A histรณria de um
PRESENTE
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Este material de pesquisa e interação poética foi idealizado e realizado por: Adriana Costa e Beatriz Padial 3
# 1. São Paulo : fascínio e desamparo # 2. Em busca de uma cidade + humana # 3. Ler (n)a cidade Ubiquidade e poética # 4. Ler nas entranhas O processo criativo #5. A imaginação dá as cartas l’amour existe # 6. Presença presente 4
# 1. São Paulo: fascínio e desamparo
São Paulo é um mistério, uma cidade complexa e apaixonante. Viver na cidade sem se perder de si é um desa9io diário. A malha urbana é feita e refeita continuamente e a disputa por espaços de permanência é cada vez mais intensa. Vemos no rosto das pessoas, nas padarias, nas ruas, nos meios de transporte a expressão do cansaço que a cidade imprime. O trabalho marca o compasso de um ritmo frenético, um constante vai e vem. Imersos nesta loucura apreendida como natural 9icamos insensíveis à paisagem, às pessoas e fechamos nosso horizonte de entendimento e percepção. A metrópole paradoxalmente se torna um convite ao isolamento. Abduzimos nossos interesses numa tela de celular ou mergulhamos por fones de ouvido, que tocam em ritmo de ausência. 5
Nossa memória é a da amnésia. Poucos sabem o nome da rua em que estão, não sabemos a quem a estátua da praça homenageia e perdemos o ar na multidão dos estímulos. Deslocados e desamparados percorremos a cidade a ermo. Multiplicamos os não-lugares, que como de9ine Marc Auge, é de um “ habitante que mantém com este uma relação contratual representada por símbolos da supermodernidade, ou seja, um bilhete de metrô ou avião, cartões de crédito, símbolos que permitam acesso, comprovam a identidade e autorizam deslocamentos impessoais.” Lugares de passagem, relações transitórias. Como modi@icar este padrão criando interações humanas na cidade ? Esta é a fonte de pesquisa de muitos artistas e urbanistas. Estamos vivendo em São Paulo um processo acelerado de expulsão da população de 6
alguns bairros. Buscando a valorização imobiliária e sob o discurso de revitalização dos bairros, regiões inteiras sofrem modi9icações abruptas e perda de sua identidade cultural e social. Este processo é conhecido como gentri9icação, neologismo da expressão inglesa gentri'ication. Esta denominação foi usada inicialmente pela socióloga britânica Ruth Glass. Signi9ica um processo de enobrecimento ou aburguesamento do bairro, realizado com interesses econômicos e que acaba inviabilizando ou expulsando grupos sociais de menor poder aquisitivo das regiões.
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Em seu livro "Cidades em Miniatura” a pesquisadora Janaina Cardoso narra o processo polêmico de revitalização da região da Luz. Alguns coletivos artísticos se articulam em busca de diálogo sobre o problema e reivindicam a participação nas decisões urbanas, defendendo algumas regiões que estão sendo desmanteladas sem nenhum cuidado. Na contramão deste processo de segregação, muitos grupos vêm desenvolvendo projetos que visam humanizar o espaço urbano. São propostas de mobilidade urbana, de espaços e práticas de convivência, poéticas artísticas que visam facilitar o encontro das pessoas com a cidade e na cidade.
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# 2. Em busca de uma cidade + humana
http://bit.ly/2bjyPLW
Natรกlia Garcia iniciou sua campanha de viagem para conhecer boas prรกticas em urbanismo no mundo, pelo Catarse em 2011. https://www.catarse.me/ Hoje existem na plataforma de 9inanciamento colaborativo mais de dois mil projetos apoiados. A campanha foi bem sucedida e o livro serviu de incentivo para outros grupos.
