mercúrio

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mer cĂşrio bianca ziegler



mercĂşrio


Projeto gráfico Bianca Ziegler Revisão Isabela Bosi & Raisa Christina

S729m

SOUZA, Bianca Ziegler de. 1985. Mercúrio / Bianca Ziegler. Fortaleza: nadifúndio, 2019. 52 p.

ISBN: 978-65-80574-06-3

1. Literatura brasileira 2. Poesia I. Título

1a edição 2019 Editora nadifúndio nadifundio.com


Bianca Ziegler

mercĂşrio



Vem escuta no meu peito o silĂŞncio elementar dos metais Ana Martins Marques



el dia fuera del tiempo em solo estrangeiro escuto uma canção de sotaque familiar enquanto inauguro um novo caderno de folhas pontilhadas talvez para que não se percam as palavras dentro dos limites das margens quando há tempos que tuas palavras não podem me alcançar. sabes que a palavra umbral em español quer dizer limiar? do latim liminares, passagem para o interior de algo, entrada, ponto que constitui um limite, geralmente inicial. resistencia es una ciudad argentina de la provincia del chaco, a capacidade de um corpo qualquer se opor à passagem de corrente elétrica.


analiso dados matemáticos e escrevo sobre a vegetação do semi-árido e qualquer coisa sobre a tua geografia e as minhas já praticamente esgotadas estratégias de alcance. a recuperação de uma área degradada tem por objetivo permitir que o espaço danificado volte a contar com recursos bióticos e abióticos suficientes para que se mantenha em equilíbrio. dos já poucos vestígios teus na minha pele preocupo-me em imaginar por quanto tempo um bicho feroz consegue sobreviver sem alimento fora de seu habitat natural ou em quanto tempo um solo degradado em condições climáticas desfavoráveis semente desejo reflorestará.



cartilha de prevenção para problemas de vista descendo aquela rua numa noite de sábado, a mesma rua onde tentaram me assaltar quando voltava pra casa de bicicleta às três da manhã naquela noite em que buscava explorar estratégias para não pensar nas tuas mãos deslizando em minhas costas, em loop, e eu sequer lembro se foi nesse gesto que iniciamos nossa dança ou se foi um gesto em tom de despedida, prefiro a ideia do loop porque assim estabeleço pra nós um meio, a possibilidade de que não exista um começo ou um fim, a palavra meio atravessa estes limites, é meio dia, é meia noite, meia lua inteira, meio de transporte. não escrevemos mais um pro outro há muito tempo. aquela agência dos correios pegou fogo, ficastes sabendo? em chamas e ainda não estabelecemos nosso meio de comunicação.


eu caminhava no meio fio e chegar exatamente no meio do quarteirão me fez pensar o quanto me encontrava completamente vulnerável e se tem uma coisa que aprendemos um com o outro é que mesmo que nosso amor caminhe em espiral e não em linha reta precisamos seguir em frente, avante, quantos passos de trás pra frente ou daqui em diante seriam necessários para alcançarmos um ao outro antes de alguém me tomar? um astrólogo que visitei na época do meu aniversário comentou algo sobre afrodite, energia sexual e meu corte de cabelo, sobre os perigos de podarmos nossa força. perdi as contas de quantas vezes desabei este ano. eu nunca me senti tão forte. hoje dei uma aula sobre sinapses e o comentário de um aluno me fez lembrar das tuas mãos tocando meu rosto e os impulsos elétricos. aquele gozo foi tão intenso que pensei que derreteria junto e finalmente não sobraria mais nada de mim além do que a água do chuveiro levou embora. quanto acha que podes carregar do mundo nas costas antes de ceder? enquanto procuras a resposta no que parece imenso, reluzente, o que podes enxergar do topo dos arranha-céus


