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Évora, presente ao futuro

Diz Agostinho de Hipona nas suas Confissões que “não existem coisas futuras nem passadas; nem se pode dizer com propriedade: há três tempos, o passado, o presente e o futuro; mas talvez se pudesse dizer com propriedade: há três tempos, o presente respeitante às coisas passadas, o presente respeitante às coisas presentes, o presente respeitante às coisas futuras”. Aceite-se, pois, esta diluição do tempo verbal como um contínuo presente (de praesens, literalmente “o que está à nossa frente”). E isto é tanto mais válido quando tratamos de escrever para fora do tempo como fez Vergílio Ferreira na mensagem dirigida a um amigo do futuro. Esta epístola, que passou à história literária como Carta ao Futuro, é, de algum modo, uma confissão remetida de Évora para o mundo que virá...

É claro que o humanismo cristão de Santo Agostinho difere do humanismo existencialista de Vergílio Ferreira, escrevendo ambos em tempos históricos tão distintos, embora sobre inquietações tão próximas. Mas, o que mais importa sublinhar nas palavras de ambos é como nos confortam estes seus diálogos intemporais, escritos generosamente como presente ao futuro.

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Contudo, neste passo reflexivo cabe perguntar: valeriam de muito estes diálogos intemporais fora da Arte?

A resposta parece clara e é Vergílio Ferreira quem a proclama: “jamais seria imaginável um mundo entendido fora do sentimento estético”.

Sim, a Arte é sempre uma via possível para a redenção do ser.

É justamente nesta diluição do tempo verbal comprometido com o sentimento estético que devemos situar a obra de Cabrita Nascimento. E esta exposição, nascida (há muito) da leitura da Carta ao Futuro de Vergílio Ferreira, é o melhor exemplo desse compromisso. Desde logo porque o tema é Évora. A sua e a nossa Évora – essa cidade de aparição, de deslumbramento, que perdura ardente nos nossos olhos há tantos anos... Uma cidade entrevista no silêncio, feita de silêncios, de pausas intersticiais onde cabem todas as palavras possíveis. E talvez as impossíveis. Donde, ao percorrer esta exposição, peça a peça, memória a memória, afluam primeiramente as palavras de Vergílio Ferreira: “Évora é uma cidade branca como uma ermida…”. E até pode parecer que esta mostra fotográfica se conforme a um simples roteiro vergíliano, procurando a redenção do que ficou preso no tempo verbal do passado. A exposição, todavia, é muito mais do que simples revisitação nostálgica a uma cidade que “ignora a exatidão do presente”, que conhece apenas “o alarme da memória”.

Talvez por isso (ou também por isso) a Évora que Cabrita Nascimento recria nos seus “olhos da alma” seja feita a preto e branco, a primeira e a mais universal linguagem cromática. E tem razão: reduzida à essência de formas e texturas, a cor pouco acrescentaria à imagem como valor de expressão. Deste modo, sem azuis de céu ou ocres de sol dourado, “é dentro da emotividade que o mundo tem (mais) sentido”. Essa emotividade é dada ao observador (nem podia ser de outro modo) pelo genuíno compromisso entre as formas entrevistas e o arquétipo que delas interiorizámos. Diálogo passageiro em todo o caso, pois que ele tende a dissolver-se à medida que outras leituras trazem novas possibilidades, pois a familiaridade de uma porta, de uma janela, de uma rua, convoca-nos a imaginar outras viagens não previstas… Na verdade, a fotografia, como a epistolografia, também é uma das formas diretas de comunicar que melhor suporta “uma larga margem de silêncio”.

É, pois, deste viajar pelo silêncio das formas que nos fala esta Évora, Carta ao Futuro. Umas vezes de forma direta, outras em tom mais subtil, como num desafio aos nossos sentidos. Evoco aqui o que experienciei quando vi, a primeira vez, uma das fotografias em exposição: como não deixar de reconhecer na coluna do Convento dos Lóios, que divide o templo romano em duas metades, uma memória longínqua de D. Rui de Sousa (ali perto sepultado), o negociador do Tratado de Tordesilhas em nome do Príncipe Perfeito… Tal como um mundo dividido a meio, é preciso este estímulo visual para melhor entendermos a importância da unidade-identidade do conjunto.

Daí que o que mais me ocorre para caracterizar esta Carta ao Futuro de Cabrita Nascimento seja a de uma Évora vista em instantes poéticos, tantas vezes nascidos de uma subtil comensurabilidade de planos e de um cuidado equilíbrio de volumes. Fugindo do “cliché” arquitetónico que impõe ao fotógrafo a disciplina da ortogonalidade, bem se pode dizer que nesta mostra fotográfica há muito racionalismo nos surpreendentes instantes poéticos.

Só depois me chega a luz, a sombra. Que são, no seu jogo volúvel, aquilo que mais transforma as formas da cidade em objeto estético. Vergílio Ferreira vê nesta metamorfose uma “obscura luz de eternidade”, que passa sobre as formas imóveis como nós passamos pela cidade. Talvez “porque a habitamos como quem passa, como provisoriamente se habita uma estalagem, porque somos nela intrusos…”

Mas não. Ninguém pode ser intruso em algo que, de tão humano, já pertence à humanidade. Muito menos nela podemos considerar Vergílio Ferreira como um intruso – logo ele que faz parte da identidade literária da cidade. Somos, isso sim, partícipes de uma realidade que nos transcende no breve da nossa passagem, mas cuja instância histórica nos pertence por direito natural. Vivemo-la. Sentimo-la. Desejamo-la. E isso é tudo.

Cabrita Nascimento exorta-nos, pois, a essa singular relação com Évora através destes surpreendentes instantes poéticos. Bem sabe ele que as cidades (todos os lugares habitados!) são criações humanas que só a humanidade os explica e lhes dá pleno sentido. Donde, uma exposição fotográfica com esta força temática nos apelar a esse sentido largo de pertença, a que ele chama, e com razão, um “combate pelo património”. Subscrevo-o, na forma e na substância. Tão importante é a salvaguarda física de um monumento (natural ou artificial) como a sua valorização cultural. Por isso se diz Património Cultural, porque a “nós” diz respeito. Dar importância a esse património nascido da cultura (material e imaterial) é tanto mais eficaz quanto a profundidade do diálogo que com ele se estabelece. Um diálogo decisivo, na verdade. Tão transcendente, aliás, que ele se apresenta hoje, a todos nós, como o mais nobre presente ao futuro da cidade – fazê-la Capital Europeia da Cultura!

Razão sobeja para sublinhar, também em testemunho de gratidão a Vergílio Ferreira e a Cabrita Nascimento, quão importantes são para Évora estas suas Cartas ao Futuro

Francisco Bilou Historiador de Arte JAN 2023

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