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Iniciei este capítulo com estas duas experiências porque elas apresentam um outro modo de lidar com os problemas da cidade. “Sob a perspectiva histórica mais ampla, a sociedade em rede representa uma transformação qualitativa da experiência humana.” (CASTELLS, 1999) Na combinação de virtual e presencial as pessoas foram mobilizando encontros que permitissem uma convivência prazerosa. As praças passaram a ser um campo experimental e de destaque destas iniciativas. Nasceram hortas, festas e muita poesia. As meninas dos Desejos Urbanos se cansaram de pensar assim toda vez que viam algo bonito pela cidade, e resolveram sair por aí encantadas e encantando, a partir da delicadeza que um novo olhar pode ter sobre as mesmices da cidade. https://desejosurbanos.wordpress.com/
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Este reencantamento do olhar urbano se expressou no gra9ite, nas intervenções mas também por um novo olhar para a Natureza. Este é o caso do projeto Rios e ruas https://rioseruas.com/ e do Árvores Vivas http:// www.arvoresvivas.org.br/
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Apesar desta retomada de sentido na cidade, o ceticismo resiste frente às situações complexas e de crise política na cidade.
Vale aqui pensar: qual é o horizonte de mudança real do contexto urbano ? A economia criativa é somente uma economia ou estamos gerando um novo paradigma de relacionamento humano ? Estas questões permeiam nosso trabalho.
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# 3. Ler (n)a cidade
ubiquidade e poética Vivemos cada vez mais em um espaço híbrido , ou como diz Lúcia Santaella, convivemos com: "dois espaços igualmente 9ísicos, mas 9isicamente diferenciados, o espaço ciber ou seja a nuvem informacional que nos envolve , e o espaço de circulação de nossos corpos . Pode-se a9irmar que está aberto para nós o horizonte da ubiquidade” Imagine: Você está caminhando pela cidade, voltando para casa depois de um dia de trabalho. Vê o outdoor do novo 9ilme que vai estrear no cinema e se interessa em saber mais. Com um leve toque no seu celular e uma busca rápida assiste antes de entrar no metrô um "preview" no Youtube (sem perder a atenção no trem que pode estar chegando ou na briga dos namorados atrás de você).
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O próprio sistema de busca já traz um link sobre o diretor, atores e você já posta no facebook um convite para um amigo te acompanhar na sessão de amanhã com uma dica dos cinemas próximos em comum. Ele responde num aplicativo e você engaja numa troca vertiginosa de mensagens, sem perder o momento de descer na estação. Esta cena corriqueira apresenta uma prontidão cognitiva muito diferente da que possuíamos alguns anos atrás. Que tipo de mente, de controle motor e dinâmicas sociais estão envolvidas nestes novos atos ? atenção parcial contínua dissolução das fronteiras <ísico/virtual acuidade visual controle motor <ino Esta comunicação pervasiva é ao mesmo tempo corpori9icada e múltipla: O celular está desa9iando nossos processos de aprendizagem e presença cotidiana. As cidades rapidamente estão se transformando nestes espaços ubíquos. A internet abriu novas práticas no território da produção e circulação da informação.
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Hoje a capacidade de narrar e partilhar histórias pertence a todos. Existe uma miríade de versões sobre um mesmo fato enriquecendo nossas perspectivas e pulverizando o poder da mídia tradicional. A leitura transmidiática exigida pelas redes desenvolve outros modos de atencionalidade. As mídias locativas se caracterizam pelas trocas informacionais no espaço urbano, criando através da digitalização novos sentidos para os lugares.
O ciberespaço faz com que qualquer ambiente seja de conexão. Esta nova territorialidade das redes de acesso sem 9io cria uma rede social móvel. Surgem projetos de anotações urbanas, mapas e georreferenciamento e intervenções eletrônicas. Surgem também novas formas de uso e compartilhamento dos suportes de leitura convencional 15
Livro livre é uma iniciativa que provoca uma outra forma de partilhar os livros, quebrando com a necessidade de compra e de espaços especí9icos de empréstimo.
A leitura dentro deste novo contexto ganha novas camadas que a relacionam com toda a sua cadeia de valor: material (criação, produção e consumo) e também os processos intangíveis envolvidos.
