Beira 156

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ISSN 1982-5994

anos

UFPA • Ano XXXV n. 156 • Set/Out/Nov de 2020

Entrevista

Antropologia

Amazônia

Ensino remoto emergencial desafia comunidade acadêmica.

Círio traduz ethos da religiosidade paraense.

Dieta à base de pescados e farinha requer cuidados.

Páginas 10 e 11

Páginas 6 e 7

Páginas 14 e 15


Universidade Federal do Pará

JORNAL BEIRA DO RIO cientificoascom@ufpa.br Direção: Prof. Luiz Cezar Silva dos Santos Edição: Rosyane Rodrigues (2.386-DRT/PE) Reportagem: Adrielly Araújo e Flávia Rocha (Bolsistas); Walter Pinto (561DRT/PA). Fotografia: Alexandre de Moraes Ilustração da capa: Walter Pinto Ilustrações: Walter Pinto Charge: Walter Pinto Projeto Beira On-line: TI/ASCOM Atualização Beira On-Line: Rafaela André Revisão: José dos Anjos Oliveira e Júlia Lopes Pereira Projeto gráfico e diagramação: Rafaela André Marca gráfica: Coordenadoria de Marketing e Propaganda CMP/Ascom Impressão: Gráfica UFPA Tiragem: Mil exemplares © UFPA, Setembro/Outubro/Novembro, 2020

Reitor: Emmanuel Zagury Tourinho Vice-Reitor: Gilmar Pereira da Silva Secretário-Geral do Gabinete: Marcelo Galvão Pró-Reitor de Ensino de Graduação: Edmar Tavares da Costa Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: Maria Iracilda da Cunha Sampaio Pró-Reitor de Extensão: Nelson José de Souza Jr. Pró-Reitora de Relações Internacionais: Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira Pró-Reitor de Administração: João Cauby de Almeida Jr. Pró-Reitora de Planejamento e Desenvolvimento Institucional: Raquel Trindade Borges Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Raimundo da Costa Almeida Prefeito Multicampi: Eliomar Azevedo do Carmo Assessoria de Comunicação Institucional – ASCOM/ UFPA Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa. N.1 – Prédio da Reitoria – Térreo CEP: 66075-110 – Guamá – Belém – Pará Tel. (91) 3201-8036 www.ufpa.br


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ós podemos dizer, sem medo de errar, que tudo mudou nos últimos seis meses. Passados o susto inicial, a aflição diante do lockdown e da reabertura, o entendimento de um protocolo relativamente eficaz de prevenção contra a Covid-19, estamos todos nos adaptando às limitações impostas pela pandemia. Descobrimos novas formas de sociabilidade, adquirimos novos hábitos de consumo, reinventamos o trabalho e o convívio familiar. E a Universidade faz parte desse contexto. Ao aprovar o Ensino Remoto Emergencial, a UFPA se impôs um enorme desafio: estar presente em todos os seus campi e para todos os seus alunos. Este e outros assuntos foram abordados na entrevista com o pró-reitor de Ensino de Graduação, Edmar Tavares da Costa. Considerado o “Natal do povo paraense”, os festejos em torno do Círio de Nazaré inspiraram a revista Meu Círio em quadrinhos!, organizada pelo professor Ricardo Ono; a dissertação da museóloga Nicolle Bahia Bittencourt analisou a metodologia por trás do inventário de referências culturais utilizado pelo IPHAN para declarar o Auto do Círio patrimônio imaterial, e a tese da antropóloga Mariana Pamplona Ximenes Ponte procurou compreender e acessar o ethos religioso paraense. A eficácia das máscaras de tecido, os cuidados com o consumo de pescados e de farinha e as torcidas femininas dos clubes Remo e Paysandu também estão nesta edição. Boa leitura! Rosyane Rodrigues Editora

Nesta Edição As viagens, as mulheres e o turismo ....................................4 História em quarentena ..................................................5 Carnaval e Devoção. Fé e Alegria .......................................6 Toda máscara é eficaz contra covid-19? . ..............................8 O grande desafio do momento . ....................................... 10 “Torcida, substantivo feminino” ...................................... 12 Peixe e farinha: a dieta de risco ...................................... 14 Consumo seguro do queijo de búfala ................................ 16 Do teatro de rua ao bem imaterial ................................... 17 O Círio nas histórias em quadrinhos .................................. 18

Foto Alexandre de Moraes


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ACERVO PESSOAL

Opinião As viagens, as mulheres e o turismo

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omeço este texto expondo os dois temas que me incentivaram a pensar esta pesquisa: viajantes e mulheres. Eles foram essenciais para chegar ao ponto do que é o trabalho hoje, sobre mulheres cientistas na Amazônia. Assim surgiu a tese de doutorado: Emília Snethlage e Heloisa Alberto Torres: Gênero e Ciência na Amazônia do século XX. Dentro dessa discussão, surgem as viagens, a história da ciência e o gênero como novas perspectivas para o estudo da atividade turística e da História do Turismo na Amazônia. Com base nesses elementos iniciais, tenho procurado investigar as dinâmicas socioespaciais e os discursos de gênero que delinearam trajetórias e saberes femininos ao longo da primeira metade do século XX, no Brasil e na Amazônia. A tese em questão vem discutir como duas mulheres cientistas abriram espaços para que nós, mulheres do século XXI, pudéssemos estudar, entrar numa universidade e estar hoje em salas de aulas e em laboratórios. A pesquisa tem trazido uma reflexão para pensar como se estabeleciam as interações nas redes de contatos de instituições científicas no Brasil, no começo do século XX.

Estas cientistas foram a alemã Emília Snethlage (1868-1929), que chegou a Belém no dia 15 de agosto de 1905, para trabalhar no Museu Paraense, atual Museu Paraense Emílio Goeldi, e a brasileira Heloísa Alberto Torres (1895-1977), nascida no Rio de Janeiro e a primeira mulher a formar os primeiros antropólogos brasileiros. Investigar como essas mulheres se colocaram no espaço público do ensino e da pesquisa tem sido instigante e muito significativo, pois os espaços científicos eram espaços masculinizados. A literatura de gênero e de mulheres na ciência aponta para esses espaços. Imaginem uma mulher viajando apenas com caboclos ou indígenas? Ou uma mulher dirigindo a maior instituição de pesquisa na época? A historiografia tem mostrado que o espaço público não era local para as mulheres. Então, ter contato com elas, por meio das fontes históricas, tem sido uma oportunidade ímpar, além de incentivar o caminho na ciência e na educação, por meio da História e do Turismo. O estudo do Turismo se dá nas nuances das viagens que essas cientistas fizeram pela Amazônia. Fundamentada nesse contexto e na formação que tenho em Turismo, comecei a perceber a aproximação FREEPIK

com a atividade turística. É importante expor que essas viagens têm como base a história da exploração da região amazônica desde o século XVI, com os naturalistas, exploradores de tesouros; com as navegações europeias, em busca de elementos naturais e minérios; e com o processo amplo de colonização. Assim, por meio dessas fontes, a pesquisa tem me proporcionado descobrir como essas cientistas ingressaram no caminho da ciência, desde as suas carreiras profissionais, importantes para as Ciências Naturais (como os estudos ornitológicos de Emília Snethlage) e para as Ciências Humanas (especificamente na Antropologia, nos trabalhos e na gestão de Heloísa Alberto Torres, no Museu Nacional do Rio de Janeiro), até como foram suas lutas para se manterem nesses espaços. Descobri como seus trabalhos repercutiram num espaço científico extremamente masculino e masculinizado, como suas viagens trazem pistas de estudo sobre a História do Turismo e, especificamente, da atividade na Amazônia, além de ampliar a pesquisa teórica e epistemológica da atividade turística na formação de novas e novos bacharéis em Turismo. A pandemia da covid-19 trouxe para a sociedade uma nova maneira de se olhar e perceber as pessoas a sua volta. As máscaras vieram para ajudar a manter nossa saúde pessoal e coletiva. Mas as lutas e os anseios por dias melhores, principalmente das mulheres, não podem ficar atrás das máscaras. Devem ser ressaltadas e expostas. E mulheres como Emília Snethlage e Heloísa Alberto Torres, com certeza, incentivam a nós, mulheres, a continuarmos nossa caminhada na ciência do século XXI. Diana Priscila Sá Alberto – professora adjunta da Faculdade de Turismo (ICSA/UFPA). Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (PPHIST/UFPA). E-mail: profadianaalberto@gmail.com


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Sociedade

História em quarentena Blog reflete sobre doenças do passado e do presente   Flávia Rocha

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ste ano, o mundo inteiro está enfrentando a pandemia causada pelo coronavírus. Foram adotadas medidas como a quarentena, o uso obrigatório de máscaras e o distanciamento social. Quando essas normas são quebradas, as consequências são o aumento de número de casos da doença e, logo, a sobrecarga dos sistemas de saúde público e particular. Os feitos alcançam todos os setores, inclusive a economia. Também há a questão da compreensão social da doença. O que faz uma pessoa apoiar ou não o distanciamento social? Como inserir novas práticas sociais de prevenção ao contágio?

