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3.8 – A Liberdade e a Escravidão
3.8 – A LIBERDADE E A ESCRAVIDÃO
Nesse período, localizamos treze referências sobre a escravidão que empregaram a palavra liberdade, distribuídas em doze Escolas de Samba. Aqui ressaltamos que os sambas da Salgueiro em 1967, História da Liberdade no Brasil, e da Império Serrano em 1969, Heróis da Liberdade, mencionados neste trabalho, também abordaram a questão da escravidão.
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Se, no ciclo anterior, a Princesa Isabel, o poeta Castro Alves, o líder negro Chico Rei e a entidade Preto Velho foram os referentes da liberdade no tema da escravidão; nesse período, destacamos o herói de Palmares, Zumbi, o abolicionista José do Patrocínio e a elegância de Chica da Silva. Nessa direção, o samba-enredo Sublime Pergaminho, da Unidos de Lucas, 1968, além de manter o tom de denúncia, comum em escritos sobre a escravidão negra –especialmente no que tange às condições desumanas dos africanos nos navios negreiros – acrescenta, com muita propriedade, a formação das irmandades como resistência “Vendidos como escravos/ Na mais cruel traição/ formavam irmandades/ Em grande união”32 (Anexo 14) e a evasão espiritual por meio dos festejos que animavam a vontade de superar o cativeiro. Essa canção, ao descrever o fim do elemento servil, menciona, implicitamente, a Lei do Ventre Livre nos seguintes versos: “E de repente uma lei surgiu/ (uma lei surgiu) / E os filhos dos escravos/ Não seriam mais escravos no Brasil”; a Lei dos Sexagenários: “Mais tarde raiou a liberdade/ Pra aqueles que completassem/ Sessenta anos de idade”; e o sublime pergaminho, a Lei Áurea: “Oh, sublime pergaminho! Libertação geral”.
32 Marina de Mello e Souza, em Reis negros no Brasil escravista, afirma que “As irmandades de ‘homens pretos’ foram, segundo Caio Boschi, as únicas instituições nas quais os negros puderam se manifestar com relativa autonomia e liberdade. Entretanto eram, contraditoriamente, agentes eficazes da colonização, ‘pois a par de ser um local privilegiado da afirmação das identidades culturais, étnicas ou sociais dos grupos integrantes’ também se identificavam com a política europeia colonizadora”. (SOUZA, 2006, p. 185) Evidente que, ao escrever sobre o papel das irmandades formadas pelos escravizados, os compositores dos sambas enredos as representavam como contraponto à colonização portuguesa. O objetivo era utilizá-las como elemento de união, de “subversão”.
O Sublime pergaminho descreve, ainda, a emoção da Princesa Isabel33 “que chorou ao receber/ A rosa de ouro papal” e o salão de festa em que o negro jornalista beijou a mão dela em agradecimento. Então, encerrando esse texto uma voz ecoa da varanda do paço “Meu Deus, meu Deus! Está extinta a escravidão!” Com efeito, não podemos ignorar a força do contexto de 1968 no país, a situação econômica e a exclusão permanente das classes menos favorecidas da nossa sociedade, majoritariamente negras. Há de se considerar que, impedido de criticar o presente, o narrador apropria-se do tempo da escravidão e, mesmo afirmando que ela foi extinta, nos permite refletir acerca de outras formas de opressão. Ainda, a respeito de Isabel, não podemos deixar escapar aquela conjectura: será que a exaltação de uma mulher, que exercera o poder no Brasil e sancionara a Lei Áurea, não seria um contraponto aos militares que institucionalizavam um sistema cuja característica principal era controlar as liberdades?34
O negro na civilização brasileira foi o samba-enredo apresentado em 1969 pela Império da Tijuca. Nessa canção, são mencionadas a África como ponto de partida, e a Bahia como o de chegada dos negros, provavelmente, com a finalidade de fazer-nos pensar quea indústria da escravidão, lamentavelmente, foi a base de nossa economia, mas o sonho da liberdade sempre esteve presente no pensamento dos escravizados.