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Quanto às iniciativas poéticas, queria destacar duas artistas que in9luenciaram o nosso trabalho na cidade. A primeira é a francesa Sophie Calle com a exposição : Cuide-se Ela transformou um fora (um email de rompimento do namorado) em uma resposta criativa.. Compartilhou a carta com outras mulheres e com mais de cem respostas criativas em vídeos e performances
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A segunda artista é Ana Teixeira O foco de seu trabalho está na maneira como nos relacionamos, contamos nossas histórias e nos
comunicamos. Seu interesse é engendrar relações através da arte, de maneira a ultrapassar os limites do convívio habitual entre as pessoas. Tanto em suas intervenções quanto em seus desenhos, objetos e fotos, a artista tem se dedicado a uma extensa pesquisa sobre seres humanos por meio de sua subjetividade. Em suas ações de rua, já coletou sonhos, desejos, palavras, histórias de vida e impressões digitais de milhares de pessoas.
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Diante de todas estas mudanças na gramática de produção e consumo da cultura, resolvemos vivenciar a cidade numa perspectiva criativa. A9inal, não adianta apenas pedir mais amor, mas é necessário inventar novas formas de generosidade urbana.
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# 4. Ler nas entranhas: O processo criativo
Fayga Ostrower, em seu livro "Criatividade e processos de criação" deixa claro que a criatividade e a potencialidade da criação não é de uns
poucos eleitos para isso. É, antes de tudo, uma característica primordial que nos torna humanos. E por isso, num mundo em que o objetivo de tudo é nos afastar de nossa condição humana, mais essencial ainda se torna a criação. O ato criativo, o dar-se forma a algo, o formar-se o tempo todo….Criando damos ordem, reordenamos nosso espaço no mundo e nos rea9irmamos como 20
indivíduos únicos e como potência. Deixamos de lado a inconsistência e a inconsciência e nos apropriamos de nós mesmos. Assim, deixamos de apenas estar no mundo e passamos a ser parte do mundo. A partir da criação, o Homem comunga do mundo. Habita o mundo com singularidade porque dessa maneira pode falar da sua própria existência a outros. Muitas vezes não é da alegria que nasce um processo de criação, muitas vezes é justamente o contrário, é da angústia que nasce a criação.
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Para muitos sujeitos, criar é partir de um caos em direção ao cosmos - a criação é a (re)organização do que parece desarranjado, bagunçado, atormentado espiritualmente. Vargas Llosa diz que ninguém que está totalmente reconciliado com a realidade em que vive cometeria a ambiciosa loucura de inventar novas realidades. E Dias Gomes dizia que primeiro "vem aquela angústia, aquela necessidade compulsiva que me leva a um estado de infelicidade, a um descontentamento comigo mesmo insuportável", e aí começa de fato a nascer um novo projeto poético, uma nova realidade para se comunicar com o mundo e retornar a ele de fato. Não é sempre belo nem muito menos organizado. Mas é quase sempre necessário! E muitas vezes, é a maneira de se dar forma novamente e reordenar a própria existência. Escolhemos como espaço de pesquisa poética o Metrô de São Paulo De9inimos“texto” como toda forma de inscrição da experiência humana que produza signi9icados e sentidos. 22
Como disse Arnaldo Antunes: (...) pessoas distantes escrevem cartas. O tempo escreve no rosto rugas. Nas palmas linhas, nas pintas pontos. E nas cadeias escrevem nas paredes. E nas carteiras na escola.... Vamos ao MetrĂ´ de SP, ler o interior da cidade, suas entranhas, como num Buscamos, neste ritual, entender os augĂşrios da cidade.
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O que é ler no metrô ?
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“Segundo a de@inição mais comum e super@icial, um leitor é alguém que lê livros: muitos, bons e por prazer. Eu lhes proponho uma outra de@inição: o leitor é alguém que se apropria da linguagem dos outros para expressar as próprias intenções e para se converter em autor e ator de seu lugar no mundo..” Silvia Castrillón O grupo "Tem mais gente lendo" vem fazendo levantamentos dos livros lidos no transporte coletivo e promovendo ações de incentivo à leitura. “Flashmobs” e campanhas de doação se espalham pela cidade.