Esses questionamentos podem ser respondidos por meio da análise de outras epidemias que ocorreram ao longo da história. Para ajudar nessa reflexão, o Grupo de pesquisa População, Família e Migração na Amazônia (Ruma) criou o blog História em Quarentena. “O passado é uma ferramenta poderosa para o presente se revisitar. Nesse sentido, criamos o blog e contas no Facebook e no YouTube para que o trabalho de diferentes historiadores possa ser acessado. Também publicamos trechos de documentos antigos que ajudam o leitor a problematizar sua realidade. São trabalhos inéditos e voltados para se pensar o momento pandêmico atual”, afirma o professor

Otaviano Vieira, professor da Faculdade de História (IFCH/ UFPA) e coordenador do grupo. O blog foi criado em abril deste ano e já conta com quatorze postagens. Uma das primeiras é de autoria da professora Jane Beltrão, intitulada Medo… temor… & pânico… em pandemias sucessivas. A pesquisadora estabelece um paralelo entre as pandemias de cólera, ocorridas no século XIX e XX, e a da Covid-19. No texto, Jane Beltrão destaca alguns pontos em comum entre os três momentos: a negação inicial pelas autoridades sanitárias do país e o fato de que “as pandemias não são democráticas”, isto é, as doenças não atingem os indivíduos de forma igual. Os maiores núme-

ros de óbitos se encontram nas parcelas mais negligenciadas da população. No blog, as postagens seguem em formatos semelhantes. Inicia-se com a apresentação de uma epidemia que ocorreu no passado e como ela se relaciona com a do presente. O conteúdo aponta para a importância das Ciências Sociais e Humanas para compreender a sociedade no contexto atual e, assim, buscar soluções. A proposta é que o passado seja usado como uma espécie de exemplo - tanto do que fazer quanto do que não fazer. Os colaboradores são professores/ as e alunos/as da UFPA e professoras das universidades de Michoàcan e de Guadalajara, no México.

Redes sociais articulam e divulgam ações do projeto Um texto divulgado recentemente, assinado pelo professor Otaviano Vieira, intitulado Sopa de Morcego, afirma que, em determinado momento da história, a causa do sarampo e da varíola foi associada ao sangue menstrual. “O objetivo foi mostrar como preconceitos sociais são utilizados para culpabilizar determinado grupo social como responsável pelas epidemias: ontem, judeus,

mulheres, leprosos... hoje, chineses”, explica o coordenador. Segundo Otaviano Vieira, durante a pandemia, o grupo de pesquisa tem desenvolvido um trabalho integrado. Além dos textos para o blog, o Ruma também divulga lives feitas por professores de História e de Antropologia da UFPA. “Articulamos as redes sociais com o blog. A

Saiba mais Ruma O Grupo de pesquisa População, Família e Migração na Amazônia já existe desde 2011 e busca agregar diferentes pesquisadores do Brasil, de Portugal e da Itália com foco nos estudos relacionados à população, à migração, ao gênero, à comunidade LGBTQI+, à infância e a doenças. “O RUMA investe na formação acadêmica, numa produção historiográfica qualificada, em intercâmbios acadêmicos com diferentes países e na divulgação acadêmica para o grande público”, afirma Otaviano Vieira.

conta do Ruma no Facebook compartilha a live, que é publicada em nosso canal do YouTube. No Instagram, fazemos a divulgação da live e do texto do blog. Considero um avanço

significativo na possibilidade de comunicação com o ‘além muro de papel’”, avalia o professor. A tecnologia possibilita que os conteúdos alcancem um número cada vez maior de pessoas.


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Carnaval e Devoção. Fé e Alegria O que diz o Círio de Nazaré sobre a religiosidade paraense?

ALEXANDRE DE MORAES

Flávia Rocha

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ara muitas pessoas, a simples menção ao Círio de Nazaré traz à tona fortes memórias afetivas envolvendo devoção, cores e sabores. Também chamado de “Natal dos paraenses”, o Círio proporciona um sentimento festivo que é “palpável” durante todo o mês de outubro. Os termos “Círio de

Nazaré” ou apenas “Círio” designam a festividade religiosa como um todo, incluindo missas, procissões, peregrinações, festas, arraial, shows, autos e mais uma infinidade de acontecimentos que remetem à festividade. Com o passar do tempo, esses eventos multiplicam as formas de celebração. Assim, o Círio de Nazaré reflete vários aspectos da cultura paraense.

Na tese O Círio de Nazaré de Belém (PA) como fresta para a religiosidade paraense, a antropóloga Mariana Pamplona Ximenes Ponte afirma que o seu objetivo foi compreender a religiosidade considerando que o Círio de Nazaré de Belém tem representatividade regional na área estuarina do estado. Sendo assim, seria possível ter acesso ao ethos religioso paraense. A tese foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia (PPGSA/IFCH), sob orientação da professora Carmem Izabel Rodrigues. A tese mostra que o catolicismo é um dos elementos centrais da religiosidade no Pará e tem em seu centro o culto aos santos. A influência de práticas religiosas de matriz africana e indígena é inegável. “Ocorre que, de certa forma, todas essas práticas se relacionam e, juntas, compõem um ethos religioso amazônico”, explica a pesquisadora. É ainda

possível ver a influência portuguesa. Vários hábitos dos círios lusitanos do século XVII podem ser encontrados no Círio de Belém do Pará, por exemplo, o pé descalço como forma de penitência ou promessa e os ex-votos de cera. O Círio é composto por eventos de diversos formatos, que podem ser divididos em dois grandes grupos: os organizados e realizados pela Diretoria da Festa, com o apoio da Arquidiocese de Belém, os quais compõem a programação “oficial”; e os que não são organizados pela Diretoria da Festa. Este segundo grupo é composto pelo Auto do Círio, pela Festa da Chiquita, pelo Arrastão do Pavulagem, entre outras festas, e costuma ser chamado de “o lado profano do Círio”. No estudo, Mariana Ximenes discute os conceitos de “sagrado” e “profano” no campo da Antropologia e como eles se aplicam a esse outro grupo de eventos.

