornal O Estado do Pará. Por fim, está entre os jornalistas e intelectuais que produziram a Revista Belém Nova. Nonato Castro conta que sua aproximação do tema ocorreu ainda no mestrado, durante a pesquisa sobre a tela “A conquista do Amazonas”, de Antônio Parreiras. No setor de obras raras da Biblioteca Pública Arthur Vianna, o olhar do
então pós-graduando foi direcionado para uma caricatura publicada em A Semana, mostrando uma cena da periferia da cidade, de abril de 1921, na qual um trabalhador, provavelmente da limpeza urbana, tenta drenar o alagado em frente das casas, acossado por um ameaçador jacaré. A cena, aos olhos de Nonato Castro, mostrou-se intrigante por apontar para um paradoxo. A revista A Semana era “ligada aos grupos políticos da sua época” e produzida para o deleite da elite da capital, leitores que residiam nas zonas mais valorizadas da cidade. Falava com entusiasmo dos bailes carnavalescos, publicava fotografias de pierrôs e colombinas, elogiava a segurança pública feita por guardas bem vestidos. A charge de Cotta, trazendo a periferia para aquelas páginas e, com ela, os jacarés, as onças, a lama, o aguaceiro e a falta de água nas torneiras, contradizia os valores que a publicação defendia.
Cotta: cametaense e sem formação em Arte Publicada na página central, a charge induz o autor da tese a pensar no destaque dado a Andrelino Cotta pelos editores da revista. Mesmo ele sendo ainda um jovem recentemente egresso do interior, vindo da cidade de Cametá, sem uma formação acadêmica específica na área das artes plásticas, como indicam as raras informações bibliográficas encontradas sobre ele. Nonato Castro transformou o campo de tensão entre a linha editorial e a caricatura de Cotta no problema historiográfico da sua tese. Os traços da cidade submersa em águas fétidas, contrariando a mensagem editorial de uma cidade que se pretendia moderna, apoiada em fotografias de grupos sorridentes e bem vestidos.
O cametaense Andrelino Cotta nasceu em 1896. Em 1919, ele já está em Belém, residindo na antiga Vila do Pinheiro, atual Distrito de Icoaraci. Lá ele deu início a uma das suas carreiras paralelas ao trabalho de caricaturista, a de professor, lecionando Desenho numa escola que criou. Cotta era um caricaturista autodidata. Entrou para a equipe de A Semana aos 25 anos, provavelmente levado por Pedro Bittencourt, que o apresentou aos proprietários da publicação. Uma rara fotografia sua, publicada na revista em 2 de julho de 1921, mostra-o jovial, trajando terno escuro, gravata borboleta e chapéu no mesmo tom. Detendo-se sobre as suas charges, percebe-se um amadu-
recimento de linhas, passando de traços primitivos, característicos da Arte Naïf, para um desenho estilizado, limpo, pessoal, com alguma inspiração nos contemporâneos J. Carlos e Belmonte, dois dos grandes nomes da caricatura no Brasil, na primeira metade do século XX. Seus temas recorrentes são os problemas urbanos da cidade, provavelmente vivenciados pelo artista em seu deslocamento diário da periferia para o centro. Mas Cotta também produziu enorme quantidade de desenhos sobre temas carnavalescos, alguns deles transformados em vinhetas por anos a fio. “Boa parte do trabalho do Cotta é formada pela caricatura sobre o contexto em que estava inserido. O que desenhava era o que
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CARICATURAS ANDRELINO COTTA
via em Belém. E o que via eram os problemas dos bondes, a carestia de vida, a precariedade do abastecimento de água, a exploração econômica, os constantes alagamentos da via pública. Seu olhar crítico vai ao
cerne das imagens para mostrar o cotidiano da cidade. E faz isso de forma desafiadora: dentro de uma revista que tinha uma proposta diametralmente oposta à mensagem dos seus desenhos”, avalia Nonato Castro.