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Mas queremos mergulhar mais fundo na poesia desta leitura. Que tempo é este do devaneio dentro do burburinho? Em uma das viagens que 9iz para observar e fotografar este “Ler nas Entranhas”, passei por uma experiência que mexeu com a minha imaginação. Peguei o metrô na estação São Bento junto com várias sacoleiras da vinte e cinco de março. O trem estava apinhado e as pessoas se empurravam e se ajustavam da melhor maneira possível. Eu buscava alguém lendo, mesmo nesta confusão, mas fui surpreendida por uma mulher absorta, em pé fazendo crochê. Fiquei pasma com a sua concentração. A linha sambava num ritmo compassado. Ela tramava com desenvoltura alheia ao vai e vem. Não me contive e perguntei: Como você consegue ? Outras pessoas que também estavam admiradas 9icaram atentas à resposta. A moça, que não devia ter mais que vinte e poucos anos, contou na maior naturalidade que sofria de síndrome do pânico. Os remédios a deixavam chapada e foi sua avó que dera a solução.
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Ela não conseguia mais entrar no trem por conta do vai e vem, mas focada no crochê ela esquecia de tudo e conseguia se locomover sem problemas. Deu uma risada e comentou: Só não sei o que vou fazer ainda com tantos tapetes de crochê. A história desta nossa Penélope moderna podia ser uma 'icção e me deixou atenta para o que realmente estamos procurando na cidade. O que signi9ica ter que tecer tapetes (um chão) para permanecer trabalhando, ou seja se locomovendo numa cidade abismal? O que é de verdade a síndrome do pânico ? Uma condição, fragilidade do indivíduo ou um contexto urbano de ameaça interior ? O trabalho manual, os joguinhos no celular, a maquiagem são formas de introspecção no espaço público. São maneiras de fugir ao excesso de estímulos que desorientam e geram medo. A leitura, desta maneira, faz parte deste tempo psicológico (que tem duração interior) que conforta, acalenta. 27
Retomamos então em nossas conversas as artistas que buscam criar situações de encontro, de presença na cidade e iniciamos um diálogo no metrô através da poesia que chamamos de:
A busca deste ENTREATO POÉTICO é a de estar presente, sair da caverna.
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“Nunca ficamos no tempo presente.
Lembramos o passado; antecipamos o futuro como lento demais
para chegar, como para apressar
o seu curso, ou nos lembramos do passado para fazê-lo parar como demasiado rápido, tão imprudentes que erramos por tempos que não são nossos e não pensamos no
único que nos pertence, e tão levianos que pensamos naqueles que nada são e escapamos, sem refletir, do único que subsiste.
É que, em geral, o presente nos fere.
Escondemo-lo de nossas vistas porque nos aflige e, se ele nos é agradável, lamentamos que nos escape.”
Pascal
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Existe poesia no cotidiano de SĂŁo Paulo ?
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Como os processos criativos ajudam as pessoas a se compreender no meio deste turbilhão caótico da vida moderna ?
Como estes gestos inacabados dos artistas podem nos apoiar na busca da nossa raiz nestes territórios 9luidos ? Buscamos na literatura e na riqueza dos personagens e de seus processos vivenciados a base do nosso diálogo. Criamos uma história que acontece no subsolo da cidade e nas profundezas dos dilemas enfrentados pelas pessoas comuns que buscam se encontrar. Trabalhamos com o universo das cartas por serem um modo íntimo de relato 31
e por expressarem os bastidores, o “making off” e as angústias da vida e do processo de criação. “o percurso da criação mostra-se como um emaranhado de ações que, em um olhar ao longo do tempo, deixam transparecer repetições signi<icativas..... A obra de arte carrega as marcas singulares do projeto poético que a direciona, mas também faz parte da grande cadeia que é a arte . Assim, o projeto de cada artista insere-se na frisa do tempo” Cecília Salles
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#5. A imaginação dá as cartas
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“Memória é continuidade que se dá no campo das interações. O registro é um modo de fazer durar a criação... de driblar o esquecimento.” “A memória não é o lugar onde as lembranças se <ixam e se acumulam. Cada nova impressão impõe modi<icações ao sistema.... As lembranças são reconstruções: redes de associações responsáveis pelas lembranças e sofrem modi<icações ao longo da vida “ Cecília Almeida Salles
Como harmonizar as gramáticas de tempo do mundo acelerado e super9icial da comunicação e o tempo enraizado e artesanal dos processos criativos ?
