Pequenas reflexões sobre o bordado em fotografia e seus desdobramentos

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Pontos costurados numa narrativa Pequenas reflexĂľes sobre o bordado em fotografia e seus desdobramentos.

Bia BordĂ´ Outono de 2020



Apresentação Desde que comecei a organizar as experiências de bordado na fotografia pela plataforma Airbnb, sempre tive como meta os processos criativos e a abertura de um diálogo - independentemente de serem pessoas conhecidas ou não - tendo o fazer manual como um mediador. Foram muitas descobertas para mim nesse processo. E eu me deixei levar por essas descobertas. A primeira delas foi exatamente a riqueza que um encontro voltado ao fazer manual pode gerar, do ponto de vista educativo. O quanto a escuta ativa de histórias, memórias e o quanto o exercício de alinhavar (literalmente) esses processos junto com as pessoas, poderia ser rico para mim, como educadora. Viktor Frankl, o psicólogo que desenvolveu seus estudos em pacientes dentro do campo de concentração dizia algo sobre o objetivo real que a educação deve perseguir, que sempre me chamou a atenção. Ele dizia que é preciso buscar no outro sua vontade de sentido. E o bordado me mostrou isso nas relações com grupos pequenos. A memória ressignificada enche a vida de novos sentidos, reorganiza nossa própria narrativa, e nos coloca de frente para a urdidura (tempo) e trama (espaço) da nossa existência.


Depois dessas descobertas generosas nesses encontros, quis aprofundar um pouco mais e tornar as subjetividades de cada um como partes de um grande fio de humanidade nos ligando a todos. E aí vieram os encontros de bordado e literatura. De novo me impressionei com a potencialidade de se misturar as linguagens - texto, têxtil, imagens e memórias. E assim, a partir do lugar de fala de cada um que se debruçava sobre um poema, chegávamos a uma uma partilha de saberes e de referências individuais, e ao mesmo tempo a uma humanidade comum a todos nós, pelos livros e pela literatura. O que tem nas poucas páginas que seguem agora é um pequeno conjunto de três mini artigos, sobre essas descobertas. E também alguns convites a você que vive, assim como eu, esse processo de isolamento social que nos surpreendeu nesse 2020, e que tem colocado muitos de nós a refletir e a reorganizar nossos pensamentos e nossos valores. Sugiro, como convite, que você não só leia os artigos, mas principalmente, que pegue a agulha, a linha e experiente viver na prática esse fazer manual. E depois me conte a experiência. Pode me escrever por email, pelas redes sociais, por onde achar melhor. Vou adorar saber! Bia Bordô Email: (biapadial@gmail.com) Instagram - @biabordo Facebook - bia.padial


A experiência de bordado na fotografia - um encontro com histórias e âmbitos

Essa foto foi bordada pela Talitha, uma das participantes da experiência do bordado em fotografia, e relata um momento de uma viagem que empreendeu sozinha, pela primeira vez. Segundo ela, foram dias de aprofundamento em si mesma e de um reconhecimento de uma liberdade possível, que não tinha vivido antes.

Posso começar esse texto dizendo que fotografar é minha grande paixão. É uma das maneiras que encontrei para me relacionar com o mundo e poder interpretá-lo à minha maneira, desde a adolescência. Nunca fui uma exímia fotógrafa tecnicamente falando, mas certamente encontrei nas lentes, nos recortes de ângulos e na relação entre a luz e a sombra, as principais maneiras de narrar meus pensamentos e criar meus símbolos, para que o mundo ganhasse sob meus olhos uma densidade maior e um pouco além daquelas relações utilitárias que estabeleço com o dia-a-dia e as tarefas. Porém, devo dizer que, apesar de toda essa paixão, fotografar pessoas nunca foi o meu forte. Fazer retratos sempre foi (e continua sendo) muito difícil para mim. Acho que só entendi as razões disso depois de visitar uma exposição do fotógrafo