Trezentos anos De escravidão Base à economia De nossa nação – Nos campos – ou na cidade Com a liberdade sonhou! Voz imortal do poeta Ao negro se irmanou! (Anexo 16)
33 Segundo Robert Daibert Júnior, o esforço da Princesa Isabel para colocar fim ao elemento servil era claro, principalmente, quando se indispôs com o Barão de Cotegipe, Ministro conservador, “resistente em aprovar qualquer medida que ameaçasse a propriedade escravista”. O Gabinete comandado por ele caiu, o que possibilitou à Regente convocar um novo ministério em harmonia com as suas perspectivas abolicionistas. “Perseguindo esse objetivo é que a Regente agia, por meio de manobras políticas ousadas e incomuns, no sentido de obter a aprovação de um projeto de lei que eliminasse a escravidão do Brasil”. (DAIBERT Júnior, 2004, p. 129-131) 34 Convém observarmos que, naquele fevereiro de 1968, “a censura tirou de cartaz a peça Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, e proibiu a atriz Maria Fernanda de atuar por trinta dias. A reação foi fulminante: a Greve de Protesto contra a Censura parou teatros do Rio de Janeiro e de São Paulo durante 72 horas, e realizou uma memorável vigília na escadaria do Theatro Municipal do Rio. Entre os que compareceram ao protesto estavam o poeta Carlos Drummond de Andrade, os compositores Chico Buarque e Vinícius de Morais, o animador de programas de auditório Abelardo “Chacrinha”, o dramaturgo Nelson Rodrigues, o arquiteto Oscar Niemeyer, os atores Paulo Autran, Cacilda Becker, Tônia Carrero, o cineasta Glauber Rocha, o crítico literário Otto Maria Carpeaux, os pintores Di Cavalcanti e Djanira”. (SCHWARCZ e STARLING, 2015, p. 465)
Após reverenciar Xangô, o Deus da Justiça, o narrador confirma a liberdade do negro com o brilho do sol “da nova era”. Livre, o negro se expandiu e a arte dele é bela, segundo a composição. Com suas características positivas, o negro é definido como “gigante!”. Na leitura do samba-enredo fica em evidência o esforço do escritor em destacar, no referente negro, o vestuário, o feitiço, o tempero e a defesa de nossa terra, “bravo e herói/(...)/empunhando bem alto a nossa bandeira. Assim, com boa intenção, esse samba propôs elevar o negro como um herói nacional, mas se equivocou ao desconsiderar a urgência de representá-lo além dos costumes, das artes, das comidas e da bravura nos exércitos.
A Acadêmicos de Santa Cruz compôs em 1971 o samba-enredo Três fases da poesia em que cantou a literatura “A civilização dos índios/ O grito da Independência/ E a liberdade da escravidão”. (Anexo 19) Considerando essas três fases, os compositores afirmam que a nossa pátria amada é abençoada, de encantos mil, e que “ninguém segura mais o Brasil”. Nesse mesmo ano, a Canários das Laranjeiras lançou o samba-enredo Ganga Zumba. Essa escrita chama a atenção por se referir, inicialmente, a um sujeito coletivo:
O negro Escolheu a liberdade Sem saber que a igualdade Era um sonho que se passou. Ao negro revoltava a realidade Dando a vida a mocidade Pelas moendas do senhor (Anexo 20)
Verifiquemos, então, a maneira subjetiva do autor, ao utilizar o passado, para dar uma abertura ao presente. No verso “Ao negro revoltava a realidade” pressupõe pensar que, na década de 70, no momento da escrita, não havia necessidade de nenhuma rebeldia. A igualdade, no texto, era um sonho passado até que Palmares, cujo “forte vento sopra os ares” trouxe Zumbi que, empunhando lanças, lutou pela liberdade invocando “o deus da guerra/ entre vales, rios e serras”. Numa postura épica e romântica, o narrador, da mesma maneira, reverencia Ganga Zumba, outro líder palmarino, afinal foi ele quem deu mais amor ao Brasil “Na senzala foi escravo/ No quilombo foi senhor”. Em 1983, a Imperatriz Leopoldinense elaborou o samba-enredo O rei da Costa do Marfim visita Chica da Silva em Diamantina em que homenageia a ex-escravizada e a descreve como promotora de festas que “deslumbravam a sociedade do local”. Uma mulher que valorizava o poder conquistado pelo amor. Na composição, Chica da Silva,
que não queria recordar das dores da senzala, convidou o Rei da Costa do Marfim para celebrarem a nobreza deles, num momento especial, em que a liberdade desejada, personificada na canção, parecia se fazer convidada e se apresentava para uma aristocracia negra:
Esta negra caprichosa Convidou o Rei da Costa do Marfim E o recebeu de forma suntuosa E a festa parecia não ter fim A nobreza esqueceu os preconceitos Irmanada com o povo festejou Parecia que a liberdade sonhada Se fez convidada e se apresentou. (Anexo 29)
Nesse samba-enredo, confirma-se o papel de liderança feminina de Chica da Silva – mulher negra e livre – que ganha prestígio e poder e os utiliza para se afirmar como nobre. Arepresentação de Minas também foi assinalada pelo narrador nesses versos “Só Minas Gerais/ Só Minas Gerais/ Poderia ser palco desta história”.É o reconhecimento dos eventos que marcaram esse lugar, as manifestações barrocas, o Arcadismo e a Inconfidência Mineira, por exemplo. A Unidos da Tijuca, em 1984, expressou na avenida o samba-enredo Salamaleikum, a epopeia dos insubmissos malês, recontando em versos a história daquele levante promovido por negros mulçumanos na Bahia, em 1835. A canção apresenta uma proposta idealizada ao conciliar Alá e Olorum na luta pela igualdade, por parte dos negros. A palavra liberdade é aqui empregada no contexto da superação da escravidão, quando os marginalizados “enxergavam as razões” de se empenharem pela conquista dela. A inteligência e a cultura dos malês são reconhecidas ao longo da música, e personalidades daquela revolta são enaltecidas. A liberdade é escrita, pela segunda vez, em vez de Independência ou Morte daquele grito do imperador, às margens do Ipiranga pela Independência do Brasil, o brado aqui é “Liberdade ou Morte”. Uma outra Independência. Ao final do texto, percebemos a escrita tratar de uma narrativa contada por um neto a sua avó, reconhecendo que a história não mostrou toda a verdade do tempo da escravidão, mas que, mesmo assim, ele sabia de algo a mais sobre o nosso passado.
