sobreviver

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SOBRE VIVER

Isabela Bosi

sobre viver


sur vivre


Isabela Bosi

sobre viver



A poesia pode me esperar? Ana Cristina CĂŠsar


DE MORAR todo chegar é um tempo que não existe que se arrasta e se desdobra em infinitas moradas essa casa que ainda não montei nem sofá nem cortina cama ou lençol bebo água direto da torneira enquanto aspiro o pó deste quarto emprestado meus cílios coçam nessa vista desconhecida tantos apartamentos empilhados e cada noite a insistência em acender luzes — escapar do fim alguma solidão-só mora no escuro comece, ouço o futuro é amanhã (quanto leva um corpo ao deixar uma cidade?)

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DEMEURE(R)

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toute arrivée est un temps qui n’existe pas qui rampe et se déploie en demeures infinies cette maison que je n’ai pas encore aménagée ni canapé ni rideau lit ou drap je bois de l’eau au robinet pendant que j’aspire la poussière de cette chambre empruntée mes cils me grattent dans cette vue inconnue tant d’appartements empilés et chaque nuit l’insistance pour allumer les lumières — échapper à la fin toute solitude-ne vit que dans le noir commence, j’entends l’avenir est demain (combien un corps emène-t-il avec lui en quittant une ville?)


LIÇÃO DE FÍSICA QUÂNTICA Prendo os cabelos de lado, sem graça, para evitar que me enganem na brisa impossível deste tempo seco, imóvel. Busco a etimologia da palavra que não vou te dizer enquanto tento escrever algo que me afaste de toda a espera, relógios que batem em compassos distintos, canção que conduz nossos corpos inquietos e ociosos a algum destino recriado. Escapamos da exaustão desse ter, inalcançável de um si próprio. Já não se perde tempo, porque tempo perdido é sinal do incapaz, este que já não sabe como (re)agir diante de tudo e cujo corpo sucumbiu. Não vejo como podem, os corpos, suportar tanta alegria e tanto desejo de si, de exposição, de espelhos, subida aos céus de um inferno sem cor. Na manhã deste sábado descoberto, penso que somos como os elétrons e só existimos no contato de nossos corpos, um em direção ao outro, na interseção dos saltos, no toque amoroso que molha o colchão de suor e sêmen — meus olhos tateando cada detalhe de teu rosto que ainda desconheço —, na certeza inventada de que, fora desta cama, nada existe de fato.

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LEÇON DE PHYSIQUE QUANTIQUE J’attache mes cheveux grossièrement sur le côté, pour ne pas me faire duper avec le vent impossible de ce temps sec, imobile. Je recherche l’étymologie du mot que je ne te dirai pas tandis que j’essaie d’écrire quelque chose qui m’éloigne de toute attente, des horloges qui battent sur différentes mesures, une chanson qui conduit nos corps agités et oisifs vers un destin recréé.

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Nous échappons à l’épuisement de cet avoir inaccessible de soi. On ne perd plus de temps, car le temps perdu est le signe de l’incapable, celui qui ne sait plus comment (ré) agir devant tout et dont le corps a succombé. Je ne vois pas comment les corps peuvent endurer une telle joie et un tel désir d’eux-mêmes, d’êexposition, de miroirs, montée vers les cieux d’un enfer sans couleur. En ce samedi matin découvert, je pense que nous sommes comme des électrons et que nous n’existons qu’au contact de nos corps, l’un en direction de l’autre, à l’intersection de l’abisme, du toucher amoureux qui mouille le matelas de sueur et de sperme — mes yeux parcourant chaque détail de ton visage que je ne connais pas encore — avec la certitude inventée que rien n’existe vraiment hors de ce lit.


TRAVESSIA de dentro da terra os restos, abjetos sonhos, perfume-suor, lábio roxo, olhos sérios, memória de mãos firmes em galhos metálicos raízes secas nada a próxima linha será verde e tudo ao redor é negro vidros manchados o universo: organismo semi-vivo: olhos entre-abertos, boca seca e minhas pernas tentando algum equilíbrio

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TRAVERSÉE

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de l’intérieur de la terre les restes, rêves abjects, parfum-sueur, lèvre violette, yeux sérieux, mémoire de main stable sur des branches métalliques racines séchées rien la prochaine ligne sera verte et tout autour est noir des vitres tachées l’univers: organisme semi-vivant: les yeux entrouverts, bouche sèche et mes jambes cherchant un certain équilibre