e o que invade as pautas dos jornais em todo país, penso nos fios de cabelo que deixastes no meu lençol, o silêncio entre cada próximo gesto, o movimento dos músculos do teu rosto quando sorri, as palpitações no peito quando te sinto mais perto e entendo que mesmo assim não podemos nos alcançar, o tamanho das tuas mãos em relação às minhas. você utiliza as unidades máximas, eu as unidades mínimas. nessa equação nos encontramos no meio e talvez assim possamos enxergar a linha do horizonte que divide a parte que te falta e a parte que me sobra dizer. a linha do horizonte também aponta o infinito e tudo que não podemos calcular. talvez assim possamos entender a velocidade média desse desejo tão inexpressivo quanto excessivo capaz de quebrar as camadas mais profundas das nossas estruturas ósseas e separar céu da terra, mar do céu.




mandacaru

o teu amor sacia minha sede em conta-gotas e muitas vezes me deixa na iminência da morte antes de regar meu corpo de vida duas vezes pela manhã reorganizando as moléculas internas tua saliva tuas mãos meu signo solar de elemento água o teu de elemento terra do mar se diz: terra à vista! esse lugar entre invenção e construção eu não te contei mas venho estudando sobre incêndios florestais e técnicas de reflorestamento sinto que podemos juntos aprender tanto sobre a vida das plantas faz tempo que quero cuidar melhor da minha hidratação.


paralisação essa noite sonhei com alguém que amei muito, há não muito tempo atrás, e me assustei por acordar e perceber que não era você. enquanto planejava minha fuga, por um breve momento cheguei a pensar em ficar por você, com você, em você, desconsiderando a minha preocupação com a situação política do país ou o intervalo de dezesseis anos entre nossas datas de nascimento. derretimento é um fenômeno físico que tem a ver com o encontro de duas temperaturas opostas que procuram alguma espécie de unidade. leio novamente aquele texto que sempre me ensina a importância de suportarmos manter a ferida aberta pra não esquecer de lembrar ou lembrar de esquecer que


“viver juntos é, tão somente, adiar o fim”. em algum momento dos próximos vinte dias um bloco de gelo de seis mil quilômetros quadrados finalmente se desprenderá do antártico. pesquisadores ingleses afirmam que sua separação do continente não causará nenhum impacto imediato no nível do oceano ou na biodiversidade da região. há meses o bloco de gelo vem anunciando a possibilidade dessa mudança estrutural e tudo começou naquele primeiro choque. o segundo, exatamente um ano depois, produziu pequenas rachaduras e a partir de então o processo de rompimento se torna inevitável. uma amiga que está em outra cidade me falou da sua preocupação com o abastecimento de água na capital. nós dois caminhamos tão lentamente e ao mesmo tempo com tanta pressa em direção um ao outro e de repente, por alguns instantes, tudo se imobilizou: os meus movimentos, o vento lá fora, teu cheiro ainda naquela roupa que não consigo lavar e o eco da tua voz que, graças à tecnologia dos nossos celulares, ainda é possível que eu alcance.


radiografia quero entender tudo que você me diz sem falar adivinhar teus pensamentos aprender desde a origem sobre as tuas manias as tuas posições favoritas para dormir ou fazer amor o funcionamento do teu humor matinal eu preciso muito e é urgente conhecer a marca do teu amaciante do teu shampoo, do teu sabonete as histórias sobre tuas viagens em alto mar o primeiro livro que você leu quando criança eu não sei ainda nada sobre o teu histórico médico se já quebrastes alguma vez um osso passastes por alguma cirurgia ou anestesia geral eu não conheço nada sobre a tua família


se tens irmãos ou animais de estimação uma noite apenas e de repente eu já não posso respirar por saber que uma vida inteira não seria suficiente pra todas as pequenas e as grandes coisas que eu quero viver contigo.