malinês Seydou Keita, que ficou em cartaz no Instituto Moreira Salles em junho de 2018. Naquela ocasião, fui tomada pela alma presente em cada retratado; fui tomada também pelos processos de produção de cada retrato realizado pelo artista. E ali entendi. Fotografar uma pessoa requer encontrar sua alma. Requer deixar-se levar pelo âmbito que compõe aquela existência, e até então, esse talvez fosse um grande medo meu. Deixar-me levar pela alma de alguém que se pusesse à frente da minha lente e mergulhar numa ida sem vinda, num universo que eu não poderia decifrar em palavras, e menos ainda em imagem, se não fosse em total perfeição. É aí que as oficinas de bordado em fotografia entram na minha vida. Gosto muito de um filósofo espanhol chamado Alfonso López Quintás. Ele diz que o desenvolvimento da capacidade criadora é um dever primordial do Ser Humano, e que o pensamento e a atitude criativa estão já num segundo nível de pensamento - no nível em que deixamos de nos relacionar com objetos e passamos a nos relacionar com âmbitos. Toda pessoa é um centro de ações (iniciativas) e paixões (iniciativas dos outros nelas): “Um âmbito é uma realidade que abarca certo campo em diversos aspectos, pois é capaz de oferecer possibilidades e receber outras. Uma pessoa não se reduz às coisas que seu corpo abarca. É como um centro de iniciativas. Tem desejos, sentimentos ideias, projetos. Cria vínculos de todo tipo e assume seu destino. Apresenta uma vertente objetiva, por ser corpórea, mas supera toda a delimitação. Abarca certo campo em diversos aspectos: o biológico, o estético, o ético, o profissional, o religioso… é todo um âmbito de vida.” (Quintás, p. 39)

Ilustração em aquarela de Eva Uviedo.


Trocando em palavras, e com a ajuda do próprio Quintás para entender como se dá uma relação criativa num segundo nível do pensamento, é como compreender a diferença que existe entre ter-se um piano na sala da própria casa, e fazer esse piano produzir uma música. O piano em si não é capaz de produzir sozinho os sons que nos levam a outra dimensão simbólica da existência, pela música. Ele precisa ser tocado, ele precisa da relação que se estabelece com o ser que o toca. Um piano paradinho na sala, é só um piano; mas um piano em atividade, produzindo as melodias da humanidade, passa a ser uma verdadeira experiência de sentidos. Assim também é a relação criativa e o encontro de criação uma presença convocatória e maiêutica, chamando para novos símbolos e camadas da própria existência - uma convocação de um âmbito até então silenciado, pela própria falta de intimidade ou pelo desconhecimento.

Foto e bordado - Aline Brant (@alinebrant)

Essa é a ideia das oficinas de bordado na fotografia. A partir das fotos escolhidas por cada participante, há um encontro criador, uma busca de novos significados e novas camadas simbólicas numa imagem até então estática, até então, uma memória de um tempo vivido. É sempre uma tentativa de produzir melodias de existência a partir da memória subjetiva, e de gerar um novo âmbito nas relações, a partir dos processos criativos e da autoria.


É uma conversa que se estabelece com os elementos presentes na fotografia - sujeitos retratados, os contrastes entre luz e sombra (e onde incide cada um desses elementos, que tornam aquela imagem tão significativa), o ângulo escolhido para a paisagem e as histórias por trás do que está ali retratado. Essa conversa é como Ana e Pedro - Mãe e filho numa das experiências de bordado. Ana ganhou de presente do filho a experiência no dia das mães. E bordaram fotos da mesma viagem, cada um com seu olhar, suas próprias memórias e ângulos.

o momento em que se abre o piano e senta-se à frente, num ritual de preparação para a música que vai nascer. Escolhe-se a melodia que

combina com o momento, com aquelas histórias e símbolos, e então abre-se a partitura para a execução da obra. O fazer manual implicado no bordado na imagem faz o papel da partitura para que nasça a melodia. A escolha dos pontos, da textura da linha, das cores e o início do projeto. O que eu percebo, então é que, se fotografar pessoas era, para mim uma tarefa tão difícil, fazê-las encontrar suas camadas simbólicas de significado e se reencontrar consigo mesmas e com suas

Uma cena de uma das experiências realizadas na Casa das Rosas, em outubro de 2019, cujo tema era “Memória" - foto de André Velozo.

