Reflexões sobre a pedra e o deserto - Sobre João Cabral e o bordado

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Meditações sobre a pedra e o deserto “Educação pela pedra” e “Fábula de Anfion” (João Cabral de Melo Neto)

Quando decidi que João Cabral deveria ser um tema para o bordado em fotografia, fiquei pensando também que deveria ser um bordado de paisagem ou de textura. Essa decisão estava relacionada à sonoridade do seu poema e à sua intimidade com o real, com a superfície e extensão das coisas, de maneira objetiva e direta. Seria uma forma de respeitar as próprias decisões do poeta, ao preferir a concretude à abstração; a objetividade à subjetividade, e dessas matérias retirar com mais força o caráter simbólico da linguagem. Quis, assim, bordar a pedra. A pedra mesma, a coisa mesma. Quis bordar a objetividade da pedra, sua carnadura concreta , seu adensar-se compacta , numa tentativa de mergulhar mais intimamente nessa linguagem poética das coisas, e poder encontrar, de certa maneira, um olhar sobre esse mineral que, por seu peso e gravidade, é uma força centrípeta ao chão, à superfície, tão necessária nesse momento histórico. Escolhi uma das fotografias que eu havia disponibilizado na oficina sobre o poeta, e que, apesar de ser a minha preferida, não foi escolhida por nenhuma das participantes. Achei que esse era também um chamado interno, um desafio para mim mesma - bordar a pedra que eu havia escolhido para outras pessoas bordarem.


O nome da fotografia dado pelo fotógrafo (o sérvio Zeljko Mihajlovic) já é muito sugestivo, embora eu não tivesse percebido isso no momento da escolha da imagem. Só atentei para isso exatamente agora em que escrevo: Desert Rock :

A pedra, em algumas de suas vertentes na poesia de Cabral, estava aqui posta na minha frente em imagem e - por que não dizer? - em textura também, gerada pelo jogo de luz e sombra e pela escultura do tempo e das intempéries sobre ela.


O imperativo de 1945 ( Pequena Ode Mineral ) alou alto aos meus ouvidos: (…) Procura a ordem

de pura espécie,

que vês na pedra:

voz de silêncio,

nada se gasta

mais do que a ausência

mas permanece.

que as vozes ferem.

Essa presença que reconheces

pesado sólido

não se devora

que ao fluido vence,

tudo em que cresce.

Que sempre ao fundo das coisas desce.

Nem mesmo cresce pois permanece

Procura a ordem

fora do tempo

desse silêncio

que não a mede,

que imóvel fala: silêncio puro,

Procura a ordem

de pura espécie,

desse silêncio

voz de silêncio,

que imóvel fala:

mais do que a ausência

silêncio puro,

que as vozes ferem.


O poema de 1966, Educação pela Pedra também foi outro norte para justificar minha escolha por essa fotografia, e pela busca da densidade e das camadas da pedra. Secchin afirma que no livro que leva o nome desse poema, Cabral chegou ao ápice da sua objetividade e da sua engenharia na escrita, organizando e planejando todos os poemas com extremo cuidado na composição da ordem e no tamanho dos versos. É em Educação pela pedra que ele afirma que é preciso aprender as lições do silêncio evocado pelo Real presente nesse mineral, que antes já afirmara ser fora do (nosso) tempo e da nossa medida. Também aqui há a lição de economia, presente no adensamento da matéria, que compacta, se faz presente inteiramente em luz, sombra e formas. Há na pedra, também uma resistência fria ao que flui, e isso aparece no seu formato escultural de saliências e reentrâncias, outra aprendizagem para um tempo de contingências. Uma educação pela pedra: por lições;

*

para aprender da pedra, frequentá-

Outra educação pela pedra: no

la;

Sertão

captar sua voz inenfática, impessoal

(de dentro para fora, e pré-didática).

(pela de dicção ela começa as aulas).

No Sertão a pedra não sabe lecionar,

A lição de moral, sua resistência fria

e se lecionasse, não ensinaria nada;

ao que flui e a fluir, a ser maleada;

lá não se aprende a pedra: lá a

a de poética, sua carnadura

pedra,

concreta;

uma pedra de nascença, entranha a

a de economia, seu adensar-se

alma.

compacta: lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la.


A escolha por João Cabral nesse momento tem a ver com a busca pelas coisas mesmas, a busca pela Realidade presente nas coisas e a partir delas. Estamos em tempo de silêncio e de recolhimento por causa dos últimos acontecimentos mundiais. Mais do que nunca é preciso agora um exercício constante de fundar-se como autoridade de si próprio, para não se deixar levar pela vertigem e desordem da contingência. O exercício do bordado foi, pra mim, como uma resposta ao poeta. Optei por criar densidade com a linha e seguir os movimentos gerados pelo próprio mineral em sua carnadura. Busquei as cores que mais se aproximavam daquela realidade na imagem, para chegar mais perto possível da tridimensionalidade que a pedra traz em si. Meu objetivo era fazer com que as saliências e reentrâncias saltassem do papel e ganhassem o espaço, assim como costumo fazer com quase todas as fotos bordadas. A diferença aqui era não inventar abstrações e nem subjetividades, mas apenas deixar que meu olhar fixo na pedra por um tempo longo pudesse aos poucos coordenar os pontos e as cores a serem usadas. O trecho que li em uma das pesquisas sobre o poeta contribuiu para instigar meu olhar parado sobre aquelas formas:

Entre todos os minérios [João Cabral] escolhera o mais difícil, o mais indócil para a tarefa de esculpir: a pedra. Mas como trabalhar tão resistente material? Para descobrir o segredo desse elemento da natureza, o artista precisa observá-lo em silêncio, aprender com ele. Só é possível retirar o melhor desenho de uma pedra através do conhecimento preciso do seu


relevo, de suas depressões, de seu formato . (trecho do artigo de autor desconhecido - arquiteto das palavras).