Nada é rotina quando se fala no “Tempo do Círio” De acordo com Émille Durkheim, a esfera do sagrado é aquela fora do tempo comum, na qual há efervescência, encontro, celebração do coletivo, enquanto o profano é o tempo comum, a rotina, o tempo do trabalho. “Neste sentido, todos os eventos e práticas do Círio de Nazaré de Belém, sejam elas oficiais ou não, são sagrados, pois

estão fora do tempo comum. Nada é rotina quando se está no ‘Tempo do Círio’”, revela Mariana Ximenes. “A pesquisa foi baseada na crítica ao paradigma da religião popular. No texto, nós a tratamos como ‘religião normal’, ou seja, a não institucional. Trata-se de analisar a religiosidade do devoto comum

em seus próprios termos, com suas práticas e dinâmicas, seus simbolismos e imaginário, e não como se fosse uma versão empobrecida da religião oficial”, explica a pesquisadora. A metodologia envolveu pesquisa de campo e observação participante com coleta de dados primários e entrevistas gravadas. A coleta de dados se-

cundários envolveu outras pesquisas, materiais veiculados na mídia e de divulgação produzidos por instituições, produções audiovisuais (filmes, vídeos, performances e fotografias) e literatura, além da revisão bibliográfica. “Participei de missas, shows, festas, procissões, romarias, peregrinações que fazem parte do Círio durante


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Antropologia os anos do doutorado. Fiz parte do elenco do Auto do Círio por dois anos. Acompanhei um grupo de peregrinação e um grupo de promesseiros da corda”, conta Mariana Ximenes. A pesquisa mostra que o mesmo devoto que integra

o elenco do Auto do Círio – popularmente considerado um dos aspectos profanos do Círio - também paga promessa na corda, prepara seu almoço, recebe a imagem da santa em casa durante as peregrinações, ou seja, na vivência da devoção,

não há uma hierarquia entre esses eventos. “Um caso bastante citado na tese é o da Wal Medeiros, professora e artista, que, todos os anos, participa do Auto do Círio com a personagem da Nossa Senhora de Paysandu, pagamento de uma promessa

pelo restabelecimento da saúde do seu filho. Então, classificar a participação da Wal como um ato profano, com o uso comum do termo, é inadequado. A promessa dela equivale à de alguém que cumpre indo na corda do Círio”, avalia a autora.

Sagrado e profano não são características opostas Outro exemplo é a Festa da Chiquita. Segundo Mariana Ximenes, esse evento faz parte do Círio, e sua existência e realização estão atreladas à festa e à celebração a Nossa Senhora de Nazaré. É mais um momento de encontro e confraternização entre parte da população, motivada pela Festa de Santo. “Nesse sentido, ela também é sagrada, pois não se trata de um momento ordinário, mas extraordinário”, explica a antropóloga. Comumente, fala-se sobre a Carnavalização encontrada no Círio. Dalcídio Jurandir cunhou o termo Carnaval Devoto em sua obra Belém do Grão Pará, que ainda hoje é usado em discussões sobre a religiosidade

paraense. O personagem principal, seu Virgílio, identifica a Berlinda como o “carro sagrado” e compara-a com o “carro de terça-feira gorda”. Os presentes na procissão são comparados com o público dos “ranchos do momo”. Os elementos carnavalizantes estão presentes em todos os eventos, seja nas práticas, seja no clima festivo, seja nos objetos. “Dessa forma, as características que comumente são pensadas como parte do que é ‘sagrado’ e do que é ‘profano’ não são características opostas ou conflitantes. Elas coexistem no Círio e na religiosidade paraense. Somos Carnaval e Devoção, somos fé e alegria”, diz Mariana Ximenes.

“Com base nas concepções dos fiéis, devotos e outros participantes do Círio, compreendi que todos os eventos e práticas são sagrados. Essa divisão entre sagrado e profano se refere a uma classificação que advém da concepção da Igreja, é (re)produzida pela Diretoria da Festa e foi incorporada pelo discurso do senso comum. Ela busca regular, controlar e colonizar as práticas. Do ponto de vista sociológico, considero inadequada essa classificação entre eventos sagrados e profanos que vem sendo feita até mesmo por pesquisadores, pois não corresponde à maneira como se dá a festa do Círio nem a religiosidade. Ela é uma

classificação institucional”, argumenta a antropóloga. Para Mariana Ximenes, não se trata da perda da sacralidade, de atos de desrespeito ou desvalorização. Trata-se de um tipo específico de relação com o sagrado, de ter protagonismo e atuar no rompimento das regras. A religiosidade paraense possui aspectos únicos, que devem ser acolhidos e celebrados. “Observando o que os devotos pensavam sobre o que fazem e como vivem o Círio, ficou claro que são múltiplas formas, todas válidas e legítimas, sobre o que significa ser devoto, ter fé, celebrar, agradecer e estabelecer uma relação com a Santa”, conclui.

Nossa Senhora do Paysandu MELISSA BARBERY

A tese traz o depoimento da professora e artista Wal Monteiro, que, em 2010, passou por uma situação difícil. Em julho, seu filho (à época com 13 anos) teve dengue hemorrágica e foi internado na UTI, por dois dias. O menino teve um grave edema no braço e não conseguia movê-lo. “Eu me ‘peguei’ com Nossa Senhora e disse: ‘Maria, olha a minha dor e o sofrimento do meu filho. Tu foste mulher, foste forte, viste teu filho ser crucificado e morto numa cruz. Meu filho tem só treze anos e é um menino tão bom. Então, Maria, se foi algo, que eu que seja castigada, mas não leva o meu filho’. Quando voltei ao quarto, meu filho disse: ‘Mamãe, apareceu uma luz na minha cama e uma voz de mulher disse: Gabriel, tudo vai acabar bem, confia em mim’.”, conta Wal Monteiro. Mesmo após a saída de seu filho da UTI, Wal persistiu em sua fé e em suas orações. Torcedora do Paysandu, Wal Monteiro já tinha participado do Auto do Círio usando a cor do time: azul celeste. E, no ano em que o tema foi “Todas as Marias”, Wal se vestiu de Nossa Senhora do Paysandu. “Eu tenho esse figurino até hoje. E tudo é fé, né? Eu vou agradecer para sempre. Todos os anos que eu tiver saúde, vou usar o figurino de Nossa Senhora do Paysandu no Auto do Círio”, relata a professora.


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FOTOS ALEXANDRE DE MORAES

Toda máscara é eficaz contra covid-19? Número de camadas, medidas e tipo de tecidos devem ser avaliados   Adrielly Araújo

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De uso obrigatório em locais públicos, as máscaras de tecido reduzem a transmissão e a contaminação pelo novo coronavírus.

esde a descoberta do vírus SARS-CoV-2, várias formas de prevenção da Covid-19 têm sido propagadas. Lavagem frequente das mãos com água e sabão, higienização com álcool em gel, distanciamento social e o uso de máscaras que cubram o nariz e a boca estão entre as principais maneiras de se proteger da nova doença. Publicações científicas recentes apontam que grande parte dos infectados pela Covid-19 é assintomática ou pré-sintomática, mas isso não significa menor risco de contaminação. Dessa forma, a demanda por máscaras cirúrgicas cresceu, deixando o produto escasso e caro. A população passou, então, a necessitar de alternativas de fácil acesso e de menor custo, como as máscaras de tecido. Assim, a avaliação da eficácia desse produto tornou-se uma questão fundamental, inspirando

um grupo de pesquisadores liderado pelo Programa de Pós-Graduação em Odontologia (PPGO/ICS): David Normando, Milena Santos, Darlyane Torres e Paula Cardoso. Em parceria com pesquisadores do Hospital Barros Barreto (Rita Medeiros), University of Alberta-Canadá (Carlos Fores-Mir) e University of Bern-Suiça (Nikolaos Pandis), o grupo realizou uma revisão sistemática para avaliar se as máscaras de tecido poderiam substituir as máscaras convencionais na redução da transmissão e contaminação por gotículas e aerossóis (tosse, espirro e fala). Para a realização do estudo, os pesquisadores seguiram um protocolo criterioso, baseado na busca sistematizada de todos os artigos relevantes sobre o tema, para evitar que os resultados encontrados fossem tendenciosos. Inicialmente, foram analisados 2.047 registros. “Seguindo esse protocolo, foram selecionados onze estudos

primários, que buscavam responder à pergunta-chave do estudo”, afirma David Normando. Esses estudos compararam, em laboratório ou em ambiente clínico, a eficácia das máscaras de tecido com a das máscaras médicas. Em seguida, foi realizada a extração dos dados importantes de cada um desses estudos para se chegar a um resultado e a uma conclusão. “Além de avaliar a eficiência das máscaras de tecido, é importante conhecer quais os melhores materiais e a quantidade de camadas adequada para a confecção deste equipamento de proteção, de forma a oferecer melhor resultado na contenção da disseminação do novo coronavírus”, explica David Normando. Durante o estudo, foram avaliadas a capacidade de anticontaminação e de antitransmissão e/ou a respirabilidade de tipos diferentes de máscaras, confeccionadas com tecidos variados e com determinado número de camadas.