DESPEDIDA lancei ao espaço os planetas que já habitei e todos os olhares, passos, espirros, não sei se consigo, esperas, atrasos, calos nos pés, unhas quebradas, espinhas e pus, meias de lã, risos, água, o verde, o vermelho, o amarelo, selenitas e turmalinas rosas, o garoto pendurado na mangueira às três da tarde, o som desse relógio que ninguém esqueceu de dar corda, as motos enfileiradas no sinal, o chinelo gasto do menino de bermuda preta, a mesinha de centro, espada de são jorge, terreiros, sua respiração enquanto dorme, cabelos no ralo, primeiro dia de aula numa escola nova, ruas de paralelepípedo, enchentes, borboletas, gritos pela janela, calcinha manchada de sangue, vigésimo primeiro andar, o mar, a primeira cerveja gelada, música que pode ser funk samba reggae pop rock choro num pôr do sol, silêncio, abraço com cheiro de roupa lavada, planilhas, pele, tantas copas do mundo, árvore, tiros, tios, palavras, umbigo fundo, guitarra desafinada, ovários, vaso sanitário encalhado na areia quente, o medo de conseguir, cabeça de porco, televisão ligada no mute, cinema vazio, cartão de visita, algum luar, chuva de verão, casacos de neve, participação nos lucros, pedras, sorvete, duas mãos que se tocam, suor, prova sem estudar, fome, rimas, cócegas, o que nunca se diz, memória, sala de espera do pronto socorro,

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ADIEU

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j’ai lancé dans l’espace les planètes que j’ai déjà habitées et tous les regards, les pas, les éternuements, je ne sais pas si je vais y arriver, les attentes, les retards, les callosités, les ongles cassés, les boutons et le pus, des chaussettes en laine, des rires, de l’eau, le vert, le rouge, le jaune, les sélénites et tourmalines roses, le garçon accroché au tuyau d’arrosage à trois heures de l’après-midi, le son de cette horloge que personne n’a oublié de remonter, les motos alignées au feu rouge, la tongue usée du garçon au short noir, la table basse, épée de saint jorge, terreiros, ta respiration quand tu dors, cheveux dans l’évier, premier jour dans la nouvelle école, rues pavées, inondations, papillons, cris par la fenêtre, culotte tachée de sang, vingt et unième étage, la mer, la première bière fraîche, musique pouvant être funk samba reggae pop rock choro au coucher de soleil, silence, un câlin à l’odeur de vêtements propres, tableaux excel, peau, autant de coupes du monde, arbre, coups de feu, oncles, mots, nombril profond, guitare désaccordée, ovaires, toilettes échouées dans le sable chaud, la peur d’y arriver, tête de porc, télévision muette, salle de cinéma vide, carte de visite, clair de lune, pluie d’été, manteaux de neige, partage des profits, pierres, crème glacée, deux mains qui se touchent, sueur, examen sans révision, faim, rimes, chatouilles, ce qui ne se dit jamais, mémoire, salle d’attente des urgences,


telefone com fio, piscina, despedidas, o vento, e tudo aquilo que inventei.

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téléphone filaire, piscine, adieux, le vent et tout ce que j’ai inventé.

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PRAZER parecia dizer quando virou os pés imóveis no desejo de comer esse sorvete silêncio urgência de falar o que seja ao outro ao lado agora dedos melados boca doce início quando não se espera nada tudo de novo

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PLAISIR

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il semblait dire quand il se retourna les pieds immobiles dans le désir de manger cette glace le silence l’urgence à parler quoi que ce soit à l’autre à côté maintenant doigts mouillés bouche sucrée le début quand on ne l’attend pas rien tout à nouveau


AGORA sou eu de frente para este cão negro parados nos reconhecemos na liberdade de ser: ele preso à própria fome, magro, sujo e eu neste traje de banho estampa de onça ficamos em silêncio sem socorro nem espera ele sabe que eu sei e eu sei que somos na condição precária de nossos corpos

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MAINTENANT

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c’est moi face à ce chien noir immobiles nous nous reconnaissons dans la liberté d’être: lui, prisonnier de sa propre faim, maigre, sale et moi en maillot de bain imprimé léopard nous étions silencieux sans détresse ni attente il sait que je sais et je sais que nous sommes dans l’état précaire de nos corps


CAI tudo parece calmo e previsível não fosse essa água ruído branco vento nossos corpos isolados em ilhas de calor inhumano o mar logo ali promessa e essa espera por um tempo impossível

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LA CHUTE

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tout semble calme et prévisible s’il n’y avait pas cette eau bruit blanc vent nos corps isolés dans des îles de chaleur inhumaine la mer là-bas promesse et cette attente d’un temps impossible


LIÇÃO DE GEOGRAFIA Nunca decorei as capitais dos países. Apaguei de minha memória Paramaribo como quem decide abandonar um território jamais habitado, esse lugar tão distante, ilegível, aqui ao lado, que agora recebo, em silêncio. De nada me servem os mapas, linhas retas, rotas calculadas, escalas, limites. A estrada que atravesso, passeira, é nebulosa, incalculada, repleta — me perco. Fico com as folhas de uma cartografia por vir, toda mistério. Meu corpo percorre um caminho que se intui pelo estômago, na fome que, ancestral, corrói cada parede desse órgão inabitado. Desbravo matas inéditas de um espaço em vias de, esse ainda não, e tudo o que aqui encontro é segredo de linguagem.