piedra del cielo uma retrospectiva da semana mostra fortes imagens dos impactos de desastres naturais ao redor do globo terrestre e cubro meus olhos com as mãos como se nesse gesto ainda pudesse sentir as tuas enquanto busco no escuro alguma espécie de unidade ou elo de conexão entre as buscas por focos de incêndio, o resgate de um pequeno mamífero faminto debaixo da penugem, lendas antigas sobre autocombustão, a lagoa ao redor do vulcão colombiano, de cor vermelha, a alta inflação naquele país de língua espanhola, uma canção antiga brasileira de nome poema. acontece que aquelas imagens, produzidas por equipamentos analógicos, são cápsulas de presença-ausência capazes de alterar as moléculas do ar que agora respiro


e que não preserva no espaço o desenho da tua estrutura corporal. o que quero te dizer ainda não foi escrito, não existe uma canção sequer que concentre em acordes e voz esse processo, cuja lentidão captura fragmentos longos do silêncio da tua imagem desaparecendo como aquelas fotografias expostas ao sol. dizem que ainda somos jovens diante do tempo do mundo ou que uma noção de infinito torna inútil qualquer tentativa de medir tempo ou distância a palavra longe a palavra medo a palavra amor. inutilmente então desafio as leis da física e passo meus dias a estudar maneiras de preservar espécies em extinção, imobilizar a ação do efeito estufa e com meu corpo pequeno interromper o curso do derretimento das calotas polares, como quando seguro a porta aberta com um dos meus pés para que não se feche com a força do vento. estico o tempo até chegar ao estágio daquele tecido que perdeu a elasticidade, a tua camiseta velha que ainda visto todas as noites como que para celebrar a vitória das espécies de plantas que cada vez mais se proliferam como pragas urbanas, rompendo com doçura a dureza das estruturas de aço concreto e metal.


fermentação escorrendo pela porta de vidro que separa a cama em que dormimos e o espaço de tuas invenções fisico-químicas, a chuva dessa madrugada distorce aos poucos a tua imagem e vai lavando também a memória da tua boca cartografando minhas curvas linhas e outros elementos divisórios. estava frio, puxei os pés pra baixo das dobras duplas do lençol antes mesmo de abrir os olhos ainda em transe ainda em sonho na inútil tentativa de sentir em mim qualquer resquício da tua presença, embora ainda durmas um sono pesado ao meu lado. a verdade é que fomos embora há muito mais tempo, como se havia há muito mais tempo instaurado em mim o auge de um estado


de paixão. antes mesmo que nossos corpos soubessem um do outro. penso que assim como os ingredientes colhidos na semana passada, a duração desse efeito no corpo também possui prazo de validade. tento desenhar em palavras o resultado do atrito das nossas peles. já houve tantas peles antes, haverá outras mais, embora eu saiba que nelas ainda buscarei incansavelmente a tua textura. embora não guarde nenhuma lembrança daquela noite porque não estava aqui presente. quando me tomastes nos braços e perdi a sensação dos pés tocando o chão do salão eu fui de encontro a ti naquela outra dimensão onde não havia mais corpo, linguagem, matéria, jogos de poder, apenas substâncias fluidas em seu estado natural. inundações choque de partículas aquela melodia ao longe tentando nos trazer de volta e tento retornar àquele lugar mas não posso sozinha ele exige uma senha de acesso tua digital tua presença e te falo da minha fuga pra lugares distantes mas o que você não sabe é que o único lugar onde desejo chegar é naquele que construímos juntos.


ainda não abri os olhos ainda chove ainda espero você me tomar pelos braços quando eu estiver distraída tentando evitar teu olhar não peça licença ainda somos jovens o tempo caminha em espiral eu tenho pressa você não tem medo não é assim tão longe é domingo ainda chove aquela cerveja está pra completar seu ciclo de maturação e por mais que a chuva engane e faça parecer que é mais cedo é impossível evitar o despertador nos gritando a hora de acordar.




pneumatóforos é pela porta da frente que a cor do teu som invade a sala, dança comigo tango porteño a noite inteira em minha boca amanhece o sorriso que ontem tu me anoiteceu je te sens venir e perco o fôlego quando vejo nas linhas imaginárias da tua pele a poesia inteira que não tenho escrito porque mais que nunca hoje ela sou eu.