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Saúde N95 é a mais indicada para profissionais da saúde chifon, flanela e seda, sendo esta a melhor entre as opções estudadas. Outros tecidos também se mostraram viáveis, como o algodão 100% e a sarja. Mas, de acordo com o estudo, o ideal é que toda máscara de tecido possua duas ou três camadas. “Acreditamos que, com esses resultados, chegamos a uma informação mais precisa sobre quais os melhores tecidos e a quantidade ideal de camadas para uma máscara caseira produzir bons resultados. Esse conhecimento deve ser difundido, dando a oportunidade de toda a população ter uma máscara caseira eficiente”, afirma David Normando. Outro aspecto destacado no estudo foi que a máscara deve estar perfeitamente adaptada ao rosto, pois a presença de espaços pode resultar em diminuição, em até 60%, do seu poder de proteção. Por fim, a revisão sistemática produzida pela

UFPA constatou que, para profissionais da saúde e trabalhadores de ambiente hospitalar, o uso da máscara de tecido não é recomendado. Para esses profissionais, é essencial o uso de máscaras cirúrgicas e/ou respiradores N95. O Ministério da Saúde ainda determina que as máscaras caseiras devem ser trocadas a cada duas horas de uso ou assim que estiverem úmidas. Além disso, é necessário higienizar as mãos ao colocar e ao tirar a máscara para evitar contaminação. “Ante a pandemia, podemos concluir que qualquer proteção facial é melhor que nenhuma, pois, além de proteger o usuário, também minimiza a superlotação de hospitais e o colapso do sistema de saúde”, conclui o professor. O artigo desenvolvido foi aceito para publicação pela Sociedade Brasileira de Pesquisa Odontológica (SBPqO).

Confecção

Como higienizar

Foi observado que, no geral, as máscaras feitas em tecido não apresentam a mesma capacidade de proteção das máscaras médicas, principalmente quando comparadas aos respiradores N95, equipamento de proteção individual mais indicado para trabalhadores expostos a ambientes contaminados por aerossóis. Porém algumas das opções analisadas apresentaram eficiência na redução da quantidade de gotículas e partículas contaminadas que seriam expelidas ou inspiradas pelo usuário, tornando-se, assim, uma opção de proteção para o público em geral. Entre as máscaras de pano, as que obtiveram melhores resultados foram as de tecido híbrido, com múltiplas camadas. Um dos estudos analisados apontou eficiência superior a 90% de filtração para as máscaras de tecidos híbridos com a associação do algodão com outros tecidos, como

Saiba mais

Tecidos recomendados – tecido de saco de aspirador, cotton, tecido 100% algodão e fronhas de tecido antimicrobiano. Medidas – é importante que a máscara seja feita na medida correta, cobrindo totalmente a boca e o nariz, e esteja ajustada ao rosto, sem espaços nas laterais. Camadas – Para cumprir sua função de barreira física ao vírus, a máscara deve ser confeccionada com pelo menos duas camadas de tecido.

Lavar separadamente de outras roupas, usando água corrente e sabão neutro. Deixar de molho em uma solução com água sanitária ou com outro desinfetante por 20 minutos.

• • •

Enxaguar para remover qualquer resíduo de desinfetante e deixar secar. Passar com ferro quente. Guardar em um recipiente fechado. Descartar a máscara de pano após 30 lavagens.

Cuidados com o uso • • • •

Evite tocar na parte da frente da máscara. Remova a máscara sempre pelas tiras laterais. Ao tocar a máscara, higienize as mãos. Troque de máscara a cada duas horas. Fonte: Anvisa e Ministério da Saúde.


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Entrevista

Edmar Costa

O grande desafio do momento Período letivo emergencial põe inclusão digital em pauta   Walter Pinto

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ste mês, os estudantes da Universidade Federal do Pará (UFPA) retornaram às atividades acadêmicas interrompidas em março por causa da pandemia de covid-19. Para efeito de segurança, as aulas foram retomadas na modalidade de ensino remoto, o que se constituiu um desafio extraordinário para uma instituição localizada num estado de grande dimensão como o Pará, com mais de 50 mil alunos matriculados, dos quais

Ensino remoto A proposta de desenvolver o ensino na forma remota é, sem dúvida, um grande desafio, considerando o perfil socioeconômico dos alunos da UFPA e a dimensão geográfica do estado. A UFPA possui mais de 50 mil alunos, somos a maior universidade pública em número de discentes, 85% dos quais em situação de vulnerabilidade socioeconômica (renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo). Além disso, a Universidade atinge, com os seus 12 campi e dezenas de polos universitários, mais de 60 municípios paraenses. Esta combinação (muitos alunos, a maioria em situação de vulnerabilidade socioeconômica, espalhados em locais diferentes e distantes entre si – com características regionais próprias de acesso à informação digitalizada) nos leva a concluir por um grande contingente de discentes com dificuldades de acesso às informações que trafegam pela internet. Eles representam o elemento com o qual a Administração Superior deve ter mais atenção, sob a forma de uma política institucional de inclusão digital já em execução, a qual deve ser absorvida como pauta permanente, pelos impactos positivos que pode ter no aprendizado e no engajamento dos discentes em seus cursos de graduação.

Auxílios emergenciais Como parte das iniciativas para mitigar as dificuldades men-

85% estão em situação de vulnerabilidade. Mas a Instituição trabalha para mitigar as dificuldades por meio de iniciativas com concessão de auxílios emergenciais para estudantes da graduação, da pós-graduação e do ensino básico, além de capacitação e inclusão digital. Nesta entrevista, o pró-reitor de Ensino da UFPA, Edmar Costa, explica como a Instituição vem se preparando para esta situação emergencial e enumera os avanços no ensino de graduação, ressaltando que “o maior desafio da atual gestão foi investir na transformação qualitativa”.

cionadas anteriormente, a UFPA, por meio da Superintendência de Assistência Estudantil (Saest), publicou chamadas que autorizam a concessão de Auxílios Emergenciais de Apoio à Inclusão Digital para discentes de graduação, pós-graduação e ensino básico da UFPA, em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Um destes editais está endereçado especificamente aos discentes com deficiência, com possibilidade de auxílio financeiro para aquisição de tecnologias assistivas. Já temos a garantia, por parte do MEC, de que todos os discentes que se inscreveram no Edital receberão o auxílio sob a forma de pacote de dados. Além disso, já há comprometimento de recursos da Instituição que possibilitarão a compra de equipamentos para pelo menos 3.500 discentes, o que representa um investimento superior a quatro milhões de reais.

Inclusão digital Temos o entendimento de que este período letivo emergencial será marcado por desafios, não apenas para discentes, nossa maior preocupação pelo quantitativo e pela heterogeneidade, mas também para o corpo de docentes, habituados a cursos oferecidos tradicionalmente na forma presencial. Nossos docentes, em sua ampla maioria, não fazem planejamento de ensino voltado para ambientes distanciados dos alunos, não dominam as metodologias do ensino remoto e muitos deles mostram-se

resistentes ao entendimento de que essas metodologias são hoje imprescindíveis, para uma conjuntura muito específica e emergencial, sem que isso represente a transformação automática e definitiva de nossos cursos presenciais em cursos a distância. O uso correto das tecnologias, tanto por parte de discentes como de docentes, também representa um desafio importante, daí a necessidade de capacitação para o uso de tecnologias de informação e comunicação, sob forma de cursos e oficinas oferecidos pela UFPA.

Aulas práticas e internato A portaria que permite substituir ensino presencial por atividades não presenciais (Portaria MEC nº 544/2020) destaca que a substituição deve obedecer ao que está previsto nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para cada curso. Por exemplo, no caso do curso de Medicina, as DCNs do curso permitem um máximo de 20% de atividades não presenciais na realização do internato médico, o que impede o cumprimento integral desse componente de modo remoto. Dessa forma, a Resolução aprovada na UFPA permite que a coordenação do curso avalie essa excepcionalidade e elabore, com os seus docentes e com a participação da representação discente, um plano de trabalho para que, nesse caso específico, seja possível realizar o estágio com momentos presenciais, resguardadas as condições de biossegurança


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e sanitárias indicadas pelos órgãos de saúde. Fora dessas situações específicas, que envolvem a finalização do curso de graduação, entende-se que o melhor caminho é que esses componentes como práticas profissionais de estágios ou práticas que exijam laboratórios especializados devam ser ofertados em momento futuro, quando houver segurança para que sejam realizados de forma presencial.

