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ISSN 1982-5994

UFPA • Ano XXXIII • n. 150 Agosto e Setembro de 2019

Bambu é alternativa sustentável para a construção civil

Páginas 6 e 7

Nesta edição • Incubadora apoia empreendedores sociais • Andiroba tem resultado contra mucosite oral • Auto do Círio: cortejo celebra 25ª edição


Universidade Federal do Pará

JORNAL BEIRA DO RIO cientificoascom@ufpa.br Direção: Prof. Luiz Cezar Silva dos Santos Edição: Rosyane Rodrigues (2.386-DRT/PE) Reportagem: Aila Beatriz Inete, Flávia Rocha e Nicole França (Bolsistas); Walter Pinto (561-DRT/PA). Fotografia: Alexandre de Moraes Fotografia da capa: Alexandre de Moraes Charge: Walter Pinto Projeto Beira On-line: TI/ASCOM Atualização Beira On-Line: Rafaela André Revisão: Elielson Nuayed, José dos Anjos Oliveira e Júlia Lopes Projeto gráfico e diagramação: Rafaela André Marca gráfica: Coordenadoria de Marketing e Propaganda CMP/Ascom Impressão: Gráfica UFPA Tiragem: Mil exemplares © UFPA, Agosto e Setembro, 2019

Reitor: Emmanuel Zagury Tourinho Vice-Reitor: Gilmar Pereira da Silva Secretário-Geral do Gabinete: Marcelo Galvão Pró-Reitor de Ensino de Graduação: Edmar Tavares da Costa Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: Maria Iracilda da Cunha Sampaio Pró-Reitor de Extensão: Nelson José de Souza Jr. Pró-Reitora de Relações Internacionais: Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira Pró-Reitor de Administração: João Cauby de Almeida Jr. Pró-Reitora de Planejamento e Desenvolvimento Institucional: Raquel Trindade Borges Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Raimundo da Costa Almeida Prefeito Multicampi: Eliomar Azevedo do Carmo Assessoria de Comunicação Institucional – ASCOM/ UFPA Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa. N.1 – Prédio da Reitoria – Térreo CEP: 66075-110 – Guamá – Belém – Pará Tel. (91) 3201-8036 www.ufpa.br


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uscando alternativas mais sustentáveis para a construção civil, Francisco de Souza Salgado Neto realizou análise mecânica e microestrutural da interação do bambu com o concreto. Com o tratamento adequado, o bambu poderá substituir o aço em peças de concreto armado. A pesquisa pioneira foi apresentada no Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil (PPGEC/ITEC) da UFPA. Este ano, o Auto do Círio celebra sua 25ª edição. O que o público verá na sexta-feira, 11 de outubro, pelas ruas da Cidade Velha, é o resultado de um ano inteiro de trabalho de todos os que fazem parte do programa de extensão por trás do espetáculo-cortejo. De acordo com Tarik Coelho, à frente da coordenação do programa, entre elenco, segurança, maquiadores, figurinistas e direção, são quase 500 pessoas envolvidas. Leia também: Incubadora de Projetos Sociais garante apoio e capacitação para entidades do Terceiro Setor; em entrevista ao Beira do Rio, Diane Fonseca explica como funciona o Sistema de Informação Geográfico, resultado de sua dissertação; Efeito antioxidante do açaí deve proteger a retina de pacientes diabéticos.

Rosyane Rodrigues Editora

Nesta Edição Uma Belém negra que se “amorenou” .................................4 A hora do Terceiro Setor .................................................5 Bambu na construção civil? ..............................................6 Auto do Círio celebra a 25ª edição .....................................8 Um raio-x das barragens ............................................... 10 Preservação e equilíbrio ambiental ................................... 12 Açaí tem efeito antioxidante ......................................... 13 Andiroba combate mucosite oral ...................................... 14 Arquivos, memórias e afetos .......................................... 16 O protagonismo indígena no século XIX .............................. 18 “Qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor vale amar” Milton Nascimento Foto Alexandre de Moraes


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Opinião ACERVO PESSOAL

Uma Belém negra que se “amorenou”

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elém é uma menina morena, segundo a versão que cantam e contam sobre a sua existência. Contudo o último censo do IBGE (2010) aponta para uma realidade em que 76,7% dos paraenses se autodeclararam negros. Para além dos dados, uma conferida ao nosso redor nos coloca diante de uma realidade racial complexa: do mito do indígena e da “morenidade”. No Brasil, paira a ideia de que somos todos iguais e que vivemos em uma democracia racial. Ideias que dificultam a autoidentificação da pessoa negra, e a identificação por terceiros se dá mediante o racismo como modulador das relações interpessoais e institucionais. Da degeneração prevista pelas teorias raciais/ racistas, nas quais estudiosos acreditavam que a mistura racial levaria ao fim da humanidade pela geração de um ser híbrido e estéril (o mulato), à regeneração pelo culto à mestiçagem, sendo esta orientada pelo ideal de branqueamento, o corpo negro era o incômodo objeto e precisava ser eliminado, seja simbólica, seja fisicamente, pelo mito da democracia racial e pelo ocultamento de outras histórias. Se não eliminado, é permitido que esse corpo negro exista conforme certas normas de circulação apoiadas em estereótipos negativos, que, além de afastarem a possibilidade de autoidentificação positiva com a negritude, servem como imagens de controle (COLLINS, 2016) construídas pelo (ex)ótico, isto é, definições criadas com base em experiências de terceiros e interesses estratégicos de dominação que tomaram como parâmetro certos aspectos possivelmente ameaçadores para o status quo. Sua função é, sobremaneira, desumanizar e controlar. É aquela máxima: “se não consegue eliminar, controle”. É um homem que “parece” com um bandido porque é negro; é a mulher que é “até” bonita para uma negra; se a coisa está “ruim”, ela está “preta”. São as estatísticas que apontam o alto índice de

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encarceramento da população negra, principal alvo da violência policial; é o feminicídio e seu aumento de 54%, segundo Mapa da Violência de 2015. Isto é, são os racismos que não precisam mais do sistema escravocrata para existir, mas permanecem em nossas relações, colocando negras e negros à margem dos direitos e das políticas públicas. Ao se falar de Amazônia, a primeira impressão que surge no imaginário social é a de uma região dominada por florestas, animais, rios e índios, estes no sentido colonizador de suas existências, que alimentam modos de ser indígenas, limitados por estereótipos que os desumanizam e homogeneízam as diversas nações e culturas que por aqui já existiram e existem. Nesse sentido, além de serem visões tanto romantizadas quanto estereotipadas sobre a região, fica a ideia de que a população negra não é parte constituinte da demografia social amazônida. Vicente Salles (2004) já escrevera em sua obra O negro na formação da Sociedade Paraense sobre a presença e a importância da população negra para a cultura na nossa região. José Maia Neto, em seu livro Escravidão negra no Grão-Pará (séculos XVII-XIX), apontara para a importância dos povos africanos que foram trazidos para a região. Deste modo, o que pesa, de fato, sobre a região é o olhar colonial que por si só é racista e tende a embranquecer a população, alimentando o “epistemicídio” à medida que outras formas de pensar e caminhos para se produzir conhecimentos estão atados a uma rede de apagamentos históricos. Assim, é importante que pesquisadores e profissionais comecem a compreender as raízes históricas do racismo e os apagamentos de outras narrativas, de outros corpos e de outras perspectivas não ocidentais para que não continuem sendo permissivos com as diversas formas de atuação do racismo, que, no Brasil, é estrutural, institucional e fenotípico. Negar esse fato e seus sofrimentos significa negar a existência negra em sua diversidade e atravessamentos. Longe de ser um problema superado, é um problema crônico que deixa marcas profundas nas subjetividades, nas relações interpessoais e institucionais. Na tentativa de branquear a Amazônia (e o Brasil), “amorenou-se”, como diz Zélia Amador de Deus, sem, no entanto, eliminar as experiências do racismo que permanecem e atualizam-se a cada ida a um supermercado, por exemplo. Flávia Danielle da Silva Câmara – psicóloga, doutoranda pelo PPGP/UFPA, integrante do Grupo de Pesquisa Nós Mulheres e do Conselho Estadual de Políticas de Promoção de Igualdade Racial. E-mail: flaviadscamara@gmail.com