Trabalho de “assombrosa qualidade” e preço bem baixo Autor da ilustração de capa, de charges e de caricaturas de personalidades da vida local, é possível que Andrelino Cotta recebesse pagamento por seu trabalho. O pagamento podia ser também de forma indireta, haja vista os proprietários de A Semana permitirem que montasse um ateliê na redação e anunciasse a produção por encomenda de pinturas e caricaturas. Suas caricaturas são descritas como de “assombrosa qualidade e preço bem baixinho”. Nonato observou que, “nas caricaturas dos membros da elite, o artista exagerava pouca coisa, o que era bem visto pelos redatores por não deixar os caricaturados numa situação humilhante”. Cotta não parou de publicar em A Semana nem mesmo quando passou a atuar no Jornal Estado do Pará e na Revista Belém Nova. Nos novos espaços, o trabalho do artista estava em sintonia com as linhas editoriais das publicações, ambas de oposição aos governos Souza Castro e Dionísio Bentes. “Não havia, nesses casos, nenhuma contradição. A caricatura crítica do artista era mais que bem-vinda”, afirma o pesquisador. Apesar de ter deixado um número grande de charges na imprensa da época, a pesquisa sobre Andrelino Cotta foi dificultada pela ausência de informações pessoais. No centro de Cametá, Cotta é uma das personalidades homenageadas na Praça dos Artistas, mas a memória local praticamente se
resume a isso. Nonato Castro buscou entrevistar parentes, encontrar documentos cartoriais e vasculhar a memória de pessoas que o conheceram, mas o trabalho resultou pouco animador. Partiu, então, para a bibliografia, encontrando informações sobre o artista nos artigos publicados em A Província do Pará, por Vicente Salles, que destaca as facetas de caricaturista, pintor, músico, afinal, o artista era também violinista. Nos espaços frequentados por Cotta, Nonato Castro encontrou mais algumas pistas. A Semana foi a principal fonte, com informações sobre data de nascimento, chegada a Belém, grupo de amigos que formou e percurso na cidade. Além do trabalho na imprensa local, Cotta teve destacada atuação como ilustrador de revistas de cordéis da Editora Guajarina. Também fez ilustrações para capa de discos. Parte desse material encontra-se no acervo do historiador Vicente Salles, pertencente ao Museu da UFPA. É provável que a produção do artista seja muito maior, haja vista uma expressiva parte dela não estar assinada. O exame do traço, porém, indica a autoria. Muitas das caricaturas de Cotta são facilmente entendidas à primeira vista. Mas várias exigiram de Nonato Castro uma pesquisa mais profunda na grande imprensa da época. Ao proceder assim, o pesquisador pôde observar o seu contexto e a inserção do artista no debate político, social e urbano de seu tempo.
Facilmente se percebe mudança no traço do cartunista entre 1921 e 1924. Já as condições urbanas da cidade permaneceram as mesmas.
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Meio ambiente
Baixo Tocantins em risco Agrotóxicos estão presentes em igarapés que alimentam rios da região Renan Monteiro
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cultivo de palma de dendê tem importância tanto no ramo alimentício quanto no mercado energético, pois seu óleo pode ser utilizado como matéria-prima para o biodiesel. No nordeste do Pará, a expansão da dendeicultura está inserida em um movimento nacional de estímulo do governo à produção de biocombustíveis. Em 2010, por exemplo, foi criado o Programa Nacional de Produção de Óleo de Palma (PNOP). Com programas como esse, agricultores familiares e grandes empresas estabeleceram cada vez mais contratos para o cultivo e fornecimento de produtos agrícolas no nordeste paraense. Nesse contexto, está o elevado uso de agrotóxicos e seus impactos socioambientais, tema muito discutido entre ruralistas e ambientalistas.