Avanços na graduação Do tripé de missões da UFPA, o ensino de graduação constitui o eixo que dá origem a qualquer Instituição de Ensino Superior. Depois de anos de expansão da educação superior (investimentos, ampliação da estrutura e do número de campi, mais matrículas, cursos novos etc.), o desafio da atual gestão foi investir na transfor-

mação qualitativa do ensino de graduação. Do ponto de vista estrutural, a Pró-Reitoria sofreu reformulação, com a proposição de novas divisões, que deram mais agilidade ao trabalho e acrescentaram novas funções no planejamento estratégico da Unidade. Um programa de investimento em infraestrutura física (editais Labinfra), que apoiou projetos para instalação/recuperação de laboratórios de ensino, beneficiou mais de trezentos projetos/laboratórios, tanto em Belém como nos outros campi, com impacto inegável na qualidade do ensino oferecido pelas subunidades. A execução orçamentária deve representar, em quatro anos, quase R$ 20 milhões, entre recursos de capital e custeio, considerando que o edital prevê o financiamento de recursos adicionais de consumo por projeto, por até quatro anos,

além da concessão de bolsas de monitoria, que possibilitam o envolvimento de discentes na empreitada. A gestão também realizou forte investimento na modernização dos ambientes de aulas geridos pela Proeg, como Mirante do Rio, espaços de ensino no Campus Profissional, e nas diversas áreas em todos os campi.

Flexibilização curricular Criamos a possibilidade de flexibilização curricular dos cursos de graduação, cujo piloto, ora em execução, já permite que discentes tenham acesso a uma formação mais multidisciplinar/interdisciplinar, construindo parte de seu percurso acadêmico com base em interesses intelectuais e profissionais não previstos nos projetos pedagógicos de seu curso. Outras iniciativas incluem: a) um Programa de

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Acompanhamento dos Cursos de Graduação; b) o Programa GestQuali, que prevê a inserção de servidores com formação em Administração para mapear processos acadêmicos nas unidades e nas subunidades acadêmicas e que deve reverter em maior eficiência na gestão, além de mitigar os efeitos da transição entre mandatos de diretores das faculdades e das unidades; c) a ampliação dos programas de monitoria e do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), a institucionalização do Programa de Residência Pedagógica e a restauração do Programa de Autoavaliação Institucional, o Avalia!, incorporado ao Sigaa, que fornece importantes indicadores para a melhoria da gestão acadêmica e da qualidade do ensino, baseado nos questionários preenchidos por discentes e docentes, ao final de cada período letivo. ALEXANDRE DE MORAES


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Cultura Engenharia

“Torcida, substantivo feminino” Gênero e performance no clássico mais disputado do mundo   Adrielly Araújo

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No Pará, ainda não existem torcidas declaradamente feministas, mas torcedoras de Remo e Paysandu já protagonizaram manifestações em defesa das mulheres e contra o assédio sexual.

Clube do Remo e o Paysandu Sport Club, principais times da capital paraense, protagonizam uma rivalidade histórica. Um fenômeno sociocultural que mobiliza paixões, promove sociabilidade e já faz parte do imaginário paraense. As duas torcidas, juntas, somam mais de um milhão de torcedores, de acordo com pesquisa realizada pela Pluri Consultoria, em 2018. O RexPa, como é conhecido o jogo entre os dois times, é o clássico mais disputado do mundo. Até fevereiro de 2020, foram 752 jogos. No Brasil, a história das mulheres no futebol e nas arquibancadas é marcada por invisibilidade e opressão. No que se refere à cultura de torcida, por muito tempo, a ida ao estádio não era aconselhável para mulheres, principalmente se elas estivessem desacompanhadas. Hoje, as mulheres formam grande parte do público que frequenta os estádios de futebol. Atualmente existem torcidas e coletivos formados exclusivamente por mulheres, assim como departamentos femininos dentro das torcidas tradicionais. Diferentemente de outros estados, no Pará, ainda não existem torcidas feministas, mas as torcedoras de Remo e Paysandu já protagonizaram diversas manifestações em defesa das mulheres, entre elas, o fim do assédio e da violência de gênero e a afirmação daquele espaço como um lugar que também é delas. Esses são alguns dos resultados apresentados na dissertação Torcida, substantivo feminino: interações e relações de gênero nas torcidas do clássico Remo x Paysandu, defendida pela jornalista Mayra Leal do Nascimento no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCom/ILC). A pesquisa, orientada pela professora Rosaly de Seixas Brito, analisou de que forma as relações de gênero estão presentes nas interações construídas por torcedoras dos times Remo e Paysandu e como essas relações se manifestam nas práticas do torcer e nas performances das torcidas durante o clássico paraense, o RexPa. Para o estudo, foram utilizadas como métodos a observação participante nas duas torcidas durante todos os RexPa realizados em 2018 e 2019 e a realização de entrevistas qualitativas com oito torcedoras, quatro do Remo e quatro do Paysandu, frequentadoras assíduas do estádio.

Hegemonia masculina está dentro e fora de campo De acordo com a pesquisa, o futebol brasileiro tem sua construção social atrelada à hegemonia masculina, que instituiu padrões culturais e relações de gênero tanto no campo como nas arquibancadas. Esses padrões que marcam a história do futebol estão presentes na sociedade de forma geral.

Assim, para Mayra Leal do Nascimento, refletir sobre a condição e o lugar das mulheres no futebol é refletir sobre a luta das mulheres por igualdade de gênero em diversos setores. “Atualmente estamos acompanhando no Brasil manifestações a favor da democracia, e encabeçando esses protestos estão as torcidas de futebol. Esse é

um exemplo da força que esse esporte e as relações sociais construídas por meio dele têm no nosso país”, observa. Além da análise das relações de gênero nas arquibancadas, a pesquisa faz um levantamento da história do clássico RexPa, evento tão importante no estado e na região, analisando rituais e outros

aspectos culturais das torcidas. Segundo a dissertação, as questões de gênero estão presentes nas mais diversas interações construídas na prática do torcer. Faz parte das trajetórias individuais das torcedoras a necessidade de se adequarem a uma performatividade (comportamento) masculina dominante, ao mesmo tempo


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em que constroem estratégias para demarcar seu lugar como mulher torcedora de futebol. As relações entre gêneros normativos se manifestam por meio de silenciamentos e pela necessidade constante de afirmação do lugar da mulher naquele espaço, de expressões

de masculinidades e da homofobia. “É preciso ressaltar aqui que nem todos os rituais de torcida são pautados por questões de gênero, mas os que são trazem consigo essas opressões que categorizam e diminuem o gênero feminino e tornam abjetas as identidades que fogem de

um padrão dominante”, explica a pesquisadora. Os exemplos de opressão que diminuem o gênero feminino mais percebidos pela autora estão nas relações entre torcidas rivais, em que as questões mais evidentes são a homofobia e o sexismo. O rival

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torna-se aquilo que o padrão hegemônico de gênero e sexualidade impõe como inferior ou errado, não sendo à toa que os xingamentos que mais se ouvem nas arquibancadas entre rivais são “viadinho”, “bicha”, “mocinha” e outros termos ligados ao feminino e à homossexualidade.