memórias, pôde ser a minha alternativa para aquela dificuldade, e também uma conquista pessoal num processo que considero o mais verdadeiro e próximo da educação real - contribuir para que o outro encontre seu próprio eixo, sua própria


“vontade de sentido”, tal como defendia Viktor Frankl. Não é uma aula de bordado, sempre gosto de dizer; é uma experiência criativa, em que o principal é o processo e o diálogo consigo num tempo interior. O processo criativo é um exercício profundo de autoria de si mesmo; de fundação do próprio sentido e construção de uma subjetividade que, ao mesmo tempo em que singulariza o Homem, torna-o parte de um Todo, comungando com todos os homens ao mesmo tempo. Esse é, para mim, o verdadeiro sentido da educação. E se até hoje continuo com dificuldade em fotografar pessoas, por outro lado, tenho cada vez mais certo dentro de mim, o amor que tenho pelas imagens, pelas memórias e pelos processos criativos e educativos. É isso que o bordado vem me ensinando desde então.

Essas duas fotos se referem ao processo e produto da Angelina, numa das experiências vividas com o bordado em fotografia - apelidamos a foto de “Menino-pássaro”. Gosto muito dessa foto, porque acho que ela reflete muito bem o significado de âmbito que trouxe nesse texto.


Bibliografia: QUINTÁS, Alfonso Lopez - A Tolerância e a Manipulação. SP, Ed. É Realizações, 2018. FRANKL, Viktor - Em busca de sentido - um psicólogo em um campo de concentração. RJ, Ed. Vozes, 1991. MIGUEZ, Eloisa Marques - Educação em Viktor Frankl: entre o vazio existencial e o sentido da vida. Tese de doutorado. SP, FEUSP, 2015. Vídeos no Youtube com palestras e aulas do professor Quintás: https://www.youtube.com/watch?v=-pUZJAVCgL4&t=1737s (uma palestra proferida sobre a Nona Sinfonia de Beethoven) https://www.youtube.com/watch?v=LoyZzevGzu8 (Alfonso Lopez Quintás por Gabriel Perissé).


A memória e um costurar(-se) - uma junção de sentidos e criação.

Fotografia e intervenção de AnnaTereza Barbosa

Jorge Luis Borges tem um conto, de 1942, que descobri nesse ano, há pouco tempo. Trata-se de “Funes, o Memorioso” e foi escrito durante uma crise de insônia do autor. Esse personagem, depois de um acidente fica com uma sequela que, em princípio o faz muito feliz, mas que depois vai aos poucos colocando-o em situação cada vez mais angustiante, a ponto de considerar a própria cabeça “um depósito de lixo”. Acontece que Funes passa a se lembrar de absolutamente tudo. Nada mais passa despercebido à sua memória, e se antes isso o alegrava por ser uma característica única, que o tornava diferente de todas as outras pessoas, logo passou a ser um suplício, por não poder ter direito à seleção dos próprios pensamentos, por não conseguir domar a construção da sua narrativa de vida.


Ilustração de artista desconhecido

Comecei esse texto com a lembrança desse personagem, porque ele me leva à importância da narrativa e da curadoria da nossa própria história e da nossa memória. Não lembramos de tudo o que nos acontece, de jeito nenhum. Mas quando vamos falar de nós mesmos ou do que está ao nosso redor, sempre contamos uma história com detalhes que realmente fizeram se ressaltar à nossa memória. E essa é a nossa vida, essa é a nossa história. A fotografia tem essa importância de nos ajudar a narrar nossa história, nossos amores, nossos momentos. São sempre lapsos ou “instantes decisivos” - para usar o termo do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson - que nos ajudam a compor uma linha, um fio da nossa própria narrativa.

Foto bordada pela Clarice, numa das experiências de bordado, uma memória de infância.


