Histórias das BEMM
A MENINA DOS SOLUÇOS
José Vieira
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Ficha técnica Título: A menina dos soluços Texto e fotografias: José Vieira Coordenação: Rui Abreu Arranjo gráfico: José Vieira Edição: Bibliotecas Escolares Marquês de Marialva Coleção: Histórias das BEMM, n.º7, março de 2017
A menina dos soluços de José Vieira está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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A MENINA DOS SOLUÇOS de José Vieira
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“Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens.” Fernando Pessoa
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Era uma vez, aliás, eram muitas as vezes que algo visitava a menina das estrelas, a menina do papá, Estela de seu nome. Acontecia o que ela menos gostava que acontecesse: um soluço. Algo que ela ainda não percebia bem. - Hic… Hic… Estela era a estrela de seu pai. Todas as noites ele a deitava e contava uma história até ela adormecer. Perdão, até ele adormecer, pois eram mais as vezes que ele adormecia primeiro, sendo acordado pela filha com um pequeno sussurro: – Papi, papi, e depois e depois?
– E depois? – acordava sempre surpreendido por ter adormecido. – E depois? Onde íamos nós? E lá continuava a história até a menina adormecer. Isto repetia -se todas as santas noites e quase todas as santas noites ele adormecia também. - Papi, papi, e depois? 5
Estela era o que de melhor tinha acontecido àquele pai. Era linda! Tinha cinco anos, os cabelos lisos, uns olhos castanhos e amendoados e um sorriso do tamanho do seu coração. “E um abraço do tamanho do mundo” – comentava muitas vezes o pai. “Ela é parecida com a mãe, mas tem o meu feitio” – dizia com orgulho. Quando ela enrolava os seus bracitos à volta do pescoço dele, cresciam-lhe asas e voava pelo mundo como a ave mais livre e feliz do universo. Foi numa destas noites, hic... hic…, que um soluço apareceu antes da história da noite. O pai vinha preparado com a fábula dos três patinhos, mas hic… hic… o raio do soluço não parava de incomodar a Estelinha. – Hic… Hic… E a menina hic... hic… ia ficando rabugenta e o pai nervoso. Lembrou-se do que os mais velhos diziam: “Um susto e os soluços desaparecem…”. Mas como assustar a pequena e logo de noite? Em vez de adormecer ficaria sobressaltada e talvez, quem sabe, teria pesadelos? Não, não, isso não faria… Resolveu ir buscar um copo de água e inventar a história do “soluço viajante”. Uma história que foi criando à medida que ia contando. – Bebe, minha querida, bebe que passa rápido. – Papi, hic… hic… de onde vêm os soluços? E bebeu um quase nada de água. – Bem, hoje choveu, não foi? – Sim – respondeu a pequena. – Pois é, lembras-te de quando fomos ao jardim e nos molhámos um pouco? – Hehehe! Sim, foi divertido… hic… hic... – Ah, pois… divertido…, mas, enquanto te rias, as gotículas da 6
chuva carregavam um soluço. E provavelmente engoliste-o sem querer. – Não acredito – dizia ela sorrindo, mas com algumas dúvidas. – Quase de certeza. Imagina um soluço como uma gotícula muito pequenina de água… Provavelmente, viajou pelo mundo, passou pelos desertos, percorreu toda a África, atravessou o Mar Mediterrâneo e andou a bailar com as amigas gotas que a chuva traz. – Hic… Hic… Então quando chove as pessoas ficam com soluços? – Nem sempre, minha querida, só quando estamos distraídos e nem sempre chegam com a chuva… Às vezes chegam com o vento, outros com os sons, com as cores… os soluços gostam de andar à boleia. Aconteceu-me uma vez estar a ouvir música e pumba, um soluço apanhou-me desprevenido. Hic… Hic… – Hehehehe, hic… hic… e mais e mais? – Estava eu a dizer-te que o teu soluço veio com a chuva e o vento, quase de certeza! Os soluços são livres, chegam de mansinho e partem sem dizer nada. São muito livres. Como as aves… como todos nós deveríamos ser. Livres! – Mas… e