Estádios: estrutura não atende a todos os públicos Além dos problemas de interação de gênero, suas normas e seus comportamentos, as mulheres ainda enfrentam situações estruturais complicadas no estádio de futebol, que parece não ter sido pensado para acolher todos os públicos. A torcedora do Remo Débora Silva faz parte da torcida organizada Pavilhão 6, mora em Marituba e tem interesse por futebol desde criança, quando jogava na escola. “É inadmissível que um estádio com a história do Mangueirão tenha apenas um banheiro feminino funcionando em cada lado do estádio e não tenha um fraldário. Não podemos falar de um futebol para todos se não conseguem criar o mínimo de estrutura para agregar todas as pessoas”, desabafa a torcedora. FOTOS ACERVO DA PESQUISA

A segurança pessoal das mulheres que frequentam o estádio também é problemática. Victoria de Oliveira é animadora de torcida e faz parte da torcida organizada Lobos do Esquadrão, do time do Paysandu. Ela conta já ter sido assediada no estádio por um técnico de um time de base do interior do estado. “Quando aconteceu essa situação, outras meninas estavam comigo e também foram assediadas por ele”, revela. Outra questão levantada é sobre a roupa com que as mulheres se sentem mais à vontade para ir ao estádio e se isso é uma preocupação. “Apesar de já ter passado por assédio, vou com a roupa que acho melhor. Nós não podemos nos limitar porque o outro, além de não respeitar nosso espaço, não respeita

nosso corpo. Quem tem que mudar são eles, não nós”, finaliza. Apesar dos relatos, Victoria de Oliveira e Débora Silva sentem-se seguras no estádio. “A mulher estar conquistando mais espaço faz me sentir à vontade para falar sobre futebol com qualquer pessoa, dos meus amigos até um desconhecido que esteja ao meu lado no estádio. Tem alguns engraçadinhos às vezes, mas é um em 1.000”, afirma Victoria. Entre as soluções sugeridas pelas entrevistadas para melhorar o convívio entre homens e mulheres nos estádios de futebol, está a implantação de uma Delegacia da Mulher em dia de jogos e a criação de uma estrutura para todos os públicos que já frequentam esse espaço.

Hoje, o Mangueirão conta com um número reduzido de banheiros femininos e não há espaço adequado para crianças, como fraldário, por exemplo.


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Amazônia

Peixe e farinha: a dieta de risco Contaminação por mercúrio e cianeto ameaça comunidades no Pará   Flávia Rocha

A 63% da população do estudo declararam consumir farinha de mandioca acima de quatro vezes por semana.

s principais atividades desenvolvidas em áreas rurais dos municípios do nordeste do Pará incluem a produção agrícola, a pecuária e a pesca. Nesses municípios, dois grupos de alimentos estão quase sempre disponíveis na dieta: a mandioca e o pescado. A atividade pesqueira e a produção de farinha artesanal são elementos importantes para as comunidades tradicionais da região. No Norte no Brasil, é comum o consumo de farinha e peixe concomitantemente. Entretanto, assim como a farinha pode apresentar teores significativos de cianeto de hidrogênio (HCN), algumas espécies de peixes da Amazônia têm apresentado elevados níveis de ALEXANDRE DE MORAES

mercúrio, acima de 0,5μg/g, o limite recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Esse foi o contexto da pesquisa desenvolvida por Cláudia Simone Baltazar de Oliveira e apresentada na tese Respostas toxicológicas e oxidativas associadas ao consumo de peixe e farinha de mandioca em uma população rural do nordeste paraense. O estudo foi defendido pelo Programa de Pós-Graduação em Doenças Tropicais (PPGDT/ NMT), orientado pela professora Maria da Conceição Nascimento Pinheiro. “Diante da ausência de estudos da interação bioquímica do HCN e do Hg através da alimentação no organismo e da existência de grupos populacionais na Amazônia em risco por essa dupla exposição, surge a necessidade de se investigar os efeitos nocivos da ingestão do metilmercúrio oriundo da dieta de peixes e do HCN da farinha”, afirma Cláudia Baltazar. Em contato com o organismo, o cianeto é rapidamente absorvido independentemente da via (mucosa respiratória, gastrointestinal, pele e olhos, se o contato for contínuo). Em casos de intoxicação oral, foram observadas quantidades relevantes de cianeto no cérebro, nos rins, no estômago, no fígado, no sangue e na urina, demonstrando que ele é distribuído em vários tecidos, causando vertigens, vômito e, dependendo da dose, pode levar à morte, em uma ou duas horas. Em relação ao mercúrio, destaca-se a atividade garimpeira na contribuição da exposição, pois o metal é oxidado, gerando íons de mercúrio (Hg+1 e Hg+2), que interagem com o ecossistema aquático. A ingestão do pescado contaminado é capaz de causar várias doenças em humanos, como diminuição da memória, alterações da visão e da pressão arterial, tremores, problemas reprodutivos e renais.

14 amostras de farinha e nove espécies de peixes A metodologia usada foi observacional e transversal, desenvolvida em dois municípios no nordeste paraense. “Foi realizada a avaliação das concentrações de cianeto em 14 amostras de farinha de mandioca e de mercúrio total (HgTotal) em nove espécies de peixes. Além disso, analisamos as concentrações de HgTotal e de marcadores oxidativos de 76 residentes de uma comunidade rural, que tinham dieta à base de peixes e farinha de mandioca”, relata Cláudia Baltazar. A biomédica revela que a concentração média de cianeto variou entre as comunidades. Na


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comunidade “A”, a concentração obtida foi de 20,06 mg/HCN/Kg, variando entre 18,2 e 23,00 mg/ HCN/Kg. Na comunidade “B”, localizada em outro município, a média encontrada foi de 14,24, mínimo de 7,5 e máximo de 22,1 mg/HCN/Kg. Ao comparar com o valor preconizado de HCN total para consumo seguro segundo a OMS (10 mg/HCN/kg), foi observada diferença estatística significativa. Os peixes analisados foram avaliados de acordo com o seu hábito alimentar. A variação de HgTotal no grupo carnívoro foi de 0,03 a 1,30 μg/g nas amostras de S.brasiliensis (peixe serra). Nos detritívoros, o mercúrio foi

menor, com mínimo de 0,09 e valor máximo de 0,90 μg/g na espécie C.latus (guaraximbora) e H.litoralle (tamoatá). Constata-se, por fim, que os peixes de hábitos carnívoros apresentam maior contaminação por HgTotal, em comparação aos detritívoros, que apresentam como elemento dominante na alimentação o detrito orgânico. Desse modo, os peixes predadores, como o planctívoro, o carnívoro/ piscívoro e o carnívoro/necrófago, possuem elevadas concentrações de Hg e devem ser evitados. Um modo de investigar as consequências do consu-

mo desses dois alimentos de forma concomitante é por meio da determinação de biomarcadores. “O estresse oxidativo está associado ao desenvolvimento de diversas doenças crônicas, como diabetes, obesidade, transtornos neurodegenerativos e câncer. Portanto conhecer os marcadores para a avaliação do estresse oxidativo pode aperfeiçoar o diagnóstico de patologias associadas. Os marcadores de estresse oxidativo são parâmetros biológicos que identificam a produção de radicais livres e metabólitos específicos e se baseiam na análise do processo de oxi-

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dação de lipídios, proteínas e DNA”, explica a autora da tese. “Foram colhidas amostras de 10 ml de sangue por punção venosa para as análises hematológica, bioquímica clínica e oxidativa, nesta ordem. Fizemos também coletas de fios de cabelo para a avaliação das concentrações de HgTotal. Foi realizado hemograma completo e bioquímica clínica, que incluiu a dosagem de glicemia de jejum, dosagem de colesterol total, triglicerídeos, creatinina, ureia, TGO, TGP e proteínas totais em todos os 76 participantes da comunidade “B”, afirma Cláudia Baltazar.

Concentrações de HgTotal acima do recomendado Na avaliação toxicológica da pesquisa, a concentração mediana de HgTotal em tecido capilar dos residentes da comunidade “B” foi de 2,52 μg/g. “É importante mencionar que, na comunidade, não foram identificadas atividades mineradoras nem industriais, o que nos permite concluir que o mercúrio presente nos participantes é provavelmente oriundo da alimentação. Como consequência, 7,9% (6) dos participantes apresentaram concentrações de HgTotal acima do estabelecido

pela OMS, 6 μg/g”, revela Cláudia Baltazar. No que se refere ao consumo de farinha de mandioca, 63% da população do estudo declararam consumir farinha de mandioca acima de quatro vezes por semana, seguidos de 28% que afirmaram consumir menos de duas vezes por semana. Não se pode deixar de mencionar os números expressivos de casos de câncer de estômago, nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil, que estão diretamente associados à alimentação.