Em 2014, o Instituto Evandro Chagas (IEC) divulgou os resultados de uma pesquisa que detectou a presença de contaminação por agrotóxicos nas águas da região do Baixo-Tocantins, no Pará. O local era conhecido como região de expansão do dendê. Atualmente, um dos principais impactos ambientais no nordeste paraense - além dos grandes desmatamentos tem sido a contaminação por agrotóxicos em igarapés que alimentam os inúmeros rios da região. Em sua dissertação, Impactos Socioambientais de produção de palma de dendê na Amazônia paraense: uso de agrotóxicos e poluição ambiental nas sub-bacias hidrográficas, Tailândia (PA), a engenheira agrônoma e professora da Universidade do Estado do Pará Rosa Helena Cruz analisa os dados da pesquisa do IEC,
elencando quais agrotóxicos são utilizados e quais os seus impactos. O recente estudo foi defendido no Programa de Pós-Graduação em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia (PPGEDAM-Numa). Sob a orientação do professor André Luis Assunção Farias, a dissertação surgiu de estudos do Grupo de Pesquisa Avaliação Ambiental de Grandes Projetos na Amazônia (GAAGPAM). No município de Tailândia, as coletas aconteceram em sub-bacias de rios como Turiaçu, Acará, Auiaçu, Anuerá, totalizando nove pontos de coletas. Foram também realizadas entrevistas com sete comunidades localizadas às margens dos rios, com um total de 95 entrevistados. “O uso do agrotóxico como forma de controle de pragas e
doenças e como garantia de produtividade põe em risco o ecossistema, pois o uso que o Brasil vem aplicando e definindo em suas políticas públicas faz com que ocorram inúmeros problemas de contaminação, colocando em sério risco os meios bióticos e abióticos em razão dos efeitos deletérios dos ditos agrotóxicos’’, adverte Rosa Helena Cruz. As sub-bacias do rio Acará e Anuerá são utilizadas pelas duas grandes empresas produtoras de óleo de palma instaladas na região, em 2010. Os plantios das empresas ficam no entorno das sub-bacias pela necessidade dos recursos hídricos na produtividade. A pesquisa foi realizada em parceria com a Secretaria de Ciência e Tecnologia e Meio Ambiente do município de Tailândia (PA) e com o Instituto Evandro Chagas, para a realização das coletas e das análises.
Herbicidas identificados nas sub-bacias de Anuerá e Auiaçu Pesquisa do IBGE divulgada em 2015 aponta que, em relação aos dez anos anteriores, o uso de agrotóxicos havia aumentado 150%. Atualmente, o País consome cerca de um milhão de toneladas desses
produtos por ano, sendo um dos líderes mundiais de consumo. Na análise toxicológica das águas, foram identificados traços de atrazina e glifosato nas sub-bacias do rio Anuerá e na sub-bacia do Auiaçu, próxi-
mo de plantios pertencentes às empresas. Em 2015, a Agência Internacional de Pesquisa sobre Câncer classificou o glifosato como um provável carcinógeno. Rosa Helena explica que o
solo não consegue absorver o glifosato de forma rápida. O seu lento período de degradação no solo faz com que ele seja lixiviado (escorrido) pela água da chuva, contaminando os rios.
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“Este agrotóxico atinge diretamente a saúde do trabalhador. Ele sofre adsorção, como se ficasse ‘passeando’, sem ser absorvido, agindo diretamente para ‘matar mato’, como dizem os agricultores. Uma das características do glifosato é sua rápida translocação das folhas da planta tratada para as raízes, rizomas e meristemas apicais. Essa propriedade sistêmica resulta na destruição total de plantas invasoras perenes, deixando-as ‘esturricadas’. Agora, imagina as consequências desse produto em uma pessoa?”, questiona Rosa Helena Cruz.
O protocolo ocorrido para detectar agrotóxicos apresentou resultado positivo também para atrazina. De acordo com a pesquisadora, a atrazina é bastante tóxica e persistente no ambiente, principalmente em leitos ou corpos d’água. Em plantas susceptíveis, agem inibindo a fotossíntese, enquanto em plantas resistentes a atrazina é metabolizada. Além disso, esse agrotóxico também tem potencial cancerígeno em humanos. A quantidade de glifosato e atrazina detectada estava abaixo dos valores máximos permitidos pela
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legislação do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), porém a pesquisadora afirma que qualquer valor merece atenção, pois o risco é iminente. “Eu tenho a dissertação como um alerta, para que possamos observar o que já está acontecendo nessa região, com a expansão do agronegócio da soja, do milho e da palma de dendê. A presença de agrotóxicos foi constatada em áreas próximas de uma empresa de produção de dendê e de uma empresa de plantio de soja. Isso só afirma que os riscos ambientais já começaram na região”, alerta a pesquisadora.