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É preciso estar no mundo e ouvir o outro no que ele tem a dizer; deixar que sua voz ecoe em mim, como uma experiência, e só depois disso eu retome meu lugar, sem me perder dos meus princípios. Ouvir é o sentido da alteridade, e é preciso ouvir, mais do que somente ver: “Porque a vista é sentido que nos separa das coisas, e o ouvido sentido que nos mergulha nelas. O mundo visto é circunstância, o mundo ouvido é mundo participado” Vilem Flusser
A troca de cartas é um fenômeno psicossocial e estético recorrente na história da Literatura e das Artes. Situa-se entre o pessoal e o social, o 9iccional e o histórico, o prosaico e o poético. A carta faz 35
"presente não apenas pelas informações que lhe dá acerca de sua vida, das suas atividades, dos seus sucessos e fracassos, das suas venturas e infortúnios: presente de uma espécie de presença imediata e quase 9ísica". Foucault em "A Escrita de Si”.
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Esta abertura de si mesmo que se dá ao outro é um exercício de auto consciência. " Escreve-se, pois, ou para nāo estar só, ou para nāo deixar só”. André Cabre Rocha A escrita dos movimentos interiores da alma é uma forma de combate espiritual. Ao revelar neste texto íntimo, que é a carta, nossos mais terríveis temores, dissipamos sombras pela simples correspondência. " Diante da vertiginosidade à qual nossa existência contemporânea está submetida, o tempo todo bombardeados pela mídia, por desejos de consumo que nāo dominamos, por tudo que nos preenche deixando um vazio de nāo saber bem quem somos, há que se inventar um tempo para que o sujeito possa escutar-se, revalorizando o lugar da palavra e do relato " Alícia Fernandez
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Escrever é colocar em jogo o que se sabe e pensa. As escritas de si nascem de afecções vivenciadas, uma espécie de reinvenção do nosso habitar no mundo. "Ora, no encontro com o outro toda @igura se apaga a si própria se perde, se dispõe a uma experiência de puro desejo. Por isso o outro surge sempre como epifania,isto é, para além de tudo o que constitui a linguagem do eu. Apenas o outro permite que o eu articule ainda, crie linguagem, encontre no mundo um apelo à dicção." Lliansol , Maria Gabriela - Um falcão no punho
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# 6. Presenรงa presente
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Esses dois personagens vivem seus ordálios pessoais para encontrar a si mesmos, e acabam se encontrando e descobrindo muito da própria presença, na presença do outro. Como num labirinto - labor intus (trabalho interior) iluminado pela própria luz interior, vão caminhando por uma cidade em que buscam acolhida e respostas para a própria existência. E como toda luz é, na verdade, um jogo com a própria sombra, também se deixam expor em suas fraquezas e medos, em busca de uma presença comum num mundo que comungue do que acreditam ser o ideal. Ulysses é um poeta urbano, que encontrou nas entranhas da cidade um meio de se expressar por livros e cartas, em busca de um diálogo com alguém que o compreenda. 40
Alma é uma mulher que pretende ser vista em sua inteireza, assim como exerce outros sentidos para se aproximar de outras pessoas na cidade. Ora luz, ora sombra, ambos buscam na relação de alteridade, enfrentar seus daimons pessoais e sair do emaranhado de pensamentos que desumanizam e geram o automatismo das relações. Ulysses, ao escolher o poema de Rilke “O torso arcaico de Apolo” para desvelar a própria intimidade para Alma, demonstra uma força que já brotara desde o início, sem consciência de si mesma. É no encontro com ela que essa consciência passa a se constituir. “Força é mudares de vida”
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Ele sabe que esse é o seu chamado. Sabe que há uma voz que grita dentro dele, dizendo dos caminhos que existem e que não condizem com as circunstâncias duras em que está mergulhado. Tem um corpo e busca a razão. Mas não avança sozinho. Aprende com a luz de Alma e na relação com ela a potencialidade da existência amorosa. Ulysses se refugia na literatura, num diálogo silencioso com outros tempos e sujeitos e tenta levar para a cidade seu olhar de quem busca saídas para o próprio cotidiano. Ao mesmo tempo em que sente a urgência das transformações, se vê num invernáculo com a língua e a comunicação. E sente o calor da resposta de Alma, numa relação que cresce em vida e presença mútua. Ulysses se aconchega em Alma, mas também se sente desa9iado por ela. Alma também se vê diante do seu próprio daimon no chamado de Ulysses. Tem medos e uma forma peculiar de se relacionar com o mundo à sua volta, já que não tem o sentido da visão. Sua relação com a vida é baseada no toque, na 42
proximidade real dos cheiros, do tato e da audição. Num contexto em que os julgamentos se constroem pela visão, Alma é desa9iada e desa9ia ao provocar um outro ponto de vista sobre a realidade. É na criação de ambos que surge uma nova possibilidade de habitar a cidade e a vida. Ele, com a poesia e as intervenções espalhadas pela cidade;
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Ela, pela fotogra9ia de um mundo imaginado e construído a partir de outros sentidos não menos vivos.