“A relação entre o consumo de farinha e o câncer se deve à alta ingestão de anilina, presente na farinha de mandioca. Porém, na farinha analisada nesta pesquisa, não foi observada a introdução desse químico no alimento, assim como não houve declaração de uso por parte dos produtores”, esclarece a autora do estudo. Segundo Cláudia Baltazar, novas pesquisas sobre o tema são necessárias. “A farinha de mandioca consumida pela população tem nível de

cianeto acima do tolerável, o que indica a necessidade de uma orientação quanto às etapas de produção. Da mesma maneira, é preciso orientar a população quanto às espécies de pescado com menor teor de mercúrio”, afirma. “Acredito que a presente pesquisa poderá servir como norte para prevenção e investigação de possíveis alterações orgânicas por meio da dupla exposição, contribuindo para a saúde das populações da região amazônica”, finaliza Cláudia Baltazar.

Algumas espécies analisadas FOTOS ACERVO DA PESQUISA

Pescada amarela

Tamoatá

Traíra

A pescada-amarela (Cynoscion acoupa) é considerada a maior espécie do gênero no Brasil, podendo atingir 1,2 m e pesar até 17 kg. Ocorre em costeira de águas rasas, estuários, lagoas estuarinas, foz de rios e em água doce. Possui hábito carnívoro.

O tamoatá (Hoplosternum littorale) é um peixe típico de áreas alagáveis. É de grande diversidade na composição alimentar, apresentando-se como um onívoro.

A traíra ou traiara (Hoplias malabaricus) habita lagos, lagoas, brejos e rios. Está distribuída em todo o território nacional e seu hábito alimentar é carnívoro. Fonte: Baltazar, 2019.


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Saúde Animal

Consumo seguro do queijo de búfala Técnica abrevia tempo e custo para detectar fraude e contaminação ANTONIO SILVA / AGÊNCIA PARÁ

A fraude mais comum é a adição de leite bovino no processo de fabricação do queijo de búfala.

Adrielly Araújo Com edição de Rosyane Rodrigues

P

ela primeira vez, foi possível detectar simultaneamente a presença de fraude por adição de leite bovino e do patógeno Listeria monocytogenes nos queijos de búfala. A dissertação de mestrado de Adrianne Maria Brito Pinheiro da Rosa consistiu na padronização de uma Reação em Cadeia da Polimerase visan-

do reduzir tempo e custo para a detecção desses dois problemas comuns no consumo de queijo de búfala. Para o experimento, os queijos foram produzidos, fraudados e contaminados no Laboratório do Instituto de Medicina Veterinária do Campus de Castanhal, da Universidade Federal do Pará. A dissertação intitulada Padronização de uma Reação em Cadeia da Polimerase multiplex (mPCR) para a detecção

simultânea de fraude por adição de leite bovino e da presença de Listeria monocytogenes em queijos bubalinos foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Saúde Animal na Amazônia (Campus Castanhal), com orientação da professora Carina Martins de Moraes. De acordo com Adrianne da Rosa, a técnica desenvolvida é capaz de detectar a bactéria e a quantidades de leite bovino acima de 10% no queijo de

búfala. “Os resultados obtidos demonstram que a mPCR proposta foi eficiente, podendo ser uma alternativa viável para os órgãos de fiscalização”, avalia a autora. O estudo constatou o crescimento do consumo de queijo bubalino em virtude do seu alto valor nutricional. Diante da disponibilidade limitada do leite de búfala e do seu preço mais elevado, se comparado ao leite de vaca, tornaram-se frequentes as fraudes por adição de leite bovino no processo de fabricação do queijo de búfala. Segundo Adrianne da Rosa, não há legislação específica para o queijo bubalino que proíba, de forma direta, a adição do leite de vaca, mas, “segundo o conceito de fraude da legislação brasileira, trata-se de uma ação que lesa o consumidor, pois o leite bubalino é mais caro que o leite bovino, e a mistura pode ser prejudicial para pessoas alérgicas”, esclarece.

Queijos são mais susceptíveis à contaminação De acordo com a pesquisadora, os produtos lácteos, entre eles os queijos, são os mais susceptíveis à contaminação, principalmente os de alta e média umidade, por serem armazenados muito tempo sob refrigeração e consumidos sem aquecimento prévio. O alto teor de nutrientes no queijo de búfala aumenta a probabilidade de contaminação por patógenos, como a bactéria Listeria monocytogenes, causadora da listeriose, doença grave que atinge principalmente pessoas com baixa imunidade. “Trata-se de um bacilo gram-positivo, anaeró-

bio facultativo, não formador de esporos, que sobrevive em temperaturas que variam entre 0° e 45°C e que está distribuído em variedades de fontes pelo ambiente, incluindo solo, vegetação, silagem, material fecal, esgoto e água”, explica Adrianne da Rosa. A pesquisadora buscou diminuir o tempo e o custo para detectar a fraude pelo leite bovino e a presença da bactéria. “A detecção da fraude e do patógeno não é fácil, existem técnicas laboriosas cujos resultados podem demorar dias ou semanas. Minha pesquisa usa a técnica da Reação em Cadeia da Polimerase

(PCR). Com ela, identificamos os dois problemas de maneira simultânea”, explica. “A Reação em Cadeia da Polimerase foi padronizada de modo a achar um protocolo comum para a amplificação do DNA da bactéria e dos dois tipos de leite em uma única reação, formando milhares de cópias de uma região específica do DNA in vitro”, afirma a autora. Para a verificação do êxito da padronização, os queijos de búfala foram produzidos, fraudados com diferentes porcentagens de leite de vaca e contaminados com cepa da Listeria monocytogenes para que

os parâmetros avaliados fossem controlados. “Incubamos os queijos contaminados em estufa a 37°C e fizemos coletas nos períodos de 0, 6 e 48 horas. As amostras coletadas foram submetidas à extração de DNA, em seguida, realizamos a PCR”, explica. Para Adrianne Rosa, uma das maiores dificuldades foi a obtenção de um protocolo eficiente para a extração do DNA dos queijos e da bactéria. A pesquisadora alerta que, mesmo com a eficácia da técnica comprovada, é imprescindível a realização de outros estudos que auxiliem os órgãos fiscalizadores e os consumidores.


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Auto do Círio

Do teatro de rua ao bem imaterial A metodologia por trás do inventário de referências culturais   Adrielly Araújo

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o ano de 2003, com a realização da Conferência Geral da Unesco, consolidou-se a importância do patrimônio cultural imaterial no documento intitulado “A Recomendação de Paris”. O patrimônio cultural imaterial representa a identidade de um povo, algo que se transmite de geração em geração e promove o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), um patrimônio cultural imaterial pode se manifestar em cinco categorias: tradições e expressões orais; expressões

artísticas; celebrações, práticas sociais, rituais e atos festivos; conhecimentos e práticas, relacionados à natureza e ao universo; e técnicas artesanais tradicionais. Mas quem teria legitimidade para decidir quais são as referências significativas e o que deve ser preservado, sobretudo, quando estão em jogo diferentes versões da identidade de um mesmo grupo? Ainda em 1999, o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) assumiu sua forma atual e definitiva, tendo por objetivo identificar, documentar e registrar sistematicamente os bens culturais expressivos da diversidade cultural brasileira de forma justa.

O INRC é uma metodologia que prevê três etapas: levantamento preliminar, identificação e documentação. O inventário focaliza dimensões concretamente apreensíveis da cultura no âmbito imaterial, como documentos escritos, audiovisuais, objetos, depoimentos e narrativas orais. Foi contemplando a complexidade dessa metodologia que a bacharel em Museologia Nicolle Manuelle Bahia Bittencourt decidiu analisar os métodos de investigação do INRC, usando a manifestação cultural paraense do Auto do Círio, já considerado um bem cultural imaterial do Brasil. “A proposta da pesquisa foi fazer o levantamento dos documentos

usados para o registro do Círio e identificar tipos de documentos, fontes, número total de documentos e quantos tratam especificamente sobre o Auto do Círio”, explica a pesquisadora. Os resultados da pesquisa estão na dissertação O fluxo e a representação da informação do inventário nacional de referências culturais: o caso do Auto Círio e o registro do Círio como Patrimônio Cultural Imaterial em Belém/ PA, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI/ICSA) da UFPA, com orientação dos professores Hamilton Vieira de Oliveira e Franciele Marques Redigolo.