Bordar uma fotografia, por sua vez, é trazer à tona esse momento colocado na imagem e ir além de apenas lembrá-lo como um acontecimento importante. Quando se propõe a bordar uma foto, faz-se uma busca dos símbolos que aquele momento pôde suscitar e talvez influenciar em toda a narrativa que vem compondo essa vida. É mais que a oportunidade de reviver um momento; é na verdade, a oportunidade de ressignificar o vivido simbolicamente, com um fio e uma agulha. É um costurar-se de novo, em trama simbólica, na busca da urdidura e da trama que compõe, a partir Foto bordada pela Gabriela, de uma memória de viagem à Itália com sua família.

daquele momento tão especial, o tecido da vida como um todo.

Pode parecer estranho assim, só de ouvir dizer, por isso convido a você, leitor ou leitora, a escolher uma imagem que seja significativa de um momento da sua vida, que lhe conte sobre quem você foi um dia ou ainda continua a ser. Olhe para essa fotografia demoradamente, busque onde incide a luz nela, encontre os objetos que a compõem, faça-se a pergunta sobre quais desses objetos são meros acessórios na foto, e quais ali presentes já se configuram como símbolos e pontes para outras memórias… depois de todo esse exercício, escolha a intervenção que deseja fazer na imagem: gostaria de ressaltar a paisagem? Ou então um dos objetos presentes? Gostaria, por outro lado, de trazer à pessoa da foto uma nova marca, que dialogue com o tempo vivido? Enfim… converse com seus pensamentos selecionados. Ao contrário de Funes, você tem um único momento à sua mão, e é esse momento que


abre portas para outras histórias da sua vida, que nesse momento, você sabe que não gostaria que se perdessem da sua memória jamais. Com coragem, pegue uma agulha e fure de acordo com o desenho que quer ver pronto na foto depois. Não se preocupe com a perfeição dos pontos e com a técnica do bordado. Diferente do tecido, a foto quer que você dialogue com ela, que você traga seus pensamentos e os costure com agulha e linha. Bordar a foto é uma experiência de ressignificação. Esse ir e vir da linha e agulha, ora na frente e ora no verso da imagem, é um acordar de sentimentos, histórias guardadas, sorrisos que você volta a sentir vontade de dar, um choro que escapa… é um encontro consigo mesmo num exercício de curadoria da própria memória. Um exercício de sentidos posto à prova pelo fazer manual.

Clarice no meio do seu projeto de bordado, durante a experiência.


Cecilia Almeida Salles, em seus estudos sobre o processo criativo, traz a importância da memória e da ressignificação que sentidos que a criação provoca: “Não há percepção que não seja impregnada de lembranças, e as sensações têm papel amplificador, permitindo que certas percepções fiquem na memória. A estreita relação nos leva a examinar seus modos de ação nos processos criativos, sem separá-las, mantendo exatamente o que as conecta: interagem por meio de emoções ou de sensações, como vimos. A percepção do mundo exterior se dá por intermédio de nossos receptáculos sensoriais e sensitivos, que geram sensações intensas, mas fugidias. Para que um aspecto desta percepção fique na memória é necessário que o estímulo tenha uma certa intensidade. (…) Recorremos a auxílios exteriores a nós mesmos para reencontrar nossas lembranças ou simplesmente para datá-las ou para localizá-las no tempo, pois podemos sentir sem memória, mas não podemos re-sentir sem ela.”

Essa foto foi bordada pela Carolina na experiência de bordado, e tem uma história muito linda. É o momento da formatura dela em Medicina, e esse cabeço é no seu pai. Foi um momento muito marcante pra ela, pelas dificuldades vividas ao longo para manter o curso. Seu pai foi seu grande apoiador, e ela quis ressaltar esse abraço de gratidão, tomando de flores como símbolo a envolver seu pai.


O bordado passa a ser, então, mais que um exercício estético, e muito mais um exercício de autocuidado, de busca e encontro de si mesmo e de uma história vivida. É uma forma de escrita, que passa pelos símbolos desenhados na imagem e chega na costura de si. Sobre isso, é importante dizer que as palavras “Texto" e “têxtil" não têm só sonoridades próximas. Para muitas culturas, a arte da tecelagem tem sua origem no mundo divino, e o cruzamento do conjunto da urdidura e trama, tem em si o simbolismo da existência na relação entre tempo e espaço.