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Extensão

A hora do Terceiro Setor Incubadora de Projetos Sociais garante apoio e capacitação FOTOS ACERVO DO PROJETO

Nicole França

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rande parte dos projetos sociais nasce com o propósito de mudar a realidade de uma determinada causa ou comunidade, sendo uma importante ferramenta para melhorar a qualidade de vida da população mais vulnerável. Reconhecendo a importância dos projetos sociais, os professores Bruno Rafael Dias de Lucena e Fíbia Guimarães desenvolveram o Projeto de Extensão Incubadora de Projetos Sociais da Universidade Federal do Pará. O projeto de extensão, vinculado à Faculdade de Administração (FAAD) do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA), tem como objetivo apoiar entidades sem fins lucrativos, empreendedores sociais e comunidades organizadas que realizam projetos sociais. Dessa forma, a incubadora atua, principalmente, na orientação e na adequação desses projetos, para que eles se tornem capazes de captar recursos pelos editais abertos por instituições públicas e privadas.

“Nós buscamos ajudar esse segmento para que ele possa crescer e ter vida própria, para que os projetos sociais possam ser autogerenciados, tenham capacidade de captar recursos e realizar uma execução financeira adequada. Desse modo, a incubadora funciona como um espaço de formação profissional e de capacitação das entidades”, explica Fíbia Guimarães. De acordo com a professora, essa é a maneira de empoderar o Terceiro Setor. Segundo o professor Bruno de Lucena, atualmente o projeto conta com uma bolsista e quatro voluntários para a realização das atividades da incubadora. “Todos possuem as funções de divulgar os editais abertos na página da incubadora no Facebook, organizar os nossos eventos, procurar parcerias e atender às entidades que nos procuram. Além disso, nós temos um plano de capacitação que realiza oficinas, como a de Aspectos Contábeis para o Terceiro Setor, que já está na sua terceira edição. Para 2019, ainda estão previstas oito oficinas e quatro ciclos de palestras”, afirma Bruno.

O Lar Acolhedor Tia Socorro, em Mosqueiro, é uma das entidades já atendidas pela incubadora. O local atende a crianças e a adolescentes em situação de vulnerabilidade social.

Entidades recebem atendimento individualizado “As entidades entram em contato e, dependendo da demanda, ocorre o agendamento. O nosso foco principal é a elaboração de projetos para editais de financiamento, mas nós também orientamos o planejamento estratégico, a formalização e a elaboração de custos e orçamentos, caso a organização necessite desse tipo de auxílio”, declara o professor Bruno de Lucena. A Incubadora de Projetos Sociais iniciou suas atividades em setembro de 2018 e, nesse mesmo ano, foram aprovados dois projetos para a captação de recursos no valor de R$ 30.000,00 para cada entidade. Entre as entidades que participam do projeto de extensão

estão: Coletivo Casa Preta, Instituto Tupinambá, Grupo de Amigos da Marambaia, Associação dos Renais Crônicos e Transplantados do Pará, Iniciativa Ame o Tucunduba e Lar Acolhedor Tia Socorro. Tia Socorro – O Lar Acolhedor Tia Socorro acolhe crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social (violência sexual, violência doméstica e abandono familiar), assim como pessoas com deficiência. “Nós tivemos a primeira experiência com edital no ano passado, e o auxílio da incubadora foi fundamental. O projeto era muito sofisticado e complexo, e nós não tínhamos a capacitação necessária. Essa ex-

periência serviu como base para participarmos de outros editais”, declara Renata do Nascimento, voluntária na entidade. Para Renata, projetos como a Incubadora de Projetos Sociais possuem grande importância. “As instituições do Terceiro Setor precisam muito do apoio, da capacitação e da orientação. Então, eu digo para todo mundo: quem puder vir buscar as informações necessárias para captar recursos e fazer a sua instituição crescer junto com a sua comunidade, venha! Eu indico, porque já passei por essa experiência”, reforça. O Lar Acolhedor Tia Socorro pretende reforçar a par-

ceria com a incubadora. “Nós vamos seguir, melhorando a nossa instituição e as outras que estão no nosso entorno. Este ano, vamos tentar o edital do Criança Esperança, novamente com o auxílio da incubadora, porque essa parceria nós vamos levar por muito tempo”, completa Renata do Nascimento. Serviço: O Projeto Incubadora de Projetos Sociais funciona no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Contatos: (91) 3201-7228 / incubadorasocial.ufpa@gmail. com ou na página do projeto no Facebook.


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Tecnologia

Bambu na construção civil? Pesquisa analisa substituição ao aço em peças de concreto armado Nicole França

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uando se pensa em materiais para a construção civil, a nossa mente é logo direcionada para materiais como o cimento, o concreto e o aço. Mas o pesquisador Francisco de Souza Salgado Neto estudou o bambu como material alternativo em substituição ao aço em peças de concreto armado. Os resultados estão na dissertação Análise mecânica e microestrutural da interação do bambu com o concreto. A pesquisa foi apresentada no Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil (PPGEC/ITEC) e orientada pelo professor Marcelo de Souza Picanço. Segundo Francisco Salgado Neto, apesar de o bambu aparentar fragilidade, muitos estudos o apontam como um material natural, com boas propriedades mecânicas, principalmente a resistência à tração, sendo considerado por alguns autores como o “aço vegetal”. Para analisar a utilização do bambu na

construção civil, o pesquisador investigou as complexidades da sua utilização. “Uma delas foi a aderência, que é o princípio vital de uma estrutura de concreto armado, responsável pela transmissão dos esforços de tração para serem resistidos pelo aço. Muitas pesquisas analisaram a aderência entre o bambu e o concreto, bem como estudaram possíveis tratamentos que, em geral, consistiam na aplicação de resinas impermeabilizantes à superfície do bambu”, expõe o autor da dissertação. No entanto Francisco Salgado Neto explica que a maioria das resinas estudadas possuía baixa resistência ao cisalhamento e funcionava como lubrificante entre o bambu e o concreto ou eram materiais termoplásticos, que se fluidificam com a elevação da temperatura. “A maioria dos resultados obtidos foi desfavorável, comparado ao bambu sem tratamento. Nos casos em que houve aumento da tensão de aderência, as resinas utilizadas foram epoxídicas, com o custo financeiro muito elevado, in-

viabilizando a utilização do bambu”, declara o pesquisador. Dessa forma, a pesquisa buscou analisar tanto a interação mecânica entre o concreto e o bambu da espécie Dendrocalamus giganteus como utilizar uma tecnologia mais simples e barata como mecanismo de reforço de aderência entre os dois materiais, a qual seria o arame recozido. Segundo o pesquisador, o arame recozido é um material metálico oriundo do aço, com baixo teor de carbono e com elevado grau de maleabilidade, apresentando um custo de produção mais baixo que o dos vergalhões de aço. “Em geral, sua principal aplicação na construção civil é na amarração das armaduras. A ideia era que o arame envolvido na superfície de bambu atuaria de forma análoga às nervuras encontradas nos vergalhões, principal responsável pela boa aderência entre o aço e o concreto. Na pesquisa, concluí que a utilização do arame foi um tratamento eficaz para o aumento de aderência, mas foi limitado pela natureza orgânica do bambu”, explica.