jardim lembra daquela rua inabitada por onde caminhamos de mãos dadas pela primeira vez dentro da noite? nós somos como aqueles condomínios residenciais embargados no início da obra. sempre que passava de bicicleta por aquela rua eu diminuía a velocidade pra ver se percebia no meio dos escombros algum movimento, algum anúncio de ocupação humana além da vegetação que se alastra cada vez mais e redesenha a forma do que um dia foi muro, coluna, janela, piscina, corredor. pensar na possibilidade de vida naquelas ruínas produz diversas alterações naquele órgão situado em qualquer lugar entre o estômago e o peito, que é constituído de elementos frios e quentes e me confunde por nunca entender se estou ardendo


ou congelando. como quando escutei tua voz pela última vez dizendo meu nome e eu sequer te olhei nos olhos. como quando entendi o verso daquele poema sobre a velocidade. como quando olhei pela primeira vez o muro e pensei que nunca poderei nele desenhar o contorno do teu corpo num ritual que faríamos para oficializar nossa passagem de estado. como quando lembrei das sementes de alecrim e das tuas mãos com cheiro de terra percorrendo cada poro do meu corpo, me fazendo sentir como aquele broto verde explodindo pra fora em câmera lenta ao te ver sorrindo, ainda de olhos fechados. como quando vejo o projeto arquitetônico da construção que existirá para sempre enquanto possibilidade, enquanto desenho de um desejo que permanecerá em suspensão, como as barragem contentoras ou as condições climáticas que impedem aquele açude de sangrar. somos o açude que não sangrou, a cidade que seguiu sendo construída por cima dos escombros, a série cancelada, o antibiótico que estancou a infecção.



calcário o tom azul-escuro que entra pela janela apagando aos poucos o que de ti ainda restava de palavra em construção, como rocha que se molda pelo movimento violento da água do mar quebrando sem direção. a fragilidade das tuas estruturas ósseas, os abismos, os nossos vôos livres, as tuas sobrancelhas, os fragmentos calcários, o meu pouso forçado, os elementos textuais, a tessitura, as perguntas sem respostas, as palavras que não foram ditas, a garganta inflamada pela segunda vez, aquele texto sobre o infinito e o estudo inacabado sobre a relação entre a temperatura e a curvatura do teu corpo quando sente o inverno chegar.


medianeras como naquele filme argentino, nós dois caminhávamos pela mesma rua de uma mesma cidade, mas acontece que eu dobrei numa esquina segundos antes de você chegar. numa questão de segundos também de duração algum lugar do teu corpo arrepiou quando tua pele soube do meu cheiro antes mesmo de alcançar tua narina, antes de se misturar à fumaça do churrasquinho que tem perto da tua casa e eu senti como se flutuasse pela ausência do peso do teu corpo sobre o meu ainda que nunca tenhamos nos encontrado na horizontal. somos como aquelas espécies que entraram em extinção antes mesmo da gente nascer, os animais que conheceremos apenas pelos livros escolares. se talvez falássemos a mesma lingua ou tivéssemos nascido na mesma geração, no mesmo continente, no mesmo espaço


geográfico. eu poderia querer me demorar aqui um pouco mais, logo agora que planejo minha fuga. pesquiso passagens ao mesmo tempo em que invento desculpas e conto os dias pra te encontrar nessa quadra chuvosa. você não mora tão longe eu te quero tão perto. talvez você espere por algum movimento, mas se eu abrir os olhos e não te encontrar me olhando ainda como quem finalmente voltou a atenção para a poeira que dança na janela ao raiar do dia e que tem a força tão intensa quanto aquela do sol invadindo teu quarto e teu corpo? o sol se põe e eu permaneço no escuro também, feixe de luz esperando algum sinal de onde pousar. nos confundimos nos sinais porque temos nós dois aquele planeta mercúrio num signo de elemento água. o céu promete mais chuva pra essa noite. eu não te chamei pra conhecer a minha casa mas desde cedo escolho cuidadosamente as músicas certas. este texto é uma carta de despedida. é também um convite. matilde há pouco falava sobre os convites aos trinta anos, quantos anos mesmo você vai fazer? vem dançar comigo, vem.



