5 minute read
ÉVORA CARTA AO FUTURO
Há um pulsar do tempo na obra “Carta ao Futuro” de Vergílio Ferreira, há a criação de uma levitação poética na forma como as suas palavras descrevem Évora; há um fluir liquido do tempo, que abala e retorna, que se cria e auto-recria, que se move eternamente como um rio imaginário que nunca desagua no mar. É uma Évora intemporal que se projeta para uma dimensão futura ou para um presente permanente; é uma Évora que é imortal.
Tocado pela obra-prima de Vergílio, começo a ouvir dentro de mim mesmo o chamamento poético da “existência” de uma Évora; “aparição” subtil e íntima, que me impulsiona, enquanto artista, ao meu infinito criativo.
Advertisement
Ao estabelecer um vínculo com a obra de Vergílio Ferreira, vivenciei um abalo sublime, purgativo. Dentro dessa aura que une obras-primas e público, as melhores faces das nossas almas são reveladas e ansiamos pela sua libertação. Nesses momentos, reconhecemos e descobrimos uma parte desconhecida de nós, as profundezas insondáveis de nosso próprio potencial, criação que se alimenta de criação, criatividade que comunica com criatividade, e os limites mais distantes de nossas emoções. A própria cidade de Évora se torna uma entidade orgânica, torna-se “pessoa”, um ente existencial. As pessoas têm de ser lembradas constantemente que são seres humanos (o existencialismo é um humanismo); e as cidades têm de ser reinventadas constantemente como “cidades humanas”. Esta peregrinação ao longo de oito anos pelo espaço-tempo da cidade de Évora constitui-se como uma “rememoração futura”. Roland Barthes (1915-1980) considera que a fotografia deve ser “silenciosa”, não por uma questão de discrição, mas de música; a subjetividade absoluta só é atingida num estado de silêncio; a foto toca-nos, quando, fechando os olhos, deixamos que os pormenores que ela contem, subam sozinhos à nossa consciência afetiva. Para Barthes a fotografia é subversiva não quando assusta, perturba ou até estigmatiza, mas quando é pensativa. Neste sentido para o ensaísta francês da semiologia linguística e fotográfica, a fotografia não é um objeto estético; não é um objeto histórico; não é um objeto sociológico; a fotografia é a “ciência impossível do ser único”, é uma testemunha muda, que emociona, que rememora, que sensibiliza, que sente, que pensa.
“Projetar a luz nas profundidades do coração humano, tal é a vocação do artista”, é uma afirmação de Schumann, que vai ao encontro daquilo que Kandinsky considerava ser a função da arte, como uma intuitiva expressão da “necessidade interior”: impressões, improvisações, composições são um caminho para dar vida espiritual à criação artística, que possa provocar um efeito na pessoa que a contempla, uma reflexão, um pensamento, uma mudança.
Um combate pelo património Faço fotografias pelo prazer de comunicar, de transmitir visões de futuro… toda a fotografia é uma metáfora de futuro; existe no espaço-tempo contínuo em que se materializam os olhares. Esta exposição sobre a Évora, cidade património mundial da UNESCO, é um combate pelo património; pelo património cultural que herdámos dos nossos antepassados e pelo património cultural que queremos deixar aos nossos descendentes. O combate pela preservação do património é um combate positivo, de todos os cidadãos sem exceção; mas os artistas, como produtores de cultura, têm uma responsabilidade acrescida nesse combate.
Somos o que comemos, a língua que falamos, as ruas e as casas que habitamos, os objetos que usamos, os livros que lemos, as músicas que ouvimos, as tradições e a história que transportamos na nossa genética cultural. A nossa identidade está em permanente mutação e construção, mas assenta em raízes bem definidas.
Olhar e ver. O que importa é ver. Ver com os olhos e com a alma, deixando descansar o coração. Combater pelo património, é preservar o património, criando estratégias de resistência ativa à normalização planetária em curso: ao nível local, as entidades estatais, as associações, os indivíduos, devem confluir num caminho comum contra a mercantilização do património e pela afirmação de identidades locais genuínas. Nesta luta constante contra a rotina administrativa (no sentido lato), como muito bem referiu Françoise Choay, o local é o ideal; o local é onde vivemos o mundo, onde construímos o mundo; o local é o universal.