Parceria: Embrapa garantiu identificação e corte

O bambu da espécie Dendrocalamus giganteus, a mais citada por outros pesquisadores para esse tipo de experimento, é facilmente encontrado em Belém.

Para o desenvolvimento da pesquisa, foi realizada uma revisão bibliográfica das principais pesquisas e dos autores que utilizam o bambu como material de estudo. “Assim, foi possível descobrir as vantagens e as peculiaridades desse material. Neste contexto, descobri que a espécie Dendrocalamus giganteus era uma das mais utilizadas por ser de grande porte e, consequentemente, ter melhores propriedades mecânicas”, afirma Francisco de Souza Salgado Neto. O pesquisador contou com a parceria de pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e, assim, verificou que, em Belém, havia grande quantidade de touceiras desse tipo de bambu. A Embrapa auxiliou na identificação correta da espécie e no corte adequado do material.

Após a coleta do material, os colmos de bambu foram levados para o Laboratório de Engenharia Civil, no qual passaram por um processo de secagem natural, uma vez que o bambu seco apresenta melhores propriedades, e de armazenamento. Depois disso, os colmos foram cortados para realizar a caracterização do material de forma paralela às fibras, ou seja, a direção em que o material apresenta as melhores propriedades. “Para o ensaio de resistência à compressão, foram cortados corpos de prova em formato de tubo cilíndrico, com altura de 20 cm; e, para o restante dos ensaios, os colmos foram fatiados na direção longitudinal e cortados em pequenas peças denominadas de taliscas de bambu. Os ensaios foram: resistência à tração, resistência à compressão, módulo

de elasticidade, massa específica, absorção e evaporação de água e consequente variação dimensional e análise em Microscopia Eletrônica de Varredura (anatomia vegetal)”, explica o pesquisador. Francisco Salgado constatou que a interação entre o bambu e o concreto é limitada em razão de o bambu ser um material liso e orgânico, afetando o processo de hidratação do cimento, ou seja, a inibição dos cristais de silicatos hidratados, que são responsáveis pela resistência dos compostos cimentícios. “Além disso, percebi que o bambu, em contato com o concreto, absorve umidade e tende a aumentar suas dimensões e, ao perder essa umidade, provoca a formação de vazios entre os dois materiais, reduzindo a aderência”, afirma.


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A ideia para a elaboração da pesquisa surgiu da preocupação do autor quanto à preservação do meio ambiente. “Nós, do ramo da construção civil, somos grandes responsáveis pela utilização de recursos naturais, bem como pelos impactos ambientais na produção de materiais de construção. Neste contexto, o aço é uma das tecnologias mais empregadas, e sua principal matéria-prima é o ferro-gusa, cuja produção tem alto consumo energético e emite grande quantidade de dióxido de carbono”, avalia Francisco Salgado Neto. De acordo com o pesquisador, mesmo contrariando a hipótese da pesquisa, o bambu possui alguns aspectos relevantes. “Ele se apresenta com uma fonte de proteção ao solo e é sequestrador de carbono atmosférico, podendo ser empregado como regenerador ambiental por meio do reflorestamento de outras madeiras. Seu cultivo não necessita de solo especial, e o seu ciclo de crescimento é rápido”, declara Francisco. Dessa forma, o estudo buscou utilizar o bambu como uma alternativa de material mais sustentável. No entanto a interação entre o bambu e o concreto ainda não é utilizada na construção civil, pois os estudos ainda são muito recentes. “As principais aplicações do bambu na construção civil são como peças roliças para resistir a esforços relativamente baixos, como estruturas de telhado, andaimes, tapumes, quiosques etc. Alguns países, como China, Colômbia, Equador e Costa Rica, têm uma cultura milenar na utilização do bambu”, destaca. O pesquisador ressalta que a utilização do bambu na construção civil é viável. Para Francisco Salgado Neto, a principal maneira de se viabilizar a utilização do bambu é com tratamentos contra o ataque de insetos e de fungos, de forma que a durabilidade do material seja garantida. Mas, para a utilização no concreto, ainda são necessárias tecnologias que melhorem a interação entre os materiais. “Posso afirmar que este trabalho foi pioneiro e contribuiu para que outros alunos do programa optassem por esta linha de pesquisa, fomentando mais estudos acerca desse material que, sem dúvida, será o material do futuro”, conclui Francisco Salgado Neto.

ALEXANDRE DE MORAES

Fonte de proteção ao solo e sequestrador de carbono atmosférico

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FOTOS ACERVO DA PESQUISA

FOTOS ALEXANDRE DE MORAES

Auto do Círio celebra a 25ª edição São quase 500 pessoas envolvidas na realização do espetáculo Flávia Rocha

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utubro é um mês de celebração para o povo belenense. As festividades do Círio de Nazaré foram declaradas, em 2004, Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira e, em 2013, Patrimônio Cultural da Humanidade. Na sexta-feira que antecede a grande procissão, ocorre o Auto do Círio, um espetáculo-cortejo de Artes Cênicas em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré. O cortejo, que terá sua 25ª edição em 2019, tem início na Praça do Carmo e segue as ruas rumo aos palácios Lauro Sodré (Museu do Estado) e Antônio Lemos (Museu de Arte de Belém). Esse percurso foi escolhido, pois pretende resgatar a importância histórica da Cidade Velha. “Antigamente, os coordenadores chamavam de teatro de rua, mas acho que vai além disso.

É cenografia, dança, maquiagem, música, circo, tudo misturado”, afirma o arquiteto e cenógrafo Tarik Coelho, coordenador do programa de extensão responsável pelo evento. Além de espetáculo, o Auto do Círio é um programa de extensão da Universidade Federal do Pará e oferece diversas oficinas, com mais de 20 professores colaboradores. “O programa de extensão envolve outros projetos de extensão e pesquisa. Alguns professores participam dos ensaios e do espetáculo, mas não do planejamento. Contando todos eles, o número cresce para quase 50 pessoas. Há dois anos, nós também temos parcerias com professores da UEPA e da Unama”, explica Tarik. A maior oficina realizada é a de preparação de elenco. As oficinas de Canto e Dança também são ministradas com frequência. “Nós

tentamos oferecer oficinas o ano inteiro, mas sempre esbarramos no problema do local, onde realizá-las. Enquanto não resolvemos essa questão, realizamos oficinas esporádicas na Escola de Teatro e Dança da UFPA. Como os espaços são cedidos, temos que nos adequar à agenda do local”, explica o coordenador Tarik Coelho coordena o Auto do Círio desde 2015, mas já trabalha na realização do espetáculo desde 2005. “O Auto é a minha vida. Não saio de Belém depois do mês de agosto e, desde que assumi a coordenação, isso ficou ainda mais forte”, revela o professor. “Desde 2015, eu durmo e acordo pensando no Auto: nas parcerias que vamos estabelecer, nas oficinas que podemos oferecer para a comunidade”, brinca Tarik, que chega a coordenar quase 500 pessoas, entre elenco, segurança, maquiadores, figurinistas e direção.