depois como vão embora? Hic… Hic… – Sem dares conta, quando perceberes já não estão. Partem sem dizer nada, lembras-te? Eles chegam para termos consciência que existimos, que respiramos. Para percebermos que a vida é bela demais até que alguma coisa a desequilibre. Por isso, a mensagem que eles trazem é que devemos viver a vida felizes e aproveitar cada momento em consciência. Antes do teu soluço, lembravas-te que estavas a respirar? Tudo se passava no teu corpo sem teres consciência, ou seja, não estavas a pensar na tua respiração, não era? – Era… – E agora? Esse incómodo lembra-te que algo não está bem, 7
não é? – Hic… Hic…, pois… – É bom. Assim percebes o que é estar bem e o que é estar menos bem… e dar valor a isso. Aproveitar cada momento como se fosse o último. – Não percebo, hic… – Eu sei, mas um dia vais perceber melhor… ora pensa… quando estás a brincar… gostas, não gostas? Então, durante essa brincadeira sentes-te bem e feliz? E queres que nunca mais acabe? – Sim! Sim! Hic… Hic… – Então, é assim que deves viver sempre os teus dias. – E os soluços? Não desaparecem? – perguntava a Estela. – Sim, daqui a pouco vão evaporar-se e partir numa nova viagem… Começam por subir, subir, subir e elevam-se até apanharem boleia das imensas gotinhas de água que formam as nuvens. Depois, o vento vai soprando e elas irão dar a volta ao mundo, refrescando os pomares, os campos de flores, as florestas inteiras, enchendo os mares até chegarem às nascentes dos rios. É aí que tudo começa. Depois descem pelos rios, vão atravessando os países com as suas mil aventuras até chegarem de novo ao mar. Pelo caminho, algumas evaporam e fazem um novo ciclo. Cada soluço tem uma história diferente para contar. Têm as histórias do mundo inteiro, têm a história de cada ser humano. A menina começava a ceder ao sono. Já não perguntava e, por vezes, os olhos semicerravam. O pai, por sua vez, falava mais calmamente e num tom mais suave. E, claro, o cansaço também se apoderava dele. Nesta fase não sabemos quem iria adormecer primeiro… – Papi, papi, o soluço foi embora! Papi, papi, o soluço foi em8
bora! A Estela puxava pelo braço do pai que, com a cabeça pendida, se preparava para ressonar. – Papi, acorda! O soluço foi embora! – Sim… Onde íamos? – O soluço foi embora! Hehehehe… Evaporou-se, mas não o vejo. Foi ter com as gotinhas da chuva?
– Sim, foi… foi… a esta hora deve estar a meio caminho de contar às amiguinhas que conheceu a Estelinha e a descrever muitas das aventuras que descobriu nos teus sonhos. – Os meus sonhos? – Sim, as tuas brincadeiras, as tuas fantasias, aquilo que queres ser quando fores grande… Imensas coisas que eles sabem e que nós sabemos, mas que por vezes ignoramos. Ou não damos a importância devida. Lembras-te? Viver cada dia como se fosse o último? Dar importância ao sorriso e ao abraço? – Mas eu não quero que eles contem tudo… – E não contam! Não te preocupes, sabem guardar bem os segredos. A menina ia-se aconchegando mais às mantinhas, o pai compunha melhor a cobertor e afagava-lhe o cabelo quase sem o tocar, tentando acelerar o sono que se aproximava. Finalmente, o sono chegou e a menina dormia serenamente, talvez sonhando com o voo das aves-soluço, talvez sonhando com terras mágicas, talvez só sonhando com o sorriso que o pai colocou no beijo das boas noites. Era uma vez, aliás, eram muitas as vezes que algo visitava a menina das estrelas, Estela de seu nome. Estela já é adulta e olha com ternura os cabelos grisalhos do pai que dormita no sofá. Lem9
bra-se ainda da história do “soluço viajante”, história que ela contou imensas vezes aos seus filhos. Também ela se sentava de joelhos ao pé da cama e repetia as aventuras do soluço viajante. Alterou-a um pouco. Contava ela que quem criava os soluços era um velhote, muito velhinho que vivia na nascente do rio arco-íris, de seu nome Papi.
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