As imagens e a realidade - o bordado como mais uma camada na escrita de si

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As imagens e a realidade - o bordado como mais uma camada e a possível escrita de si. 1. A produção de imagens e a nossa possibilidade de “informar” a realidade Gosto muito da expressão “escrita de si”, que apliquei ao sentido do exercício de bordar a fotografia. Costumo dizer que um dos objetivos desse fazer manual é um reencontro consigo mesmo, a partir de um instante de memória que leve a um fio de narrativa a ser literalmente costurado pela materialidade do fio e da agulha, e pelo exercício de furar aquele papel fotográfico, criando um percurso simbólico que dialogue com essa realidade já experimentada um dia, mas agora revivida, reatualizada, e principalmente, ressignificada. Ressignificada, sim. Porque nenhuma imagem produzida corresponde de fato à realidade vivida - é sempre um recorte, um ponto de vista e já um enquadre, “informado”, para usar a expressão de Vilem Flusser, do que foi a realidade. Se pensarmos, assim, no lugar que o exercício de bordar uma fotografia ocupa na construção da memória de um indivíduo e nessa escrita de si que defendo, vamos chegar à problematização que Flusser levanta em relação à construção das imagens técnicas e ao processo (nem sempre linear) da abstração da realidade com a interferência das ideologias nesse processo constitutivo da memória. Flusser reflete sobre uma hierarquia que está presente historicamente na nossa relação com as imagens e, por consequência com a abstração e a construção de conceitos, que vão surgir a partir da simbolização da realidade. Segundo ele, pelas mãos o homem natural pôde pela primeira vez transformar o mundo em uma circunstância. A partir da sua experiência direta na


realidade, pôde “informar” (dar forma) e ao mesmo tempo abstrair a imaterialidade simbólica, criando uma realidade palpável - é o caso do surgimento da Vênus de Willendorf, por exemplo, há 300 mil anos. A partir da percepção daquela realidade e daquela forma de se comunicar, o homem transformou o pensamento em matéria, mas apoiado pelo seu entorno, através dos materiais possíveis e da pesquisa direta na realidade. Um segundo passo nesse processo de construção das imagens foi a representação da realidade pelas pinturas nas paredes. Transformar a realidade volumosa em figuras bidimensionais, foi um segundo passo para a simbolização e abstração do sentido e da experiência. As mãos, então, além de manipular matérias e criar objetos, passaram a produzir também imagens, guiadas pela memória e pelos olhos e já numa segunda instância de representação. Houve, milênios depois, a entrada da teoria e da escrita de textos como um terceiro degrau nesse processo abstração: “Dezenas de milênios se passaram até que tivéssemos aprendido a tornar transparentes as imagens, a ‘explicá-las’, a arrancar com os dedos os elementos da superfície das imagens e alinhá-los a fim de contá-los; até que tivéssemos aprendido a rasgar o tecido do contexto imaginado e a enfiar os elementos sobre as linhas, a tornar as cenas ‘contáveis' (nos dois sentidos do termo0, a desenrolar e desenvolver as cenas em processos, vale dizer, a escrever textos e a ‘conceber o imaginado’. Consequentemente, a conceituação é o terceiro gesto abstrair (abstrai a largura da superfície); graças a ele o homem transforma a si próprio em homem histórico, em ator que concebe o imaginado.” (Flusser - “O universo das imagens técnicas” - p. 17 e 18). Mas há ainda, segundo ele, um quarto gesto abstraidor nesse processo de construção das imagens produzidas. É exatamente o gesto que nasce da compreensão conceitual e textual da vida - o gesto que nasce a partir da