sinapse hoje, numa aula sobre comunicação e informação, propus um passeio com meus alunos pela história do mundo e falamos sobre a forma como a internet mudou pra sempre o desenho que agora separa meu corpo do teu. existe uma quantidade infinita de linhas divisórias, eu não conheço tua letra ainda, eu gosto tanto da minha assinatura. compartilho com uma amiga uma brincadeira sobre a palavra perspectiva que tem a ver com a flecha e o alvo naquele trabalho foda da marina. se eu fechasse os olhos agora ao som de chico césar aos vivos poderia acompanhar o aumento da tua frequência cardíaca quando lembrares de mim falando do teu cheiro. se é por pavor, se é por desejo, acho que não preciso realmente saber por que. eu poderia agora mesmo decidir que não tenho mais


coragem de mergulhar sem haver calculado e analisado a tábua das marés, a temperatura da água, os índices de afogamento em dois mil e dezessete. como quando pulei de bungee jumping aos treze anos em nova york, abraçada a um tio com quem nem mantenho mais contato: 3, 2.. esperar o instrutor terminar de contar seria como encontrá-lo mais uma vez depois que ele partiu, ainda não havia se estabelecido um fim e havia a ilusão de uma certeza de retorno. se eu soubesse que nunca mais sentiria o cheiro da sua boca, não teria conseguido dizer adeus. como quando mergulhei pela primeira vez da ponte velha aqui em fortaleza, mas essa é outra história que eu talvez te conte um dia enquanto teus olhos remelados ainda não pensam em despertar. eu poderia agora mesmo decidir que não tenho mais idade pra cair na besteira de me apaixonar dessa forma, mas o thadeu ia olhar pra mim com aquele virar de olhos de desaprovação e a raisa diria que eu num era nem louca pra tá dizendo um negócio desses vira essa boca pra lá, mesmo a gente sabendo que o tempo molda em torno da gente tantas camadas de proteção. entendi só hoje o que o professor tentava explicar sobre empuxo numa aula de física dos materiais há alguns anos, quando eu ainda cursava arquitetura e achava que meu amor respondia a certas leis de sentido e direção.


eu poderia decidir agora mesmo nunca responder tua mensagem e seria como aquele desenho da mensagem da garrafa no quadrinho do sica, mas eu quero imaginar pra sempre as tuas mãos desrespeitando os limites da minha camisa, botão por botão, rompendo as fronteiras da minha pele e atravessando as camadas mais profundas até chegar à beira daquele precipício que confesso não poder te contar sobre o que encontrarias lá embaixo mas então será tua vez de dizer eu poderia agora mesmo decidir que não tenho mais coragem de me jogar desse precipício sem corda de segurança na cintura, três, dois.



profecia te apresentar pros meus primos, te encontrar no cinema, te levar pra remar. declarar meu amor em alto mar. cozinhar pra ti, andar de mãos dadas, dormir a noite inteira num só abraço e acordar com as pernas dormentes, despertar um pouco antes e admirar teus traços: tua boca, tuas sobrancelhas. dizer adeus. não conseguir dormir de saudade e receber uma mensagem tua na madrugada dizendo que ainda pensa em mim. te desenhar enquanto tomas banho, te desenhar dormindo aquele sono profundo logo depois de gozar.