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Cultura O ano se inicia com as providências administrativas A preparação para o cortejo leva em torno de seis meses. Geralmente, o tema e a identidade visual são lançados em junho. “Todos os ofícios devem ser enviados no primeiro semestre para que sejam aprovados, então o ano começa com a parte administrativa. O momento mais efetivo são os três meses que antecedem a apresentação. Nesse período, iniciam-se os ensaios, as oficinas e a criação do roteiro, quando também criamos a visualidade do Auto. Além disso, nós sempre ‘desmontamos’ já pensando no próximo ano”, revela o professor Tarik Coelho. “Quando lançamos o Auto, também abrimos as inscrições, que são realizadas na Escola de Teatro e

Dança da UFPA (ETDUFPA). Na ficha de inscrição, há a opção ‘elenco’, para quem participa do grande elenco do cortejo; também há ‘assistente de direção’, ‘assistente de coordenação’, ‘cenografia’ e outras áreas com as quais a pessoa pode colaborar. Cerca de 30% ou 40% dos participantes são alunos, os demais vêm da comunidade externa. Isso também ocorre na direção do espetáculo, que conta com pessoas que trabalham no Auto há mais de 15 anos e não têm vínculo com a UFPA”, explica o coordenador. Todos os anos, um novo roteiro é criado. Ele apresenta referências às figuras maternas de diversas culturas, entidades que se assemelham ao perfil de Nossa

Senhora. “A ‘Maria’ é a forma como cada um de nós vê a figura da mãe, da guerreira. Sempre existe o carro das três Marias, onde ficam três mulheres que são importantes dramaturgicamente para o cortejo. Elas são entidades maternas, que vão além da figura da Santa. A fé é bem expandida dentro do Auto. A gente sempre fala: ‘gostou de Maria, pode participar!”, afirma Tarik. “Eu mesmo tenho uma criação católica, que vem da minha infância. No entanto me considero apenas ‘mariano’, de tão forte que é meu apego por Nossa Senhora”, conta Tarik Coelho. Esse sentimento é comum entre quase todos os realizadores do cortejo.

Tema deve refletir realidade dos espectadores De acordo com Tarik Coelho, a decisão do tema é coletiva e tem a participação da equipe de criação. “Vamos conversando até decidirmos e sempre estamos abertos à mudança”, afirma. De acordo com o professor, hoje, para a Universidade, o Auto do Círio é um importante ato político, logo o tema deve refletir a realidade dos seus 65 mil espectadores. Para 2019, o tema escolhido foi “Maria: mãe de todas as matas”, com Nossa Senhora representando a Amazônia e vice-versa. “No cortejo, serão retratadas entidades e encantarias do folclore paraense que são associadas à floresta”, antecipa Tarik. Ano passado, o tema “Maria: diversidade do amor” foi pensado em razão das discussões geradas durante as eleições. “Na época, a Universidade e outras instituições estavam realizando campanhas de conscientização sobre o tema. Foi o momento certo”, avalia o coordenador. O espetáculo celebrou a diversidade artística, cultural e religiosa de Belém. Acima de tudo, o Auto do Círio está ligado à memória. Ao celebrar seu 25º aniversário, as edições passadas ajudam a remontar

a história do espetáculo. “Desde que assumi a coordenação, criei o acervo do Auto, o que permite a reutilização de materiais por outras edições do cortejo e a exposição desse material”, conta Tarik. “O Auto do Círio hoje, como patrimônio imaterial desde 2012, representa uma manifestação cultural importante para o Brasil. Ele tem um forte aspecto social. É uma manifestação artística na qual a comunidade também se torna artista, o que faz com que o

evento ganhe uma proporção que nós não conseguimos mensurar. Nós estamos tentando intervir mais na Cidade Velha, com grupos de lá, para que o Auto e a UFPA se tornem mais próximos daquele bairro. O Auto do Círio vai para além do espetáculo”, conclui Tarik Coelho. Mais informações: acesse @autodocirio no Instagram e no Facebook ou no e-mail autodocirioufpa@gmail.com

Agenda Setembro: oficina de preparação do elenco. Outubro: cortejoespetáculo, 11, sexta-feira, às 19h.


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Entrevista

Diane Fonseca

Um raio-x das barragens Geóloga consolida dados de empreendimentos no Pará e no Amapá Walter Pinto

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uantas barragens existem na Amazônia? Quais apresentam riscos de rompimento ou podem representar ameaça às populações? Essas são questões difíceis de serem respondidas, em virtude da ausência de informações sobre esses empreendimentos, construídos para abrigar rejeitos produzidos por indústrias de diferentes áreas. Muitas delas sequer estão registradas nos órgãos oficiais. No Pará e no Amapá, pelo menos na área da mineração, essas questões foram resolvidas por meio da criação

de um Sistema de Informação Geográfica (SIG), uma ferramenta que reúne as principais informações sobre barragens de rejeitos minerais. Criada pela geóloga Dianne Danielle Farias Fonseca, o SIG foi resultado do mestrado profissional realizado no Programa de Pós-Graduação em Gestão de Riscos e Desastres Naturais na Amazônia (PPGGRD), do Instituto de Geociências da UFPA, sob orientação do professor Cláudio Szlafsztein. Na entrevista abaixo, a geóloga fala sobre os desafios encontrados para reunir informações dispersas sobre o estado das barragens na região.

Segurança das barragens No Pará e no Amapá, existem cerca de 120 barragens de rejeito mineral, mas somente 75 delas seguem as determinações da Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) de 2010, que trata de barragem com parâmetros específicos: volume igual ou acima de três milhões de m³, altura maior ou igual a 15 metros e armazenamento de rejeitos de caráter perigoso. Ela classifica as barragens de rejeito mineral segundo os parâmetros Categoria de Risco (CR) e Dano Potencial Associado (DPA). A CR é um

parâmetro que mede a potencialidade de ocorrência ou a materialização do desastre.Os aspectos da própria barragem influenciam a probabilidade de ocorrência de um acidente e todos os proprietários de barragens são obrigados a apresentar declaração de estabilidade delas. O risco é dado por notas que variam conforme as características técnicas, o estado de conservação e o plano de segurança da barragem. Esse risco será menor se a barragem atender aos protocolos de segurança determinados em lei. O DPA está relacionado a tudo que está abaixo da barragem, a ALEXANDRE DE MORAES


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jusante, é o parâmetro que mede os efeitos de ocorrência de um desastre e independe da probabilidade de ocorrência. Considera, por exemplo, a existência de comunidades, vegetação, unidades de conservação e bacias de drenagem. Enfim, é o principal fator de medição da vulnerabilidade do meio físico e socioeconômico a jusante da barragem. Uma barragem pode ter baixa CR, mas um alto DPA. No Estado do Pará, não existe nenhuma barragem de rejeito mineral classificada de risco alto. Há quatro de risco médio. As demais são de risco baixo. No entanto 32% apresentam Alto Dano Potencial Associado. Isso quer dizer que, se uma barragem dessas se romper, poderá causar grandes danos à população, ao ambiente e à infraestrutura municipal.

Sistema de Informação Geográfico Durante a realização da minha dissertação O panorama das barragens de rejeito mineral nos Estados do Pará e Amapá, no âmbito do Grupo de Pesquisa e Estudos sobre Desastres na Amazônia (GEPEDAM), liderado por Claudio Szlafsztein, desenvolvi, por meio de uma ferramenta chamada Sistema de Informação Geográfica (SIG), um grande banco de dados sobre as barragens de rejeitos minerais no Pará e no Amapá. O SIG surgiu após os primeiros levantamentos dos dados sobre as barragens de rejeito mineral mostrarem uma preocupante ausência de informações organizadas e sistematizadas, a respeito das barragens de mineração no Brasil, em especial nos Estados do Pará e Amapá. A diferença de informações provindas dos órgãos federais e estaduais e a dificuldade de acesso da sociedade a um documento único que reunisse esses dados foram os grandes motivadores desta pesquisa.

Documento único O Pará e o Amapá carecem de um cadastro das barragens com informações mínimas que possibilitem aos órgãos de defesa civil uma visão mais espacializada desses

empreendimentos e uma ação adequada na ocorrência de eventuais acidentes. Minha principal preocupação foi reunir as informações em documento único, de acesso fácil para pesquisadores e para gestores de políticas públicas. Eram dados que precisavam estar consolidados. Reuni informações sobre as coordenadas geográficas das barragens, o volume, a altura, os possíveis danos potenciais associados, a categoria de risco, a localização nos municípios, a existência de populações, de vilas e de cidades e os acidentes geográficos em áreas de influência.

