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do passado, um futuro no presente
« (…) dal numero delle città immaginabili occorre escludere quelle i cui elementi si sommano senza un filo che li connetta, senza una regola interna, una prospettiva, un discorso. E’ delle città come dei sogni: tutto l’immaginabile può essere sognato ma anche il sogno più inatteso è un rebus che nasconde un desiderio, oppure il suo rovescio, una paura. Le città come i sogni sono costruite di desideri e di paure, anche se il filo del loro discorso è segreto, le loro regole assurde, le prospettive ingannevoli, e ogni cosa ne nasconde un’altra. (…) Anche le città credono d'essere opera della mente o del caso, ma né l'una né l'altro bastano a tener su le loro mura. D'una città non godi le sette o settantasette meraviglie, ma la risposta che dà a una tua domanda.»1
Évora Carta ao Futuro é um projeto do fotógrafo Cabrita Nascimento, inspirado num texto de Virgílio Ferreira, Carta ao Futuro, publicado pela primeira vez em separata, na Revista Vértice, em 19582.
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Na data em que a Universidade de Évora galardoa o escritor angolano Ondjaki, com o Prémio Literário Virgílio Ferreira 20233, os SBID- Serviços de Biblioteca e Informação Documental juntam-se à comemoração, com a proposta visual do fotógrafo Cabrita Nascimento. Esta é uma proposta que ilustra a arte do olhar sobre a cidade de Évora, por intermédio da acutilante leitura de um dos autores maiores do panorama literário português do século XX. A obra do escritor que, acuradamente, reflete a cidade de Évora, é agora transposta para a obra do fotógrafo, através de um jogo de luz e sombra que nos acaba por trilhar a memória de um passado, que o futuro, no presente, nos obriga a (re)visitar.
Por entre as leituras de Carta ao Futuro, e sob um olhar crítico e atento, escritor e fotógrafo ilustram as gentes e as ruas da cidade de Évora, e (re)criam, plasmando, aquela é a cidade do Património e da Cultura, a cidade do passado, e de um futuro no presente. Cidade Património Mundial da Humanidade, designação atribuída pelo Comité do Património Mundial da Unesco, em 1986, e futura Capital Europeia da Cultura, em 2027.
1 In “Le città invisibili”, in Collezioni "Supercoralli" e "Nuovi coralli", Italo Calvino, n. 182, 1ª ed., Einaudi, 1972. Aqui a Tradução: «(…) do número de cidades imagináveis é preciso excluir aquelas cujos elementos se somam sem um fio que as ligue, sem uma regra interna, uma perspetiva, um discurso. É das cidades como dos sonhos: tudo o que se possa imaginar pode ser sonhado, mas mesmo o sonho mais inesperado é um quebra-cabeças que esconde um desejo, ou o contrário, um medo. As cidades, como os sonhos, são feitas de desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, suas regras absurdas, suas perspetivas enganosas, e cada coisa esconda a outra. (…) As cidades também se julgam obra da mente ou do acaso, mas nem uma nem outra bastam para manter as suas muralhas erguidas. Você não gosta das sete ou das setenta e sete maravilhas de uma cidade, mas da resposta que ela dá à sua pergunta.» Diálogo entre Gran Kan (Kublai) e Marco Polo sobre o tema da Cidade como um Sonho, no romance “Cidades Invisíveis”.
2 In “Carta ao Futuro”, Vértice - Revista de Cultura e Arte, Separata nº. 180/181, setembro de 1958.
3 Prémio que, desde 1997, é atribuído pela Universidade de Évora, para homenagear o escritor que lhe dá nome, distinguindo uma obra literária relevante de língua portuguesa, nos domínios da ficção e/ou ensaio.
A partir da literatura de Vergílio Ferreira, transposta pelo olho/lente de Cabrita Nascimento, encontramos a dialética do olhar, que capta aquelas que são as marcas físicas de uma cidade vivida na dureza de um tempo, em que o vagar é arcano do branco e preto de um sul ao sol, mas também as marcas d’alma e a essência dos muros e mouros, das muitas vidas transfiguradas pelo «alarme da memória», que inquieta o presente. Fazendo eco da inquietação do escritor, que alerta e ilustra a cidade de Évora sob o «alarme da memória», que ignora a «exatidão do presente», encontramos a cidade “preto no branco”, com as suas casas e modas, com as suas gentes de cal viva e terra, distantes dos altos muros dos palacetes que dormem. Sob os olhares de turistas alheios, e de estudantes e moradores que a habitam, empodera-se uma cidade que gentrifica do alto do monte, que alumia e cobre de sombra as praças, as gentes, as ruas, as escadas, as portas e pórticos, as janelas, os palácios, as igrejas e catedrais, e que resiste, digna, na brandura do seu vagar.