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LEÇON DE GÉOGRAPHIE Je n’ai jamais appris par coeur les capitales des pays. J’ai effacé Paramaribo de ma mémoire comme quelqu’un qui décide de quitter un territoire jamais habité, ce lieu si éloigné, illisible, voisin, que je reçois maintenant, en silence.

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Cartes, lignes droites, itinéraires calculés, échelles, limites ne me sont d’aucune utilité. La route que je traverse en flanant est brumeuse, incalculée, pleine — je me perds. Il me reste les pages d’une cartographie à venir, faite de mystère. Mon corps parcourt un chemin qui se perçoit à travers l’estomac, avec la faim, ancestrale, qui érode chaque paroie de cet organe inhabité. J’explore des forêts inédites d’un espace en voie de, ce pas encore, et tout ce que je trouve ici est un secret de langage.


MINHA DOSE DIÁRIA DE CAFÉ É TEU BEIJO interrompi certos rituais há tempo suficiente eremita, aprendi da pedra a potência do silêncio a atravessar o deserto incerto só havia esquecido desse gosto logo cedo união de corpos absortos pernas peitos dedos linhas lábios laços tropeço nó recebo o calor devassado do sol quantidade certa de queimor a invadir minha pele desejo e brilho sucesso nós

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MA DOSE QUOTIDIENNE DE CAFÉ EST TON BAISER j’ai interrompu certains rituels ça fait assez longtemps ermite, j’ai appris de la pierre le pouvoir du silence à traverser le désert incertain seule

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j’avais de suite oublié ce goût union des corps absorbés jambes seins doigts lignes lèvres liens trébuchement noeu je reçois la chaleur fulgurante du soleil une dose parfaite de brûlure envahit ma peau désir et éclat réussite nous


MEU MAR parece muito-pouco mas aqui é onde deságua tudo a finitude aguda de meu corpo sempre um estrangeiro não me afogo mais aprendi a boiar a prender o ar fundo limpo as mãos sujas de terra e me desfaço dessa solidão líquida

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MA MER ça semble trop-peu mais c’est là où tout débouche la finitude aigue de mon corps toujours étranger je ne me noie plus j’ai appris à flotter à garder l’air profond 27

je me lave les mains sales de terre et je me défais de cette solitude liquide


PELE o corpo de mulher mais largo nos quadris para receber a vida desce até os pés num caminho tortuoso pernas em desalinho forma em si curvas ao chão a lembrar que enquanto o coração bate não existe linha reta

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LA PEAU le corps de la femme plus large aux hanches pour recevoir la vie descend jusqu’aux pieds en un chemin sinueux jambes désalignées forme en soi des courbes jusqu’au sol en se rappelant que pendant que le coeur bat il n’y a pas de ligne droite

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Isabela Bosi é escritora e mestra em Memória Social (Unirio). Nos últimos anos, tem desenvolvido projetos de intervenção urbana, literatura e audiovisual, sobretudo com criações que passam pelo pensamento e pela escrita de uma carta. É autora dos livros Bar do Anísio (Editora UFC) e QUASE (Editora Nadifúndio).

Isabela Bosi est écrivaine. Elle possède un Master en Mémoire Sociale (Université Unirio - Rio de Janeiro - Brésil). Au cours de ces dernières années, elle a développé des projets d’intervention urbaine, de littérature et d’audiovisuel, notamment avec des créations qui incluent la pensée et l’écriture épistolaire. Elle est l’auteur des livres Bar do Anísio (Éd. UFC) et QUASE (Éd. Nadifúndio).



B743s BOSI, Isabela Sobre viver / Isabela Bosi Fortaleza: nadifĂşndio, 2019. 36 p.

ISBN: 978-65-80574-05-6

1. Literatura brasileira 2. Poesia I. TĂ­tulo


Tradução Mathilde Fillat Capa & Projeto gráfico Bianca Ziegler Editora nadifúndio nadifundio.com 1ª edição 2019


impresso de forma artesanal na cidade de fortaleza em setembro de dois mil e dezenove




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