Mapa facilita a consulta Na coleta das informações, contei com o auxílio de um banco de dados recém-criado pela Agência Nacional de Mineração, alimentado por informações autodeclaradas pelos donos de barragens, mas pelas quais podem sofrer penalidades caso não sejam verídicas. Todas as informações compuseram o SIG e são apresentadas em um mapa, facilitando a consulta de qualquer pessoa interessada. Se você quiser saber quantas barragens existem em Marabá, por exemplo, basta localizar o município e ler as informações sobre cada uma delas.

Parâmetros de classificação O mapa apresenta determinadas concentrações de barragens associadas à atividade da mineração em função da distribuição das características geológicas, dos recursos minerais e das atividades industriais, tais como nos municípios de Parauapebas, Curionópolis, Marabá, Barcarena e Paragominas. Existem cinco órgãos responsáveis pela fiscalização de barragens no Brasil. Cada tipo de barragem é fiscalizada por órgãos específicos. Os reservatórios da Hydro, em Barcarena, não entram para o grupo das barragens sob a fiscalização da Agência Nacional de Mineração, antigo Departamento Nacional de Pesquisa Mineral, uma vez que a empresa não produz rejeitos minerais, mas rejeitos industriais, estando sob a responsabilidade das Secretarias de Meio Ambiente. As barragens de geração de energia elétrica são de responsabilidade da Agência Nacional de Energia Elétrica. As localizadas dentro de Unidades de Conservação Federais são fiscalizadas

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pelo Ibama. O número de barragens no Pará e no Amapá é, portanto, muito superior às 119 de rejeitos minerais e dificilmente podem ser apontadas com segurança.

Vida útil As barragens são projetadas para ter uma vida útil igual ao tempo de exploração do depósito mineral. Mas existem as flutuações do mercado mineral. Quando há uma queda no preço do minério, como aconteceu com o cobre no início do século, por exemplo, as mineradoras precisam aumentar a produção para manter todo o seu parque industrial funcionando. A produção de rejeito aumenta significativamente, então aquela barragem projetada para 50 milhões de toneladas receberá muito mais. Em consequência, as empresas recorrem ao processo de “alteamento” da barragem. Dependendo do número e das características do alteamento, aumenta o fator de risco de rompimento da barragem. O alteamento é feito de três formas: a montante, a jusante e a linha de centro. O método que está sendo questionado, após os acontecimentos de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, é o método de alteamento a montante. Isso acaba gerando fator de risco maior porque é um método de construção suportado pelo rejeito, o que pode comprometer a estabilidade da barragem. Mas é um método de custo menor e de mais rapidez de construção.

Mestrado profissional Todo mestrado profissional precisa aplicar conhecimentos associados a um problema enfrentado na área de atuação do profissional, atendendo a uma demanda do mercado. O PPGGRD surgiu de uma lacuna detectada pelo governo federal, após inúmeros desastres que afetaram o Brasil, as inundações de Alagoas e de Pernambuco, em 2010, de Santa Catarina, em 2011, e as chuvas ocorridas na região serrana do Rio de Janeiro, em janeiro de 2011, repetidas em 2012 nos Estados do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Espírito Santo. O governo, disposto a fortalecer esse setor vulnerável, promoveu a implementação de mestrados profissionais em desastres. Na UFPA, muitos dos alunos do PPGGRD pertencem à CPRM, ao Corpo de Bombeiros e à Defesa Civil.


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Multicampi Engenharia

Preservação e equilíbrio ambiental Comunidades do Marajó revelam usos de répteis e anfíbios ACERVO DO PROJETO

Projeto levou espécies preservadas em álcool e modelos feitos de biscuit para escolas públicas em Soure.

Aila Beatriz Inete

O

s répteis e os anfíbios são animais muito importantes para o equilíbrio ambiental. As temidas serpentes controlam populações de ratos, enquanto os lagartos se alimentam de uma grande variedade de insetos e ainda servem de alimento para alguns animais vertebrados. Mesmo assim, parte da população desconhece a importância dessas espécies e acaba matando-as, levada por mitos e crenças populares. Em Soure, no Campus da Universidade Federal do Pará (UFPA), um projeto de pesquisa

e extensão resolveu investigar como a população local se relaciona com esse grupo de animais. Com o apoio da professora Leandra Cardoso Pinheiro, coordenadora do Laboratório de Herpetofauna (ramo da Zoologia dedicado ao estudo dos anfíbios e dos répteis), o Projeto Conscientização e educação ambiental para a conservação das espécies de répteis e anfíbios no município de Soure (Pará) atua em escolas públicas de ensino básico. “Estamos cercados por populações rurais e tradicionais. Pensamos que seria interessante conhecer esse contexto e de que modo essas popu-

lações se relacionam com os grupos de animais que fazem parte do seu cotidiano”, conta a professora. O objetivo do projeto é registrar os saberes de comunidades rurais do leste do Marajó sobre anfíbios (sapos, rãs e pererecas) e répteis (cobras, lagartos, quelônios e crocodilianos), ou seja, como a população interage com essas espécies, além de levar informações sobre a biodiversidade para estudantes do ensino fundamental. Para saber como se dá a relação dos habitantes da região com os animais, o grupo de pesquisa aplicou questionários em 11 comunidades de cinco municípios: Júlio e São Marcos (Salvaterra), Caju-Una e Céu (Soure), Camará, Retiro Grande e Umarizal (Cachoeira do Arari), Tartarugueiro e Santana (Ponta de Pedras), Santa Cruz e Jenipapo (Santa Cruz do Arari). “Em média, foram aplicados 15 questionários por município, com questões fechadas e abertas, sendo a última baseada na técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), técnica que consiste em redigir textos discursivos em primeira pessoa do singular com depoimentos baseados nas experiências e nas observações do entrevistado”, explica a professora.

Em sala de aula, atividades práticas chamam atenção A pesquisa também foi feita em três escolas da rede pública, em área periférica e do centro de Soure. “Foram levados exemplares (espécies preservadas em álcool) e modelos didáticos (feitos com massa biscuit) de anfíbios e de répteis para que os alunos pudessem manusear e analisar estruturas e formas dos animais”, explica Leandra Cardoso Pinheiro. A ideia era fugir das aulas tradicionais. Segundo a professora, depois das atividades, os alunos tiveram melhor rendimento

em assuntos sobre biodiversidade e conservação. “Percebemos que a atividade prática pode ser uma valiosa ferramenta para auxiliar os professores, principalmente pelo baixo custo e pela fácil execução”, afirma Leandra Cardoso. Com os questionários, foi possível identificar as comunidades que utilizam répteis como alimento. “Em Santa Cruz do Arari e em Ponta de Pedras, há maior consumo de quelônios (tartarugas, cágados ou jabutis) e crocodilos; enquanto em

Salvaterra e em Soure, mais urbanizadas, relataram menor consumo”, revela a professora. “As espécies de quelônios mais consumidas são: muçuã, aperema, tartaruga marinha e tracajá. Os relatos alimentícios são considerados eventuais e geram baixo impacto sobre as espécies”, avalia Leandra. Ainda de acordo com a pesquisa, em Santa Cruz do Arari e em Ponta de Pedras, os quelônios também são utilizados no artesanato. “Após o consumo da carne, materiais são extraídos

com finalidade decorativa e estética”, conta Leandra Cardoso. Foram registrados poucos relatos envolvendo quelônios e crocodilianos em usos místicos ou religiosos. “Como as populações humanas estão diretamente relacionadas aos impactos sobre anfíbios e répteis, é fundamental conhecer como se estabelece essa relação, para delinear medidas que minimizem o impacto sobre essas espécies, estabelecendo um manejo sustentável”, finaliza Leandra Cardoso.