teorização da circunstância e a projeção da linearidade lógico-matemática que serve como base para a construção de muitas narrativas e que fazem surgir as ideologias, que também são formas de “informar" a realidade. “Textos são séries de conceitos, ábacos, colares. Os fios que ordenam os conceitos (por exemplo, a sintaxe, as regras matemáticas e lógicas) são frutos de convenção. Os textos representam cenas imaginadas assim como as vendas representam a circunstância palpável.” (p. 18). Para Vilem Flusser, a fotografia é uma imagem técnica - produto de um aparelho que foi inventado com o propósito de informar, a partir de uma intenção programada, planejada. Já a imagem tradicional - o desenho, por exemplo - é uma forma de representação da realidade, a partir do volume que o próprio real possui. “O gesto produtor de imagens técnicas se dirige rumo à superfície a partir de pontos. O gesto produtor de imagens tradicionais se dirige rumo à superfície a partir de volumes. O primeiro concretiza, o segundo abstrai planos. O primeiro surge de cálculo, o segundo da circunstância palpável. Logo, as imagens técnicas significam (apontam) programas calculados, e as imagens tradicionais (apontam) cenas. Decifrar imagens técnicas implica revelar o programa do qual e contra o qual surgiram. Decifrar imagens tradicionais implica revelar a visão do produtor, sua ideologia.” (p. 35 e 36) Curioso é saber que Flusser escreveu essas reflexões em 1985, muito antes de vivermos a avalanche de imagens produzidas pelo aparelho celular, e que nos levou, inclusive a diferenciar o termo “imagem" do próprio conceito de fotografia. Quantas imagens produzimos ao longo de um dia, pela facilidade técnica e de armazenamento do aparelho celular? Quantas dessas imagens, realmente podem ser chamadas de fotografia?


Quanto mais produzimos imagens sobre a realidade, mais avançamos em nos afastar dela. Essa me parece ser a ideia central, porque fomos mergulhando na técnica cada vez mais elaborada dessas produções, e passamos a nos relacionar, na maioria das vezes, com as imagens produzidas e não com a própria densidade do real. Nesse sentido, fotografias são recortes de memória. Recortes muito válidos, porque afinal de contas, não se pode acumular ad infinitum os acontecimentos e momentos vividos. A fotografia é, dessa maneira, uma das inúmeras possibilidades de curadoria que fazemos da nossa própria história, para dizermos a nós mesmos e aos outros quem somos.

2. O bordado na fotografia e sua relação com a realidade O grande problema está exatamente na maneira como produzimos nossas histórias através dos recursos dessas imagens, quais recortes escolhemos e quais deixamos para trás quando apertamos o botão da máquina fotográfica. Essa era uma preocupação para Flusser, mas hoje, diante do contexto das imagens digitais, que constroem realidades zerodimensionais, parece-me que imprimir e ainda bordar com fios, é trazer um possível retorno a esse gesto humano de levar a realidade à altura das mãos. Por outro lado, é só uma possibilidade mesmo, já que ao mesmo tempo em que estamos lidando com a dupla materialidade - papel impresso com a imagem e fios - ainda é totalmente possível que continuemos a nos distanciar da realidade, pela própria construção dos símbolos que serão produzidos pela costura na imagem. Trata-se de uma releitura de uma realidade, que por sua vez, já havia sido transformada no momento da escolha do recorte angular, da luz e dos efeitos, em relação à primeira realidade vivida. Como pensar então nessa costura em fios de uma imagem que é um símbolo produzido de um momento real vivido? Como viver esse processo de


fazer manual, tentando trazê-lo mais para perto de um retorno à realidade do sujeito como um ser inserido na história? Penso que o bordado na fotografia tem em si alguns elementos que talvez Flusser gostasse de ver se realizando. E o primeiro deles é o jogo de furar, produzindo exatamente novos pontos sobre aqueles pontos que haviam transformado a realidade em um plano. Esses novos pontos, agora furos, vão receber uma agulha e uma linha, numa costura que busca ser narrativa e simbólica, produzida pelas mãos de quem está se relacionando com aquela fotografia. Isso realmente não é o suficiente para se aproximar figura e realidade; mãos e história. É preciso mais! E eu imagino que a mediação educadora e maiêutica é um outro ponto de aproximação de realidade. Por desconhecer totalmente a história e a circunstância que envolvem aquela lembrança registrada, eu, como educadora posso fazer perguntas que são da existência maior daqueles sujeitos presentes na foto. Busco as intenções da fotografia no olhar de quem a produziu; busco a incidência de luz e cores que se sobressaem; busco ainda objetos esquecidos e relegados pelo sujeito que vai manipular o objeto. Tento trazer a realidade para dentro da imagem - a realidade que não vejo, a partir da imagem que vejo. E faço isso porque meu principal objetivo com essa tarefa é justamente contribuir, a partir desse exercício manual e criativo, com a fundação dessa pessoa que está comigo nessa experiência. Meu objetivo é que ela se encontre com a sua própria realidade, para além do imaginado e o mais próximo possível do vivido, para que só então seja ressignificado. Mas, como todo processo educativo é um encontro e deve ser consentido, para que possa alcançar o segundo nível numa relação criativa (Quintás), é fato também que muitas vezes não é isso que acontece no processo do bordado. Esse mesmo processo de rever a imagem, furar, construir símbolos e costurar pode ser uma camada que distancia ainda mais da primeira realidade, no sentido de buscar confirmar leituras e


interpretações pessoais de um sujeito que ficou num outro tempo da existência, mas trazendo esse sujeito para coabitar a realidade no presente.