A fotografia havia sido impressa com uma margem branca, como uma provocação para a oficina, como um convite para que se extrapolasse os limites própria imagem. A minha surpresa foi perceber que eu mesma não quis extrapolar a fotografia. No processo do bordado fui levada para a contenção e percebi que o limite a ser trabalhado era aquele imposto pela própria pedra, sem excessos e num exercício

de

autocontrole de me ater à coisa mesma. Não era esse o tom da poesia?

Essa

presença/ que reconheces/ não se devora/ tudo em que cresce . Escolhi o ponto corrente para tramar o bordado. Uma laçada e um retorno que parece ser no mesmo ponto, mas que na verdade, está


um ponto acima e vai crescendo. Um movimento circular, para quebrar um pouco com a dureza do minério, ao qual, confesso, não estou tão habituada. O degradê foi a busca sutil da relação entre a luz e a sombra, e isso foi outro aprendizado. Na fotografia, é exatamente o jogo que se estabelece entre uma e outra que faz nascer texturas e que dá o sentido de proximidade com a realidade. Para mim, foi o exercício de compreender essa sutileza num olhar atento - quando eu imaginava que estava vendo o tom mais escuro, me deparava com a luz incidindo por outros ângulos no mesmo ponto, e o contrário também. Não foi fácil seguir esse movimento e eu não tinha cores que chegassem a esse nível de similaridade, por isso o tom mais escuro ficou um pouco prejudicado. O resultado do bordado me chamou a atenção, não pela sua beleza e estética em si. Mas pela relação que se estabeleceu entre a frente e o verso dele, pelo conjunto de reflexões que nem eu mesma sei se vou conseguir traduzir em palavras aqui, mas que me deixou bem impactada: se de um lado eu tinha a pedra e sua densidade e carnadura, do outro, eu tinha agora, o deserto de Anfion, esse deserto branco, com caminhos de rios secos e uma luta com o acaso e com as crises, em percursos ora iluminados ora escuros. O deserto é uma terra sedenta , como diz Merquior em sua análise.

No deserto, entre a paisagem de seu vocabulário, Anfion,

Ao ar mineral isento mesmo da alada


vegetação, no deserto que fogem as nuvens trazendo no bojo as gordas estações,

Anfíon, entre pedras como frutos esquecidos que não quiseram

amadurecer, Anfíon, como se preciso círculo estivesse riscando

na areia, gesto puro de resíduos, respira o deserto, Anfíon.

(Ali, é um tempo claro, como a fonte e na fábula.

Ali, nada sobrou da noite, como ervas entre pedras.


Ali, é uma terra branca E ávida Como a cal.

Ali, não há como pôr vossa tristeza, Como a um livro Numa estante).

À luz do estudo de Merquior, percebo quantas correspondências existem entre os poemas sobre a pedra e o deserto de Anfíon e seu processo criativo, de fundar-se num deserto, que é pura sede, para ele, que é pura fome. O deserto aprofundou o processo de amadurecimento da dialética da lucidez iniciado pelo motivo mineral nos últimos poemas de O engenheiro , diz Merquior. O processo de criação - a autoria - como parte do trio composto da autoridade de si mesmo, é constituído por essa fome que se sente num deserto de contingência - responder por si mesmo, recriar um mundo a se habitar, mais do que ser pedra e permanecer imóvel. Há uma aprendizagem difícil nesse encontro com a pedra - aprender da sua gravidade, da sua escavação do Real, e do seu tempo e de sua ordem que não estão encaixados no tempo da experiência em si. Há momentos desse percurso na aprendizagem, em que se depara no deserto, entre os/ esqueletos do antigo/vocabulário, Anfíon, e trechos em que se percebe que há dez dias/da última erva/que ainda o tentou acompanhar.


Fico pensando no verso e reverso da imagem fotográfica bordada. Bordei a pedra e encontrei toda a complexidade do deserto anfiônico como resposta, na sua complexidade tomada de silêncios e ruídos, de distração e lucidez. Buscar a pedra significa buscar uma ordem do silêncio e da gravidade, que se rompe pelo reverso do deserto. Há uma aceitação dessa condição com o outro lado daquela carnadura de reentrâncias e saliências. Merquior diz: a ascese do deserto está, sem desfigurar-se, compreendida no acaso como figura do jogo do mundo, do processo do Ser. Diz ainda: entender [o poema] no rastro das suas imagens, resulta em substituir a ideia de uma simples separação entre o reino do deserto e a esfera do acaso, entre a lucidez aguerrida e a inspiração incontrolável, por uma concepção muito mais complexa e matizada das relações entre a ascese de Anfíon (a disciplina do silêncio) e o pulso imprevisível do universo. (…) O deserto é ávido e, portanto, pura esperança de fertilidade, mas nenhuma fertilidade seria aceitável como simples dom incondicionado, sem a disciplina que o mereça .



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