O amor que se constitui entre eles é alimentado pela presença e potencialidade da existência de cada um. E não acontece mediado pela visão, mas sim pela escuta do outro, num exercício de alteridade muito próximo do que defende Vilem Flusser: um mundo ouvido, participado e comungado através da potência de existência que eles têm dentro de si. A consciência de ambos se constrói no exercício do amor de um pelo outro; no exercício da alteridade mediada por autores e livros.
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"Os poetas e os pintores são fenomenólogos natos. Eles vivem continuamente uma solução dos problemas sem esperança de solução para a re'lexão”. (Bachelard, A poética do espaço). Muito bonito nesse processo foi as descobertas das parcerias dos autores e suas obras com nossos personagens, por viverem dilemas comuns e encontrarem pela literatura soluções para essa re9lexão. Vivemos a experiência de acompanhar Riobaldo de G. Rosa, como um Ulysses do sertão, alguém que também tenta se reencontrar com seu espírito através de suas memórias; ou então Ka9ka e seu Ulysses reinventado, numa Odisseia em que só pode contar com sua inteligência e astúcia para não ser devorado pelas sereias. Alma, numa das cartas, diz a Ulysses: “A sina do seu nome é um chamado que todos nós recebemos na vida, uma travessia di'ícil para se manter íntegro. Voltar às raízes da casa é realizar quem você é.” E realizar-se plenamente é ser presença íntegra no mundo; estar presente na Realidade, apesar das circunstâncias; construir a maturidade através da inteireza do espirito; ampliar o horizonte de consciência para ir além das aparências. Ser UM num horizonte ubíquo, onde há muitos chamamentos simultâneos, demandas transitórias e fugazes. Quebrar o ritmo do 45
tempo, deixar-se ver e desvelar o próprio ser num outro tempo, sem, no entanto, quebrar os códigos já postos para a comunicação. Olhar para a cidade como um espaço possível de existência íntegra, estabelecer uma relação amorosa que foge da pressa, numa busca comum de sentidos para a vida. São idas e vindas dos personagens na construção de si mesmos e do outro que encantam o processo da presença como um presente para os dois. Ambos se constituem como presentes para o outro, na medida em que conseguem encontrar-se consigo mesmo numa presença real.