Em Cântico Final, obra literária de Virgílio de 1960, uma reflexão sobre arte sugere-nos que, «Na sua evidência imediata, na sua imediata eficácia, a arte é tão simples! Porque o que é difícil e complicado não é sentir a arte, mas explicar a obra, como o que é difícil não é o amor, a alegria, a amargura, mas teimar em fazer deles tratados de psicologia.»4
Tendo em conta que a arte transporta em si a evidência dos sentidos e dos sentimentos, importa realçar que a criação artística constitui, não apenas, a representação material e figurada de uma estética, mas, e também, o sumo da própria vida do homem que, no seu todo, e através desta, e dos espaços que habita, (re)cria e molda um produto interpretável. Explicar a arte poderá, de facto, não ser tão fácil quanto senti-la.
“A teoria social de que os seres humanos são produtos das suas circunstâncias e educação [de que] seres humanos transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da sociedade (por exemplo, em Robert Owen). A coincidência do mudar das circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada e racionalmente entendida como práxis revolucionária.”5
Neste sentido, a arte (e a criação artística6) também tem potencial para ser entendida enquanto ação revolucionária, uma vez que condensa em si um modus operandi e uma linguagem que se pode alavancar na possibilidade de nos expressarmos e projetarmos perante um senti(ment)do, uma ideia, um conceito, um projeto, imaginando (homo imaginosus)7 e emocionando-nos através do mundo conceptual das ideias e dos pensamentos que nos rodeiam; e na capacidade de nos transformarmos, na prática, através desta, pela intrínseca relação circunstancial entre o espaço-tempo, e a matéria societal8 da qual somos feitos.
“The human ability to form concepts, to abstract, to imagine and to elaborate projects, that is, the ability to anticipate, is in turn closely linked to material and social living conditions. Even the most elementary, and certainly the more complicated human concepts and ideas, are not the ‘pure’ products of imagination and mental work, totally independent of, and unrelated to material production. They emerge in the last instance as mental processing—processing by the human brain—of elements of material life experiences. They are therefore inseparable from the involvement of the individual in nature and society.”9
Assim, quando falamos de arte (e de criação artística), se por um lado falamos do seu potencial transformador, e da capacidade para fazer (Homo faber)10, e nos fazermos sentir no outro (comunicar); por outro, falamos também do inestimável património cultural variável, e coletivo (marca profunda das diferentes vivências e memórias ao longo da história), que gera e impulsiona ímpetos à interpretação, e à própria construção do legado que nos habita, e que, em ultima instância, procuraremos preservar através da conservação da memória, e/ou metamorfosear através da criação
Com a presente mostra expositiva, assumiremos as marcas desse património que nos habita. As marcas do escritor do séc. XX, tecidas pelo silêncio ensurdecedor dos séculos passados, que se apressam na demora de um olhar do séc. XXI e, desmultiplicando-se, aproximam os polos. O branco e o preto, a luz e a sombra continuarão a resgatar do passado, as vivências no presente, com os olhos postos no futuro.
6 Nas suas múltiplas formas, seja pela via da palavra escrita, através da literatura, dramaturgia ou argumento; seja pela via da palavra oral, através do teatro, da música; seja pela via da imagem estática, através da fotografia, cenografia, artes plásticas, arquitetura; ou pela via da imagem em movimento, através da vídeo-performance, dança, etc.
7 Termo referenciado no texto de Ernest Mandel in “We Must Dream. Anticipation and hope as categories of historical materialism” (1978). Disponível em: https://www.iire.org/node/940 Texto proferido num colóquio realizado em 1978 (e publicado pela primeira vez em 1980), em homenagem ao filósofo Ernst Bloch (1885-1977), onde o autor contribui para o debate que aborda alguns dos conceitos utópicos de Ernst Bloch, na expectativa de engajar as noções de futuro no pensamento socialista.