conhecer a tua mãe, conhecer a tua filha. escutar sobre a tua primeira vez, escutar sobre o teu primeiro amor. fazer amor duas vezes seguidas e de novo de manhã, ainda de olhos fechados. não conseguir parar de te beijar e me atrasar pro trabalho. dormir com as tuas mãos sobre meus seios, dormir esparramada sobre tuas costas. te escutar falar sobre política, economia, cinema, astrologia, o movimento das marés, do amor que sente e, enquanto pensa que estou dormindo, me pedir pra ficar. te chamar de meu, dizer que sou completamente tua e só tua, da alma aos dedos dos pés, prometer querer-te pra sempre e nunca desistir mesmo sabendo que não posso cumprir. te ver chorar. te ver sorrir como se agradecesse. levar tua foto na carteira, te chamar de namorado, viajar contigo de avião, pra outro país. escrever um livro inteiro sobre nós dois e publicá-lo em outras línguas numa tentativa de adiar o fim.


dos meus estudos sobre o universo aprendi que o mundo vai acabar no sábado e eu nunca vou saber o cheiro da tua boca numa tarde de domingo ou a sensação de adormecer e despertar você ainda inteiramente dentro de mim.



zona abissal ele gostava de colher objetos na rua e construir a partir de lascas de madeira e telas de antigos televisores infinitos universos. corpo infinito, de arregaçar céus e mares, corpo astronave e meio de transporte quando me levava a conhecer territórios nunca antes explorados, corpo desvio em sua capacidade de gerar ruídos ao me estremecer num sutil lance de olhar, assustado e triste, como se cada vez que me olhasse sem conseguir dizer qualquer palavra estivesse a me alertar sobre essa profundeza e a impossibilidade de abarcá-la, e isso assustava, os nós que eu não era capaz de enxergar e que sabia estarem localizados naquela parte onde a luz já não alcança. mas eu estava decidida a correr, e correr risco também quer dizer desenhar, porque havia além dos nós


uma linha que se formava contínua e leve, ainda que cambaleasse entre dois pontos de fuga ao vestir-se de certa brutalidade e arrogância, no trato com os outros, reforçando a compreensão de sua própria fragilidade quase palpável e ao mesmo tempo tão líquida que não importam as precauções tomadas: sob a lei que rege o fluxo das marés quem mergulha sabe o risco que tem de se afogar.



muay thai comecei uma nova série de exercícios essa semana e no caminho pra casa, enquanto subia uma ladeira de bicicleta e equilibrava a força necessária nas pernas e o ritmo da minha respiração, lembrei daquele projeto artístico sobre as unidades de medida que dei início há três anos e resolvi que seria necessário estabelecer finalmente um prazo para o fim, por que já faz algum tempo que venho me dedicando a escrever sobre encontros que não acontecem e meus textos começam a me parecer agora todos iguais. hoje faz uma semana que dormi com alguém pela primeira vez desde você. acordei no último andar de um arranha-céu de onde pude ver a cidade se alargar enquanto


temia que meu cheiro ficasse marcado naquela camiseta que não era a tua e de repente faço um enorme esforço para ressignificar os pronomes pessoais de quando me chamavas de minha, ainda que não tenhas feito qualquer esforço para reivindicar-me a posse. estou a alguns dias de encontrar pela primeira vez alguém que, por alguma brincadeira do destino, compartilha contigo o mesmo signo astrológico, a mesma cidade natal e o mesmo nome, com um eme a menos de diferença. torço pra que, na penumbra da manhã, não encontre nele qualquer detalhe que me remeta ao desenho que fiz de você. no próximo dia vinte e cinco de agosto às seis e trinta e nove da manhã o silêncio poderá finalmente ser medido em peso e decibéis e poderei então dizer-te adeus alguns dias antes do teu aniversário de cinquenta anos, estabelecendo portanto que nunca poderei te beijar quando completares sessenta. nesse dia, onde quer que seja, estarei me perguntando se ainda te lembras de nós. encontrei aquele desenho e acho que nunca te falei sobre o quanto adoro as linhas do