Quis trazer aqui mais um bordado da Carolina, que dessa vez bordou a bênção de sua mãe no momento do seu casamento. Essa foto foi bordada meses depois da experiência, numa sequência aos processos criativos e ressignificação da memória que ela continuou a vivenciar.

Ou seja, bordar uma foto implica na escolha do momento vivido e destacado na imagem, portanto, uma viagem às memórias materializadas até que apareça a imagem certa; implica também na criação de novos símbolos para reviver essa história e projetar nela novas interpretações; e finalmente… implica no ato de costurar a memória à história de uma vida inteira, deixando que esse exercício possa ensinar também um pouco sobre quais caminhos essa vida ganhou extensão e profundidade, numa dinâmica de tempo e espaço.


Bordar a foto ĂŠ trazer a narrativa que se quer guardar e elaborar sobre ela os sentidos de uma vida percorrida. Bem diferente dos acĂşmulos sem sentido de Funes, nĂŁo? Que tal experimentar?


Bibliografia: BORGES, Jorge Luis - Funes, o Memorioso. In Ficções. SP, Cia das Letras - 2007. SALLES, Cecilia Almeida - Redes de Criação - a construção da obra de arte (versão digital em E-book Kindle). RONNBERG, Ami (chefe de redação) - O Livro dos Símbolos - Reflexões sobre imagens arquetípicas. Ed. Taschen, 2012. Para saber mais: Blog

e

podcast

“Psicopatologia

e

Literatura”

-

psicopatologiaeliteratura.blogspot.com Podcast: https://open.spotify.com/show/1HwqQz13rjCRS6Yoc6rwd0? si=cW23sgvQQdm91GzC9NTP-A


A literatura e a poesia como um fio para o bordado reconstruindo imagens de si e do mundo.

Ilustração de autoria desconhecida - extraída de pinterest.com


Dessa vez, quero falar de algo que é capaz de unir subjetividades numa mesma e única humanidade, sem deixar de ressaltar o que há de único em cada um - a poesia e a literatura. E quero unir essa linguagem a um fazer que tem em si diferentes camadas, e que tem sido o tema dos outros textos já escritos até aqui -

o

bordado na fotografia. Tenho uma admiração profunda por um filósofo francês do século XX, chamado Louis Lavelle e é a ele que vou recorrer algumas vezes para organizar meu pensamento nesse texto. Em um dos seus livros, chamado “A Consciência de Si”, há um capítulo dedicado à importância do ato de escrever, como um exercício de encontro com a própria consciência.

Ilustração de Catrín Welz-Stein

Para ele, “a escrita sempre pressupõe uma longa conversa consigo mesmo que aspira a se tornar uma conversa com todos os homens. (p. 53) Na literatura e na poesia, o que é capaz de nos emocionar, nos encantar ou assombrar, é muitas vezes exatamente a possibilidade que encontramos de nos comunicar com um mundo muito maior que nós, mas que vivencia sentimentos tão próximos, que diminuem as distâncias simbólicas e nos agrega a uma única humanidade. Mesa pronta para a experiência de bordado e poesia - Cecilia Meireles - realizada em junho de 2019.

Se você acompanhou os outros textos escritos até aqui, já viu a


comparação possível entre o sentido da palavra “texto" e “têxtil" e a relação com a memória, quando se borda a fotografia. Trazer a poesia e a literatura como uma referência para se escolher a fotografia e o bordado a ser feito, é como inserir uma camada a mais de significados na própria memória e subjetividade. É colocar a sua memória para se encontrar com outras tantas memórias possíveis, outras histórias de vida e outras biografias. É, enfim, uma costura simbólica de mundos, em que você deixa de estar só, mas permanece sendo único.

Bordado da Valéria, na experiência de bordado e poesia sobre Cecilia Meireles e seu “Cântico XXIV”

“Os melhores livros não nos dão a conhecer nada que seja exterior a nós: lembram-nos diversos encontros nos quais a verdade trazidas por eles já se revelara a nós espontaneamente. Dela havíamos tido uma visão rápida e evanescente, que agora se transforma em iluminação. Ela deixa de ser incerta e nebulosa: a pureza de seu contorno se desenha. Nossa confiança na exatidão de nosso olhar aumenta: até então não ousávamos permitir que ele se demorasse no ligeiro sulco que a verdade havia traçado na superfície de nossa consciência. Agora que essa verdade parece ser-nos proposta por outrem, ousamos tomar posse dela: tornamo-nos capazes de contemplá-la, de testá-la e de estabelecer-nos nela.” (LAVELLE, p. 54)


A partir do mesmo poema de Cecilia, esse foi o trabalho realizado pelo Luiz, na mesma oficina em que esteve a Valeria.