Manifestações associadas também são bens imateriais Em 2004, o Círio foi declarado Patrimônio Imaterial Cultural do Brasil pelo IPHAN, com outras manifestações que lhe foram associadas, como a Festa da Chiquita, o Arrastão do Círio e o Auto do Círio, inaugurando o Livro de Registro de Celebrações do IPHAN. Para a identificação do Círio de Nazaré como bem imaterial do Brasil, houve um levantamento preliminar a fim de especificar e sistematizar as informações sobre as práticas referentes à manifestação. As informações foram buscadas em documentos do Arquivo Público, filmes, documentários e em fotografias. A segunda etapa foi a pesquisa de campo, com a aplicação dos questionários de identificação, os quais compõem o INRC. Nessa etapa, foram entrevistados devotos, promesseiros, entre outros. A terceira e última fase foi a elaboração e o envio do Dossiê-Círio ao IPHAN, em Brasília. INRC no Auto do Círio – Primeiramente, o foco da dissertação foi o Dossiê-Círio, já que o documento está disponível on-line. Depois, a autora buscou documentos físicos que tratam da

aplicabilidade do INRC em 2004. Nicolle Manuelle Bahia Bittencourt seguiu a metodologia de pesquisa do próprio INRC: Levantamento Preliminar, Identificação e Documentação. De acordo com o IPHAN, os procedimentos que envolvem o INRC devem ser simples, claros e completos. Assim, Nicolle Bittencourt concluiu que a eficácia da representação resultante do INRC não é perfeita. “A pesquisa feita pela equipe do IPHAN é ampla no aspecto documental, o que pode resultar na simplificação daquilo que é mais específico. No caso do Auto do Círio, apenas uma pessoa foi entrevistada e poucos documentos sobre o espetáculo foram encontrados”, avalia a autora. Por outro lado, com base nos registros fotográficos, foi possível comparar momentos importantes do cortejo que existem até hoje. “O INRC prevê a necessidade de atualização das informações após 10 anos da realização do registro. Esse processo é chamado de revalidação”, explica Nicolle, ao alertar para a necessidade de novos documentos serem incorporados aos registros do Círio de Nazaré.

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Resenha O Círio nas histórias em quadrinhos   Walter Pinto

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s histórias em quadrinhos constituem o que se convencionou chamar de “a nona arte”, segundo uma classificação que remonta a 1923, quando o italiano Riccioto Canudo publicou o Manifesto das Sete Artes, no qual apresentou uma ordem de artes constituída por música, dança, pintura, escultura, teatro, literatura e cinema. As histórias em quadrinhos foram inseridas na categoria de arte posteriormente, logo depois da fotografia. Conhecida no Brasil pela abreviatura HQ, a nova arte recebe outras denominações mundo afora. Em Portugal, por exemplo, chama-se banda desenhada, os franceses chamam de bandes, os estadunidenses de comics, os italianos de fumetti. Seja onde for, ela traz um elemento em comum: a arte sequencial, a história narrada em série de quadros, particularidade que a difere, na arte gráfica, dos parentes próximos, a charge, o cartum e a caricatura, que se resolvem num quadro único. Há um grande debate em torno da

origem das histórias em quadrinhos, mas, no Brasil, parece não haver dúvida de que tenha sido introduzida pelo caricaturista e jornalista italiano Angelo Agostini (1843-1910), por meio da publicação de As aventuras de Nhô-Quim, na revista Vida Fluminense, em 1869. Desde o surgimento, as histórias em quadrinhos caíram no gosto popular pela comunicação direta estabelecida com o leitor. Mais recentemente, os historiadores passaram a incluí-las como fontes para o estudo da história por seu conteúdo documental. Com a reedição da revista As aventuras de Nhô-Quim pela Editora do Senado Federal, em 2013, foi possível conhecer um pouco sobre a vida dos brasileiros nos tempos da corte, para além dos documentos oficiais. No Pará, a história sequencial vive um momento de grande efervescência, com o surgimento de vários talentos na arte de desenhar e roteirizar. Neste sentido, deve-se destacar o papel catalizador do quadrinista Volney Nazareno e do professor da UFPA e roteirista Ricardo Ono. Recentemente, o REPRODUÇÃO professor Ono organizou uma coletânea de histórias em quadrinhos sobre o Círio de Nazaré, trazendo a memória afetiva dos quadrinistas paraenses sobre esta que é uma das maiores expressões religiosas e culturais do Pará. Não é a primeira vez que o Círio é quadrinizado. O primeiro a fazê-lo foi o artista gráfico Luiz Pinto, autor da revista Círio de Nazaré em Quadrinhos, cuja primeira edição foi publicada em 1993, em preto e branco. Atualmente na quinta edição, a revista ganhou um tratamento em cores. O autor levou dez anos entre pesquisa e produção gráfica, resultando numa publicação indispensável para quem desejar se informar e pesquisar sobre a história do Círio. O Círio como manifestação cultural de alcance internacional levou

o quadrinista Maurício de Souza, o bem-sucedido criador da Revista da Mônica, a produzir a revista Turma da Mônica vai ao Círio de Nazaré, publicada em 2015, uma espécie de apresentação rápida da grande festa do segundo domingo de outubro para o público infantil e adolescente. Embora fugindo ao estilo das histórias em quadrinhos da Turma da Mônica, com a narrativa em prosa dispensando o uso de balões e cada página ilustrada por um único desenho, vemos os personagens circulando por Belém até o dia da grande romaria. A revista Meu Círio em quadrinhos!, organizada pelo professor Ricardo Ono, é resultado de um projeto de pesquisa vencedor do VI Prêmio Proex de Arte e Cultura, da Pró-Reitoria de Extensão e do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA. Segundo o organizador, o principal propósito da revista é buscar preservar a identidade coletiva do Círio por meio da valorização e da divulgação deste evento que transcende o religioso, tendo sido reconhecido, em 2013, como Patrimônio Cultural da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). A revista traz 15 histórias curtas, desenhadas por 16 quadrinistas, sendo três deles considerados estreantes nesta arte. Com Volney Nazareno, assinam as histórias Cleyson Oliveira, Marcio Loerzer, Matheus Souza, Paulo Mashiro, Rodrigo Thales, Erik Rivero, Vini Passos, Amanda Barros, André Cidefao, Alexandre Coelho, Elton Galdino, Adriano Lima, João Hermeto de Carvalho, Marina Tavares e Cecil Coelho. Conforme observa Ricardo Ono, os quadrinhos sempre foram interpretados, “pelos leigos, como obras destinadas exclusivamente ao público infantil. No entanto, hoje, os quadrinhos foram alçados ao patamar de produtos multimidiáticos, sendo amplamente estudados e utilizados como ferramentas comunicacionais e educacionais”. A revista Meu Círio em quadrinhos! é composta por uma rede de memórias sentimentais de cada autor sobre esta grande manifestação da cultura paraense, tecida sob a linguagem artística do quadrinho. Serviço: Revista Meu Círio em quadrinhos! Organizador: Ricardo Ono. Edição: Proex-PPGArtes UFPA. Vencedor do VI Prêmio Proex de Arte e Cultura. 48 páginas. À venda na Casa das Artes, antigo Instituto de Artes do Pará (IAP).


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A História na Charge

#diadoestudante

Orlando Haber, estudante de Jornalismo, integra o Time Enactus/UFPA e participa de projetos que beneficiam a população periférica e ribeirinha de Belém.

Suellen Sanches, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Inovação Farmacêutica (PPGIF), integrou a equipe de produção de álcool gel da UFPA.

Caloura de Medicina idealizou o Projeto “TranquilaMente Enem”, com o objetivo de apoiar alunos que prestarão o exame em 2020.

Alunos de Administração (Bagre, Marajó) criaram o Projeto “União e Motivação” e arrecadaram alimentos para famílias vulneráveis.

Estudantes de Medicina responsáveis pela criação do aplicativo CoronaFinder PA.

Saiba mais sobre os projetos no Portal da UFPA.


#AUTODOCÍRIO2020 EDIÇÃO 26

MÃE,

LIVRAI-NOS DO MAL, AMÉM!

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