Comunidade faz relatos de dores, náuseas e AVC Nas entrevistas com as comunidades locais, foram relatados casos de coceira no corpo, AVC, dor de estômago, náuseas, dor de cabeça e problemas respiratórios, mas nada pode ser comprovado, pois faltam os exames toxicológicos na região. Muitas áreas de plantio têm influenciado diretamente o uso da água pelos agricultores, pois, em muitos trechos, a água dos rios está inviável para consumo ou qualquer outro proveito. O uso de agrotóxicos, aliado à inexistência de saneamento básico nessas comunidades, tem aumentado consideravelmente a poluição aquática na localidade. “No Pará, não se consegue achar estudos sobre sequelas de agrotóxico em humanos, pois não há registros dentro do sistema de saúde estadual que possam comprovar os sintomas deletérios. Até agora, trabalhamos apenas com sintoma-
tologia. A questão é que o impacto ambiental acaba afetando a população de uma forma ou de outra, pois as pessoas precisam lidar com os problemas de saúde e com a falta de água. Como agrônoma, acredito que o problema maior é o uso do agrotóxico sem controle, levando à banalidade. Em Tailândia, comprar o glifosato é como comprar uma mercadoria qualquer. Na legislação, há o controle da venda, mas não há fiscalização”, afirma Rosa Helena. Outro ponto de destaque nas entrevistas com as comunidades foi identificar que, para todo processo de adubação que os agricultores fazem, há treinamento, mas sem acompanhamento contínuo, evidenciando, assim, o maior risco de contaminação socioambiental pelos agrotóxicos. “É perceptível a insatisfação deles com relação às empresas. Eles se sentem desamparados”, relata a pesquisadora. FOTOS ACERVO DA PESQUISA
Com base na demanda dos agricultores em seus plantios, no final da pesquisa de campo foi elaborada uma cartilha com informações sobre os cuidados que se deve ter ao fazer a aplicação de agrotóxicos. O material foi fundamentado na cartilha dos Grupos de Educação, Saúde e Agrotóxico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Como resultado da pesquisa, Rosa Helena Cruz elaborou uma cartilha para orientar os agricultores sobre os cuidados necessários para lidar com os agrotóxicos. REPRODUÇÃO
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Pesquisa
Encontros com Clarice Lispector Em Cametá, sala de leitura promove a experiência literária FOTOS ACERVO DA PESQUISA
Diversidade: além de ler as obras, alunos também assistiram a filmes e a documentários sobre a escritora.
Nicole França
C
larice Lispector é, sem dúvidas, um dos maiores nomes da literatura brasileira. Grande parte de suas obras gira em torno de aspectos simples do cotidiano e de tramas psicológicas. Seus romances, contos e ensaios são um marco para a literatura. Não é à toa que existe uma sala de leitura com o seu nome na Escola Estadual de Ensino Médio Abraão Simão Jatene, em Cametá. Tal sala de leitura serviu como base para o
desenvolvimento da dissertação de Gilma Guimarães Lisboa. Intitulada Pelas mãos de Clarice: O desabrochar da experiência literária na Sala de Leitura Clarice Lispector, a pesquisa foi apresentada no Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura (PPGEDUC), orientada pela professora Gilcilene Dias da Costa. A dissertação buscou analisar as experiências de leitura literária de textos clariceanos entre os jovens frequentadores da Sala de Leitura Clarice Lispector. “Na
pesquisa, procurei entender quais sentidos e experiências surgem da relação texto-leitor; em que medida os contos clariceanos são capazes de tocar as experiências de leitura e os modos de vida desses leitores; como cultivar o gosto pela leitura literária no ambiente escolar para além dos usos meramente didáticos e funcionais”, explica Gilma Guimarães Lisboa. Para o desenvolvimento da pesquisa, foram feitas reconfigurações na Sala de Leitura Clarice Lispector, com o intuito de transformar o espaço em um ambiente mais dinâmico e acolhedor para os estudantes. Além disso, foram realizadas atividades artístico-literárias para promover maior interação entre os leitores e os textos. “Assumimos o desafio de tensionar a presença não tão notória de obras literárias de escritores brasileiros, como as de Clarice Lispector. Assim, a pesquisa se construiu pela livre circulação de estudantes frequentadores da sala de leitura, especificamente os que liam as obras de Clarice Lispector e, com ela, produziam experiências literárias e leituras de vida”, explica a pesquisadora.
Atividades incluíam cinema e rodas de conversa As atividades realizadas para a pesquisa foram feitas com o propósito de aproximar os alunos da obra de Clarice. Dessa forma, foram organizadas atividades como o Cine Hora de Clarice, com apresentação de curtas, filmes e documentários sobre a autora e sua obra; empréstimos de livros da autora; Café Literário com um escritor cametaense; Cantinho da Leitura, no qual eram expostos livros de Clarice Lispector e de outros autores; declamação de textos clariceanos; roda de conversa sobre a experiência de leitura e dinâmica de perguntas e respostas sobre os livros.