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Engenharia Pesquisa

Açaí tem efeito antioxidante Resultados indicam que a fruta pode proteger a retina dos diabéticos Flávia Rocha

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egundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada 11 pessoas tem diabetes no mundo. O diabetes é uma doença metabólica, ou seja, os portadores não conseguem “quebrar” moléculas de glicose de forma correta ou na velocidade satisfatória. O acúmulo de glicose no sangue pode trazer diversas consequências negativas para o indivíduo. A retinopatia diabética é causada por danos aos vasos sanguíneos no tecido da retina, o que pode resultar em perda de nitidez da visão, em dificuldade de distinguir cores e até mesmo em cegueira. A OMS afirma que a retinopatia diabética é a terceira principal causa da perda total da visão no Brasil. O Projeto de Pesquisa Utilização de produtos naturais da Amazônia na prevenção de disfunções visuais: investigação do efeito

antioxidante do açaí (Euterpe oleracea) durante o desenvolvimento de retinopatia diabética em modelos animais acometidos por diabetes induzida teve início em 2014. “O diabetes provoca estresse oxidativo, e isso causa lesões nos neurônios da retina. Então nosso objetivo foi saber se o açaí, com o seu efeito anti-inflamatório e antioxidante, também poderia proteger a retina no quadro do diabetes”, afirma o neurocientista Fernando Allan de Farias Rocha, coordenador do projeto. O estudo é realizado no Laboratório de Neurofisiologia Eduardo Oswaldo Cruz, do ICB, em parceria com os Programas de Pós-Graduação em Neurociências e Comportamento (PPGNC/NTPC) e em Neurociência e Biologia Celular (PPNBC/ICB). Os animais escolhidos para a pesquisa foram ratos Wistar, pois são considerados ótimos modelos experimentais. Todo o processo foi aprovado pela Comissão de Ética no Uso de Animais da UFPA.

“Primeiro, foi necessário induzir um quadro diabético em alguns animais. Em seguida, dividimos a população em três grupos: os ratos saudáveis, ou ‘controle’; os ratos com diabetes, que receberam apenas ração padrão; e os que receberam a ração padrão misturada com o açaí”, explica o professor. Para medir o funcionamento da visão dos animais, foi usado um eletrorretinograma. Nesse procedimento, os animais são sedados e os eletrodos são posicionados na região do globo ocular. Estímulos são realizados na forma de feixes de luz liberados por uma fonte luminosa. Ao receberem a iluminação, há uma reação natural da retina, a qual gera uma corrente elétrica que pode ser lida pelo aparelho. “Assim foi possível conferir se o padrão de resposta gerado pelo indivíduo ‘controle’ se assemelha ao padrão gerado pelo indivíduo com diabetes alimentado com açaí”, explica Fernando Rocha.

Estudo será ampliado antes de teste em humanos A retina é uma membrana ocular que possui milhões de células fotorreceptoras. Sua função é transformar as ondas luminosas em impulso neural. Por meio das variações elétricas geradas pela membrana neural foi possível medir a amplitude dessas ondas em cada indivíduo estudado. “Em um paciente com diabetes, ocorre uma diminuição da amplitude da onda. Nós observamos que a amplitude de indivíduos com diabetes alimentados com açaí foi similar à do animal ‘controle’, ou seja, fisiologicamente a resposta foi semelhante. Já nos animais doentes, que não receberam alimentação com açaí, a resposta foi significativamente menor”, revela Fernando Rocha. Em uma pessoa com diabetes, a quantidade maior de radicais livres pode oxidar e danificar células sadias do organismo. “Os resultados mostram que o açaí agiu como neuroprotetor na retina do animal tratado, por causa da sua propriedade antioxidante”, revela Fernando. “Houve, no entanto, um aumento no nível de glicemia dos indivíduos, por isso pretendemos aprofundar a pesquisa”, afirma o neurocientista. Fernando Rocha conta que o estudo deve realizar mais testes das funções morfológicas e fisiológicas dos

animais no futuro, além de analisar como a dieta afeta o comportamento dos roedores. “Há algumas questões que devem ser estudadas com cuidado antes de realizar qualquer tipo de teste em humanos. Acreditamos que essa pesquisa é um dos primeiros passos para encontrar um elemento natural que possa proteger a retina frente às injúrias do diabetes, o que pode ajudar diversas pessoas”, conclui Fernando Allan de Farias Rocha. ALEXANDRE DE MORAES

Após indução ao quadro diabético, ratos wistar que receberam ração misturada ao açaí tiveram os mesmos resultados que os indivíduos saudáveis.


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Saúde

Andiroba combate mucosite oral Resultado é alento para pacientes de câncer de cabeça e pescoço ALEXANDRE DE MORAES

Aila Beatriz Inete

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andiroba é uma árvore típica da Região Amazônica, reconhecida pelo Ministério da Saúde como uma planta fitoterápica, ou seja, uma planta de caráter medicinal. Da amêndoa da andiroba é tirado o óleo, que possui propriedades anti-inflamatórias, antissépticas, cicatrizantes e inseticidas. O óleo é frequentemente usado pela população amazônica por ser acessível e eficiente. Assim, Ana Márcia Viana Wanzeler, orientada pelo professor Fabricio Tuji, apresentou a dissertação de mestrado Efeito do Óleo de Andiroba (Carapa Guianensis aubl) na Cicatrização da Mucosite Oral: um ensaio clínico em Hamsters Sírios Dourados, no Programa de Pós-Graduação de Odontologia da UFPA (PPGO). A mucosite oral é o efeito colateral mais indesejável e doloroso do tratamento contra o câncer de cabeça e pescoço. Ela aparece na gengiva, na língua, nos lábios, na bochecha, no palato duro e mole (céu da boca). “A mucosite oral, em suas apresentações mais severas, gera grande impacto na qualidade de vida do paciente, prejudicando sua nutrição. Em alguns casos, o paciente precisa interromper o tratamento contra o câncer para tratar a mucosite”, afirma Ana Márcia Wanzeler. Segundo a cirurgiã-dentista, o objetivo da pesquisa era investigar a eficácia da andiroba na cicatrização e na ação anti-inflamatória nos casos de mucosite oral. “No âmbito da prática clínica, a dor das úlceras (mucosite oral) é grave, e a condição aumenta a morbidade e mortalidade dos pacientes, com necessidade de uso de fortes analgésicos, corticoides, antibióticos, anti-inflamatórios e, em alguns casos, de nutrição por via enteral ou parenteral”, afirma Ana Márcia. Segundo a pesquisadora, em virtude do elevado custo do tratamento oncológico para a maioria dos hospitais brasileiros, algumas linhas de pesquisa buscam meios alternativos e de baixo custo para o tratamento da mucosite oral. “O óleo de Andiroba é extraído por prensagem das sementes e reconhecido na Medicina Tradicional por seu alto potencial anti-inflamatório e analgésico, condições básicas para combater a mucosite oral, além de possuir ação antimicrobiana, antialérgica, parasiticida eficiente nas disfunções cutâneas e musculares. A alta disponibilidade na região e o baixo custo são atrativos a mais para estabelecê-lo como um método terapêutico”, explica a pesquisadora.