3. Um exemplo de experiência Quero dar um exemplo de um dos encontros que aconteceu em julho. Ouso dizer que esses encontros virtuais deixariam Flusser ainda mais intrigado, porque feitos por imagem e áudio do computador, mantendo uma enorme distância real, mas numa pseudo-aproximação via tela. Nesse encontro virtual, vejo a foto escolhida pela participante, conversamos, eu faço minhas perguntas provocadoras (sempre tem um choro de descobertas de emoções guardadas na imagem que não havia sido vista antes, é muito interessante), e depois pensamos em possibilidades para o bordado. Um caso que quero partilhar aqui é o da Maria Goret: Goret chegou na oficina com essa foto, que mostra seus pais com ela no colo, bebezinha, num lugar que ela não sabe qual é, mas na sua cidade, no interior de Pernambuco. Quando ela chegou aqui, seu discurso inicial sobre a escolha da imagem foi que estava num momento muito importante de sua vida, de resgatar sua infância, já que não tem memória alguma dessa fase da sua vida e nem registros. Essa foto seria o único registro que ela tem sobre esse


período da sua vida. No discurso apareceu também um distanciamento da mãe ao longo da vida e um carinho imenso pelo pai, sempre muito próximo e compreensivo com ela. Goret não havia reparado nas roupas, no momento celebrativo que essa foto poderia representar, por ter sido tirada por uma terceira pessoa, com pose de retrato de família mesmo, num período em que fotografias custavam muito caro e eram de difícil acesso. Ela também não havia reparado no tronco e na cerca que se mostram ao fundo da foto. Só via mesmo o bebê, e ainda assim, é curioso porque, se queria resgatar a memória de infância, não seria dessa idade que faria isso, já que não se tem memória para contar sobre essa idade. Deixar vir o real lugar dos pais na sua história e também a percepção dela sobre a forma como seus pais viviam o casamento foi uma das minhas tarefas nessa conversa. E aos poucos foi nascendo para ela o sorriso da mãe, o cuidado do pai com ela e com a esposa, e principalmente a força que ela foi reconhecendo na sua mãe, que ficava sozinha com os filhos por semanas a fio, para que o pai pudesse trabalhar como caixeiro-viajante. Ela foi se lembrando da alegria da chegada do pai em casa e de quanto isso durava poucos dias, mas foi percebendo que não se tratava de doçura do pai e rudeza da mãe, mas sim das circunstâncias que o impediam de passar mais tempo em casa, e a importância da mãe em cumprir mais de um papel, enquanto ele ficava ausente. Houve muita emoção na Goret. Perguntei sobre a árvore exatamente no meio dos dois. Árvores são símbolos pra mim, não pra ela. E não deixei de influenciar no seu olhar. Chamei a atenção para a espécie pau-ferro, que é uma árvore muito forte, de tronco muito duro, mas que solta parte das suas cascas, como se fossem camadas de pele, abrindo para outras camadas mais profundas. Goret saiu da oficina absolutamente encantada com a mãe. E seguiu para o seu bordado sozinha, sem um projeto definido comigo. E nasceu esse bordado que está nessa foto.


Ela foi me contando durante seu processo de bordado, que pôde reelaborar na terapia com sua psicóloga uma série de significados da relação com a mãe. E eu achei curioso demais o caminho que ela criou para a fotografia. O que aconteceu com a primeira realidade - a família em si? E com a foto desse dia? E agora? O que eram esses símbolos? Esse sol e lua fazem parte de uma relação mística que a Goret tem, e que está presente na decoração da sua casa. Segundo ela, o sol e a lua vão com ela pra todo lugar. Trata-se de um objeto de parede, que ela me mostrou depois:


A árvore ganhou essas linhas vermelhas, que ela não conseguiu partilhar comigo as razões. O que sei sobre a Goret hoje é que ela é muito envolvida com os grupos de dança circular, astrologia, e faz parte inclusive de um grupo que vive a contagem do tempo dos Maias. Tudo isso pra dizer que entre a cena, a foto daquela cena, o olhar da filha adulta sobre si mesma e a família naquela cena, e o bordado simbólico… existem muitas camadas, que tanto podem aproximar quanto distanciar a memória e a realidade. Os símbolos fazem parte de uma ideologia vivida pela Goret, que ela usou para encaixar seus sentimentos e o que poderia traduzir daquele momento. Foi muita emoção que ela viveu no dia que conversamos sobre a fotografia. Mas não sei dizer o quanto realmente ela conseguiu fazer de um percurso de retorno à sua própria história; o quanto ela pôde se encontrar consigo mesma a ponto de conseguir, depois, um processo de conscientização e um novo distanciamento para viver de fato uma escrita e uma fundação de si.

4. O lugar que o bordado ocupa para mim Quando Flusser fala da escrita do texto como um conjunto de pontos num plano, trazendo a abstração para a concretude, eu sinto que, para mim, várias vezes o bordado tem exatamente esse lugar. Por isso gosto de chamar o processo de “escrita”. Mas, entre uma experiência pessoal e um processo educativo, existe a grande diferença que é o encontro e o consentimento. Percebo que as pessoas estão abertas para mim nos encontros de bordado, mas abertas emocionalmente; sem a pretensão de fazer o percurso completo do processo criativo, de chegar ao processo de síntese. Percebo que permanece a mistura, muito própria inclusive da nossa cultura brasileira, que


é levar os sentimentos a quase um nível religioso, mas não necessariamente espiritual. Também não tenho a pretensão de ir além do que eu já faço com elas. Muitas vezes elas vêm buscar um pouco de relaxamento e não têm ideia do que pode significar esse exercício de bordar uma imagem. Ficam impressionadas, tocadas com seus sentimentos e processos, e isso não deixa de ser uma experiência, no sentido que fala Larrosa. Mas não ganha continuidade O que eu sei é que a escolha da materialidade tem um papel fundamental no meu processo de fundação de mim mesma e da minha escrita pessoal. Para mim, a fotografia impressa é mais que um conjunto de pontos num plano, embora eu concorde com Flusser que é uma versão da realidade construída por mim, que manipulei a câmera. Essa materialidade da imagem congela o tempo e me permite olhar para o passado com um olhar mais gentil e carinhoso, como foi com a foto da mão da minha vó, por exemplo, que fotografei na ocasião dos seus 90 anos em 2009 e resolvi bordar agora, nesse momento de isolamento e de mil pensamentos que tenho tido dentro de mim. A mão da minha vó era certamente a parte mais delicada dela, mais macia e mais amorosa, para uma pessoa que não era muito adepta aos carinhos. É a parte melhor que tenho de lembrança dela, e a fotografia ajuda muito a rever essa delicadeza:


Mas a mão da minha avó é mais que isso como símbolo e hoje eu percebo isso muito melhor, por isso quis bordar. A mão dela é uma matriz geradora, um ponto inicial forte que foi passado para minha mãe, e agora para mim. Nós três temos mãos muito parecidas. Minha mãe herdou, na prática, os fazeres manuais da minha vó - cuidado da terra, criação de galinhas, a habilidade na cozinha. E eu, olhando pra essa foto, percebo que tenho um ponto inicial que mora em mim também. Busco minhas outras semelhanças com essas mãos que vieram antes de mim, e vou para o bordado tentar ressignificar essa história simbolicamente. Vejo nessa mão um passado que merece ser honrado, mesmo sabendo que no fundo, minha vó não era uma pessoa tão boa e nem generosa. A foto é um recorte de uma realidade total, mas é também uma luz que incide sobre a realidade, fazendo com que seu sentido seja maior que os fatos em si. A partir dessa matriz simbólica impressa na fotografia, me questiono sobre meus percursos individuais, minhas heranças e meu próprio lugar como sujeito no mundo, herdeira de uma história. A foto me ajuda a olhar para isso, e o bordado contribui com camadas extras de ressignificação e simbolização, sem precisar traduzir em palavras. É a minha maneira de informar a minha realidade também. Acho que é isso que eu vivo no bordado, geralmente. E era isso que eu gostaria de poder proporcionar às pessoas viverem. Às vezes, chego perto dessa graça. E quando isso acontece, termino o dia muito realizada.


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