Tinha quinze anos quando entrei nas instalações do FAOJ (fundo de apoio aos organismos juvenis) de Évora, no Largo da Misericórdia, para frequentar um curso de iniciação à fotografia orientado por José Conde. No resultado dessa experiência realizou-se uma exposição coletiva de trabalhos realizados no curso, num átrio do FAOJ que dava para a rua Miguel Bombarda. Estes meus primeiros trabalhos revelados foram precisamente sobre Évora: a cidade onde cresci e estudei sempre foi um dos meus objetos privilegiados de análise estética. A este curso seguiram-se cursos de aperfeiçoamento e de especialização, em Évora, orientados por José Vieira. Passei depois também eu a ser formador de fotografia e cinema. Seguiram-se mais cursos de especialização em Lisboa, Porto e Paris, orientados por formadores franceses do CEMEA. Esta formação baseada em métodos ativos, não sendo escolar, era muito boa, quer em termos técnicos, quer em estética e história da fotografia.
A minha primeira exposição em Évora foi no Palácio D. Manuel e a segunda no Museu de Évora. E a minha primeira exposição sobre Évora (médio formato analógico Bronica Etrsi 645), produzida por Nelson Lage para a autarquia de Bruxelas (foi exibida mesmo em frente da sede da OTAN, em Evere), esteve também em exibição no Palácio de D. Manuel, integrada nos encontros “Luz do Sul” comissariados por José M. Rodrigues.
Por esta altura adorava toda a obra ficcional de Virgílio Ferreira. Quando entrei na sua obra ensaística, a descoberta do pequeno livro “Carta ao Futuro” foi uma revelação e fonte de inspiração para retomar o tema Évora, mas de um ponto de vista totalmente distinto, o da preservação do património, em sentido lato.
Com os textos do existencialista Ferreira inscritos na minha mente, percorri as ruas da cidade, frase a frase, conceito a conceito, ao longo dos períodos do dia, com as suas variações de luz, ao longo das estações do ano, ao longo de mais de 8 anos, acompanhado das minhas fiéis Fujifilm Xpro2 e Xpro3, o digital mais analógico que conheço.
Agradeço à Universidade de Évora a oportunidade que me ofereceu para produzir e expor este projeto no contexto do prémio Vergílio Ferreira 2023, e em particular aos SBID- Serviços de Biblioteca e Informação
Documental, e à Dra. Rute Marchante Pardal, minha interlocutora. Agradeço à Câmara Municipal de Évora pelo financiamento das impressões e por permitir que esta exposição, inaugurando em Évora, possa tornar-se itinerante em várias cidades portuguesas e europeias, e em particular ao Dr. José Conde que foi o meu interlocutor. Agradeço ao Dr. Marco Lopes, diretor do museu de Faro, pelo amável texto que escreveu para este catálogo, e pela oportunidade que me deu de expor, por duas vezes, no museu que superiormente dirige. Agradeço ao Dr. Francisco Bilou, um investigador de referência na análise histórica da cidade de Évora, pelo amável texto que escreveu para este catálogo. Agradeço ao Senhor Manuel Piçarra, fundador e diretor do jornal “Diário do Sul”, que foi aluno de Vergílio Ferreira e é uma testemunha fundamental para se interpretar a história da segunda metade do século vinte eborense, e pela gentileza de ter escrito um texto para este catálogo.
Bibliografia
Barthes, Roland, OEuvres Completes (Tome V, 1977-1980), Seuil, 2002.
Cartier-Bresson, Henri, O imaginário segundo a natureza, GG, 2004.
Castello-Lopes, Gérard, Reflexões sobre Fotografia, Assírio&Alvim, 2004.
Choay, Françoise, Le Patrimoine en questions – Anthologie pour un combat, Seuil, 2009.
Ferreira, Vergílio, Carta ao Futuro, 3.ª edição, Bertrand, 1981.
Kandinsky, Wassily, Do Espiritual na Arte, Dom Quixote, 1987.
Sontag, Susan, Ensaios sobre Fotografia, Dom Quixote, 1986.