tempo marcadas no teu rosto sobre as quais escrevestes as histórias da tua juventude. administrar um desejo talvez seja mais fácil pra ti, que está acostumado a gerenciar com afinco teus empreendimentos e tuas finanças. já eu mal consigo me organizar quando no decorrer de um dia intenso de trabalho, por conta da força dos meus golpes no dia anterior, como se através deles procurasse expurgar tua lembrança, acordei sentindo espasmos musculares no lado direito do meu abdômen e na minha coxa e, num efeito inverso, meu corpo lembrou de como me fizestes tremer naquelas duas manhãs. meço o tamanho das minhas luvas em relação às tuas mãos calculo os quilômetros que separam a minha cidade da tua os algoritmos as estatísticas as chances de encontrar o amor naquele aplicativo duas cartas recebidas duas vezes e mil e um roteiros de ficção baseados em fatos reais.



chuva do caju geralmente ocorrem à noite ou no início da manhã, essas chuvas fracas durante os primeiros dias de setembro, que não deixam vestígios nem mesmo na roupa estendida no varal. despertei com a notícia de que após a passagem do furacão a cidade situada ao norte da ilha de onde fugimos ao som de uma canção antiga brasileira volta a receber turistas em outubro. o famoso arquipélago foi a região mais afetada e embora não conheça bem os termos utilizados pelos especialistas sei que falam sobre processos de restauro. não foi pra ti que escrevi aqueles textos sobre as técnicas de reflorestamento e recuperação de


solos degradados. nem cheguei a te contar sobre a dor de presenciar uma queimada aqui no sertão do ceará ou ler pra ti aquele poema sobre a carnaúba e a vegetação do semi-árido, enquanto descansavas os olhos deitado em minhas pernas, depois de um dia intenso de trabalho. não cheguei a te escrever texto nenhum, embora possa ler-te claramente em todos eles. tua cidade um castelo a minha uma fortaleza. fazias as malas e eu mentalmente construía um texto com fragmentos daquela semana em que estivemos imersos um no outro, naquele apartamento em frente ao mar. mas enquanto um incêndio atacava ferozmente o museu nacional, seis mil e seiscentos quilômetros distantes de ti eu podia escutar o trepidar do fogo apagando os registros de anos e vidas dedicadas à preservação de uma memória coletiva e também a nossa, do nosso encontro e da nossa história que já vinha sendo desenhada há mais de quinhentos anos antes de nós. pensei que resistir ao apagamento seria nossa forma de militância, ato de coragem que devíamos aos nossos filhos e às futuras gerações brasileiras e portuguesas que não conhecerão o esqueleto de luiza ou o teu olhar pra mim no momento em que dissemos sim.


impresso de forma artesanal no ano de dois mil e dezenove na cidade de fortaleza em meio à revolução solar de trinta e quatro mercúrio em escorpião



Uma voz narradora nos atinge. Ela propõe uma ecologia que busca reativar elos entre nós, dentro de nós e entre nós e o cosmos, a partir das mais distintas reservas de amor transbordantes ou escassas que se pode cultivar ao longo da vida. Desejos, medos e melancolias presentes em nossos relacionamentos amorosos também constituem as relações com o meio em que vivemos. Essa voz narradora nos chama atenção para incêndios e derretimentos. Naturais, propositais, criminosos ou não, eles sinalizam ciclos de destruição e recomeço. A prosa poética de Bianca aponta a necessidade e o prazer em mensurar o mundo. Ao conhecer objetos, seres e paisagens em afetos, qualidades, dimensões e limites, podemos armar táticas para o cuidado do ecossistema. Somos nós as áreas constantemente devastadas. A voz que narra aprende com os fenômenos naturais e os danos causados pela ação humana no planeta a urgência de um abraço, a salvação pela palavra, mil desculpas para a fuga. Apesar do choque violento com outros corpos e das intempéries sazonais, algo insiste em durar. Como a caatinga no nordeste brasileiro, sua vegetação de cactos e pouca folhagem, a cada fevereiro teimamos em acreditar na chuva. Se ela não vem, somos nós mesmos a cair das nuvens e brotar. Raisa Christina


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