“Com as atividades desenvolvidas, buscamos pensar a leitura literária na escola como algo que permitisse ao jovem leitor sonhar sem receio de se perder, promovendo o deslocamento, a liberdade, o exercício da curiosidade e do espírito aventureiro”, conta Gilma Guimarães. Com as atividades e o vivenciar poético na sala de leitura, foi possível desenvolver estratégias de ensino e reflexão que impactaram nos modos de aprender e ensinar a literatura na escola analisada. Tais estratégias mostraram os múltiplos sentidos presentes na relação tex-
to-leitor, o que levou os estudantes para além da finalidade funcional com que o texto literário é sempre apresentado. “Acompanhar as experiências de leitura e ter a percepção de como o desabrochar literário acontecia quando os alunos se encontravam com Clarice, tudo isso era instigante. A sala de leitura é um espaço de aprendizados coletivos e trocas subjetivas imprescindíveis para a formação do jovem leitor, um lugar potencializador de sonhos, de vozes e de experiências capazes de reverberar no mundo objetivo e subjetivo do leitor”, avalia a pesquisadora.
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Encenações aproximaram leitores da obra Com o objetivo de viabilizar a ampliação do acervo bibliográfico de Clarice Lispector na escola, a pesquisadora adquiriu mais de 30 títulos da escritora. Gilma Guimarães selecionou textos clariceanos para a realização da pesquisa, dos quais oito foram adaptados para serem encenados pelos alunos: Felicidade Clandestina, A Hora da Estrela, Feliz Aniversário, Sou uma Pergunta, A Vida Íntima de Laura, O Triunfo, Mas se Chover, Praça Mauá. “A escolha dos contos possibilitou ao leitor relacionar a literatura às vivências sociais e subjetivas, proporcionando uma análise cartográfica por múltiplas facetas da subjetividade leitora, como as relações e os preconceitos de gênero, a sexualidade, os confl itos amorosos intergeracionais, o abandono aos idosos, questões como liberdade, felicidade, solidão, amizade, entre outros assun-
tos”, declara Gilma Guimarães. Nas rodas de conversa, a pesquisadora buscou compreender as primeiras impressões dos estudantes sobre Clarice. “Procurei registrar os gestos, as atitudes, as expressões subjetivas dos participantes e o que revelaram sobre as experiências de leitura. Assim, percebi as ressonâncias da literatura com a vida, pois o que um escritor escreve tem relação com o que ele viveu. O encontro com a literatura ao mesmo tempo afaga e desassossega, instiga a pensar, a criar”, revela a autora. As personagens Macabéa, de A Hora da Estrela; Carla, de A Praça Mauá; Dona Anita, de Feliz Aniversário; Angélica, de Mas se Chover; Cecília, de Felicidade Clandestina e Luísa, de O Triunfo; foram as que mais se destacaram entre os alunos e potencializaram as interações, as provocações e os questionamentos.
Com essas leituras, os estudantes puderam partilhar anseios, desejos, paixões e desilusões. “Clarice possibilita ao leitor mover-se por diversos caminhos e convida-o a sair de seu porão para visitar outras partes da casa fechadas ou empoeiradas. São janelas pelas quais o leitor passa a enxergar novos horizontes e novas possibilidades de experiências”, afirma Gilma Guimarães. “As ações da sala de leitura desenvolveram atividades de ensino e produção de subjetividades que potencializaram um encontro da escritora com o leitor e da obra com a descoberta do mundo. O conhecimento sobre Clarice passou a fazer parte do aprendizado dos alunos de uma maneira mais fluida. As experiências literárias incomodam, sensibilizam, questionam o leitor, pois a autora arrebata por meio de sensações e sentimentos intensos e desconhecidos”, conclui.
"As experiências literárias incomodam, sensibilizam, questionam o leitor, pois a autora arrebata por meio de sentimentos intensos", afirma a pesquisadora.