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Pela poesia e pela literatura a alma inaugura uma nova forma para ambos: "A poesia é a alma inaugurando uma forma. A alma inaugura. Ela é potência de primeira linha. É dignidade humana. Mesmo que a 'forma' fosse conhecida, percebida, talhada em 'lugares-comuns', ela seria diante da luz poética interior um simples objeto para o espírito. Mas a alma vem inaugurar a forma, habitá-la, deleitar-se com ela." (Bachelard, Poética do Espaço). Essa obra termina em dois símbolos fundamentais para a compreensão da presença: o processo criativo e a luz. Não por acaso a última obra a ser partilhada junto com um encontro presencial é justamente o livro de cartas de Rilke a um jovem poeta. Rilke provoca o sentido criativo do poeta em formação, defende o tempo da solidão para a busca de si mesmo, pede paciência com as perguntas que não são respondidas prontamente pela vida; sugere deixar de lado medos que nada mais são do que consolos para o horizonte de consciência diminuído pelas circunstâncias… Isso para nos provar que a presença é um exercício de vigília constante de si mesmo, assim como é um exercício que se realiza na relação com o outro e com o mundo. É preciso exercitar também os outros sentidos 47
que nos compõem, para além da visão. Deixar que o mundo nos comunique sua presença no dia-a-dia… “ Somente quem está preparado para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, poderá viver a sua relação com outrem como algo de vivo e ir até o fundo da sua própria existência. Nós não somos prisioneiros. Em redor de nós não há armadilhas e laços, nada que nos deva angustiar ou atormentar. Não temos motivos de descon'iar do nosso mundo, pois ele não nos é hostil. Havendo nele espantos, são os nossos; abismos, eles nos pertencem; perigos, devemos procurar amá-los. Também não se deve assustar, se uma tristeza se levantar na sua frente, tão grande como nunca viu; se uma inquietação lhe passar pelas mãos e por todas as ações como uma luz ou a sombra de uma nuvem. Deve pensar então que algo está acontecendo em si, que a vida não o esqueceu, que o segura em sua mão e não o deixará cair. Para que perseguir-se a si mesmo com a pergunta: de onde pode vir tudo aquilo e para onde vai? Não sabia estar em transição? Desejava algo melhor que transformar-se? Não se observe demais. Não tire conclusões demasiadamente apressadas do que lhe acontece; deixe as coisas acontecerem… (Rilke, Cartas a um jovem poeta, p. 68) O processo de criação é parte dessa imersão na vida, do encontro consigo mesmo, da busca da autonomia, do retorno à casa do espírito. É uma tarefa essencialmente 48
humana e se realiza pondo em prática outros sentidos, além da visão, deixando o mundo falar à sua volta.
O encontro de Ulysses e Alma nos mostra que o amor é luz que guia o caminho da descoberta de si mesmo. Um amor de verdade não aprisiona; é pelo contrario, um encontro de almas que se expandem na relação entre si. 49
O amor é o cultivo da presença como um presente para o ser amado. É comunhão de vida. Para atrair a luz, é preciso cultivar um jardim interior. Ulysses e Alma estão aprendendo isso juntos e no momento do encontro presencial no parque da Luz, muitos desses passos já terão sido dados, porque nesse encontro de almas, ambos se abriram para serem presentes na vida do outro. E vêm descobrindo que amar é durar. Amar é ser presente, ser vigilante pelo outro, oferecer luz ao outro. “É pelo olhar do outro que reconheço quem sou” . E o outro é sempre um presente, uma luz que me orienta na caminhada em direção a mim mesmo. “Eu que escrevo e você que lê, estamos numa tensão existencial compartilhada. Existe no fundo de cada um de nós um poço de silêncio à beira do qual não ousamos nem sequer debruçar-nos sem a presença do amor.” É esta oferenda 'iel e íntima, um olhar que nos fortalece e nutre, o que nos dá coragem pra despir-nos do nosso amor próprio e veleidades. A docilidade desta entrega é re'lexo de uma con'iança, de um amor verdadeiro que nos apazigua e renasce incessantemente. Sem esta presença não seria possível a ousadia de descer ao silêncio de nossa própria alma, em busca da luz da Verdade e de uma orientação na bondade. 50
Ceder ao bem, obedecer ao chamado da Providência, manter-se humilde. Estas disposições espirituais só podem ser percebidas e exercidas quando puri'icamos nossa vontade. “A sinceridade tem muitos inimigos: a pressa, o receio, a vaidade, o hábito, as solicitações exteriores, o gosto da elegância ou da virtude.” É preciso ardor para superar o medo e aclarar o amor. O olhar é feito para que as consciências se tornem transparentes umas à outra. O amor ultrapassa incomparavelmente o mérito dos amantes, eleva-os acima de si mesmos.
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Esta comunhão dos seres é uma graça concedida por Deus. Quando a graça nos sustenta não há nada que não possamos aceitar, até a tarefa mais fastidiosa, o deserto mais árido não esgota nossa alegria. Ao contrário, tudo o que me acontece me oferece a posse mais atual e plena da vida. No poço fundo de toda alma amorosa existe um oásis, um olhar belo e límpido que vela por nós. É nesse processo amoroso que se dá a conquista da maturidade. É na presença do outro e no amor que brota dessa relação que se encontra a espiral da vida e a realização de quem se é.
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