Ao longo desse tempo em que realizo os encontros de bordado e fotografia, já tive três experiências de trazer a poesia como um tema para a roda de bordar. Numa delas, trouxe Cecilia Meireles e seu "Cântico XXIV”; na outra, trouxe Antonio Cícero, e seu poema “Guardar”, que trata da memória especialmente; e trouxe há pouco tempo, antes de entrarmos em período de isolamento social, João Cabral de Melo Neto e sua “Pequena Ode Mineral”. Minhas escolhas de autores e poemas passaram sempre por tentar refletir a partir do fazer manual do bordado simbólico sobre a imagem, algumas questões que envolvessem essa humanidade que temos em nós, para além das histórias pessoais de cada um. Em todos os encontros, me surpreendi com a maneira como a poesia pode fazer ir além do previsto qualquer relação simbólica a ser construída. Sempre me surpreende a maneira como a partir de um interlocutor comum para todos nós - que é o próprio poeta - encontramos em nós valores únicos e universais, conversamos com nossas circunstâncias momentâneas, mas nos colocamos a pensar para além dela. Como diz Lavelle, “quem comunica sua intimidade não fala mais de si, mas de um universo espiritual que traz em si e que é o mesmo para todos.” Nesse sentido as fotografias de cada encontro de bordado também não foram trazidas pelos participantes, mas escolhidas por mim. Uma escolha, em princípio


arriscada por sua arbitrariedade, mas ao mesmo tempo, organizadora de alguma maneira dos limites impostos pelo tempo da oficina e os caminhos para a interpretação simbólica. Afinal, é preciso um mínimo de condução e de geração de tranquilidade para um grupo que não se conhece e está se encontrando pela primeira vez. Fotos de artistas que, na minha opinião, poderiam de alguma maneira suscitar mais uma camada de leitura, uma nova (re)interpretação de um texto, agora não verbal. Novas surpresas ao ver que uma mesma foto pode gerar diferentes visões sobre o mesmo poema. São camadas de sentido, significado e simbolização. O exercício de bordar uma imagem a partir de um poema lido e compartilhado entre todos, é um encontro de si consigo mesmo e com sua consciência e memória, mas é mais que isso, se é que poderia ficar ainda mais bonito: é um encontro com uma humanidade inteira, que comunga de sentimentos, valores, angústias e possibilidades. E é o encontro

Poder ter um tempo para se ouvirem, nas diferentes subjetividades e construções simbólicas em cada foto bordada. Esse é um momento e um sentido fundamental dessas experiências de bordado e poesia. A partir, muitas vezes, da mesma foto escolhida por mais um participante, há histórias e interpretações únicas, e é aí que mora a delicadeza na partilha desses saberes.

direto com uma escolha de alguém que decidiu comunicar com palavras, ao que agora escolhemos responder com símbolos, imagens e principalmente, a linha e a agulha, numa fiação de sentidos, tempos e espaços nas urdiduras e tramas do fazer manual.


Bordar uma fotografia a partir dos versos e estrofes de um poema é como fazer um encontro com o humano que mora em nós e também com a humanidade que existe no mundo. Não só ressignificar nossa própria história e memória, mas incluí-la numa pertença espiritual maior, a partir de um gesto simples, mas definitivo - o fazer manual e o costurar(-se) nas próprias histórias.

Uma cena registrada na experiência de bordado e poesia sobre a memória, a partir do poema “Guardar”, de Antonio Cícero.

Bibliografia: LAVELLE, Louis - A Consciência de Si. SP. Ed. É Realizações, 2014. ___________ - O Erro de Narciso. SP, Ed. É Realizações, 2012.



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