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resenHa Oito décadas de eleições paraenses Walter Pinto
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o prefácio de Competição política no Pará (1930-2014): atores, partidos e eleições, o cientista político Jairo Nicolau, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, observa que há uma lacuna nos estudos sobre os partidos e a dinâmica de competição entre eles nos estudos acadêmicos. Refere-se a quase ausência de trabalhos sobre os partidos políticos e o padrão de competição nos Estados, quando comparada à grande produção sobre a disputa política nacional. “Num país federalista, no qual a política estadual tem papel fundamental para entendermos o que se passa em âmbito nacional, essa lacuna é ainda mais grave”, acentua Nicolau. Competição política no Pará, livro publicado no final do ano passado, é uma bem-vinda contribuição do cientista político e professor da UFPA Edir Veiga, para os estudos sobre o jogo político regional. Em 174 páginas, o autor dá conta de oito décadas de disputas, trazendo para a cena personagens e partidos de diferen-
tes épocas, sistematizando para futuros estudos informações que se encontram fragmentadas nos jornais, em documentos dos tribunais eleitorais, no TSE e no TRT. É um trabalho de síntese, conciso, mas rico em dados sobre os pleitos, as coligações, as composições partidárias da Assembleia Legislativa e da Câmara de Deputados. Sempre acompanhados de análises que explicam ao leitor as causas e as consequências do jogo político de cada embate. É um esforço para ampliar a bibliografia acadêmica ainda muito concentrada sobre a presença do general Joaquim Cardoso de Magalhães Barata na política paraense, figura, de fato, dominante desde os tempos do tenentismo no poder, na década de 1930, até o golpe civil-militar de 31 de março de 1964, cinco anos depois da sua morte. O livro está estruturado em quatro capítulos. Neles, o autor estuda dezesseis eleições realizadas no Pará, divididas em dois blocos. As eleições ocorridas entre 1950 e 1962 referem-se ao período da chamada Redemocratização de 1946, enquanto as realizadas entre 1982 e 2014 compreendem a reforma partidária de 1979 e a redemocratização pós-ditadura militar. No primeiro capítulo, o autor analisa a bipolarização política no Pará, entre o Partido Social Democrático (PSD) e a Coligação Democrática Paraense, desde a chegada de Magalhães Barata ao poder, passando por sua morte em 1959, até a vitória do PSD em 1960. Aquela seria uma eleição marcada pela morte repentina do principal herdeiro político de Barata, o santareno Lameira Bittencourt. Seu nome foi substituído por outro baratista, o advogado Aurélio do Carmo, que venceu o pleito para o governo do Estado com folga sobre os principais competidores, Zacarias de Assunção e Aldebaro Klautau. O baratismo sobreviveria ao seu líder por muitos anos. ALEXANDRE DE MORAES
O segundo capítulo de Competição política no Pará está intrinsecamente ligado ao primeiro, na medida em que nele o autor analisa o formato partidário eleitoral-parlamentar da política paraense entre 1945 e 1962. O leitor não especializado em ciência política toma conhecimento de termos como grau de fragmentação, índice de fracionalização, volatilidade partidária, que, de forma matemática, explicam a dinâmica de votos, eleitores, parlamentares e partidos, tudo temperado pela boa prosa do autor. Seguindo a proposta de distensão lenta e gradual do general-presidente Ernesto Geisel, em 1982 o processo de nomeação de governador cedeu espaço para a eleição direta. O PMDB valeu-se de uma cisão no interior do PDS, antiga Arena, para eleger Jader Barbalho, numa campanha apoiada pelos opositores da ditadura de diferentes matizes. Contraditoriamente, a primeira eleição de Jader Barbalho ao governo foi apoiada pelo coronel Alacid Nunes, então governador do Estado e um dos pilares da ditadura militar no Pará. A eleição de 1982 e as demais disputas para o executivo estadual até 2014 compõem o terceiro capítulo da obra. Um a um, os pleitos são reconstruídos e analisados segundo a sequência de fatos marcantes, destacando as estratégias do momento, os isolamentos, as coligações, os rompimentos, o uso do marketing político, as causas e as consequências de vitórias e derrotas. No último capítulo, Edir Veiga analisa o formato do sistema partidário-eleitoral e parlamentar do período de 1982 a 2014. O autor mostra que as disputas para o governo nesse período revelaram uma elite política conservadora, que não titubeia em aderir ao governante vitorioso, controlador da máquina pública estadual. Como novidade, o Partido dos Trabalhadores assumiu, a partir da eleição de 1994, sua vocação e um projeto de conquista do governo no Pará. Também destaca a presença de pequenos e médios partidos na Câmara dos Deputados,não pela implantação de mais partidos nos municípios paraenses, mas graças às coligações entre os maiores partidos e os pequenos aliados, como estratégia de ampliação do tempo no Horário Político Gratuito, no rádio e na televisão. Serviço: Competição política no Pará (1930-2014): atores, partidos e eleições. Autor: Edir Veiga. Editora da Universidade Federal do Pará. Venda: Livraria da UFPA.
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A Histรณria na Charge
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