De Alá receberam ensinamentos De Olorum não se afastaram Um só momento Negros que enxergaram as razões E lutaram pela igualdade Liberdade e justiça social Salamaleikum, elo forte triunfal
Se na veia corre sangue Do senhor ou do plebeu Desejavam dar ao próximo O mesmo que queriam aos seus
Liberdade ou a morte Se lançaram a sorte Olhando o mundo Como um jogo de xadrez
Hoje eu sei, vovó Que não foi em vão Apesar da nossa história Não mostrar toda a verdade Do tempo da escravidão. (Anexo 30)
O sonho de Ilê Ifé (Anexo 33) da Viradouro, em 1984, merece semelhante destaque. Esse samba-enredo inscreveu a palavra liberdade por três vezes, referindo-se, respectivamente, ao povo, a Zumbi de Palmares e à evocação aos deuses afro em protesto contra a escravidão. A proposta introdutória da canção é a escola cantar a “Liberdade/ Nesta manhã de carnaval”. Assim, o Deus supremo do Olímpio Africano é evocado e este convoca outros deuses yorubanos “Para proteger seu povo/ Escravizado pela ambição”. Outras entidades de matriz africana são mencionadas, Oxossi, Ogum, Iansã, Xangô, Oxum e Iemanjá. O plano espiritual foi apresentado, enaltecido, reverenciado, como instrumento para se chegar ao plano material e histórico – a saga de Zumbi em Palmares. A composição se encerra com “E hoje, e para sempre, a humanidade/ Jamais esquecerá o sonho de liberdade”. Era o último ano da Ditadura Militar. A seguir, apresentamos a Tabela 4, em que relacionamos o ano, a escola, o título do samba-enredo e as referências sobre a palavra liberdade.
Tabela 4: 1965 a 1985
ANO Escola de Samba Samba-Enredo
Referências sobre a Liberdade
1965 Portela Histórias e tradições do Rio quatrocentão. Estácio de Sá
1967 Salgueiro História da liberdade no Brasil Escravidão (Zumbi) Independência (D. Pedro) República (Deodoro) São Clemente Festas e tradições no Brasil Independência 1968 Unidos de Lucas Sublime Pergaminho Escravidão (Princesa Isabel) 1969 Império Serrano Heróis da liberdade Escravidão Independência Significações difusas Império da Tijuca O negro na civilização brasileira Escravidão Unidos de Lucas Rapsódia Folclórica Significações difusas 1970 Imperatriz Leopoldinense 1922 – Oropa, França e Bahia Semana de Arte 1971 Acadêmicos de Santa Cruz Três fases da poesia Escravidão Canários das Laranjeiras Ganga Zumba Escravidão 1972 Vila Isabel Onde o Brasil aprendeu a liberdade Guararapes Em cima da hora Bahia berço do Brasil Independência (Maria Quitéria) Unidos de São Carlos Rio Grande do Sul na festa do negro forro Escravidão
1978 Acadêmicos do Engenho da Rainha Criação do mundo segundo os Carajás Indígenas
1979 Unidos do Cabuçu O gigante negro na abolição da república Escravidão (José do Patrocínio) República (José do Patrocínio)
1981 Unidos de São Carlos Quem diria, da monarquia à boemia ao esplendor da Praça Onze Independência
Arranco Ou isto ou aquilo
Carnaval 1983 Portela A Ressurreição das coroas Independência Imperatriz Leopoldinense O rei da Costa do Marfim visita Chica da Silva em Diamantina Escravidão (Chica da Silva)
1984 Unidos da Tijuca Salamaleikum, a epopeia dos insubmissos malês Escravidão
Paraíso do Tuiuti 1984 Unidos do Jacarezinho Ziguezagueando no zum zum da fantasia Significações difusas Significações difusas
Viradouro O sonho de Ilê Ifé
Povo Escravidão (Zumbi) Escravidão (Palmares) 1985 Mangueira Abram alas que eu quero passar Carnaval (Chiquinha Gonzaga) Unidos de Cabuçu A Festa é nossa, ninguém tasca, ou quem ri melhor Significações difusas Escravidão Significações difusas Povo Portela Recordar é viver Carnaval (Águia) União da Ilha Um herói, uma canção, um enredo Significações difusas