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Primeira fase: aplicação e observação em hamsters O trabalho foi de bancada – feito em laboratório – em hamsters sírios dourados. Além da aplicação do quimioterápico para que a mucosite oral aparecesse, foi necessário provocar um trauma na mucosa do animal. “Com uma agulha, nós fizemos duas ranhuras na mucosa dos animais”, explica Ana Márcia Wanzeler. Depois, foi necessário observar e documentar os estágios da doença, para, em seguida, realizar a análise histopatológica. A andiroba foi aplicada pura, 100% natural, extraída pelo Laboratório de Investigação Sistemática em Biotecnologia e Biodiversidade Molecular da UFPA. O LabISisBio mapeou a árvore, o solo, a região e a extração, pois esses fatores influenciam na qualidade final do

produto. Foi utilizada a andiroba concentrada em 10% e a ‘refinada’, comercializada em farmácias. Ficou comprovado que a andiroba é eficiente na cicatrização e na ação anti-inflamatória da mucosite oral dos hamsters. “Estudos com fitoterápicos têm identificado as principais substâncias biologicamente ativas presentes no óleo e responsáveis pela atividade anti-inflamatória e cicatrizante”, explica Ana Márcia Wanzeler. Foi avaliada também a genotoxicidade, efeito de mutação ou modificações na sequência nucleotídica causado por alguns agentes químicos, e a citotoxicidade, propriedade nociva de uma substância em relação às células. O teste do micronúcleo foi realizado pelo La-

boratório de Citogenética Humana da UFPA. Segundo Ana Márcia, a andiroba tem efeito genotóxico, mas ele pode ser controlado pelo próprio organismo. A pesquisa foi feita em hamsters sírios dourados porque já existe um protocolo preconizado por Stephen T. Sonis, que simula a mucosite oral nesses animais semelhante à que ocorre nos seres humanos. De acordo com a pesquisa, a andiroba 100% natural é a mais eficiente. “Em qualquer ferida de derme ou de mucosa, quanto maior o contato entre o produto e a pele, melhor”, explica a cirurgiã-dentista. Não existe um tempo de tratamento, tudo depende do organismo do paciente.

Pesquisadores estão otimistas para a próxima fase “Frente aos resultados positivos em animais, a linha de pesquisa continua agora em humanos. Com esses resultados, conseguimos delimitar outro projeto em parceria com o Hospital Ophir Loyola. Começamos a desenvolver a segunda parte da pesquisa: transladar o trabalho de bancada para pesquisa clínica”, revela Ana Márcia Wanzeler. Segundo a pesquisadora, o estudo em humanos está na fase inicial, com a avaliação de paciente com mucosite oral. O grupo está bastante motivado e com boas expectativas para o resultado final. ACERVO DO PESQUISADOR

“A nossa expectativa é difundir os efeitos da andiroba. Fazer com que essa planta medicinal seja difundida para a sociedade de maneira clara e objetiva e comprovar que ela não causará nenhum mal à saúde”, declara Ana Márcia. Para desenvolver a pesquisa, Ana Márcia contou com a ajuda de vários grupos de pesquisa e da doação de espaço do Centro Universitário do Pará (Cesupa). “Na época, eu não tinha local para fazer a pesquisa. Estava desmotivada quando tive a ideia de submeter o trabalho em uma instituição particular, em

que ocorreu a fase experimental do estudo. Também consegui reunir vários grupos de pesquisa que foram fundamentais para compor a equipe do projeto”, revela a pesquisadora. Para Ana Márcia, é importante que a população tenha acesso a pesquisas que, de alguma forma, trarão benefícios para a saúde. “Poder contribuir com a nossa região, com a comprovação de um produto acessível para uma pessoa que esteja do outro lado do rio e precise do tratamento contra a mucosite oral é incrível”, conclui Ana Márcia Wanzeler.

De acordo com o estudo, a andiroba 100% natural apresentou os melhores resultados.


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Arte

Arquivos, memórias e afetos Estudo com acervo fotográfico discute novas possibilidades de organização Walter Pinto

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rquivos são primordialmente entendidos como repositórios documentais e espaços para consultas de fontes. Neles estão “adormecidos” documentos que servem à investigação em áreas distintas do conhecimento. Sua organização e classificação são uma preocupação da ciência arquivística. Para além dessa concepção tradicional de lugar em que documentos estão “adormecidos” à espera de quem os consulte, a pesquisadora Maria Madalena Felinto Pinho Ramos produziu uma dissertação no Programa de Pós-Graduação

em Arte (PPGArtes/ICA), que propõe investigar o arquivo como locus prenhe de potência estética e movimento, disparador de memórias afetivas. Partindo de um arquivo imagético real, constituído ao longo dos anos pelo fotógrafo paraense Geraldo Ramos, a pesquisadora lançou mão de ferramentas da História da Arte, da Antropologia e da Linguística, para propor experimentações de cunho conceitual e metodológico sobre os usos do arquivo. O estudo amalgama duas experiências: a do fotógrafo e a da pesquisadora em trabalhos de campo. Para além de repensar a organização

e a montagem de um arquivo, a própria dissertação é uma experimentação na forma e no conteúdo. A escrita acadêmica convive com a escrita literária, sem abrir mão do rigor científico. A narrativa foi estruturada como um arquivo, composto por 12 divisórias, que guardam projeto de pesquisa, mapas de deslocamento, imagens geradas, corpo da narrativa, artigos, exposições, premiações e desdobramentos do estudo. Em Uma poética no arquivo do artista: o contínuo desdobrar das paisagens da memória de Geraldo Ramos, a autora parte de duas indagações: por que remexer numa

ordem que já está estabelecida? Qual a necessidade de cavoucar documentos imagéticos para deles emular o que estava arquivado? Orientada pela professora Bene Martins e na companhia de Aby Warburg, o pensador fundante da iconologia moderna, e de George Didi-Huberman, o papa da História da Arte, a pesquisadora explica que a proposta de montar e desmontar um arquivo se funda como movimento criador e também como um percurso do conhecimento, com o objetivo de repensar a história com imagens e memórias de quem as captou, neste caso, o fotógrafo Geraldo Ramos.

Das imagens captadas aos locais de residência e passagem Diante de um arquivo de imagens construído em mais de quarenta anos, provavelmente um dos maiores arquivos sobre a cultura, o homem e o ambiente amazônicos, a pesquisadora propôs um recorte mais afeito às limitações do tempo e aos objetivos da pesquisa. Optou por estabelecer um diálogo entre as memórias do fotógrafo e as imagens captadas nas casas em que residiu em Belém e em um lugar de trânsito contumaz, a Ilha das Onças. O sentido que o fotógrafo deu a esse arquivo afetivo se transformou no ponto mais importante para a pesquisadora. Incentivada por Flávio Silveira Abreu, antropólogo e professor da UFPA, Madalena Felinto estudou o arquivo pelo viés da Antropologia. Madalena e Geraldo caminharam juntos por entre imagens e reminiscências nos bairros Nazaré, Cidade Velha, Batista Campos, Pedreira e pelo lugar de passagem, a Ilha das Onças. Neste caminhar, as memórias vieram à tona de diversas formas, como sons da época, cheiros, sensações, lembranças esmaecidas, risos, festas, enfim, vestígios de vida, que é o que interessa às Ciências Sociais.

Em campo, o trabalho revisitou espaços de afeto caros ao artista, como a casa dos avôs, no bairro Nazaré, ligada à primeira infância. Cadernos de campo registraram os deslocamentos da pesquisadora e do artista, o desenrolar da pesquisa, o dia a dia, o processo de produção da narrativa, a experimentação, os rascunhos, os devaneios da escrita, enfim, os desdobramentos da dissertação. Baseada em um conceito de Didi-Huberman, as imagens arquivadas foram “desdobradas” em busca da reconstrução de um arquivo mais afeito às memórias afetivas do seu detentor. O que orientou a pesquisadora foi “a busca por possíveis respostas acerca das inquietações que envolvem o acesso e a abertura de um arquivo de artista, com os sentidos que são dados por ele”, afirma Madalena Felinto. A dissertação de Madalena tratou também de uma questão delicada no campo acadêmico: a posição do pesquisador diante da sua pesquisa, haja vista a caminhada de ambos por paisagens de memória. “A banca levou em consideração como as paisagens da minha memória encontram com as paisagens da memória do Geraldo”.