8 Sobre as perspetivas que colocam e analisam a arte no seu contexto social e histórico, ver o artigo acima referenciado de E.Mandel, e os estudos do ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo, Walter Benjamim (1892-1940); e sobre a tese de que a arte partilha de uma condição especial de relação objeto-sujeito, concebida a partir de uma práxis social, permitindo ao homem alcançar uma condição elevada de sujeito consciente, propondo-nos (sob bases materialistas de produção teórico-filosófica marxista) o desafio de esclarecer o estatuto categorial específico da arte, base para a teoria do reflexo artístico da realidade, ver os estudos do filósofo e historiador literário húngaro, Georg Lukács (1885-1971).
9 In “We Must Dream. Anticipation and hope as categories of historical materialism” (1978), de Ernest Mandel. Disponível em: https://www.iire.org/node/940 Aqui a tradução: “A capacidade humana de formar conceitos, de abstrair, de imaginar e de elaborar projetos, ou seja, a capacidade de antecipar, por sua vez, está intimamente ligada às condições materiais e sociais da vida. Mesmo os conceitos e ideias humanas mais elementares, e certamente as mais complexas, não são produtos puros da imaginação e do trabalho mental, totalmente independentes e alheios à produção material. Surgem em última instância como processamento mental - pelo cérebro humano - de elementos das experiências da vida material. Portanto, são inseparáveis da participação do indivíduo na natureza e na sociedade.”
10 Idem.
E assim, através da Arte e da Literatura, e de duas visões sobre uma mesma cidade, percorremos, também, os espaços habitados pelas gerações mais novas que integram a comunidade académica (e que em larga maioria nos chegam de outras cidades nacionais e internacionais). Os mesmos espaços que Vergílio Ferreira habitou e eternizou através da sua obra, Carta ao Futuro (1958) e Aparição (1959), e que a Universidade de Évora memoriza através do Galardão Prémio Vergílio Ferreira que, anualmente, entrega a um escritor de língua portuguesa. No fundo, esta é uma homenagem à memória coletiva da cidade e da Universidade de Évora, e um tributo à literatura de Vergílio que, enquanto professor do Liceu de Évora, vivenciou os muros da Academia Eborense, entre 1945 e 195911
É uma homenagem que visa também chamar a atenção da sociedade para a importância da salvaguarda e valorização do património cultural, material e imaterial. Uma salvaguarda da memória coletiva que vive de (e nas) pessoas, e de (e com) afetos. Por isso é também uma chamada de atenção face à dimensão urbana da vida coletiva, uma compreensão que requer um olhar crítico e atento sobre as qualidades e as contradições dos centros históricos, e sua gentrificação, e que, tal como na literatura de Vergílio Ferreira e de Italo Calvino, assume aqui uma atitude pedagógica e criativa. Porque, tal como refletia Marco Polo12 com Gran Kan13, no já citado romance “Le Città Invisibili”14, talvez colocando e formulando perguntas com desejo e sem medos, consigamos imaginar e criar respostas mais próximas desse fio condutor, que liga e projeta do passado, um futuro no presente.
Por estas várias razões é uma homenagem à dimensão histórica do tempo, e do que isso (nos) representa. Uma homenagem à literatura que reflete essas várias dimensões. Uma homenagem ao ensino, à arte e cultura, e à utopia15 que desejamos para o futuro!
À Cidade da Humanidade!
Rute Marchante Pardal SBID – Serviços de Biblioteca e
11 Entre 1836 e 1979, no espaço do Colégio do Espírito Santo funcionaram outras instituições, as a a Escola Industrial (1914-1951), e o antigo Liceu Nacional de Évora (1841-1979). In AAVV (2011), Guia Histórico do Colégio do Espírito Santo. Universidade de Évora.
12 c. 1254-1324. Marco Polo foi mercador, embaixador e explorador veneziano do século XIII, célebre pelas suas aventuras “As Viagens de Marco Polo”, livro que narra ao ocidente europeu as maravilhas da China, da sua capital Pequim, entre outras cidades e países da Ásia Oriental.
13 1215-1294. Kublai Khan foi o quinto grão-cã do Império Mongol, entre 1260 e 1294, e o fundador da dinastia Yuan, que dominou grande parte da Ásia Oriental.
14 Diálogo entre Gran Kan (Kublai) e Marco Polo, sobre o tema da Cidade como um Sonho, do romance de Italo Calvino, "Cidades Invisíveis" Acessível em https://www.lebellepagine.it/res/site51630/res566723_dialogo-3-Calvino.pdf
15 Aqui entendida na aceção filosófica de Ernst Bloch. Na possibilidade de emancipação humana, através de uma alternativa que desacredite a desesperança, e que reconheça na instauração da esperança como princípio, e no ato de agir coletivamente, a via para uma melhor condição humana.