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CARTA AO FUTURO

Vergílio Ferreira 3ª edição, Livraria Bertrand, 1981 (Excertos inspiradores)

“Évora é uma cidade branca como uma ermida. Convergem para ela os caminhos da planície como o rasto da esperança dos homens. E como a uma ermida, o que a habita é o silêncio dos séculos, do descampado em redor. Conheço dos seus espectros, a vertigem das eras, a noite medieva mora ainda nas ruas que se escondem pelos cantos, nas pedras cor do tempo ouço um atropelo de vozes seculares. Vozes de populaça, gritos de condenados, ecos de reis, senhores, estrépito de guerras, ódios e sonhos, sob a imobilidade dos mesmos astros. Como um cofre do tempo, irrealizado e absoluto, a cidade ignora a exatidão do presente, conhece apenas o alarme da memória. As casas novas têm todas a mesma idade de séculos.” (páginas 10/11)

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(“Anunciação da beleza.”) “Nas ruas ermas, os candeeiros meditam sobre velhos espectros, velam o rasto do mundo desaparecido, essa ausência que se sente em tudo o que foi tocado pelo homem e lhe retém o calor da vida. Mas porque esta cidade não confraterniza connosco, porque a habitamos como quem passa, como provisoriamente se habita uma estalagem, porque somos nela intrusos, eu reconheço-lhe a verdadeira face não à luz da evidência diurna, mas a uma obscura luz de eternidade.” (páginas 11/12)

“Lembro-me perfeitamente, meu amigo, de quando vi pela primeira vez o Templo Romano…. Ignoro ainda se o monumento se alinha entre as belas obras de arte, essas perante as quais estamos todos autorizados a comover-nos. (“Arte e emoção estética”.) Ignoro-o, porque hoje sei que o milagre pode surgir quando menos o suspeitamos: uma frase musical de um tocador ambulante, o assobio de quem passa, um talo de erva que irrompe de uma juntura de pedras, podem alvoroçar-nos como a mais pura e evidente aparição da beleza. Subi a rua que vai da Praça, mal reparei então na Sé, obscurecida a um canto, cheguei enfim à acrópole onde se ergue o Templo. Catorze colunas nuas levantam-se para os astros banhadas da lua quente que iluminava o largo. Viam-se as estrelas por entre elas, o espaço habitava a sua irrealidade, irradiava essa mão de pedra à sua infinitude. Suspenso de memória e de uma obscura interrogação, ali fiquei algum tempo, tocado dessa indistinta surpresa que é o halo do limiar da vida, a anunciação das origens. Tenho visitado o Templo a outras horas de lua; mas jamais o alarme me visitou assim puro e fulminante, talvez porque o sabê-lo, o procurá-lo, lhe velava um pouco a face – talvez porque ele só reconhece a verdade de quem não está prevenido, de quem vem desarmado dos combates diurnos.” (páginas 12/14)

“Mas a vida está cheia do seu dom original e só espera de nós um pouco de atenção – ou não bem de atenção, não bem de atenção: um pouco de humildade, de uma íntima nudez.” (página14)

“Há uma distância infinita entre a aparição da verdade, a imediata evidência de seja o que for, e até mesmo o seu reconhecimento quando olhamos a evidência pela segunda vez, já ela esta alinhada, danificada, endurecida entre as coisas que nos cercam.” (página 24)

“A memória fácil do homem é apenas a sua recordação. Ela começa para cada um de nós naquilo que desde a infância lhe referenciou a vida. Mas a outra, a memória pura e que é apenas a vertigem das eras, eco de uma voz que transcende os limites do tempo, recuperando-se talvez aí, nesses pontos de referência, instala-nos todavia, porque o momento é de milagre, num passado e num futuro sem limites, reinventa-nos num acorde único, essa música milenária de estrelas e de nada, abre-nos à aparição da vida onde somos um breve ponto perdido, e a memória é assim uma pura vibração para os quatro cantos do mundo, uma pura expectativa de uma interrogação submersa. É então possível vencer a muralha concreta que nos cerca, a realidade imediata, os factos conhecidos ou relembrados, e acordar à distância ilimitada o eco dessa voz que nos transcende.” (páginas 27/28)

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