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FOTOS GERALDO RAMOS

Exposições e debates levam resultados ao público Parte dos resultados do estudo foi disponibilizada para o público em forma de exposições, oficinas e seminários. Em experiências inusitadas, como realizar uma exposição em sala escura e substituir as imagens pela narrativa do fotógrafo sobre essas imagens, o público interagiu com o experimento, registrando em livro suas sensações. Outra exposição trouxe no

título a mimese com a pesquisa. Paisagens da Memória – Trajetórias de um olhar expôs ao público 33 fotografias selecionadas do acervo pessoal de Geraldo Ramos, com curadoria de Emanuel Franco. A organização da mostra seguiu a ótica da análise acadêmica realizada no mestrado de Madalena Felinto. Foi dela, inclusive, a ideia de inscrever o projeto da exposição no edital do Prêmio de Artes Visuais

do Banco da Amazônia. A conquista do primeiro prêmio desdobrou-se, para além da exposição, em três oficinas e um ciclo de seminários. Sobre a parceria com a pesquisadora, o fotógrafo considera uma satisfação pessoal: “sempre, quando mergulho no arquivo, tenho lembrança do caminho que percorri, o que me faz recordar dos fatos vividos”, revela Geraldo Ramos.

Madalena “acompanha” Geraldo desde 1970 Madalena Felinto era uma jovem adolescente, estudante do ensino médio, quando sua atenção foi despertada para uma fotografia de Geraldo Ramos. A imagem ficou guardada na memória pela carga de afeto que encerra. Era uma cena da década de 1970. Nela, o poeta Ruy Barata comemora seus 69 anos de vida abraçando carinhosamente o filho, Paulo André Barata, que canta uma de suas parcerias com o pai. O rosto do poeta, recostado às costas do parceiro, é a própria tradução de

uma profunda sensação de amor e paz interior. A imagem valeu-lhe uma primeira reflexão acadêmica sobre a inversão no trato da relação: não era o pai apoiando o filho, mas o filho apoiando o pai. “Aquela imagem me despertou de alguma forma”, diz Madalena. Como colecionadora, ela continuou a acompanhar a produção do fotógrafo por meio de imagens publicadas na revista Ver-o-Pará, na qual trabalhou por 13 anos. Muitas das imagens revelaram à pesquisadora uma Amazônia por

vezes desconhecida, mas sempre rica em afetividade e significados. Seja a serviço da revista, seja como freelance, o fotógrafo perlustrou a Amazônia, passando por quase todos os municípios paraenses. Quarenta e cinco anos de atuação na região proporcionaram a construção de imenso acervo de imagens, originalmente organizadas por município. Madalena Felinto apresenta, com seu estudo, outra alternativa de organização, buscando estabelecer teias de significado e afeto entre imagens.

Acima e ao lado, algumas das fotografias que fizeram parte da exposição resultado da dissertação.


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Resenha O protagonismo indígena no século XIX Walter Pinto

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urante séculos, os índios foram vistos como vítimas passivas dos colonizadores, dos missionários e das autoridades provinciais. No entanto a leitura de Sem Vieira nem Pombal, livro publicado pelo historiador e antropólogo Márcio Couto Henrique, aponta para uma perspectiva que os revela sujeitos conscientes de sua própria história. Se assim não fosse, como explicar as formas distintas como se apropriaram das políticas indigenistas oficiais? Afinal, como firma o autor, “índios que se envolvem em revoltas populares, vivem em sítios afastados dos aldeamentos, negam a autoridade dos missionários e diretores de aldeias, atacam os aldeamentos e fazem promessas às autoridades da província só o fazem porque são, indiscutivelmente, sujeitos de sua própria história.” Esta é uma das principais teses do estudo escrito durante o pós-doutoramento do autor, realizado em Barcelona, entre ALEXANDRE DE MORAES

agosto de 2014 e fevereiro de 2015, um tempo que já deixa saudade pelo excepcional incentivo à qualificação acadêmica por parte das políticas públicas oficiais. O subtítulo do livro, “índios na Amazônia do século XIX”, demarca um corte temporal distante da empreitada jesuítica do período colonial. O cenário agora é de guerra cabana, expansão da economia da borracha, ausência de braços nas lavouras e grandes vazios demográficos na província. Naquele momento, a ideia que perpassou os relatos de viajantes e de estudiosos foi a de que “os índios seriam extintos num futuro breve”. Tal qual um poderoso rio, o sangue português absorveria os pequenos afluentes das raças índia e negra, como anteviu Martius. Não muito distante do pensamento de Varnhagen, para quem os índios constituíam uma “raça decadente, em franca e irreversível degeneração, condenada à extinção, tanto pela violência dos conquistadores quanto pela mestiçagem”. “Absorção pelos civilizados” e “extinção progressiva” firmaram-se generalizações que induziram equívocos sobre a passividade dos índios diante das políticas indigenistas e da ação dos religiosos. Os Munduruku são os protagonistas de Sem Vieira nem Pombal. Márcio Couto recomenda relativizar a imagem de brandura e fidelidade da nação difundida pela historiografia com base em relatos como o do naturalista François Biard, de 1859. Geralmente entendidos como “fiéis aliados das tropas legalistas contra cabanos e escravos fugidos”, os Munduruku não se tornaram presas fáceis das políticas de aldeamento praticadas pelo império brasileiro. Por trás da retórica secular de “civilizar o índio”, a catequese dos missionários contribuiu

com a tentativa de submetê-los às leis e ao trabalho obrigatório, em momento de crise de abastecimento das cidades pós-guerra cabana. Mas os índios preferiam viver em suas aldeias, sumiam dos aldeamentos e do trabalho, só retornando quando lhes era conveniente, nas festas, por exemplo. Um dos parâmetros para medir o insucesso da política de aldeamento do século XIX, sobretudo em relação aos Capuchos, missionários mais afeitos à vida urbana, pode ser dado pelo “saudosismo jesuítico”, a idealização de um tempo de sucesso em que o aldeamento era de responsabilidade dos jesuítas, antes da expulsão por Pombal. O discurso da salvação da alma pareceu não ser suficiente para fazer o índio trocar a vida independente pela vida sedentária nos aldeamentos, longe da selva. Os presidentes da província logo entenderam a importância dos brindes – “mimos e presentes”, no dizer de um deles, Jerônimo Francisco Coelho – para atrair os indígenas. Espingardas, fuzis, terçados, facas, miçangas, machados, peças de fazenda eram parte dos mimos que os índios recebiam. Quando não conseguiam nos aldeamentos, eles percorriam longos caminhos, remando dias seguidos, até chegar ao presidente da Província, em Belém, como faziam os longínquos canoeiros Apinagé. Márcio Couto mostra os índios exercitando certa autonomia em relação aos aldeamentos. As missões não se constituíram espaço de total controle dos religiosos. Segundo o autor, o “fato de os índios viverem em sítios, fora dos aldeamentos, e não considerar estes como sua residência, aponta para um tipo de relação com a espacialidade das missões que escapava à autoridade missionária”. Uma consequência desse esvaziamento dos aldeamentos foi a extinção de alguns deles pelas autoridades governamentais. Sem forçar a mão, o autor mostra, com base em centenas de fontes, o protagonismo indígena no século XIX. Longe das previsões escatológicas sobre o desaparecimento ao impacto do contato, os índios foram decisivos para mudar aqueles que pretenderam civilizá-los. Serviço: Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia do século XIX. Autor: Márcio Couto Henrique. Editora UERJ, 2018. 260 páginas.


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A Histรณria na Charge

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